SUMÁRIO:
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Havendo procedimento de segundo grau, quer o ato primário tenha sido mantido quer tenha sido alterado e substituído pelo ato do segundo grau, a decisão administrativa final acaba por ser o ato de segundo grau, pelo que deverá ser em relação a este ato que deverá aferir-se se o contribuinte teve ou não oportunidade de participar na sua formação.
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A preterição de uma formalidade de não ter sido assegurado o exercício do direito de audiência só pode degradar-se em formalidade não essencial, e assim destituída de efeito invalidante, se se demonstrar que, mesmo sem ela ter sido cumprida, a decisão final do procedimento não poderia ser diferente.
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O princípio do aproveitamento do ato tributário apenas será admissível quando a intervenção do interessado no procedimento tributário for inequivocamente insuscetível de influenciar a decisão final, o que acontece em geral nos casos em que se esteja perante uma situação legal evidente ou se trate de atividade administrativa vinculada, em que não se vislumbre a mínima possibilidade de a audição poder ter influência sobre o conteúdo da decisão.
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Quando esteja em causa a anulação do ato tributário por vício de falta de fundamentação, e não de qualquer ilegalidade, à luz das normas substantivas, que expresse o carácter indevido da prestação tributária, não pode concluir-se, de acordo com o artigo 43.º da LGT, que se encontram reunidos os requisitos para a concessão de juros indemnizatórios.
DECISÃO ARBITRAL
O árbitro designado para formar o Tribunal Arbitral Singular constituído em 24 de maio de 2022, Rui Miguel Zeferino Ferreira, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”), decide o seguinte:
I. Relatório
A... adiante “Requerente”, titular do número de identificação fiscal (NIF) ..., com sede na Rua ..., ..., em Lisboa, ...-... Lisboa, veio requerer a constituição de Tribunal Arbitral e deduzir pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1 e 10.º, n.º 1, alínea a), ambos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, na redação vigente.
A Requerente no âmbito do identificado pedido de pronúncia arbitral pretendia, a declaração ilegalidade do ato de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2020..., e de forma mediata do ato de liquidação oficiosa de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) n.º 2019..., referente ao ano de 2015, consubstanciada na nota de cobrança n.º 2019..., no valor de € 22.798,31 (vinte e dois mil setecentos e noventa e oito euros e trinta e um cêntimos).
Nesse âmbito, formula o pedido de pronuncia arbitral, para que sejam declarados ilegais os identificados atos tributários, bem como seja a Autoridade Tributária e Aduaneira (“Requerida”) condenada na devolução do pagamento efetuado em consequência da referida liquidação oficiosa, incluindo juros compensatórios, tudo no montante de € 22.798,31 (vinte e dois mil setecentos e noventa e oito euros e trinta e um cêntimos). Igualmente, formula o pedido de condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento de juros indemnizatórios, que perfaziam à data do pedido de prenuncia arbitral o montante de € 2.003,75 (dois mil e três euros e setenta e cinco cêntimos).
Como fundamento da sua pretensão, a Requerente invoca, em síntese:
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Que o ato tributário de liquidação e o ato de indeferimento total da reclamação sobre o qual recai o pedido de pronúncia arbitral enferma em vícios procedimentais.
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Que, de modo contrário ao que resulta da decisão de indeferimento do ato tributário de Reclamação Graciosa, a Requerente exerceu o direito de audição prévia, sobre os fundamentos do projeto de decisão de indeferimento da referida Reclamação Graciosa, pelo que o procedimento enferma do vício procedimental, por falta de participação da interessada.
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Que, apesar da Requerente ter sido notificada para o efeito, a não ponderação das alegações proferidas em sede de audiência prévia, conduz indubitavelmente à mesma consequência jurídica, de preterição do exercício do direito de audição prévia.
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Que a Requerente tinha o direito de se pronunciar em sede de audiência prévia, entre o mais, atento o facto de em sede de reclamação graciosa serem suscitadas novas questões, para as quais a Requerente qualifica como sendo falsas, nomeadamente, no que respeita há não apresentação de recibos do pagamento de determinadas despesas.
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Que, no projeto de decisão do indeferimento a reclamação graciosa, foram apresentados elementos novos relativamente à sustentação do ato tributário de liquidação oficiosa, que além dessa circunstância, não têm suporte na realidade material, designadamente a referência à existência a vários prédios, quando em causa, e não obstante a referência a mais de um número de polícia associado, se tratava de um único prédio.
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Que a Requerente deveria ter tido a oportunidade de se pronunciar sobre as pretensões da Requerida e, bem assim, que o seu contraditório fosse ponderado na decisão final sobre o sentido da decisão a adotar em sede de Reclamação Graciosa.
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Que não se pode considerar ter sido dado cumprimento ao direito de audiência prévia, em sede de procedimentos de divergências da declaração de IRS, do ano de 2015, pelo que antes da emissão da liquidação oficiosa não teve a oportunidade de se pronunciar em sede de audiência prévia.
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Que o ato de liquidação oficiosa de IRS, padece do vício de falta de fundamentação, quando não procede à ponderação dos argumentos apresentados em sede de audiência prévia, quanto às pretensas despesas não ilegíveis, que terão estado na base da referenciada liquidação oficiosa.
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Que a invocação do artigo 128.º do CIRS, relativo à necessidade de comprovação das despesas, não pode ser equiparado à realização da audição prévia de interessados no procedimento.
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Que das faturas reportadas aos documentos 9 e 10, a Requerida nada fundamenta quanto à existência de eletrodomésticos, mobiliário, artigos de decoração ou conforto, bem como sobre os equipamentos sanitários e mobiliário instalados no prédio pelo empreiteiro da obra, tal como não fundamenta o seu pretenso enquadramento no conceito de mobiliário ou artigos de conforto ou decoração.
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Que as faturas apresentadas respeitam à obra realizada, e que do seu âmbito não constam quaisquer eletrodomésticos, mobiliário, artigos de decoração ou de conforto, e que equipamentos sanitários ou mobiliário de cozinha não são eletrodomésticos, mobiliário ou artigos de decoração ou conforto.
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Que, para além da anulação da liquidação oficiosa de IRS, do ano de 2015, devem ser anulados os respetivos juros compensatórios, bem como serem pagos juros indemnizatórios à Requerente, desde 30.12.2019.
É demandada a AT, doravante também designada por “Requerida”.
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi efetuado em 14 de março de 2022, e aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 16 de março de 2022 e, de seguida, notificado à AT.
Nos termos do disposto do artigo 5.º, n.º 2, do artigo 6.º, n.º 1 e do artigo 11.º, n.º 1, alínea b) do RJAT, na redação vigente, o Exmo. Presidente do Conselho Deontológico designou o árbitro do Tribunal Arbitral singular, que comunicou a aceitação do encargo.
Em 5 de maio de 2022, as Partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados das alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
O Tribunal Arbitral Singular foi constituído em 24 de maio de 2022.
Em 28 de junho de 2022, a Requerida apresentou Resposta, bem como remeteu o processo administrativo, na qual se defende por impugnação, pugnando, pela improcedência total do pedido de pronúncia arbitral, com todas as consequências legais.
A Requerida alega, em resumo:
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Que a Requerente submeteu, em 31.05.2016, a declaração periódica de IRS, do ano de 2015, que ficou no estado de “não liquidável”, a que se seguiu a apresentação de uma declaração de substituição, em 22.06.2016, onde indicou no anexo F, o valor de € 79.019,50 de gastos suportados e pagos com prédios arrendados, de que resultou a liquidação n.º 2016... e a nota de cobrança n.º 2016..., no valor a pagar de € 15.303,80, o qual incluía o valor de € 36,80 de juros compensatórios, que se encontra paga.
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Que, em 30.07.2018, foi submetida nova declaração de substituição, sobre a qual recaiu a liquidação sem juros n.º 2019... e nota de reembolso n.º 2019..., no valor de € 37,41, que incluiu juros indemnizatórios no valor de € 0,62, que se encontra paga.
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Que foi detetada a divergência n.º ..., por necessidade de comprovação dos montantes das despesas de prédios arrendados, de onde resultou parecer da DSIRS de serem desconsideradas as despesas, por não estarem suportadas documentalmente, pelo que, foi a Requerente notificada das alterações efetuadas em 22.01.2019.
