Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 715/2022-T
Data da decisão: 2023-03-07  IRS  
Valor do pedido: € 313.826,39
Tema: IRS - Extinção da instância por impossibilidade superveniente da lide. Anulação administrativa do ato tributário impugnado.
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Sumário:

Tendo a Autoridade Tributária anulado administrativamente o ato de liquidação impugnado ainda dentro do prazo para apresentar resposta, verifica-se a impossibilidade superveniente da lide, que constitui causa de extinção da instância nos termos do artigo 277.º, alínea e), do CPC.

 

DECISÃO ARBITRAL

I – Relatório

        1. A..., contribuinte fiscal n.º ..., residente na Rua ..., n.º-..., ... Porto, veio requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade dos atos tributários de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares n.º 2022..., e da liquidação de substituição n.º 2022..., referentes ao ano de 2021, requerendo ainda a condenação da Autoridade Tributária no reembolso do imposto indevidamente pago e no pagamento de juros indemnizatórios.

A Autoridade Tributária foi notificada para responder por despacho arbitral de 3 de fevereiro de 2023, e por requerimento de 24 de fevereiro seguinte, ainda dentro do prazo fixado para a apresentação da resposta, veio comunicar que o ato de liquidação de substituição foi revogado por despacho da Subdiretora-Geral do IRS.

 

Ainda por requerimento de 27 de fevereiro de 2023, o Requerente veio solicitar a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, com os efeitos previstos na alínea e) do artigo 277.º do CPC.

 

2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária nos termos regulamentares.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 3 de fevereiro de 2023.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O processo não enferma de nulidades.

Cabe apreciar e decidir.

 

II - Fundamentação

 

3. O Requerente procedeu à entrega da declaração de rendimentos Modelo 3 de IRS relativa ao exercício fiscal de 2021, declarando, entre outros rendimentos, mais-valias mobiliárias de fontes espanhola, norte-americana, britânica e suíça.

 

O Requerente possui nacionalidade americana e tendo-se apercebido que, por lapso, não declarou a sua nacionalidade, submeteu uma declaração de substituição, com essa menção no campo 04 do quadro 3 do Anexo J

 

Encontrando-se inscrito como Residente Não Habitual, o Requerente optou pelo método da isenção no que respeita à eliminação da dupla tributação internacional, tendo sido, todavia, notificado da liquidação de substituição com um valor de imposto a pagar de € 313.826,39, que resultou da aplicação da taxa especial de 28% do artigo 72.º, n.º 1, alínea c), do Código do IRS às mais-valias mobiliárias auferidas, sem ter em consideração o método de isenção.

 

Nesse condicionalismo, o Requerente considera que ao não aplicar o método da isenção às mais-valias mobiliárias de fonte espanhola, norte-americana, britânica e suíça auferidas em 2021, e ao desconsiderar o facto de essas mais-valias poderem ser objeto de tributação nos EUA, em conformidade com a CDT celebrada por Portugal com esse país, a Administração incorreu em vício de violação de lei por errada interpretação do disposto no artigo 81.º, n.º 5, alínea a), do Código do IRS.

Ainda dentro do prazo para apresentar a resposta, a Administração Tributária veio comunicar a revogação do ato tributário de liquidação de substituição, por despacho da Subdiretora-Geral do IRS, datado de 15 de fevereiro de 2023. O mesmo despacho teve por base uma informação dos serviços, em se conclui nos seguintes termos:

 

17.Devemos realçar que, tanto a CDT com Espanha, na norma do artigo 13.º n.º 6, como as Convenções celebradas com o Reino Unido e Suíça, que atribuem, nos respetivos preceituados nos artigos 13.º, n.º 4, e 13.º, n.º 3 (todas as normas com redações idênticas), a competência exclusiva de tributação, quando estejam em causa a realização de mais-valias mobiliárias, ao país da residência, ou seja, a Portugal.

18. Contudo, conforme resulta do aresto supratranscrito, em situações "tripartidas", ou seja, nos casos que envolvam nacionais americanos, residentes não habituais em Portugal.

19. E que aufiram rendimentos nos EUA, ou noutros países.

20.Essa possibilidade deverá ser aferida, em função da CDT celebrada com os EUA.

            21.Que, conforme previamente elucidado, outorga a possibilidade de tributação aos EUA.

22.Logo, enquadrando o preceito contido no artigo 81.º, n.º 5, do CIRS.

23.Que, por sua vez, alinha a hipótese de aplicação do método de isenção, às mais-valias realizadas no estrangeiro.

24.Sendo assim, não militam razões, que obstem à aplicação do método de isenção, às mais-valias inscritas no quadro 9.2A, do anexo J, da declaração modelo 3 vigente n.º ...2021... - ....

25.No que concerne aos juros indemnizatórios, sendo manifesta a violação de lei, é entendimento dos serviços determinar o direito ao pagamento de juros indemnizatórios, por pagamento indevido de imposto, contabilizados à taxa decorrente da norma do artigo 43.º n.º 4 da LCT.

[…]

V - Proposta de decisão

Por tudo o exposto, propõe-se a revogação do ato de contestado.

 

Tenha-se ainda em consideração que a informação dos serviços, que teve a concordância da Subdiretora-Geral do IRS, através do despacho de 15 de fevereiro de 2023, incidiu sobre a liquidação n.º 2022..., que substituiu a liquidação originária n.º 2022..., e é essa liquidação que define a situação jurídica do Requerente.

