SUMÁRIO: O disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea d), do Código do IMT, é inaplicável à aquisição de partes sociais de uma sociedade de direito norte-americano do tipo “Limited Liability Company”, sediada naquele Estado, devido à impossibilidade de integrar um tipo societário de direito português, por via analógica.
DECISÃO ARBITRAL
I. RELATÓRIO
A..., natural de ..., Reino Unido, de nacionalidade britânica, portador do passaporte n.º ..., emitido em 14-04-2018, por HMPO, válido até 15-11-2028, com o NIF ..., e mulher, B..., natural de ..., Reino Unido, de nacionalidade britânica, portadora do passaporte n.º..., emitido em 01-12-2021, por HMPO, válido até 01-12-2031, com o NIF ..., casados, sob o regime britânico de separação de bens, residentes em ..., ..., ...-Algarve, ...-... ..., vêm requerer pedido de pronúncia arbitral (doravante PPA), nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 10.º, n.º 2, alínea c), e 2.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que regula o Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (doravante RJAT).
Peticiona que seja declarada a ilegalidade dos atos de liquidação do Imposto Municipal sobre Transmissão dos Imóveis (IMT).º ... (doc. ...) e n.º ... (...), de 14-04-2022, ambas no montante de € 16.574,73 (dezasseis mil, quinhentos e setenta e quatro euros e setenta e três cêntimos), acrescidas de €2.784,55 de juros compensatórios (dois mil, setecentos e oitenta e quatro mil euros e cinquenta e cinco cêntimos), num total de € 38.718,56 (trinta e oito mil, setecentos e dezoito euros e cinquenta e seis cêntimos), bem como o reembolso do imposto pago acrescido de juros indemnizatórios.
No presente pedido de pronúncia arbitral (doravante PPA), vem ainda requerido que a ilegalidade invocada seja sancionada com a cominação da nulidade.
É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Ex.mo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente enviado email à Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante AT), a informar da entrada de um pedido de constituição de tribunal arbitral e do n.º do processo atribuído, em 13-07-2022, tendo por sua vez a AT sido notificada, em 20-07-2022.
Nos termos do disposto na alínea a), do n.º 2, do artigo 6.º e da alínea b), do n.º 1, do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, a signatária foi designada pelo Ex.mo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD para integrar o presente tribunal arbitral singular, tendo aceitado nos termos legalmente previstos.
Em 02-09-2022, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º, do Código Deontológico.
Síntese da posição das Partes:
Dos Requerentes
Os argumentos apresentados no PPA, bem como em alegações escritas, questionam que a transmissão a favor da totalidade do capital social de uma empresa sediada nos EUA de responsabilidade limitada com a tipologia LLC proprietária de um único imóvel sediado em Portugal esteja sujeita ao pagamento de IMT nos termos da al. d) do n.º 2 do art.º 2.º do Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (doravante CIMT).
Entendem, pois, os Requerentes, que os atos tributários sub judice não preenchem o conceito previsto naquela norma, alegando sumariamente o seguinte:
A AT considerou que uma LLC norte-americana corresponde a uma sociedade por quotas portuguesa, o que está vedado por lei, pois sendo o art.º 2.º do CIMT uma norma de incidência, está vedada a sua integração por meio de analogia;
Por um lado, de acordo com o Princípio da Tipicidade e da Territorialidade da Autoridade Tributária, o disposto na al. d), n.º 2, art.º 2.º do CIMT, apenas se deverá aplicar a sociedades sediadas em território português, e com a natureza jurídica de sociedades em nome coletivo, em comandita simples ou por quotas, previstas na lei portuguesa;
Por outro lado, o recurso, de forma analógica, à referida publicação da OCDE, para pretender sujeitar a IMT a transferência das participações sociais, configura uma ilegalidade, por violação do Princípio da Tipicidade Exclusiva, corolário do Princípio da Legalidade, efetuando-se uma interpretação proibida em Direito Fiscal, por força do Princípio de Reserva de Lei consagrado no art.º 103.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa;
Alegam que a norma de incidência do imposto apenas deve ser aplicada a sociedades com sede em Portugal e com um dos tipos elencados no n.º 2 do art.º 1.º do CSC;
Mesmo que assim não se entendesse, apenas as LLS deveriam ser subsumidas a sociedades anónimas que só passaram a ser tributadas após alteração introduzida na norma com a Lei do Orçamento para 2021, segundo os Requerente;
No “Share Purchase and Sale Agreement” transmitiram-se bens móveis e imóveis, pelo que só deveria ter sido objeto de incidência de IMT o bem imóvel, devendo-se questionar o valor dos bens móveis para descontar o seu valor;
Ainda segundo os Requerentes, mesmo que os bens móveis não se encontrem valorados no contrato, não significa que as partes não lhe tivessem atribuído um valor, e em consequência, competiria à AT apurar tais valores quer atribuindo-lhes um valor oficiosamente, quer questionando os Requerentes sobre tais valores.