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Que, em 14.11.2019, foi elaborada a declaração oficiosa n.º ...-2015-... -... com as alterações efetuadas em sede de divergências, à qual se seguiu a liquidação oficiosa n.º 2019... .
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Que, em 14.04.2020, a Requerente apresentou uma Reclamação Graciosa, e no âmbito do qual foi notificada na sua pessoa e na pessoa do seu mandatário para exercer o direito de audição prévia, por ofícios de 13.10.2021, a qual veio a exercer o respetivo direito, de onde resultou a decisão final de indeferimento, notificada à Requerente e ao seu mandatário através do ofício de 13.12.2021.
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Que a Requerente tem arrendamentos de diversos artigos urbanos, sitos em distintas freguesias, sendo que cada um dos artigos igualmente se individualizam em frações, pelos que os rendimentos inscritos, pela própria contribuinte, decorrem do arrendamento de cada fração individualizada e não de todo um “prédio”.
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Que resulta do artigo 41.º, do CIRS, o dever de os gastos efetivamente suportados serem relativos a cada prédio ou parte de prédio, isto é, por cada imóvel individualizável de cujo arrendamento decorre o rendimento, tendo estes de se mostrar comprovados por documentos válidos e que permitam aferir a sua correspondência a cada bem imóvel arrendado.
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Que a Autoridade Tributária tem o poder ao abrigo do artigo 128.º, do CIRS, de solicitar que sejam apresentados os elementos comprovativos, o que o exerceu, e que culminou com a Requerente a apresentar os documentos que julgou adequados e suficientes para comprovar os gastos declarados como suportados, mas que a Requerida entendeu não permitirem a comprovação da informação declarada, de tal tendo sido oficiada para efeitos do direito de participação da Requerente.
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Que antes do ato tributário definitivo e executório, o princípio da informação e colaboração entre a Requerida e a Requerente foi promovida, naquilo que era exigível perante procedimentos prévios ao apuramento, face à circunstância de a lei disponibilizar meios de contestação posteriores, onde novos elementos devidamente sustentados poderiam ser apresentados.
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Que, nesse procedimento prévio, a Requerente foi notificada não apenas para a necessidade de comprovação da informação inscrita na declaração, como, depois, de que se havia considerado que os meios apresentados não cumpriam com as exigências legais, mas que tal entendimento era passível de contestação.
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Que, em face das dúvidas da Requerida e dos documentos apresentados pela Requerente, a primeira concluiu que embora fossem passiveis de serem elegíveis as despesas, não era possível determinar qual o valor que concretamente corresponde a cada um e em relação a cada imóvel em concreto, nomeadamente, não se mostrava identificado de forma específica em qual apartamento estavam a ser aplicados os bens e/ou realizados os serviços.
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Que os documentos apresentados, quer no procedimento de divergências, quer no procedimento de Reclamação Graciosa, não se mostravam conformes ao exigido legalmente para comprovar de forma licita e clara os gastos suportados com o fim do apuramento do rendimento da categoria F, auferido no ano de 2015.
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Que o ato tributário de liquidação oficiosa não está ferido de qualquer ilegalidade ou incorreção, tendo sido promovidas as correções em concordância com o quadro legalmente admissível, perante a não comprovação cabal de alguns dos elementos inscritos na declaração de rendimentos pela contribuinte, designadamente os gastos mencionados no anexo F da modelo 3 de IRS, do ano de 2015.
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Que a factualidade controvertida não havia sofrido qualquer inovação desde antes do DC, tal como os argumentos apresentados para sustentar a Reclamação Graciosa, com recursos a menções incorretas de todo o procedimento e apreciações, não se mostravam devidamente sustentadas, com exceção dos recibos comprovativos do pagamento dos montantes identificados nas faturas apresentadas.
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Que a falta de referência à audiência previa na decisão de indeferimento, podia constituir causa de anulabilidade à luz do artigo 163.º do CPA, aplicável ex vi 2.º da LGT, mas que o n.º 5 da mesma disposição legal dispõe que não se produz o efeito anulatório quando se comprove, sem margem para dúvidas, que o conteúdo do ato decisório seria o mesmo.
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Que, atento aos argumentos precedentes, verifica-se que não havendo lugar a qualquer anulação da liquidação, dada a sua inteira legalidade, não assiste à Requerente qualquer direito a juros indemnizatórios.
Em 10 de outubro de 2022, foi proferido despacho arbitral para averiguar da utilidade ou não da prova testemunhal, concedendo-se, à Requerente, o prazo de 5 dias, para informar os autos quais os concretos factos sobre o qual pretendia fazer recair a inquirição. A Requerente, respondeu, esclarecendo o tribunal arbitral, em 13 de outubro de 2022.
Em 24 de novembro de 2022, foi agendada a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, pelo deferimento da inquirição das testemunhas arroladas, bem como ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 21.º do RJAT, fez-se uso da possibilidade aí prevista, e determinou-se a prorrogação do prazo acima identificado por um período de 2 (dois) meses, indicando-se o dia 24 de janeiro de 2023 como data previsível para prolação da decisão arbitral.
Em 15 de dezembro de 2022, realizou-se a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, em que foram inquiridas as testemunhas B... e C..., tendo sido ambas inquiridas sobre os artigos 104.º a 108.º do pedido de pronuncia arbitral.
A Requerente, em 10 de janeiro de 2023, apresentou as suas alegações, procedendo nesse momento à junção do comprovativo da taxa de arbitragem subsequente. A Requerida não apresentou alegações no prazo concedido.
Em 24 de janeiro 2023, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 21.º do RJAT, fez-se uso da possibilidade aí prevista, e determinou-se a prorrogação do prazo acima identificado por um período de 2 (dois) meses, indicando-se o dia 24 de março de 2023 como data previsível para prolação da decisão arbitral.
II. Do Saneamento do processo
O Tribunal Arbitral Singular é materialmente competente, e encontra-se regularmente constituído nos termos dos artigos 2º, nº 1, alínea a), 5º e 6º do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devida e legalmente representadas (artigos 3º, 6º e 15º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, ex vi artigo 29º, nº 1, alínea e) do RJAT.
O processo não enferma de nulidades.
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Da fundamentação
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Matéria de facto
A.1. Factos Provados
Com relevo para a decisão do processo arbitral, importa atender à seguinte factualidade, que se julga provada:
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A Requerente é residente em Portugal, na Rua ..., ..., em Lisboa, ...-... Lisboa.
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A Requerente era no ano de 2015 proprietária do prédio do ..., números 14, 15 e 16, em Lisboa.
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Em 31.05.2016, a Requerente submeteu, referente ao ano de 2015, declaração periódica de IRS, Modelo 3, n.º ...-2015-...-..., que ficou no estado de “não liquidável”.
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Em 22.06.2016, a Requerente submeteu declaração periódica de IRS, Modelo 3, de substituição, onde fez constar no anexo F, o valor de € 79.019,50 de gastos suportados e pagos com prédios arrendados, sobre o qual, recaiu a liquidação n.º 2016..., a que se nota a nota de cobrança n.º 2016..., no valor a pagar de € 15.303,80, incluindo 36,80 de juros compensatórios.
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A nota de cobrança n.º 2016..., no valor a pagar de € 15.303,80, incluindo 36,80 de juros compensatórios foi paga pela Requerente.
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Em 30.07.2018, submeteu nova declaração periódica de IRS, Modelo 3, de substituição, n.º ...-2015-...-..., sobre a qual recaiu a liquidação n.º 2019..., a qual deu origem à nota de reembolso n.º 2019..., no valor de € 37,41, incluindo juros indemnizatórios de € 0,62.
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A Requerida gerou a divergência n.º..., com vista à Requerente proceder à comprovação dos montantes das despesas dos prédios arrendados.
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A DSIRS emitiu parecer no sentido de serem desconsideradas as despesas, por não estarem suportadas documentalmente.
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A Requerente, em 22.01.2019, foi notificada das alterações que iriam ser efetuadas, bem como dos direitos de reclamar e/ou impugnar.
