Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 570/2022-T
Data da decisão: 2023-02-27  IRS  
Valor do pedido: € 2.490,53
Tema: IRS - Domicílio fiscal; residência fiscal; informações prestadas pelas administrações tributárias estrangeiras
Versão em PDF

 

SUMÁRIO

 

  1. Um contribuinte que seja reconhecido como residente fiscal em Portugal, para efeitos de IRS, pela Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) e por documento oficial emitido pela Autoridade Fiscal Francesa (AFF), que faz fé nos termos do artigo 76.º, n.ºs 1 e 4 da LGT, não tem dupla residência para efeitos da CDT celebrada entre Portugal e França.
  2. Ao reclamar dupla residência, esse contribuinte deve apresentar um segundo documento oficial apropriado, emitido pela AFF, que certifique a sua residência fiscal em França junto da AT, de maneira a poder beneficiar das vantagens previstas pela CDT entre Portugal e França.
  3. Na falta de elementos probatórios inequívocos e concludentes, a fé pública de uma declaração oficial de uma autoridade fiscal estrangeira só se considera infirmada, nos seus efeitos probatórios, mediante a emissão de outra declaração oficial de sentido contrário, de valor jurídico equivalente.

 

DECISÃO ARBITRAL

O árbitro Jónatas Eduardo Mendes Machado, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para constituir o presente Tribunal Arbitral, profere a seguinte decisão:

 

1RELATÓRIO

1. A... (Requerente), portador do NIF..., casado, com residência na Rua ... n.º ..., ..., ...-... Vila Real, tendo apresentado Reclamação Graciosa junto da Direção de Finanças de Vila Real, em 27 de fevereiro de 2022, e presumindo o seu indeferimento tácito, ocorrido em 27 de junho de 2022, referente à liquidação de IRS n. º 2021..., relativa ao ano de 2017, emitida oficiosamente pela Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), veio, nos termos do artigo 10.º n.º 1, alínea a), do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), regulado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, apresentar pedido de pronúncia arbitral e de constituição de Tribunal Arbitral singular, sendo Requerida a AT, visando a declaração de ilegalidade e anulação da mencionada liquidação de IRS.

 

2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD, em 26.09.2022.

 

3. Em conformidade com os artigos 5.º, n.º 2, alínea a), 6.º, n.º 1 e 11.º, n.º 1 do RJAT, o Conselho Deontológico deste Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou o signatário como árbitro singular, em 11.10.2022.

 

4. As partes foram devidamente notificadas dessa designação, à qual não opuseram recusa, nos termos conjugados dos artigos 11.º, n.º 1, alíneas b) e c) e 8.º do RJAT e 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

5. Por força do preceituado na alínea c) do n.º 1 e do n.º 8 do artigo 11.º do RJAT, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 13.12.2022.

 

6.A AT, tendo para o efeito sido devidamente notificada, ao abrigo do disposto no artigo 17.º do RJAT, apresentou a sua resposta, em 23.01.2023, onde, por impugnação, sustentou a improcedência do pedido, por não provado, e a absolvição da Requerida.

 

7. Por não ter sido requerida pelas partes e ser considerada desnecessária, o Tribunal prescindiu da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, por despacho proferido no dia 24.01.2023.

 

8. Em 27.01.2023 foi admitida a junção ao processo de mais documentação produzida pela Requerente, e, em 30.01.2023, a respetiva análise contraditória efetuada pela Requerida.   

 

1.1Dos factos alegados pelo Requerente

 

 

9. O Requerente, nascido em 15.02.1942, é nacional português, encontrando-se desde 1966 emigrado em França, onde sempre viveu, trabalhou e apresentou todas as suas declarações de rendimentos, onde se considerava residente fiscal e onde se viria a aposentar, apenas se deslocando a Portugal para gozo de férias.

 

10. Em 1982 foi-lhe atribuído um número de identificação fiscal português, como aliás sucedeu com as dezenas de milhares de cidadãos de nacionalidade portuguesa que acabariam por emigrar para o estrangeiro na década de 60.