O valor pago pelos Requerentes não era devido por erro aritmético da AT. Aquando da liquidação foi determinado que o imposto incidirá sobre o valor do negócio (€ 552.500,00) por ser superior ao VPT (€ 292.500,50) e o cálculo do imposto foi feito tendo por base o VPT atual dos dois prédios € 292.500,50 e não o valor do negócio para cada Requerente, ou seja, 276.250,00, cada.
À data do facto tributário, o VPT do prédio (na altura, prédio urbano da freguesia de ..., Loulé, sob o artigo ..., era o de € 136.080,00), pelo que deveria ter sido este o valor a ser atendido.
2. Da Requerida
Nos argumentos apresentados na sua Resposta, a AT pugna pela manutenção na ordem jurídica da liquidação impugnada por entender que a mesma, consubstancia uma correta aplicação do direito aos factos, com os seguintes fundamentos:
O Código do IMT alarga o conceito de transmissão de bens imóveis e sujeita a imposto alguns tipos de aquisições de partes sociais em sociedades;
De acordo com a Requerida, além dos factos que integram a regra geral da incidência objetiva, o CIMT ficciona, como transmissões sujeitas a imposto, determinadas operações que direta ou indiretamente implicam a transmissão de bens imóveis e que se revestem de características económicas que justificam o seu enquadramento no âmbito da sua incidência, designadamente a aquisição de partes sociais em sociedades – não se trata de aquisições de imóveis, mas sim de partes do capital dessas sociedades [al. d) do n.º 2 do art.º 2.º do CIMT];
Invoca que o princípio que está subjacente à norma acima referida é precisamente procurar evitar que através da aquisição de quotas ou partes sociais em sociedades que possuam prédios no seu ativo, possa adquirir-se, de forma indireta, o domínio dos respetivos prédios, sem a respetiva tributação;
Acrescenta que no caso em apreço, não nos encontramos perante a direta aquisição de imóveis, mas de partes do capital de sociedades que possuam bens imóveis no seu ativo;
Alega que a "ratio" deste tipo de sujeição a imposto, consiste numa espécie de transparência fiscal, dado que através da aquisição das quotas ou partes sociais em sociedades que possuam imóveis, pode adquirir-se, de forma indireta, o domínio dos respetivos prédios;
Assim, segundo a Requerida, para prevenir e evitar que se utilizem mecanismos desse tipo para não pagar o imposto, o Código do IMT tipifica essas aquisições como sujeitas, desde que se cumpram os requisitos legais supra referenciados;
Na ótica da AT, a formulação legal é abrangente, de forma a contemplar, não só as operações de aquisição, mas também outros factos que alterem a composição do capital social das sociedades, como por exemplo a amortização de quotas. Assim, não é relevante o ato ou facto que dá origem à alteração da detenção do capital social;
Defende que o que a lei pretende tributar é a aquisição, por qualquer via, por um sócio, de uma posição de domínio sobre um prédio, pela via do domínio que ele detém sobre a sociedade;
E que de acordo com o entendimento da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), as sociedades LLC são equiparáveis às sociedades por quotas constituídas segundo o direito português para efeitos tributários;
No seu entender esta conclusão não é controversa, sem prejuízo do entendimento dos Requerentes, conforme se verifica através de uma simples pesquisa num motor de buscas da internet, referindo as seguintes referências:
https://www.dicionariofinanceiro.com/llc/
https://silo.tips/download/mercados-informaao-regulamentar
https://www.lexidy.com/blog/how-to-create-a-business-in-portugal-limited-liability-companies/
https://www.garrigues.com/en_GB/guides/guide-doing-business-portugal
No caso em apreço relembra a Requerida que se trata da transmissão de um imóvel sito em Portugal, não relevando a territorialidade da sociedade, mas sim se o imóvel é situado em território nacional para efeito de aplicação da alínea d) do n.º 2 do art.º 2.º do CIMT;