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Em 14.11.2019, a Requerida elaborou a declaração oficiosa n.º ...-2015-... -..., contemplando as correções efetuadas em sede de divergências, à qual se seguiu a liquidação oficiosa n.º 2019... .
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Em 30.12.2019, a Requerente procedeu ao pagamento da liquidação oficiosa n.º 2019..., no montante de € 22.798,31 (vinte e dois mil setecentos e noventa e oito euros e trinta e um cêntimos).
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Em 14.04.2020, a Requerente apresentou pedido de Reclamação Graciosa, a que foi atribuído o n.º ...2020... .
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Através de ofício de 13.10.2021, a Requerente foi notificada para exercer o direito de audição prévia, cujo projeto de decisão, entre o mais, sustentava o seguinte:
“V – ANÁLISE DO PEDIDO E PARECER
3 – As faturas em causa, conforme já referido em anterior Informação n.º 1335/19 da DSIRS não servem de comprovativo documental para que as despesas nelas incluídas sejam aceites como despesas de conservação e manutenção, pelos motivos já explanados, uma vez que não é possível Informação separar o valor do custo de cada parcela incluída, e que concorre para o montante total, contendo despesas, nomeadamente, concernente a eletrodomésticos e diversos móveis que não podem ser aceites.
4 – Os requisitos legais das faturas têm que ser observados por forma a permitirem um controle sobre que exato serviço foi prestado, quando, onde, em que quantidade, e a quem, de forma a permitir reconstituir que serviço foi prestado e qual o seu custo.
5 – Ora, as faturas em causa referem-se indiscriminadamente aos “prédios 14, 15 e 16 do ... em Lisboa”, como um todo, não se consegue perceber para cada um dos prédios qual a despesa que lhe corresponde.
(...)
7 – Determina o n.º 1 do art.º 41º do CIRS que aos rendimentos brutos referidos no art.º 8º deduzem-se relativamente a cada prédio ou parte do prédio, todos os gastos suportados e pagos pelo sujeito passivo para obter ou garantir tais rendimentos.
8 – O recibo é o documento que comprova que o cliente pagou a totalidade dos produtos ou dos serviços adquiridos. Contra pagamento deve ser emitida fatura e o respetivo recibo, ou documento que agregue ambos.
9 – Assim, além de documentação que não permite a extração dos elementos que não podem ser considerados para efeitos de despesas de conservação e manutenção, nem a correta identificação dos prédios a que dizem respeito, senão como um todo, como se a um único prédio ou parte de prédio dissesse respeito, não foram apresentados comprovativos válidos de pagamento.
10 – Relativamente ao direito de audição prévia após o parecer da DSIRS, tendo já sido exercido no âmbito da divergência, aquando da apresentação dos documentos que considerou necessários, não constitui uma atuação contrária à boa fé, claro abuso de direito, conforme afirma a reclamante, senão vejamos:
11 – O procedimento que culminou no ato de liquidação ora em crise, teve na sua origem uma análise interna (no âmbito de divergência) desencadeada pela AT, sendo que no desenrolar do procedimento, a administração cumpriu os seus deveres de informação, chamando o contribuinte à participação no procedimento.
12 – Com efeito, é dado conhecimento à reclamante de que deve, nos termos do art.º 128.º do CIRS, comprovar os elementos inscritos na declaração de rendimentos do ano de 2015, relativamente aos valores das despesas dos imóveis arrendados.
11 – Cumpre, ainda, referir que por não se verificarem “in casu” os pressupostos do n.º 1 do art.º 43.º da LGT, fica prejudicada a apreciação do direito a juros indemnizatórios.
VI – PROPOSTA DE DECISÃO Face ao acima exposto e, salvo melhor entendimento, somos a propor seja mantida a liquidação em crise e indeferido o pedido da reclamação graciosa, de acordo com os fundamentos da presente informação.”
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Em 29.10.2021, a Requerente exerceu o direito de audição prévia.
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A Requerida não ponderou na decisão final sobre o procedimento de Reclamação Graciosa, a pronuncia da Requerente em sede de audiência prévia, tendo entre o mais, decido sob a fundamentação seguinte:
“I – AUDIÇÃO PRÉVIA
1 – Atendendo aos fundamentos de facto e de direito constantes do projeto de decisão, foi exarado em 13/10/2021 despacho de indeferimento do pedido de Reclamação Graciosa, pela Chefe de Divisão, por subdelegação, da Divisão de Justiça Administrativa da Direção de Finanças de Lisboa, relativamente ao ato tributário de liquidação oficiosa (LO) de IRS n.º 2019..., referente ao período de tributação de 2015, consubstanciada na Nota de Cobrança n.º 2019..., no valor a pagar de €22.798,31.
(...)
4 – Nestes termos, o prazo para a Reclamante exercer o direito de audição prévia expirou a 2021-11-03. 5 – Uma vez que, até à presente data, a ora reclamante não exerceu o seu direito de audição prévia, e se mantêm válidos os fundamentos constantes do projeto de decisão, propõe-se que o mesmo seja convolado em definitivo.
II – CONCLUSÃO
À luz do exposto, e salvo melhor entendimento, somos de parecer que deverá ser convolada em definitiva a decisão projetada no sentido do indeferimento da presente reclamação graciosa.”
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O despacho de indeferimento da Reclamação Graciosa, de 13.12.2021, foi notificado, sob o registo, ao mandatário, e à Reclamante por carta simples.
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Em 14.03.2022, a Requerente apresentou pedido de pronuncia arbitral.
A.2. Factos não Provados
Com relevo para a decisão, não existem outros factos alegados que devam considerar-se não provados.
A.3. Fundamentação da matéria de facto dada como provada e não provada
Relativamente à matéria de facto, o tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe sim o dever de selecionar os factos que importa, para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artº 123º, nº 2 do CPPT e artigo 607º, nº 3, aplicáveis ex vi artigo 29º, nº 1, alíneas a) e e) do RJAT.
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. artigo 596º do CPC, aplicável ex vi artigo 29º, nº 1, alínea e) do RJAT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes à luz do artigo 110º, nº 7 do CPPT, a prova documental e o PA anexo, bem como a prova testemunhal produzida nos presentes autos, consideram-se provados, com relevo para a decisão, os factos supra elencados.
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Do direito
B.1 Questões a decidir
Cumpre solucionar as seguintes questões:
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Da ilegalidade da liquidação por violação de formalidades legais, por falta de audiência prévia no procedimento de divergências;
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Da ilegalidade da liquidação por violação de formalidades legais, por falta de audiência prévia no procedimento de Reclamação Graciosa, por falta de pronúncia sobre os elementos apresentados pela Requerente, na fundamentação da decisão de indeferimento;
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Da ilegalidade das liquidações por vício de falta de fundamentação;
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Da ilegalidade das liquidações por vício de erro na quantificação das despesas dedutíveis ao abrigo do artigo 41.º do CIRS;
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Do direito da Requerente a obter o recebimento de juros indemnizatórios;
A título de enquadramento, e antes de se analisar as diversas questões definidas, importa enquadrar o problema material dos presentes autos, o qual resulta da dedutibilidade das despesas a que se reporta o artigo 41.º, do CIRS, para efeitos de rendimentos prediais.
O artigo 8º n.º 1 do Código do IRS diz-nos que: “1. Consideram-se rendimentos prediais as rendas dos prédios rústicos, urbanos e mistos pagas ou colocadas à disposição dos respetivos titulares (…)”. E o n.º 2, alínea a) do mesmo artigo refere que: “2. São havidas como rendas: a) As importâncias relativas à cedência do uso de prédio ou de parte dele e aos serviços relacionados com aquela cedência”.
Quanto ao artigo 41º do Código IRS, que estipula quais as despesas dedutíveis na categoria F, tinha a seguinte redação no ano de 2015:
“1 – Aos rendimentos brutos referidos no artigo 8.º deduzem-se, relativamente a cada prédio ou parte de prédio, todos os gastos efetivamente suportados e pagos pelo sujeito passivo para obter ou garantir tais rendimentos, com exceção dos gastos de natureza financeira, dos relativos a depreciações e dos relativos a mobiliário, eletrodomésticos e artigos de conforto ou decoração.”