 

Neste contexto, cabe analisar os efeitos processuais do dito ato revogatório.

 

4. A esse propósito, importa preliminarmente referir que o novo Código de Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro, passou a distinguir entre a revogação e a anulação administrativa, fazendo corresponder a cada uma destas figuras as duas anteriores modalidades de revogação ab-rogatória ou extintiva e revogação anulatória. Segundo a definição constante do artigo 165.º do CPA, a revogação é “o ato administrativo que determina a cessação dos efeitos de outro ato, por razões de mérito, conveniência ou oportunidade”, ao passo que a anulação administrativa é “o ato administrativo que determina a destruição dos efeitos de outro ato, com fundamento em invalidade”. A revogação produz, em regra, apenas efeitos para o futuro (artigo 171.º, n.º 1), enquanto a anulação administrativa, tendo por objeto a eliminação da ordem jurídica de atos anuláveis, tem, em regra, efeitos retroativos (artigo 171.º, n.º 3).

 

No caso vertente, a Autoridade Tributária praticou, segundo a nova terminologia, um ato de anulação administrativa, isto é, um ato que tem como fundamento considerações de legalidade administrativa e não de mera discricionariedade. Assim sendo, o falado despacho de 15 de fevereiro de 2023, embora adote a fórmula verbal anteriormente aplicável, corresponde a um verdadeiro ato anulatório.

Por outro lado, não está vedado à Administração operar a anulação administrativa do ato impugnado já na pendência do processo arbitral.

O artigo 168.º do CPA, que define os condicionalismos aplicáveis à anulação administrativa, no seu n.º 3, estabelece que “quando o ato tenha sido objeto de impugnação jurisdicional, a anulação administrativa só pode ter lugar até ao encerramento da discussão”. Deve entender-se como encerramento da discussão, em correspondência com o estabelecido no artigo 604.º, n.º 3, alínea e), do CPC, o momento em que as partes produzam alegações orais ou o termo do prazo para alegações escritas ou o termo da fase dos articulados quando as partes tenham dispensado as alegações finais e o estado do processo permita sem necessidade de mais indagações a apreciação do pedido.

Haverá de concluir-se, por conseguinte, que o CPA alargou os poderes de disposição da Administração na pendência do processo, permitindo, na linha do que já vinha sugerido pela doutrina, que a anulação administrativa, quando o ato tenha sido objeto de impugnação jurisdicional possa ter lugar até ao encerramento da discussão, e não apenas até à resposta, como estava previsto no artigo 141.º, n.º 1, do CPA de 1991.

Dito isto, não pode deixar de reconhecer-se que a anulação administrativa é tempestiva, visto que a Autoridade Tributária praticou o ato anulatório ainda dentro prazo para a apresentação da resposta, havendo de atribuir-se à anulação, nesse condicionalismo, os correspondentes efeitos de direito.

No que concerne às consequências processuais da anulação administrativa interessa considerar a norma do artigo 64.º do CPTA, subsidiariamente aplicável, que, entre outros dispositivos, se refere às situações em que, na pendência do processo impugnatório, o ato impugnado é objeto de anulação administrativa acompanhada ou seguida de nova definição da situação jurídica, caso em que se admite que o processo impugnatório prossiga contra o novo ato com fundamento na reincidência nas mesmas ilegalidades. Prevê-se aí a hipótese típica de ampliação do objeto do processo quando, na pendência de um processo impugnatório, a Administração anule o ato impugnado praticando um novo ato em sua substituição contra o qual o impugnante poderá ter ainda interesse em reagir.

 É patente, no entanto, que não é essa a situação do caso.

A Administração limitou-se a anular o ato impugnado sem instituir uma qualquer nova regulação da situação jurídica. E sendo assim, a anulação administrativa, ocorrida na pendência do processo jurisdicional, satisfazendo a pretensão impugnatória do autor, conduz à impossibilidade superveniente da lide, que constitui causa de extinção da instância (artigo 277.º, alínea e), do CPC).

 

Acresce que o tribunal não tem de pronunciar-se sobre o pedido de reembolso do imposto indevidamente pago e de pagamento de juros indemnizatórios. Relativamente a essas questões o pedido arbitral apenas pode ser entendido com uma pretensão condenatória de natureza acessória ou consequencial relativamente ao pedido principal, e a pronúncia do tribunal quanto a esses outros pedidos apenas poderia ocorrer se o processo devesse prosseguir para a apreciação do mérito da causa e eventual declaração de ilegalidade do ato impugnado.

 

Em todo o caso, o reembolso do imposto e o pagamento de juros indemnizatórios é uma consequência da anulação administrativa, tal como resulta do disposto no artigo 172.º do CPA, que impõe à Administração o dever de reconstituir a situação que existiria se o ato anulado não tivesse praticado, em consonância com o também estabelecido no artigo 43.º da Lei Geral Tributária.

 

III – Decisão

 

Termos em que se decide julgar extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide.

 

Valor da causa

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 313.826,39, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

Custas

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 5.508,00, que fica a cargo da Requerida (artigo 536.º, n.º 3, segunda parte, do CPC).

Notifique-se.

 

 

Lisboa, 7 de março de 2023.

 

O Árbitro Presidente

 

 

(Carlos Alberto Fernandes Cadilha - relator)

A Árbitro Vogal

 

(Cristina Coisinha)

 

 

O Árbitro Vogal

 

(José Luís Ferreira)