Para a AT, no que toca à aplicação da alínea d) do n.º 2 do art.º 2.º do CIMT, não releva a territorialidade da sociedade, mas sim se a mesma tem responsabilidade limitada tal como as sociedades por quotas. Ou seja, o que neste caso releva são os termos, procedimentos e metodologia relativa à operação da transmissão do imóvel e não a lei aplicável à constituição e funcionamento de uma sociedade comercial;
Defende em suma, que o IMT sujeita a imposto a aquisição onerosa de bens imóveis, independentemente do título ou da forma jurídica utilizada nessa aquisição. E que o objeto da sujeição do imposto não é propriamente o ato ou contrato que titulam a aquisição, mas sim o efeito desses atos ou contratos, ou seja, a transmissão da propriedade ou dos direitos correspondentes sobre esses imóveis;
Ao contrário do que os Requerentes referem não se está perante um situação de integração de qualquer lacuna da lei, com recurso à figura da analogia, afirmam, assinalando que “Como se sabe é impossível ao legislador tributário prever exaustivamente todas as sociedades existentes no mundo com as características das sociedades que queria abranger na norma contida na al. d) do n.º 2 do art.º 2.º do CIMT. E é a OCDE, e não apenas a AT e as mais variadas entidades que qualificam estas sociedades LLC como sociedades de responsabilidade limitada por quotas. Aliás (…) na publicação “Global Forum on Transparency and Exchange of Information for Tax Purposes Peer Reviews: Portugal 2015”, é expressamente referido que as “Limited Liability Company” (LLC), em Portugal, são sociedades por quotas, constituídas de acordo com o artigo 197.º do Código das Sociedades Comerciais”;
Concluem ainda que, ao contrário do que é alegado no pedido de pronúncia arbitral, no apuramento do imposto em falta, foi considerado o valor do negócio € 552.500,00, por ser superior ao Valor Patrimonial Tributário dos imóveis (€ 292.290,50), conforme o disposto no n.º 1 do artigo 12.º do CIMT;
E justifica a Requerida que a descrição efetuada pelo Serviço de Finanças de Loulé, aquando da liquidação, foi indicado indevidamente que o Valor Global do Ato ou Contrato foi € 292.290,50, e que este valor tem apenas um caráter informativo já que o valor de IMT liquidado está em concordância com o imposto apurado no Relatório de Inspeção;
Por outro lado, esclarece que o VPT só foi tido em conta para efeitos de imputação do valor do negócio a cada prédio, uma vez que a taxa de IMT a aplicar, nos termos do artigo 17.º do CIMT, difere em 1%. Segundo a Requerida e refazendo os cálculos, “o valor de IMT que eventualmente poderia ter sido apurado em excesso é de € 0,55 em cada liquidação (…)”, sendo que, nos termos do n.º 2 do art.º 46.º do CIMT, não há lugar a anulação sempre que o montante de imposto a anular seja inferior a € 10;
Reafirma, porém, como vem demonstrado no quadro constante do Relatório da Inspeção a fls. 6, que o valor sobre o qual incidiu o IMT foi o do negócio jurídico (€ 552.500,00);
Por último, afirma relativamente aos bens móveis, que não foram valorizados no Contrato de Compra e Venda, pelo que, não se encontrando documentalmente valorizados os bens móveis, foi considerado sujeito a IMT o valor total do negócio.
Por tudo quanto antecede, conclui a Requerida no sentido que a pretensão dos Requerentes deve ser considerada totalmente improcedente pois os atos impugnados não enfermam de qualquer ilegalidade.
A Requerida não produziu alegações finais escritas dando por integralmente reproduzido o teor da sua Resposta, e impugnando todo o aduzido pelos Requerentes quer em sede de pedido de pronúncia arbitral, quer em sede de alegações.
***
Em conformidade com o preceituado na alínea c), do n.º 1, do artigo 11.º, do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º, da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral singular, foi constituído em 20-09-2022.