Resultam assim, deste n.º 1, duas categorias de despesas dedutíveis: todos os gastos efetivamente suportados e pagos pelo sujeito passivo, que se mostrem necessários a obter ou garantir os referenciados rendimentos prediais. Tal como resulta da anotação a este artigo, constante dos Códigos Anotados e Comentados, Lexit, “aos rendimentos brutos enquadráveis na Categoria F deduzem-se, relativamente a cada prédio ou parte de prédio, todos os gastos efetivamente suportados e pagos pelo sujeito passivo para obter ou garantir tais rendimentos. Fora desta possibilidade ficam os gastos de natureza financeira, das depreciações e das despesas relativas a mobiliário, eletrodomésticos e artigos de conforto ou decoração, bem como do AIMI”. Acrescenta ainda que, “na redação anterior à Lei n.º 82-E/2014, de 31 de dezembro, as deduções aqui previstas limitavam-se às despesas de manutenção e de conservação que incumbissem ao sujeito passivo, sendo também admissíveis deduções referentes ao IMI e IS que incidissem sobre o valor dos prédios ou parte de prédios cujo rendimento fosse objeto de tributação nesse ano fiscal.”.
Nesse contexto, nos citados Códigos Anotados e Comentados, Lexit, resulta que:
“(...) consideram-se despesas de conservação:
a) A reparação e limpeza geral do prédio e suas dependências;
b) As obras impostas pela Administração Pública, nos termos da lei geral ou local aplicável, e que visem conferir ao prédio as características;
c) Em geral, as intervenções destinadas a manter ou a repor o prédio em bom estado de preservação e nas condições de habitabilidade requeridas pelo fim do contrato de arrendamento e idênticas às existentes à data da sua celebração; e
d) As obras ocasionadas por defeito de construção do prédio ou por caso fortuito (imprevisível) ou de força maior (inevitável) e, em geral, as que não sendo imputáveis a ações ou omissões ilícitas perpetradas pelo senhorio, ultrapassem dois terços do rendimento líquido do ano em que se tornem necessárias.
Por seu turno, as despesas de manutenção incluem, nomeadamente, os encargos suportados com a energia e manutenção dos elevadores, escadas rolantes e monta-cargas, porteiros, energia para iluminação, aquecimento ou climatização central, administração da propriedade horizontal, prémios de seguro do prédio e taxas autárquicas, não relevando quaisquer outros que não se mostrem inequivocamente conexos com a manutenção do prédio (v.g. encargos com processos judiciais de despejo de ocupantes)”.
Tal como resulta da decisão arbitral, adotada no processo n.º 435/2014-T, as despesas de conservação “são aquelas que dizem respeito ao estado e funcionamento do edifício em si, e que não se incluem no conceito de despesas de manutenção, como obras de reparação, gerais, periódicas, e, incluindo aquelas que mantenham ou aumentem o valor do edifício, e acrescentem novas mais valias, tais como piscinas, ginásios, elevadores, entre outras, e em especial as que confiram um nível de habitabilidade idêntico ao existente à data da celebração do contrato de arrendamento”
Posto isto, antes de analisar as questões a decidir, impõe-se, também, referir que tem o Tribunal de apreciar a questão suscitada pela Requerente nas Alegações, de que a AT na Resposta invocou factos novos que não constavam da fundamentação do indeferimento da sua reclamação graciosa.
Aquele facto novo consiste nas alegações feitas a propósito da pretensa aplicação do artigo 163.º, n.º 5, do CPA, quando sustenta que “apesar de a informação que teve por base o despacho conter uma incorreção, dado que a requerente exerceu atempadamente o direito de audição, podendo constituir causa de anulabilidade à luz do art.º 163º do CPA, aplicável ex vi art.º 2 LGT, o nº 5 da mesma disposição legal dispõe que não se produz o efeito anulatório quando se comprove, sem margem para dúvidas, que o conteúdo do ato decisório seria o mesmo.”.
Com efeito, a este tribunal compete unicamente, salvo casos excecionais expressamente previstos na lei e que de modo algum se aplicam neste, apreciar os factos e os fundamentos coevos da ocorrência dos factos controvertidos e que se encontram em apreciação nos autos.
Tal como já decidido anteriormente em processo do CAAD, nomeadamente, no 57/2021-T, entendeu-se, com razão, que:
A fundamentação sucessiva ou a posteriori não é relevante como fundamento do facto impugnado, quando não acompanhado de revogação e prática de um novo acto. Por isso, a fundamentação ou a remissão para documentos que a contenham tem de integrar-se no próprios acto e serem contemporâneos dele, não relevando para apreciação da validade formal do acto fundamentos invocados posteriormente.
No contencioso de mera legalidade, como é o caso do processo de impugnação judicial, funciona o princípio da proibição da fundamentação a posteriori. Isto é, o tribunal tem de limitar-se à formulação do juízo sobre a legalidade do ato sindicado tal como ele ocorreu, apreciando a respetiva legalidade em face da fundamentação contextual integrante do próprio ato, estando impedido de valorar razões de facto e de direito que não constem dessa fundamentação, seja por iniciativa oficiosa do tribunal, seja por meio de novos argumentos que tenham sido invocados pelas partes na pendência do processo impugnatório.
Termos em que, o argumento suscitado pela AT na Resposta e que não consta da fundamentação dos atos impugnados não será considerado por este Tribunal, sem prejuízo de em sede aplicação de direito se analisar a questão.
B.2 Da ilegalidade da liquidação por violação de formalidades legais, por falta de audiência prévia no procedimento de divergências
Quanto a esta questão, a Requerente sustenta que além da “(...) falta de exercício do direito de audição prévia ao indeferimento da reclamação, na realidade, apesar da notificação formal para esse exercício efetuada por parte da AT não é possível senão concluir – de uma forma equivalente – aquela que seria a pura e simples preterição desse exercício”, que se verificou a mesma falta “(...) no procedimento de primeiro grau, neste caso, audição prévia a realizar antes da liquidação oficiosa que corrigiu a sua declaração de IRS de 2015 (...)”. Assim, sustenta que entende que tal liquidação deveria ter sido procedida de audiência prévia, e que não terá sido.
Ora, analisemos neste ponto falta da audiência prévia antes da liquidação oficiosa, que corrigiu a declaração de IRS, de 2015, da Requerente. A este respeito, a decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa, por remissão para o projeto de decisão, defende que:
“10 – Relativamente ao direito de audição prévia após o parecer da DSIRS, tendo já sido exercido no âmbito da divergência, aquando da apresentação dos documentos que considerou necessários, não constitui uma atuação contrária à boa fé, claro abuso de direito, conforme afirma a reclamante, senão vejamos:
11 – O procedimento que culminou no ato de liquidação ora em crise, teve na sua origem uma análise interna (no âmbito de divergência) desencadeada pela AT, sendo que no desenrolar do procedimento, a administração cumpriu os seus deveres de informação, chamando o contribuinte à participação no procedimento.
12 – Com efeito, é dado conhecimento à reclamante de que deve, nos termos do art.º 128.º do CIRS, comprovar os elementos inscritos na declaração de rendimentos do ano de 2015, relativamente aos valores das despesas dos imóveis arrendados.”.
Ora, no que diz respeito à alegada falta de audição prévia, e ao que ao caso aproveita, prevê o nº 1 alínea a) do artigo 60º da Lei Geral tributária (LGT) que “a participação dos contribuintes na formação das decisões que lhes digam respeito pode efectuar-se, sempre que a lei não prescrever em sentido diverso, por qualquer das seguintes formas: a) Direito de audição antes da liquidação; (…)”.
Neste âmbito, e como defendeu a Decisão Arbitral adotada no processo 423/2018-T, de 5 de Fevereiro de 2019, “(…) o princípio da audiência dos interessados previsto no n.º 1 do artigo 100.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA), embora não corresponda a um direito fundamental, é uma concretização do modelo da administração participada expresso no n.º 5 do artigo 267.º da C.R.P., que impõe à Administração Pública a participação dos particulares na formação das decisões que lhe digam respeito, sendo uma das manifestações mais flagrantes do modelo da Administração aberta. O direito ou dever de audição-prévia serve para assegurar as garantias de defesa dos particulares, de modo a garantir a justeza e a correcção do acto final do procedimento. Dada a sua importância, o direito de audição-prévia só pode ser dispensado nas situações legalmente previstas, como as que estão elencadas no artigo 60.º, n.º 2 e 3 da LGT”.