 

11. Por razões que desconhece, foi-lhe atribuído NIF na qualidade de residente fiscal em território Português, mas nunca foi convicção do Requerente que seria residente fiscal em Portugal a partir desse momento porque, de facto, tinha e mantinha a sua residência habitual em França, na localidade de ..., onde dispunha de moradia que constituía a sua residência permanente e onde residia a família do Requerente, a saber, esposa e filhos.

 

12. O Requerente sempre pagou os seus impostos, seguros e encargos relacionados com a manutenção da sua residência e imposto automóvel em França, pais onde sempre trabalhou e estudou, dispondo de inúmeros documentos comprovativos de tal realidade.

 

13. O Requerente foi notificado em 23.11.2021 da liquidação de IRS, referente a rendimentos por si auferidos em 2017, tendo resultado um valor a pagar, até ao dia 27.12.2021, de € 2.239,90, sendo que, embora não concordando a liquidação oficiosa e uma vez que a reclamação graciosa que apresentou junto da Direção de Finanças de Vila Real não têm efeito suspensivo, procedeu, entretanto, ao pagamento de 8 das 12 prestações do IRS devido, em face de tal liquidação, no valor total de € 1505,13.

 

14. O Requerente não permaneceu mais de 183 dias em território Português no ano fiscal de 2017, como exigia a alínea a) do n.º 1 do artigo 16.º do Código do IRS, não se verificando qualquer dos requisitos legais de que depende a qualidade do Requerente como residente fiscal em território Português.

 

15. O Requerente apresentou em 27.02.2022, junto do Sr. Diretor de Finanças do Distrito de Vila Real, Reclamação Graciosa da Liquidação de IRS oficiosamente operada pela Autoridade Tributária, a qual lhe havia sido notificada em 23.11.2021, com data limite de pagamento a 27.12.2021, sendo que, no dia da apresentação da petição inicial, a mesma se encontrava aí pendente desde então sem qualquer desenvolvimento concreto, considerando-se que, em 27 de junho de 2022, ou seja, 4 meses volvidos desde a data da sua apresentação (27.02.2022), operou in casu a respetiva presunção de indeferimento tácito.

 

 

1.2Argumentos das partes

16. Os argumentos trazidos aos autos centram-se na questão da determinação da residência fiscal do sujeito passivo.

17. O Requerente sustenta a ilegalidade da liquidação acima mencionada com os argumentos de facto e de direito que a seguir se sintetizam:

  1. O Requerente não permaneceu mais de 183 dias em território português no ano fiscal de 2017, como exigia a alínea a) do n.º 1 do artigo 16.º do Código do IRS;
  2. Não se verificou qualquer dos requisitos legais de que depende a qualidade de residente fiscal em território português, pelo que a liquidação em apreço enferma de violação de lei;
  3. Em última instância, o caso do Requerente poderá constituir um caso de dupla residência;
  4. Vigorando entre Portugal e França uma Convenção para evitar a Dupla Tributação Internacional, o caso não poderá deixar de ser resolvido mediante a sua aplicação, considerando a sua prevalência sobre a lei interna portuguesa;
  5. Tendo sido em França que, desde 1966, se fixou o centro de interesses familiares, laborais e económicos do Requerente, aí radicou, por conseguinte, o seu centro de interesses vitais e aí deve ser considerado residente no âmbito da aplicação da Convenção para evitar a Dupla Tributação Internacional para efeitos fiscais, nos termos do artigo 4.º n.º 2, alínea a), dessa Convenção; 
  6. A liquidação oficiosa do IRS objeto do presente pedido de pronúncia e de reclamação graciosa é ilegal por violar o disposto no artigo 15.º, n.º 2, do CIRS e, na sequência do disposto no artigo 71.º n.º , alínea a), do mesmo diploma legal, por violar o disposto no artigo 13.º, n.º 1 e 7, do CIRS e, a não se entender assim, por violação da Convenção para evitar a Dupla Tributação Internacional, celebrada entre Portugal e França, nomeadamente do seu artigo 4.º;
  7. A liquidação oficiosa de IRS em crise, no valor de € 2.239,90, deve ser anulada, com a anulação dos juros compensatórios pelo retardamento da liquidação, que lhe foram indevidamente exigidos nos termos dos artigos 91.º do CIRS e 35.º da LGT, no valor de € 250,69, devendo ser restituído ao contribuinte todo o montante que o mesmo venha a pagar até à decisão arbitral, acrescido dos juros indemnizatórios devidos, desde a data de cada uma das prestações da liquidação deste tributo e até à data da sua efetiva restituição;