Em 25-09-2022, foi proferido despacho arbitral ordenando a notificação do dirigente máximo do serviço da administração tributária para apresentar resposta, nos termos e prazo do artigo 17.º, n.ºs 1 e 2, do RJAT, o que efetuou, em 28-10-2022, juntando Processo Administrativo (doravante PA), em 31-10-2022.
Em 02-11-2022, foram notificadas as partes do despacho da mesma data proferido pelo tribunal arbitral, no qual se dispensava a reunião prevista no artigo 18.º, n.º 1, do RJAT, convidando-se as partes, querendo, a apresentar alegações escritas por prazo simultâneo, em 30 dias, o que o Requerente efetuou, em 05-12-2022, e a Requerida, a 09-12-2022.
II. SANEAMENTO
O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à luz do preceituado nos artigos 2.º n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (RJAT), e é competente.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º, da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
Não foram suscitadas exceções de que deva conhecer-se.
O processo não enferma de nulidades.
Inexiste, deste modo, qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.
III. MATÉRIA DE FACTO
1. Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos relevantes para a decisão:
Em 03-03-2017, os Requerentes adquiriram a totalidade do capital social da sociedade C..., LLC, NIPC..., uma “Limited Liability Company”, com sede em ..., Estados Unidos da América.
Esta aquisição efetivou-se através da assinatura de um contrato intitulado por “Shares Purchase and Sale Agreement”, pelo valor de € 552.500,00.
Àquela data, 03-03-2017, a sociedade com sede nos Estados Unidos era proprietária de um prédio misto, denominado ..., sito em ... e inscrito na matriz da freguesia de..., concelho de Loulé, Faro (...) sob o artigo urbano ... (com afetação a habitação e, após a avaliação, passou a artigo ...) e sob o artigo rústico ... .
Em 09-03-2017, a sociedade C..., LLC, entregou uma modelo 1 de IMI para atualização do prédio urbano inscrito na freguesia de ..., Loulé, sob o artigo ..., com o motivo prédio melhorado/modificado/reconstruído, o qual deu origem ao atual artigo urbano ... da mesma freguesia.
Em 23-04-2018, a sociedade C..., LLC, alterou a sua sede para território nacional e passou a designar-se “D..., Lda”, NIPC ..., assumindo a natureza jurídica de sociedade por quotas.
A falta de entrega da declaração de IMT relativa ao ano de 2017 por parte dos Requerentes deu origem, à realização, em fevereiro de 2021, de uma inspeção interna e parcial no âmbito das Ordens de Serviço n.º OI2019... e OI2019... .
Em consequência, no relatório de inspeção é proposta – com fundamento em que não foi liquidado o imposto devido aquando da aquisição pelos Requerentes, em 03-03-2017, da C..., LLC – a emissão de duas liquidações de IMT, no montante de € 16.574,73, cada uma.
Em 05-05-2021, os Requerentes exercerem o direito de audição prévia sobre os projetos de relatório de inspeção.
Em 17-05-2021, os Requerentes foram notificados pelos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Faro, por carta registada com aviso de receção das correções resultantes da ação de inspeção de que tinham sido alvo e do envio das mesmas para o SF de Loulé ..., para efeitos de liquidação oficiosa do imposto em falta.
Os Requerentes foram notificados, por carta registada com aviso de receção, para proceder ao pagamento da liquidação oficiosa de IMT, no montante de € 16.574,73, acrescido de € 2.784,55 de juros compensatórios.
Ambas as notas de cobrança foram pagas 14-04-2022.
Em 11-07-2022, os Requerentes apresentaram o presente pedido de pronúncia arbitral.
2. Factos não provados
A falta de entrega da declaração de IMT, relativa ao ano de 2017, por parte dos Requerentes, deu origem à realização, em fevereiro de 2021, de uma inspeção interna e parcial no âmbito das Ordens de Serviço n.º OI2019... e OI201... .
Ora segundo alega a AT, esta veio a averiguar que a sociedade a “D..., Lda” não exerceu qualquer atividade, não abriu ou operou uma conta bancária, nem tem trabalhadores, o que não logrou provar através de documentos juntos no PA, nem resulta do consenso das partes.
3. Fundamentação da fixação da matéria de facto
Relativamente à matéria de facto, o tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe antes o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada.