Também, como refere Jorge Lopes de Sousa (in “Código de Procedimento e de Processo Tributário - Anotado e Comentado”, Áreas Editora, 6ª edição, I volume, anotação 3 ao artigo 45.º, pág. 426), “há que notar que não é apenas quando a decisão se fundamenta em factos não afirmados pelos interessados que se justifica o direito de audiência, pois o direito de participação na formação na decisão constitucionalmente reconhecido reporta-se à sua globalidade, abrangendo por isso, o direito de este se pronunciar sobre qualquer questão de direito relativamente à qual não haja sintonia entre a sua posição e a que a administração tributária pretende adoptar no procedimento tributário”. O mesmo Autor explica detalhadamente porque é que o direito de audiência não se justifica só nos casos em que haja apreciação de factos, mas também tem lugar nos casos em que tenha de haver apenas apreciação de questões de direito (neste sentido, o Acórdão do TCAS nº 02046/04.0BELSB 0808/18, de 14.10.2020 – em que foi relator o Conselheiro Francisco Rothes).
Por outro lado, na Circular nº 13/99, de 08.07.1999, é referido que “(…). O direito de participação dos interessados na formação das decisões que lhes digam respeito já se encontra previsto nos artigos 100º a 105º do (…) (CPA), sendo que, nos termos da alínea c) do artigo 2º da Lei Geral Tributária, aquele diploma é expressamente aplicável às relações jurídico-tributárias. Assim, para determinação do âmbito do artigo 60º da LGT deve, também, atender-se, embora subsidiariamente, ao regime decorrente daquelas normas. (…)”.
De acordo com o Acórdão do TCAN n.º 1196/05.0BEPRT, de 02-02-2017, em que foi relator o Conselheiro Mário Rebelo, “o princípio da participação dos contribuintes nas decisões que lhes dizem respeito não pode ser afastado a não ser nas exatas situações que a lei define” sendo que “quando não seja legalmente dispensada, a falta de audição prévia constitui a preterição de formalidade essencial, conducente à anulabilidade do acto (…).”. Contudo, prossegue o mesmo Acórdão referindo que “(…) há duas situações em que esta omissão ilegal poderá não ter consequências invalidantes. Uma, ocorre nas situações em que possa intervir o princípio do aproveitamento do acto, e outra quando em procedimento de segundo grau (Reclamação Graciosa ou recurso hierárquico) o contribuinte teve oportunidade de se pronunciar sobre as questões acerca das quais foi omitida a audiência no procedimento de primeiro grau”.
Como se refere no Acórdão do TCAS nº 02674/08, de 10.02.2009, em que foi relator o Conselheiro José Correia, “o princípio da audiência prescrito nos artigos 100.º e seguintes do C.P.A. assume-se como uma dimensão qualificada do princípio da participação consagrado no artigo 8.º do mesmo Código, surgindo na sequência e em cumprimento da directriz constitucional contida no n.º 4 do art. 267.º da C.R.P. obrigando o órgão administrativo competente a, de alguma forma, associar o administrador à preparação da decisão final, transformando tal princípio em direito constitucional concretizado”.
Neste sentido, veja-se Diogo Leite de Campos e Outros, in “Lei Geral Tributária - Anotada e Comentada”, Editora Encontro de Escrita, 2012, pág. 515, que defende que “a falta de audição prévia do contribuinte, nos casos consagrados no artigo 60.º, n.º 1, da LGT, constitui um vício de procedimento susceptível de conduzir à anulação da decisão que vier a ser tomada”.
Quanto ao princípio do aproveitamento do ato, veja-se o Acórdão do TCAS nº 02046/04.0BELSB 0808/18, de 14.10.2020, em que foi relator o referenciado Conselheiro Francisco Rothes, nos termos do qual se refere que “a falta de audiência prévia à liquidação, quando não seja legalmente dispensada, constitui preterição de formalidade essencial, conducente, em regra, à anulabilidade do acto (cfr. art. 135.º do CPA antigo, a que corresponde o n.º 1 do art. 163.º do actual)”. Porém, e tal como se refere no mesmo Acórdão “na segunda hipótese, havendo procedimento de segundo grau, quer o acto primário tenha sido mantido quer tenha sido alterado e substituído pelo acto do segundo grau, (…) a decisão administrativa final acaba por ser o acto de segundo grau, pelo que deverá ser em relação a este acto que deverá aferir-se se o contribuinte teve ou não oportunidade de participar na sua formação”.
E, acrescenta o mesmo Acórdão, “embora o procedimento de segundo grau seja, neste caso, facultativo, o contribuinte recorreu a ele e teve oportunidade de se pronunciar antes da decisão (de indeferimento) que recaiu sobre a Reclamação Graciosa” pelo que, “nestas condições, devemos considerar que ficou sanado o vício de preterição de formalidade legal por omissão de notificação para exercício do direito de audiência prévia antes da liquidação”
Ora, acrescente-se que também no Acórdão do TCAN nº 00029/03, de 16.02.2017, em que foi relatora a Conselheira Ana Patrocínio, “poderá também considerar-se convalidado o acto primário que enferme de vício de violação do direito de audição se o interessado veio a utilizar meios de impugnação administrativa (reclamação graciosa ou recurso hierárquico) e neles acabou por ter oportunidade de se pronunciar sobre questões sobre as quais foi indevidamente omitida a audiência no procedimento de primeiro grau. Em situações deste tipo, quer o acto primário tenha sido mantido quer tenha sido revogado e substituído pelo acto de segundo grau, a decisão administrativa final acaba por ser o acto de segundo grau, pelo que deverá ser em relação a este acto que deverá aferir-se se o contribuinte teve ou não oportunidade de participar na sua formação. Porém, se a reclamação graciosa e o recurso hierárquico são facultativos e o interessado impugna contenciosamente o acto primário, não ocorrerá qualquer convalidação, subsistindo o vício de preterição do direito de audição, se o acto primário enfermava dele. Isto é, não é apenas por o interessado ter a possibilidade de impugnar administrativamente o acto primário, mas apenas quando tenha deduzido efectivamente uma impugnação e nela se tenha pronunciado sobre as questões sobre as quais era necessário dar-lhe oportunidade de se pronunciar, que se pode considerar convalidado o acto, por ter sido atingida, antes de ser concluída a actividade administrativa, a finalidade visada por lei com a concessão daquele direito”.
Por outro lado, e em conformidade com o que é referido pela Requerida no projeto de decisão da Reclamação Graciosa, a Requerente teve a oportunidade de apresentar Reclamação Graciosa, bem como exercer o direito de audiência. Nestes termos, entende este Tribunal Arbitral que, em conformidade com entendimento da doutrina e da jurisprudência acima referida, a Requerente pôde pronunciar-se sobre a liquidação aqui em crise, em sede de Reclamação Graciosa, convalidando assim o ato primário.
Assim, considera este Tribunal ser de improceder o vício alegado pela Requerente, relativo à anulabilidade da liquidação de IRS aqui impugnada, e respetiva decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa, quanto ao facto de não ter sido notificada para exercer o direito de audição prévia, em momento anterior à liquidação oficiosa, decorrente do procedimento de divergências.
Por outro lado, cumpre averiguar em seguida, se a não consideração da audiência prévia na decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa, consubstancia falta de audiência prévia, por via de não terem sido apreciados os fundamentos apresentados pela Requerente em sede de audiência prévia.
B.3 Da ilegalidade da liquidação por violação de formalidades legais, por falta de audiência prévia no procedimento de Reclamação Graciosa, por falta de pronúncia sobre os elementos apresentados pela Requerente, na fundamentação da decisão de indeferimento
A Requerente sustenta que o ato tributário impugnado padece de um vício de forma por falta de audiência do interessado, na posição que o facto de a mesma não ter sido apreciada tem um efeito equivalente à sua ausência. Em abono da sua pretensão, invoca que os factos alegados em sede de audiência prévia não foram tomados em consideração na decisão final.