 

 

18. A AT sustenta a manutenção do ato impugnado com base nos fundamentos sinteticamente elencados:

  1. No âmbito da troca automática de informação, nos termos do artigo 8.º da Diretiva 2011/16/EU do Conselho, de 15 de fevereiro de 2011, relativa à cooperação administrativa no domínio da fiscalidade (transposta para a ordem jurídica nacional através do Decreto-Lei nº 61/2013, de 10 de maio), a Autoridade Fiscal Francesa comunicou à Autoridade Tributária e Aduaneira (“ATA”), que o Requerente, no ano de 2017, auferiu rendimentos de pensões de fonte francesa no montante de €14.567,00, considerando-o, desta forma, residente em Portugal;
  2. Fazem fé as informações prestadas pelas administrações tributárias estrangeiras ao abrigo de convenções internacionais de assistência mútua a que o Estado português esteja vinculado, sem prejuízo da prova em contrário do sujeito passivo ou interessado, em conformidade com o disposto no artigo 76.º, n.ºs 1 e 4 da LGT;
  3. Não foi exibido Certificado de Residência Fiscal emitido pela autoridade fiscal competente nos termos do artigo 4.º da Convenção para evitar a Dupla Tributação celebrada entre Portugal e França, sendo que é através dele que o Requerente demonstra que, em 2017, foi sujeito a tributação pela universalidade dos seus rendimentos em França, e, consequentemente, permitirá o recurso às regras de desempate previstas no n.º 2 do artigo 4.º da Convenção para Evitar a Dupla Tributação celebrada entre Portugal e França;
  4. No caso em apreço, não são aplicáveis as alíneas c) e d), do n.º 1 do artigo 16.º do CIRS, pelo que a residência irá ser aferida atendendo somente ao disposto nas alíneas a) e b);
  5. No que se refere ao critério de permanência estabelecido na alínea a), do n.º 1, do artigo 16.º do CIRS, a AT não dispõe de qualquer informação quanto à permanência do Requerente em território nacional, e este, por sua vez, não apresentou qualquer elemento de prova quanto a este facto, pelo que se desconhece o período de permanência do impugnante em Portugal;
  6. No que se refere à existência de habitação em condições que façam supor intenção atual de a manter e ocupar como residência habitual em território nacional, consultada a informação disponível no sistema informático da AT, verificou-se que no ano de 2017 o requerente era proprietário do prédio urbano identificado pelo artigo matricial n.º ..., da União das Freguesias de... e ..., sito no Lugar de ..., ...-... Vila Real, e, desde pelo menos 30/09/2013, tinha o seu domicílio fiscal localizado na morada do referido imóvel, e, «[o] domicílio fiscal faz presumir a habitação própria e permanente do sujeito passivo (…)», conforme estipula o n.º 10 do artigo 13.º do CIRS (com a redação vigente a 31/12/2017);
  7. Verifica-se o cumprimento do pressuposto da existência de habitação ao dispor no território nacional nos termos previstos na al. b) do artigo 16.º do Código do IRS, pelo que o Requerente é considerado residente em Portugal, seguindo-se que ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 15.º do Código do IRS, «(…) o IRS incide sobre a totalidade dos seus rendimentos, incluindo os obtidos fora desse território.».

1.3. Saneamento  

 

 

19. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, nos termos n.º 1 do artigo 10.º do RJAT e as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e mostram-se devidamente representadas.

 

20. O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído (artigos 5.º, n.º 2, 6.º, n.º 1, e 11.º do RJAT), e é materialmente competente (artigos 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT), de acordo com os fundamentos infra. 