Assim, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. o artigo 596.º, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 29.º n.º 1 alínea e), do RJAT).
Os factos dados como “provados” e “não provados” foram-no com base nos documentos juntos aos autos com o PPA, e no PA – todos documentos que se dão por integralmente reproduzidos – e, bem assim, no consenso das partes.
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º n.º 7, do CPPT (aqui aplicável por força do disposto no artigo 29.º n.º 1, alínea a), do RJAT), a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se “provados” e “não provados”, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.
Não se deram como provadas nem não provadas as alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.
IV. DO DIREITO
1. A questão a decidir
Atendendo às posições das partes assumidas nos articulados apresentados, a questão central a dirimir pelo presente Tribunal Arbitral consiste em apreciar a legalidade dos atos de liquidação do Imposto Municipal sobre Transmissão dos Imóveis (IMT).º ... (doc....) e n.º ... (...), de 14.04.2022, ambas no montante de € 16.574,73 (dezasseis mil, quinhentos e setenta e quatro euros e setenta e três cêntimos), acrescidas de €2.784,55 de juros compensatórios (dois mil, setecentos e oitenta e quatro mil euros e cinquenta e cinco cêntimos), num total de € 38.718,56 (trinta e oito mil, setecentos e dezoito euros e cinquenta e seis cêntimos), bem como o reembolso do imposto pago acrescido de juros indemnizatórios.
Em causa está saber se, a transmissão a favor dos Requerentes, da totalidade do capital social de uma empresa sediada nos EUA, de responsabilidade limitada com a tipologia LLC e proprietária de um único imóvel sediado em Portugal, está sujeita ao pagamento de IMT nos termos da al. d) do n. 2 do art.º 2.º do CIMT.
Cumpre apreciar e decidir.
Os Requerentes alegam que o conceito de sociedade por quotas do direito português não pode ser aplicado a um outro tipo societário que se rege pelas leis do Estado de Delaware, nos EUA.
Por aproximação ao conceito de direito interno, a Requerida considera que esta figura poderia subsumir-se ao tipo societário de sociedade por quotas, defendendo os Requerentes, diferentemente, que esta corresponderia ao conceito de direito interno de sociedade anónima.
Recordemos alguns dos factos provados:
Em 03-03-2017, os Requerentes adquiriram a totalidade do capital social da sociedade C..., LLC, NIPC ..., uma “Limited Liability Company”, com sede em ..., Estados Unidos da América.
Àquela data, 03-03-2017 a sociedade com sede nos Estados Unidos era proprietária de um prédio misto, denominado ..., sito em ... e inscrito na matriz da freguesia de ..., concelho de Loulé, Faro (...) sob o artigo urbano ... (com afetação a habitação e, após a avaliação, passou a artigo ...) e sob o artigo rústico ... .
A falta de entrega da declaração de IMT relativa ao ano de 2017 por parte da Requerente deu origem, à realização, em fevereiro de 2021, de uma inspeção interna e parcial no âmbito das Ordens de Serviço n.º OI2019... e OI2019... .
Em consequência, no relatório de inspeção é proposta – com fundamento em que não foi liquidado o imposto devido aquando da aquisição pelos Requerentes, em 03-03-2017, da C..., LLC – a emissão de duas liquidações de IMT, no montante de € 16.574,73, cada uma.
Somente, em 23-04-2018, a sociedade C..., LLC, alterou a sua sede para o território nacional.
O que significa que, à data do facto tributário em que os Requerentes adquiriram a totalidade do capital social da sociedade C..., LLC, NIPC..., uma “Limited Liability Company”, 03-03-2017, esta tinha sede em ..., nos Estados Unidos, sendo-lhe aplicada a lei do Estado em que se encontra sediada (cfr. artigo 3.º, n.ºs 1 e 3 do Código das Sociedades Comerciais, doravante CSC), e não a lei portuguesa.
À data da aquisição das participações sociais a C..., LLC configurava, assim, um tipo societário denominado no direito americano por “Limited Liability Company”, cuja constituição pressupunha o preenchimento de um conjunto de requisitos legais regulados, ao nível estadual, através de um “Limited Liability Company Act.”