Nos presentes autos ficou demonstrado pela documentação junta ao processo, bem como pela resposta da Requerida, que a Requerente exerceu o direito de audição prévia. No referido exercício do direito de audição prévia, a Requerente alegou factos passíveis de promover a alteração do conteúdo do projeto de decisão. Em particular a Requerente, questionou:
- O conteúdo do projeto de decisão por extravasar “os fundamentos que estiveram na base da liquidação oficiosa da liquidação adicional (...), onde suscita o problema de novos fundamentos para sustentar a decisão de indeferimento;
- O facto de o projeto de decisão “pretender tornar agora, e só agora, controvertida matéria que antes não questionou ou pôs em causa, designadamente, se as despesas da reclamante foram ou não efetivamente suportadas (...), quando antes apenas questionou a elegibilidade das despesas suportadas (...)”;
- Apresentou “os recibos respeitantes aos pagamentos das faturas objeto da reclamação (...)”;
- O facto de o projeto de decisão ampliar os fundamentos que estiveram na base da correção oficiosa, “(...) designadamente quando agora, à fundamentação da liquidação efetuada acrescenta (...) que (...) (“as faturas em causa referem-se indiscriminadamente ao prédios 14, 15 e 16 do ... Lisboa” como um todo, não se consegue perceber para cada um dos prédios qual a despesa que corresponde”, quando o processo oficioso se limitou a questionar que respetivo descritivo não especificaria como deveria o preço unitário dos itens elencados.
- Que não foi feito um exame critico sobre os fundamentos apresentados, quanto às faturas n.º 1500/000106 e 1500/000010, em que sustenta “a. que as referidas facturas em cauda não revelam qualquer custo de qualquer eletrodoméstico, mobiliário, artigo de decoração ou conforto; b. os equipamentos sanitários ou mobiliário de cozinha não são eletrodomésticos, mobiliário, artigo de decoração ou conforto; c. que nenhum dos equipamentos descritos como tendo sido montado, aplicados, etc... pelo empreiteiro na factura 1500/000106 integra conceito de mobiliário ou artigo de conforto ou decoração; d. a factura 1500/000010, pura e simplesmente, não respeita a quaisquer equipamentos”.
Ora, este conjunto de fundamentos eram passiveis, se atendidos, de alterarem o projeto de decisão, pelo que, seguindo a jurisprudência infra referenciada, não seria de considerar aplicável o princípio do aproveitamento do ato tributário, uma vez que não se mostra que a decisão adotada fosse inequivocamente insuscetível de ser influenciada pelas alegações proferidas em sede de audiência prévia. Efetivamente, verifica-se o inverso, não sendo apresentando a situação legal como evidente, nem sequer vinculada. O exame do caso concreto, permitirá concluir que não se estava numa situação de absoluta impossibilidade de a decisão do procedimento ser influenciada pela participação do interessado.
É, por demais evidente, que não existiu pronúncia sobre as alegações efetuadas em sede de audiência prévia pela Requerente, pelo simples facto da Requerida não se ter apercebido, ou eventualmente, esquecido de na decisão final do indeferimento ponderar os fundamentos apresentados pela Requerente. Este é, pois, um exemplo típico de omissão de pronúncia.
Ora, estabelece o artigo 60º, n.º 1 al. b) da LGT que “A participação dos contribuintes na formação das decisões que lhes digam respeito pode efetuar-se, sempre que a lei não prescrever em sentido contrário, por (…) (al. b) direito de audição antes do indeferimento total ou parcial dos pedidos, reclamações, recursos ou petições”.
Conforme, poderemos constatar no acórdão do STA, de 17.05.2012 (processo nº 67872), o direito de audição de que gozam os contribuintes, consagrado no artigo 60.° n.°1, da LGT, constitui direito constitucional aplicado ao procedimento tributário, enquanto corolário do princípio da participação dos cidadãos na formação das decisões ou deliberações da Administração Pública que lhe digam respeito, visando assegurar uma tutela preventiva contra qualquer lesão dos seus direitos ou interesses (artigo 267.º, n.°5, da CRP).
E, destinando-se a audiência dos interessados a permitir a sua participação nas decisões que lhes digam respeito, contribuindo para um cabal esclarecimento dos factos e uma mais adequada e justa decisão, a omissão dessa audição constitui preterição de uma formalidade legal conducente à anulabilidade da decisão (cfr. artigo 163.º, n.º 1, do CPA), a menos que seja manifesto que esta só podia, em abstrato, ter o conteúdo que teve em concreto e que, por isso se impunha, o seu aproveitamento pela aplicação do princípio geral do aproveitamento do ato administrativo.
Por sua vez, o n.º 2 do artigo 60.º da LGT enumera os casos em que a audiência prévia é dispensada, inferindo-se que, fora dos casos excecionados, a audiência prévia antes do indeferimento total ou parcial dos pedidos, reclamações, recursos ou petições é obrigatória. Ademais, a referida audiência prévia também não podia ser dispensada ao abrigo do n.º 3, da mesma disposição legal, que estabelece que a mesma pode ser dispensada quando tenha “(...) o contribuinte sido anteriormente ouvido em qualquer das fases do procedimento a que se referem as alíneas b) a e) do n.º 1, (...), salvo em caso de invocação de factos novos sobre os quais ainda se não tenha pronunciado. Ora, não tendo exercido o direito de audiência prévia no procedimento de divergências, e existindo a invocação de novos fundamentos, sempre existiria a obrigatoriedade de audiência prévia, pelo que, por essa mesma razão, a Requerente foi notificada para o exercício desse direito.
No caso vertente, não se verificam as situações de exceção enumeradas nos n.ºs 2 e 3 do artigo 60º da LGT, pelo que se conclui que a audição prévia era obrigatória. No caso do procedimento de Reclamação Graciosa em apreço, a Requerente exerceu o direito de audição prévia, apresentado à Autoridade Tributária uma pronúncia escrita. Quando assim acontece, determina o n.º 7 do mesmo artigo 60º, que “os elementos novos suscitados na audição dos contribuintes são tidos necessariamente em conta na fundamentação da decisão”. Tal significa que, na decisão final, a administração fiscal tem de se pronunciar, por sua vez, sobre os elementos levados ao seu conhecimento pelo contribuinte. Tal pronúncia, da administração fiscal, é de extrema importância para o sujeito passivo, por várias razões.
A primeira delas, conforme resulta do acórdão do STA, de 14.05.2003 (processo n.º 0317/03), é que obriga a administração fiscal a analisar os argumentos do sujeito passivo, à luz do direito e dos factos, constituindo uma oportunidade para a administração alterar a sua posição.
Outra razão acerca da importância desta resposta, não menos relevante, é que através dela o sujeito passivo fica a conhecer a posição da administração fiscal sobre os argumentos por si apresentados. Mediante esse conhecimento, o sujeito passivo, por seu turno, avalia a viabilidade da sua posição numa eventual impugnação judicial. Essa reavaliação pode ser determinante para a sua decisão de impugnar contenciosamente o ato tributário, mas será também determinante para a estratégia a adotar numa eventual impugnação contenciosa. Desta forma, a não observância do disposto no n.º 7 do art.º 60º da LGT é altamente lesiva dos direitos e interesses dos contribuintes.
Mas ainda que assim não fosse, a violação do disposto no n.º 7 do art.º 60º da LGT constituiria, sempre, uma violação de uma formalidade essencial, causadora de invalidade do ato.
Igualmente, quanto a este dispositivo legal, sustentam Diogo Leite Campos; Benjamim Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, in Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, 4ª ed., encontro da escrita, editora, 2012, que “A obrigatoriedade de ter em conta estes elementos novos, na fundamentação da decisão, traduz-se em eles deverem ser mencionados e apreciados”, sendo que “a falta de apreciação dos elementos factuais ou jurídicos novos invocados pelos interessados constituirá vício de forma, por deficiência de fundamentação, susceptível de levar à anulação das decisão do procedimento”.