 

21. O processo não padece de nulidades podendo prosseguir-se para a decisão sobre o mérito da causa.

 

2FUNDAMENTAÇÃO

2.1Factos dados como provados

22. Com base nos documentos trazidos aos autos são dados como provados os seguintes factos relevantes para a decisão do caso sub judice:

  1. O Requerente apresentou em 27.02.2022, junto do Sr. Diretor de Finanças do Distrito de Vila Real, Reclamação Graciosa da Liquidação de IRS n. º 2021..., relativa ao ano de 2017, tendo aguardado a respetiva instrução (Docs 1 e 2 e Liquidação);
  2. O Requerente procedeu, entretanto, ao pagamento de 8 das 12 prestações do IRS devido, em face de tal Liquidação, no valor total de € 1505,13 (Doc. 15)
  3. Em 27 de junho de 2022, ou seja, 4 meses volvidos desde a data da sua apresentação (27 de fevereiro de 2022), não tinha sido produzida decisão sobre a Reclamação Graciosa;
  4. Em 1966/67 é atestada ao Requerente a frequência em França de aulas de francês e cálculo matemático (Doc.5) 
  5. Em 1998 o Requerente é dado como tendo trabalhado em França durante 30 anos, como preparador de matérias primas, em Noyon (Doc. 4).
  6. O Requerente deu sangue em França em 1981 e 1997; (Docs. 6 e 7)
  7. Em junho de 2021 foi emitido pela Mairie (Câmara) de Camelin, atestando que o Requerente e a sua esposa têm residência em ..., Rue ..., ... Camelin, desde 1 de janeiro de 2015; (Doc. 3).
  8. No ano de 2017 o requerente era proprietário do prédio urbano identificado pelo artigo matricial n.º..., da União das Freguesias de ... e ..., sito no Lugar de ..., ...-... Vila Real, e, desde pelo menos 30/09/2013, tinha o seu domicílio fiscal localizado na morada do referido imóvel;
  9. Em 2017 e 2018 a Segurança Social Francesa estabelece contacto com o Requerente e a esposa dando-os como residentes em ..., Rue ..., ... Camelin (Doc. 8, 9, 10 e 11);
  10. Em janeiro 2017 são feitas pelo Requerente e sua esposa despesas de farmácia em França (Doc 12 e 13)
  11. Em 2017 o Requerente apresentou a sua declaração de rendimentos em França (Doc. 14). 

 

 

2.2Factos não provados

 

23. Com relevo para a decisão sobre o mérito não fica provado que o Requerente tivesse residência fiscal em França em 2017.  

 

 

2.3Motivação

24. Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da matéria não provada (cf. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

 

25. Os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis das questões objeto do litígio (v. 596.º, n.º 1, do CPC, ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

26. Assim, consideraram-se provados e não provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

 

 

2.4Questão decidenda

 

27. Nos autos está em questão saber se o Requerente deve ser considerado residente em Portugal no ano de 2017 e, em tal caso, se é válida a liquidação de imposto n. º 2021... .

 

28. No âmbito do IRS, a residência é o critério utilizado para determinar o âmbito de aplicação do imposto (cf. artigo 15.º, n.º 1, do CIRS), sendo os residentes sujeitos a um princípio de tributação de base mundial, por contraposição com os não residentes que apenas são sujeitos a tributação na fonte, relativamente aos rendimentos obtidos em Portugal. De acordo com o disposto no artigo 13.º, n.º 1, do CIRS, “[f]icam sujeitas a IRS as pessoas singulares que residam em território português e as que, nele não residindo, aqui obtenham rendimentos.”

 

29. No ano de 2017 o Requerente era proprietário do prédio urbano identificado pelo artigo matricial n.º ..., da União das Freguesias de ... e ..., sito no ..., ...-... Vila Real, e, desde pelo menos 30.09.2013, tinha o seu domicílio fiscal localizado na morada do referido imóvel. O artigo 13.º, n.º 10, do CIRS, na redação em vigor nesse ano, determinava que “[o] domicílio fiscal faz presumir a habitação própria e permanente do sujeito passivo que pode, a todo o tempo, apresentar prova em contrário.” Com base nesta disposição, a AT presumiu que o Requerente tinha habitação própria e permanente em Portugal. No entanto, a mesma admite a apresentação a todo o tempo de prova em contrário. 