Apenas, em 23-04-2018, como vimos, passou a integrar um tipo societário de direito português em consequência da transferência da sua sede para o território nacional e por via do registo comercial e adaptação do seu contrato social.
Em Portugal, e de acordo com a redação da alínea d) do número 2 do artigo 2.º do Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (doravante CIMT), introduzida pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, em vigor à data dos factos, "a aquisição de partes sociais ou de quotas nas sociedades em nome coletivo, em comandita simples ou por quotas, quando tais sociedades possuam bens imóveis, e quando por aquela aquisição, por amortização ou quaisquer outros factos, algum dos sócios fique a dispor de, pelo menos, 75% do capital social, ou o número de sócios se reduza a dois casados ou unidos de facto", encontra-se sujeita IMT.
Integra-se, pois, no conceito de transmissão de bens imóveis, entre outros factos, aqueles que acima se especificam.
No mesmo artigo 2.º do CIMT, agora no n.º 1, define-se a incidência objetiva e territorial do imposto por referência “às transmissões, a título oneroso, do direito de propriedade ou de figuras parcelares desse direito, sobre bens imóveis situados no território nacional”.
Desde já, deixa-se devidamente sublinhado que, para efeitos da incidência do imposto, o artigo 2.º do CIMT identifica a aquisição de partes sociais ou de quotas nas sociedades em nome coletivo, em comandita simples ou por quotas, circunscrevendo desse modo o seu âmbito aplicativo por referência às sociedades que se encontrem registadas e preencham os requisitos desses tipos legais, o que manifestamente não acontecia no caso sub judice.
Vejamos a decisão arbitral referente ao Processo do CAAD n.º: 849/2019-T, alusivo a caso em tudo semelhante ao que nos ocupa, e cuja fundamentação subscrevemos na íntegra: “As sociedades com objeto comercial constituídas nos termos do Código das Sociedades Comerciais devem adotar um dos tipos enumerados no artigo 2.º, n.º 1, desse diploma, segundo um princípio de taxatividade ou do numerus clausus, e ainda que disponham de alguma liberdade de conformação do contrato social, não podem adotar uma regulamentação incompatível com o tipo legal, o que se torna sobretudo justificado por razões de segurança jurídica que se refletem nas relações com os credores sociais, o público em geral, os sócios e outras sociedades.
Os artigos 175.º, 197.º, 271.º e 465.º do Código das Sociedades Comerciais caracterizam genericamente os diversos tipos societários tomando como ponto de partida a delimitação da responsabilidade dos sócios de acordo com os seguintes critérios: (a) nas sociedades em nome coletivo cada sócio responde pela respetiva entrada, embora responda solidariamente pelas entradas em espécie que não sejam verificadas nos termos do artigo 28.º; (b) nas sociedades por quotas cada sócio responde não apenas pela própria entrada (em dinheiro ou em espécie) mas também solidariamente com outros sócios por todas as entradas convencionadas no contrato social; (c) nas sociedades anónimas cada sócio limita a sua responsabilidade ao valor das ações que subscreveu; (d) nas sociedades em comandita simples e nas sociedades em comandita por ações, os sócios comanditados e os sócios comanditários respondem somente perante as respetivas entradas.
Estes diversos tipos de sociedades podem enquadrar-se, do ponto de vista doutrinal, em
sociedades de pessoas e sociedades de capitais. As primeiras são em grande medida
dependentes da individualidade dos sócios, sendo o caso típico a sociedade em nome coletivo: os sócios são responsáveis pelas dívidas sociais (artigo 175.º, n.º 1), a transmissão das participações sociais exige o consentimento de todos os sócios (artigo 182.º), a cada sócio pertence um voto, independentemente do valor da sua participação social e as deliberações são tomadas por maioria (artigos 189.º, n.º 2, e 190.º, n.º 1), em regra, todos os sócios são gerentes (artigo 191.º, n.º 1). As sociedades de capitais assentam principalmente nas contribuições patrimoniais dos sócios com uma limitada participação pessoal na vida social, de que é exemplo a sociedade anónima: os sócios não são responsáveis pelas dívidas sociais, a transmissão das participações é livre, os votos são atribuídos em função do valor das participações.