No que concerne à possibilidade de aproveitamento do ato, por estar em causa uma situação jurídica de mera anulabilidade, conforme acima se deixa transcrito, admite-se que o mesmo possa não ser anulado por razões de segurança jurídica e, sobretudo, de economia processual, quando, designadamente, quando o seu conteúdo “não possa ser outro e não haja interesse relevante na anulação” ou “quando se comprove sem margem para dúvidas que o vício formal não teve qualquer influência na decisão” (Cfr. Vieira de Andrade, Lições de Direito Administrativo, 2ª ed., Coimbra, 2011, p. 179.). No mesmo sentido, o STA tem firmado uma sólida jurisprudência no sentido de que os vícios de forma não impõem, necessariamente, a anulação do ato a que respeitem, e que as formalidades procedimentais essenciais se degradam em não essenciais se, apesar delas, foi dada a satisfação aos interesses que a lei tinha em vista ao prevê-las, conforme resulta, entre outros, do Acórdão do STA, de 30.03.2011 (processo nº 877/09), de onde resulta que a omissão do dever de audiência prévia não será invalidante da decisão final nos casos em que, através de um juízo de prognose póstuma, o tribunal possa concluir, sem margem para dúvidas, que a decisão tomada era a única concretamente possível.
A este propósito cumpre analisar o artigo 163.º, n.º 5, do CPA, aplicável ex vi artigo 2.º da Lei Geral Tributária, que estabelece que:
“Não se produz o efeito anulatório quando:
a) O conteúdo do ato anulável não possa ser outro, por o ato ser de conteúdo vinculado ou a apreciação do caso concreto permita identificar apenas uma solução como legalmente possível;
b) O fim visado pela exigência procedimental ou formal preterida tenha sido alcançado por outra via;
c) Se comprove, sem margem para dúvidas, que, mesmo sem o vício, o ato teria sido praticado com o mesmo conteúdo.
Em face do exposto, importa considerar se no caso em apreço estavam reunidos os pressupostos para a aplicação do princípio do aproveitamento do ato. Na realidade, há uma circunstância que impede que se produza o efeito anulatório decorrente deste vício. É que a alínea c), do n.º 5 do artigo 163.º CPA, determina que não se produz o efeito anulatório quando “Se comprove, sem margem para dúvidas, que, mesmo sem o vício, o ato teria sido praticado com o mesmo conteúdo”.
A este respeito veja-se que o acórdão do TCAN, de 19.12.204 (processo n.º 02841/12.7BEPRT) afirma que: “A degradação de formalidade em formalidade não essencial só ocorrerá quando, atentas as circunstâncias, a intervenção do interessado se tornou inútil, seja porque o contraditório já se encontre assegurado, seja porque não haja nada sobre que ele se pudesse pronunciar, seja porque, independentemente da sua intervenção e das posições que o mesmo pudesse tomar, a decisão da Administração só pudesse ser aquela que foi tomada.”
No mesmo sentido, o acórdão do TCAS, de 24.02.2016 (processo n.º 12747/15) refere que: “[A] preterição da formalidade constitui o facto de não ter sido assegurado o exercício do direito de audiência só pode degradar-se em formalidade não essencial, e assim destituída de efeito invalidante, se se demonstrar que, mesmo sem ela ter sido cumprida, a decisão final do procedimento não poderia ser diferente”.
Do exposto resulta que os efeitos anulatórios da preterição da obrigatoriedade de realização de audiência dos interessados não se produzem quando a decisão não pudesse ter sido diferente da que foi adotada. Portanto, haverá que perceber se apesar de a Requerente ter razão quando se insurge contra a preterição da audiência dos interessados, por o seu conteúdo não ter sido ponderado na decisão final, que era obrigatória e que se deveria ter realizado, se a mesma não tem o alcance de anular a decisão administrativa em questão, por tal decisão não poder ter conteúdo diferente, mesmo que o conteúdo da audiência prévia tivesse sido ponderado na decisão final.
A jurisprudência tem admitido o princípio do aproveitamento do ato tributário quando a intervenção do interessado no procedimento tributário for inequivocamente insuscetível de influenciar a decisão final, o que acontece em geral nos casos em que se esteja perante uma situação legal evidente ou se trate de atividade administrativa vinculada, em que não se vislumbre a mínima possibilidade de a audição poder ter influência sobre o conteúdo da decisão (Neste sentido, veja-se o Acórdão do STA, de 24.10.2022 (processo n.º 0548/12), em que foi relatora a Conselheira Fernanda Maçãs).
É, assim evidente, que tal apreciação exige um exame casuístico, de análise das circunstâncias particulares e concretas de cada caso, com vista a aferir se se está ou não perante uma situação de absoluta impossibilidade de a decisão do procedimento ser influenciada pela participação do interessado (Neste sentido, veja-se ao Acórdão do STA, de 25.06.2015 (processo n.º 01391/14), em que foi relator o Conselheiro Francisco Rothes)
Igualmente, como ficou consignado no Acórdão do STA, de 30.03.2011 (processo nº 877/09), referindo-se à aplicação do princípio do aproveitamento do ato administrativo, “(…) apenas nas situações em que não se possam suscitar quaisquer dúvidas sobre a irrelevância do exercício do direito de audiência sobre o conteúdo decisório do acto pode ser efectuada aplicação daquele princípio”. Como habitualmente é referido, o interesse prosseguido pela figura em causa é, ainda e nuclearmente, o da descoberta da verdade material e da defesa antecipada dos interesses do contribuinte. Se a legalidade da liquidação depende do correto apuramento da capacidade contributiva do contribuinte, compreende-se o interesse objetivo em que este colabore com a Administração fiscal a fim de prevenir futuros litígios.
Regressando ao caso dos presentes autos, a Requerente, em sede de audiência prévia invocou substanciais e importantes argumentos, em força do seu entendimento, no sentido do projeto de indeferimento ser alterado por outra decisão, para que a Requerida reconhece-se o direito à dedução dos encargos que fez constar no anexo F, da declaração periódica de rendimentos, corrigida oficiosamente, e objeto de Reclamação Graciosa.
Ora, a preterição do direito de audição, por via da aplicação do princípio do aproveitamento do ato administrativo, apenas seria admissível quando a intervenção do interessado no procedimento tributário fosse, de modo decisivo e inequívoco, insuscetível de influenciar a decisão final, o que acontece em geral nos casos em que se esteja perante uma situação legal evidente ou se trate de atividade administrativa vinculada.
E, mesmo aqui, constitui jurisprudência do STA que “(…) pode ainda ser possível, em certos casos de actividade vinculada, admitir a influência da participação do interessado no sentido daquela. Consequentemente, a formalidade em causa (essencial) só se degrada em não essencial, não sendo, por isso, invalidante da decisão, nos casos em que a audiência prévia não tivesse a mínima probabilidade de influenciar a decisão tomada, o que impõe o aproveitamento do acto - utile per inutile non viciatur - já que, como se salientou, a audiência dos interessados não é um mero rito procedimental.” (Acórdão do STA, de 14.05.2003 (recurso nº 317/03).
Nessa medida, os argumentos da Requerida fazem sentido. Ora, fazendo a conexão, com o referido quanto à falta de audiência prévia no procedimento de divergências, resultou que havendo procedimento de segundo grau, quer o ato primário tenha sido mantido quer tenha sido alterado e substituído pelo ato do segundo grau, “...a decisão administrativa final acaba por ser o ato de segundo grau, pelo que deverá ser em relação a este ato que deverá aferir-se se o contribuinte teve ou não oportunidade de participar na sua formação” - Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa in "Lei Geral Tributária" anotada, 2012, pp. 517.
In casu, embora o procedimento de segundo grau seja facultativo, o contribuinte recorreu a ele e teve oportunidade de se pronunciar antes da decisão (de indeferimento) que recaiu sobre a Reclamação Graciosa. Porém, o mesmo não foi ponderado na decisão, a qual não apresenta nenhuma fundamentação quanto a esse facto, nomeadamente, a não ser em sede resposta, é o único momento em que vem invocar o citado artigo 163.º, n.º 5, do CPA, aplicável ex vi artigo 2.º da Lei Geral Tributária.
Por outro lado, do ponto de vista do contribuinte, este tinha interesse em esclarecer as eventuais incertezas probatórias da Administração fiscal antes que as mesmas fossem resolvidas num sentido contrário aos seus interesses, evitando, desse modo, a necessidade de impugnar ou de recorrer da liquidação, aqui se atestando a prossecução daquela referida dupla função – defensiva e preventiva. Concluindo, era, com efeito, necessária e obrigatória audição da contribuinte antes da decisão final sobre a Reclamação Graciosa.