 

30. O artigo 16.º do CIRS estabelece os critérios com base nos quais se determina a residência fiscal em Portugal. De acordo com o critério do respetivo n.º1, alínea a)“são residentes em território português as pessoas que, no ano a que respeitam os rendimentos hajam nele permanecido mais de 183 dias, seguidos ou interpolados, em qualquer período de 12 meses com início ou fim no ano em causa”. A matéria de facto recolhida nos autos não permite responder de forma clara e inequívoca à questão de saber quantos dias o Requerente permaneceu em França e Portugal no ano de 2017. As despesas de farmácia apresentadas pelo Requerente dizem respeito ao início desse ano, não excluindo a permanência por mais de 183 dias em qualquer dos Estados. (Doc.12 e 13).  

 

31. À luz do critério da alínea b), do n.º1, do artigo 16.º do CIRS, segundo o qual são residentes em Portugal aqueles que “tendo permanecido por menos tempo, aí disponham, num qualquer dia do período referido na alínea anterior, de habitação em condições que façam supor intenção atual de a manter e ocupar como residência habitual”, o Requerente podia, prima facie, ser considerado residente em Portugal, visto que, tendo por referência o ano de 2017, o mesmo era proprietário aí de um prédio urbano e tinha domicílio fiscal, presumindo-se por isso a sua habitação própria e permanente, nos termos do referido n.º 10 do artigo 13.º do CIRS, na redação em vigor à data.

 

32. É certo que, nos termos da lei, não interessa apenas a suposição da AT sobre a intenção do sujeito passivo, mas sim a suposição que objetivamente se pode inferir de uma análise de todos os factos e circunstâncias relevantes, nomeadamente respeitantes à efetiva emigração do Requerente para residir e trabalhar em França[1], no caso uma realidade ocorrida em 1966. Em abstrato, a questão de saber se alguém é ou não residente em Portugal não pode ser decidida apenas com base no domicílio fiscal, nomeadamente nos casos em que se comprove que alguém efetivamente transferiu a sua residência para o estrangeiro, não sendo inevitável considerá-lo residente em Portugal, mesmo que aí tenha um prédio urbano e domicílio fiscal.

 

33. Sucede, porém, que, nos termos do artigo 8.º da Diretiva 2011/16/EU do Conselho de 15 de fevereiro de 2011, relativa à cooperação administrativa no domínio da fiscalidade (transposta para a ordem jurídica nacional através do Decreto-Lei 61/2013 de 10 de maio), a Autoridade Fiscal Francesa (AFF) comunicou à AT que o Requerente, no ano de 2017, auferiu rendimentos de pensões de fonte francesa no montante de €14.567,00, considerando-o, desta forma, residente em Portugal, fazendo fé as informações prestadas pelas administrações tributárias estrangeiras ao abrigo de convenções internacionais de assistência mútua a que o Estado Português esteja vinculado, sem prejuízo da prova em contrário do sujeito passivo ou interessado, em conformidade com o disposto no artigo 76.º, n.ºs 1 e 4 da LGT.

 

34. É incontornável a relevância jurídica deste aspeto para efeitos da eventual aplicação do artigo 4.º da Convenção entre Portugal e França para evitar a Dupla Tributação e Estabelecer Regras de Assistência Administrativa Recíproca em Matéria de Impostos sobre o Rendimento (CDT)[2], aplicável nos termos do artigo 8.º, nº, 2, da CRP e por ele dotada de primazia sobre o direito interno. O n.º 1 do artigo 4.º da CDT considera residente de um Estado contratante “a pessoa que, por virtude da legislação desse Estado, aí está sujeita a imposto devido ao seu domicílio ou à sua residência”.