Por sua vez, as sociedades por quotas e as sociedades em comandita combinam notas
características desses dois tipos de sociedades, sendo mais acentuadas as características
personalísticas na sociedade por quotas - responsabilidade solidária dos sócios (artigo 197.º), consentimento da sociedade para a cessão de quotas (artigo 228.º n.º 2) - e na sociedade em comandita simples - os sócios comanditados respondem pelas dívidas da sociedade nos mesmos termos dos sócios da sociedade em nome coletivo (artigo 465.º, n.º 1), a transmissão de partes depende do consentimento da sociedade (artigo 469, n.º 1) (sobre todos estes aspetos, JORGE COUTINHO DE ABREU, Curso de Direito Comercial, vol. II, 6.a edição, Coimbra, págs. 64 e segs).
Em todo este contexto, a sujeição a imposto quando haja lugar a aquisição de partes
sociais ou de quotas nas sociedades em nome coletivo, em comandita simples ou por quotas, como determina o artigo 2.º, n.º 2, alínea d), do Código de IMT, pode encontrar justificação na circunstância de estarem aí em causa sociedades de pessoas ou sociedades que, pelo seu estatuto, conferem prevalência à participação dos sócios nas incidências da vida societária.
Importa ainda reter, em decorrência do falado princípio da tipicidade, que não só não
é possível adotar tipos societários diversos dos que se encontram legalmente previstos, como uma sociedade não pode estipular um quadro regulativo que se afaste das regras essenciais que correspondem ao tipo adotado no contrato social. Uma outra consequência do princípio da tipicidade consiste na limitação ao recurso à analogia: não é possível por integração analógica constituir tipos de sociedades diversos daqueles que se encontram enumerados na lei (MENEZES CORDEIRO, Manual de Direito das Sociedades, I vol., 2004, Coimbra, pág. 202)”.
“Por outro lado, o recurso à analogia suscita outro tipo de dificuldades quando estamos
perante normas fiscais.
A LGT fixou as regras gerais da interpretação da lei fiscal através do seu artigo 11.º, que dispõe nos seguintes termos:
Na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis.
Sempre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer diretamente da lei.
Persistindo a dúvida sobre o sentido das normas de incidência a aplicar, deve atende se à substância económica dos factos tributários.
As lacunas resultantes de normas tributárias abrangidas na reserva de lei da Assembleia da República não são suscetíveis de integração analógica.
A lei não estipula, em geral, a proibição da analogia no âmbito do direito fiscal e a integração por analogia mediante a transposição de uma regra prevista na lei para uma outra hipótese semelhante que não se encontra regulada pode encontrar-se justificada pelo princípio da igualdade tributária, permitindo assegurar que os contribuintes que se encontram na mesma situação substancial possam contribuir para os encargos públicos de acordo com a sua idêntica
capacidade contributiva (neste sentido, SÉRGIO VASQUES, Manual de Direito Fiscal, Coimbra, 2015, pág. 363).
No entanto, o n.º 4 do artigo 11.º da LGT proíbe a integração analógica de lacunas resultantes de normas tributárias abrangidas na reserva de lei da Assembleia da República.
A reserva parlamentar está circunscrita, em matéria fiscal, à criação de impostos e sistema fiscal e regime geral das taxas e demais contribuições a favor das entidades públicas (artigo 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP), havendo de entender-se que no conceito de criação de impostos se incluem todos os elementos essenciais à própria definição do imposto a que se refere o artigo 103.º, n.º 2, como sejam a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes (GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição República Portuguesa Anotada, 4.a edição, Coimbra, I vol., pág. 329, II vol. págs.1091-1092)”.
“No caso vertente, está justamente em causa uma norma de incidência objectiva de·imposto que se enquadra na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, sendo certo que o Código do IMT foi aprovada através de Decreto-Lei mas no uso de autorização legislativa concedida pela Lei n.º 26/2003, de 30 de Julho, que, especificamente, definiu o âmbito de incidência objetiva e territorial do imposto, mormente no tocante à aquisição de partes sociais (artigo 23.º, n.º 5, alínea i)).
E por conseguinte, encontra-se vedado ao intérprete a integração por meio de analogia relativamente à referida disposição do artigo 2.º, n.º 1, alínea d).