Conforme referido, a possibilidade de aplicação do princípio do aproveitamento do ato exige um exame casuístico, de análise das circunstâncias particulares e concretas de cada caso, com vista a aferir, num juízo de prognose póstuma, se se está ou não perante uma situação de absoluta impossibilidade de a decisão do procedimento ser influenciada pela participação da Requerente. Ou seja, a preterição do direito de audição, por via da aplicação do princípio do aproveitamento do ato administrativo, apenas é admissível quando a intervenção do interessado no procedimento tributário for inequivocamente insuscetível de influenciar a decisão final.
Ora, no caso, não é completamente inequívoco o sentido final da discussão, pois é, pelo menos em abstrato, discutível, se não existiria o direito à consideração dos encargos/gastos ao abrigo do artigo 41.º, do CIRS. Com efeito, a análise deve-se atender às circunstâncias particulares e concretas de cada caso, com vista a aferir, num juízo de prognose póstuma, independentemente do posterior facto de resultado dessa discussão, ou seja, independentemente da procedência ou improcedência dos vícios invocados.
Portanto, reitera-se, que “a aplicação do princípio do aproveitamento do acto implica necessariamente um juízo a posteriori, «este deve ser um juízo de prognose póstuma, pelo que não pode nem deve ser influenciado pela improcedência dos demais vícios (para além da preterição do direito de audiência) invocados no processo em que o acto foi impugnado, sob pena de esvaziamento do direito de participação e de impossibilidade prática deste instituto.”. - No mesmo sentido o Acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do STA, de 15.10.2014, proferido no processo n.º 1374/13.
Assim, sendo, entende este tribunal que procede a alegada ilegalidade da liquidação em apreço, uma vez que a mesma enferma de vício formal, consubstanciado na deficiência da audiência prévia, o que equivale à falta de audiência prévia, por preterição de formalidade essencial, resultante, do vício de falta de fundamentação, por efeito do nº 7 artigo 60.º da LGT, impondo-se assim a anulação do ato tributário.
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Em face disso, fica prejudicada a análise dos restantes vícios e ilegalidades apontados pela Requerente, conforme decorre do artigo 608.º, do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
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Juros Indemnizatórios
A Requerente finaliza o seu pedido no sentido da condenação da Requerida no “(...) pagamento dos respectivos juros indemnizatórios ao sujeito passivo nos termos do artigo 43º nº1 da LGT considerando o pagamento feito por este em montante superior ao devido em 30.12.2019 que perfazem à presente data o valor de € 2.003,75”.
Dispõe o artigo 43.º, n.º1 da Lei Geral Tributária (LGT) que:
“São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulta pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.
Prevê ainda o artigo 100.º do indicado compêndio normativo que:
“A administração tributária está obrigada em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.”.
Com efeito, determinando o n.º 5 do artigo 24.º do RJAT que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, deverá o mesmo ser interpretado no sentido de permitir o conhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral tributário.
Os juros indemnizatórios têm uma função reparadora do dano, dano esse que resulta do facto de o sujeito passivo ter ficado ilicitamente privado de certa quantia, durante um determinado período de tempo, visando colocá-lo na situação em que o mesmo estaria caso não tivesse efetuado o pagamento que lhe foi indevidamente exigido.
No caso concreto, está em causa um vício de forma do ato tributário.
Sobre esta questão o Conselheiro Jorge Lopes de Sousa exprimiu, em anotação ao artigo 61.º do CPPT, uma posição que merece o nosso total acordo, segundo a qual:
“... a existência de vícios de forma ou incompetência significa que houve uma violação de direitos procedimentais dos administrados e, por isso, justifica-se a anulação do acto, por estar afectado de ilegalidade. Mas o reconhecimento de um vício daqueles tipos não implica a existência de qualquer vício na relação jurídica tributária, isto é, qualquer juízo sobre o carácter indevido da prestação pecuniária cobrada pela Administração Tributária com base no acto anulado, limitando-se a exprimir a desconformidade com a lei do procedimento adoptado para a declarar ou cobrar ou a falta de competência da autoridade que a exigiu. Ora, é inquestionável que, quando se detecta um vício respeitante à relação jurídica tributária, se impõe a atribuição de uma indemnização ao contribuinte, pois a existência desse vício implica a lesão de uma situação jurídica subjectiva, consubstanciada na imposição ao contribuinte da efectivação de uma prestação patrimonial contrária ao direito. Por isso, se pode justificar que, nestas situações, não havendo dúvidas em que a exigência patrimonial feita ao contribuinte implica para ele um prejuízo não admitido pelas normas fiscais substantivas, se dê como assente a sua existência e se presuma o montante desse prejuízo, fazendo-se a sua avaliação antecipada através da fixação de juros indemnizatórios a favor daquele. Porém, nos casos em que o vício que leva à anulação do acto é relativo a uma norma que regula a actividade da Administração aquela nada revela sobre a relação jurídica fiscal e sobre o carácter indevido da prestação, à face das normas fiscais substantivas. Nestes casos, a anulação do acto não implica que tenha havido uma lesão da situação jurídica substantiva e, consequentemente, da anulação não se pode concluir que houve um prejuízo que mereça reparação. Por isso, pode-se considerar justificado que, nestas situações, não resultando da decisão anulatória a comprovação da existência de um prejuízo, não se presuma o seu valor, fixando juros indemnizatórios, mas apenas se deva restituir aquilo que foi recebido, o que poderá constituir já um benefício para o contribuinte, perante a realidade da sua situação tributária.” (in Código de Procedimento e de Processo Tributário, vol. I, 6ª ed., Lisboa, Áreas Editora, 2011, pp. 531 e 532).
Esta também é a posição reiterada na jurisprudência do STA, do qual é exemplo o Acórdão do STA, de 07-09-2011, proferido no processo 0416/11.
Assim sendo, no presente caso a anulação do ato de liquidação oficiosa resulta do vício de violação de formalidades legais, por falta de audiência prévia no procedimento de Reclamação Graciosa, por falta de pronúncia sobre os elementos apresentados pela Requerente, na fundamentação da decisão de indeferimento, e não de qualquer ilegalidade, à luz das normas substantivas, que expresse o carácter indevido da prestação tributária. Portanto, não pode concluir-se, de acordo com o artigo 43.º da LGT, que se encontram reunidos os requisitos para a Requerente ser indemnizada, pelo que improcede o pedido da Requerente quanto aos juros indemnizatórios.
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Decisão
Termos em que este Tribunal Arbitral Singular decide:
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Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, com fundamento em vício formal, consubstanciado na deficiência da audiência prévia, o que equivale a falta de audiência prévia, por preterição de formalidade essencial, resultante, do vício de falta de fundamentação, por efeito do nº 7 artigo 60.º da LGT, e, em consequência, anular a liquidação oficiosa do IRS, do ano de 2015, e a decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa, que sobre ela incidiu, com todos os devidos efeitos legais;
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Condenar a Requerida a reembolsar a Requerente das quantias pagas no âmbito da liquidação oficiosa de IRS, do ano de 2015;
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Julgar improcedente o pedido de condenação da Requerida no pagamento dos juros indemnizatórios, absolvendo a Autoridade Tributária e Aduaneira do mesmo;
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Valor do processo
Nos termos do n.º 2 do artigo 306.º do CPC, alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º-A do CPPT e n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, o valor do processo é fixado em € 24.802,16.
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Custas
Entende este Tribunal Arbitral Singular que o valor a considerar para efeitos de determinação das custas no presente Pedido de Pronúncia Arbitral é o valor que motivou a constituição deste Tribunal Arbitral Singular, e não contestado pela Requerida, i.e., o valor de € 24.802,16.
Nos termos do n.º 2 do artigo 12.º e do n.º 4 do artigo 22.º, ambos do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 1.530,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida, na proporção de 91,92%, e da requerente na proporção de 8,08%.
Notifique-se.
Porto, 16 de março de 2023
O árbitro,
Rui Miguel Zeferino Ferreira