 

35. O artigo 4.º da CDT remete para a legislação nacional dos Estados contratantes, sendo que, como se viu, a AT verificou que, relativamente a 2017, o Requerente preenchia os pressupostos de residência fiscal em face dos artigos 13.º, 15.º e 16.º do CIRS, tendo também a AFF – entidade institucional, funcional e geograficamente mais bem colocada para confirmar a residência fiscal em França e aí proteger a respetiva base tributária – considerado que o Requerente era residente em Portugal e não em França. Ou seja, nesse ano, as autoridades tributárias portuguesa e francesa deram o Requerente como residente em Portugal para efeitos fiscais, não se podendo, por conseguinte, falar em dupla residência fiscal nem aplicar os critérios de desempate enunciados no n.º 2 do artigo 4.º da CDT. 

 

36. É certo que relativamente ao ano de 2017 se verifica a existência de um certificado, com data de junho de 2021, emitido pela Mairie (Município) de Camelin, atestando que o Requerente e a sua esposa têm residência em ..., Rue..., ... Camelin, desde 1 de janeiro de 2015 (Doc. 3). Também se confirma que a Segurança Social Francesa para aí terá enviado correspondência (Docs. 8 a 11).. No entanto, embora se possa razoavelmente presumir que essa situação se mantinha à data junho de 2021, a mesma não é por si só suficiente para excluir a residência fiscal em Portugal e comprovar a residência fiscal em França no ano de 2017, de resto expressamente afastada pela AFF. Num mundo caracterizado pela facilidade e – tão frequentemente – intermitência da mobilidade dos indivíduos entre vários países, a propriedade de um imóvel em França e os factos de nele se residir mesmo a maior parte do tempo entre 2015 e 2021 e de para ele ser enviada correspondência não são por si suficientes para dirimir a questão jurídica específica da determinação da residência fiscal no ano de 2017. 

 

37 Também se revelam de insignificante relevância para o efeito fiscal pretendido pelo Requerente os comprovativos por ele carreados sobre os estudos efetuados em França, nos primeiros anos aí passados, o facto de aí ter trabalhado durante mais de trinta anos ou as dádivas de sangue esparsamente efetuadas há algumas décadas atrás. (Docs. 4 a 7).  

 

38. Os factos – aparentemente contraditórios – de o Requerente ter apresentado uma declaração de rendimentos em França, relativa a 2017, e de a AFF ter comunicado à AT, em declaração que faz fé pública (art. 76.º, nºs 1 e 4 da LGT) que o Requerente, no ano de 2017, auferiu rendimentos de pensões de fonte francesa, considerando-o, desta forma, residente em Portugal, geram um impasse probatório que só poderia ser decidido a favor do Requerente – não através de cópias autênticas de comunicações trocadas por email e obtidas por “print screen” – mediante a apresentação de documento oficial adequado, emitido pela AFF, que certificasse a residência fiscal do Requerente em França junto da AT e, desse modo, lhe permitisse beneficiar das vantagens previstas pela CDT assinada entre Portugal e França. Um princípio geral de paralelismo de formas impõe que, na falta de elementos probatórios inequívocos e concludentes, a fé pública de uma declaração oficial da AFF se considere infirmada, nos seus efeitos probatórios, apenas por outra declaração oficial de sentido contrário munida de valor jurídico equivalente.

.

 

 

3DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

Julgar improcedente o presente pedido de pronuncia arbitral, por não provado, mantendo-se na ordem jurídica o ato tributário de liquidação impugnado, e absolvendo-se, em conformidade, a entidade Requerida do pedido.

 

4VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em € 2.490,53, nos termos do artigo 306.º, n.º 1 do CPC e do 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, interpretados em conformidade com o artigo 10.º, n.º 2, alínea e), do RJAT.

 

5CUSTAS

 

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 612.00 a cargo da Requerente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e do artigo 4.º, n.º 4, do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I anexa ao mesmo

Notifique-se.

 

Lisboa, 27 de fevereiro de 2023

 

O Árbitro

 

 

Jónatas E. M. Machado

 



[1] Cfr., neste sentido, Decisão Arbitral do CAAD, Processo n.º 434/2019-T, 11.08.2020.

[2] Aprovada pelo Decreto-Lei nº 105/71, Diário da República I Série, nº 72, de 26/03/1971, em vigor desde 18.10.1972.