Não podendo falar-se de uma lacuna da lei, visto que funciona o princípio da taxatividade dos tipos legais de sociedades com objeto comercial e não ocorre uma qualquer incompletude quanto à regulação em conjunto das formas ou modelos das sociedades, e não sendo também possível proceder a uma transposição analógica de um tipo societário de direito norte-americano para qualquer dos tipos legais do artigo 1.º, n.º 2, do CSC por estar em causa uma norma de incidência de imposto coberta por reserva parlamentar, é patente que não poderia a Autoridade Tributária sujeitar a imposto a aquisição de partes sociais da B..., LLC com base no entendimento de que esta entidade corresponde, no direito português, a uma sociedade por quotas”.
Tudo visto e pelos motivos sobejamente apontados ao longo da decisão arbitral, conclui este tribunal pela ilegalidade dos atos de liquidação de IMT e de juros compensatórios impugnados, em resultado da inaplicabilidade do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea d), do Código do IMT, à aquisição de partes sociais de uma sociedade de direito norte-americano do tipo “Limited Liability Company”, sediada naquele Estado, insusceptível de integrar um tipo societário de direito português, por via analógica.
Recordando que no PPA vem ainda requerido que a ilegalidade invocada seja sancionada com a cominação da nulidade, assinala o tribunal arbitral que os vícios do ato tributário implicam a sua mera anulabilidade, sendo nulos os atos para os quais a lei comine expressamente essa forma de invalidade, conforme dispõe o artigo 161.º do CPA, o que não se vislumbra no caso.
Tendo procedido integralmente o pedido em razão da referida ilegalidade da totalidade dos atos tributários impugnados, fica, naturalmente, prejudicada a apreciação das demais causas de pedir invocadas pelos Requerentes.
2. Do direito a juros indemnizatórios
Ambas as notas de cobrança IMT acrescido de juros compensatórios, foram pagas em 14-04-2022.
Os Requerentes pedem o reembolso do imposto pago indevidamente, acrescido de juros indemnizatórios.
Entende este tribunal singular que, conforme decorre do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, o direito a juros indemnizatórios pode ser reconhecido no processo arbitral e, assim, se conhece do pedido.
Nos termos da norma do n.º 1 do referido artigo, serão devidos juros indemnizatórios "quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido."
O direito a juros indemnizatórios a que alude a norma da LGT mencionada pressupõe que haja sido pago imposto por montante superior ao devido e que tal derive de erro, de facto ou de direito, imputável aos serviços da AT.
No caso em apreço, é manifesto que, na sequência da ilegalidade dos atos de liquidação, pelas razões que se apontaram anteriormente, os Requerentes efetuaram o pagamento de importância manifestamente indevida.
Pelo que se reconhece aos Requerentes o direito aos juros indemnizatórios peticionados, contados, à taxa legal, sobre o montante indevidamente cobrado, desde a data do respetivo pagamento até ao momento do efetivo reembolso (cfr. LGT, artigo 43.º, n.º 1 e CPPT, artigo 61.º).
V. DECISÃO
Nestes termos, decide o Tribunal Arbitral Singular:
-
Julgar procedente o pedido arbitral e anular os atos de liquidação de IMT e juros compensatórios impugnados;
-
Condenar a Autoridade Tributária no reembolso aos Requerentes da quantia de 38.718,56€, pelo imposto e juros compensatórios indevidamente pagos;
-
Condenar a Autoridade Tributária no pagamento de juros indemnizatórios à taxa legal em vigor sobre o pagamento efetuado, até efetivo e integral pagamento;
-
De harmonia com o disposto nos artigos 296.º e 306.º, do Código do Processo Civil (CPC) e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, aplicáveis por força do artigo 29.º, n.º 1 alíneas a) e e), do RJAT, e 3.º, n.ºs 2 e 3, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 38.718,56 (trinta e oito mil setecentos e dezoito euros e cinquenta e seis cêntimos), atendendo ao valor económico aferido pelo montante da liquidação de imposto impugnada;
-
Nos termos dos artigos 12.º e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigos 2.º e 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas, em € 1.836,00 (mil oitocentos e trinta e seis euros), nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, imputáveis à Requerida AT.
Notifique-se.
Lisboa, 16 de março de 2023
A Árbitra
/Alexandra Iglésias/
Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do DL 10/2011, de 20 de janeiro.A redação da presente decisão rege-se pelo acordo ortográfico de 1990.