SUMÁRIO:
I. O artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento colectivo (OIC) não residente são objecto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.
II. Os nºs. 1 e 10 do artigo 22.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, ao limitarem o regime neles previsto a organismos de investimento colectivo constituídos segundo a legislação nacional, estabelecem uma discriminação arbitrária, susceptível de configurar uma restrição à livre circulação de capitais no espaço da União Europeia, proibida pelo artigo 63.º do TFUE.
DECISÃO ARBITRAL
As Árbitras Professora Doutora Rita Correia da Cunha (Presidente), Professora Doutora Clotilde Celorico Palma e Professora Doutora Ana Paula Marques Rocha, designadas pelo Conselho Deontológico do CAAD para formarem o Tribunal Arbitral Colectivo, acordam no seguinte:
I. Relatório
1. A..., organismo de investimento colectivo em valores mobiliários (“OICVM”) constituído e a operar no Reino da Bélgica, contribuinte fiscal belga n.º... e português n.º..., com sede em Rue..., Reino da Bélgica (doravante “Requerente”), veio, ao abrigo do disposto nos artigos 57.º, n.ºs 1 e 5, e 95.º, n.º 2, alínea d), da Lei Geral Tributária (“LGT”), 97.º, n.º 1, alínea a), 99.º, alínea a), e 102.º, n.º 1, alínea d), do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), 137.º, n.º 1, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (“CIRC”), 10.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), requerer a constituição de Tribunal Arbitral e apresentar pedido de pronúncia arbitral tendo em vista a declaração de ilegalidade e consequente anulação do indeferimento tácito da reclamação graciosa n.º ...2022..., bem como das liquidações de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (“IRC”) por retenção na fonte ocorridas nos meses de Janeiro, Maio, Julho e Dezembro de 2020, aquando da colocação à disposição do Requerente de dividendos decorrentes de participações detidas em sociedades residentes em território português, no montante total de € 618.626,20, solicitando ainda o reconhecimento do direito ao pagamento de juros indemnizatórios nos termos do artigo 43.º da LGT.
2. Em síntese, o Requerente sustenta, fundamentando com vasta e relevante jurisprudência, quer do Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) quer arbitral, assim como doutrina, que os dividendos de fonte portuguesa por si auferidos não devem ser tributados em sede de IRC, ao abrigo do disposto no artigo 22.º, n.ºs 1, 3 e 10, do Estatuto dos Benefícios Fiscais (“EBF”), sob pena de tal consubstanciar uma discriminação injustificada entre OICVM residentes e não residentes em Portugal, contrária ao princípio da livre circulação de capitais ínsito no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (“TFUE”) e, consequentemente, ao princípio do primado do Direito da União Europeia consagrado no artigo 8.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa (“CRP”), nos termos seguintes:
“16.º No entender do Requerente, e como se demonstrará de seguida, os OICVM não residentes são objecto de uma discriminação contrária ao TFUE, na medida em que o regime previsto no artigo 22.º, n.ºs 1, 3 e 10, do EBF é aplicável apenas aos OICVM residentes em Portugal que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional – i.e. ao abrigo da Lei n.º 16/2015, de 24 de Fevereiro, que transpõe a Directiva 2009/65/CE –, não permitindo o Estado português que os OICVM não residentes, constituídos e a operar noutro Estado-Membro ao abrigo da Directiva 2009/65/CE, acedam a tal regime, ainda que demonstrem que cumprem no seu Estado de residência exigências equivalentes às contidas na lei portuguesa.
(…)
22.º Tendo o Requerente apresentado a reclamação graciosa em referência no passado dia 17 de Fevereiro de 2022, a Administração Tributária deveria ter proferido a sua decisão até ao dia 17 de Junho de 2022.
23.º Não obstante, e conforme supra referido, até à presente data, o Requerente não foi notificado por parte da Administração Tributária da decisão final da reclamação graciosa por si apresentada.
24.º Impendendo sobre a Administração Tributária o dever de emitir pronúncia sobre a reclamação graciosa apresentada no prazo de quatro meses desde a respectiva apresentação, o incumprimento desse prazo faz presumir, para efeitos de impugnação judicial ou arbitral, o indeferimento do pedido, em conformidade com o disposto no artigo 57.º, n.º 5, da LGT.
25.º Em consequência, necessariamente se conclui que a referida omissão consubstancia uma clara violação do princípio da decisão e dos direitos e interesses legalmente protegidos do Requerente, dispondo este do prazo de 90 dias a contar da formação – ainda que presumida – do referido acto de indeferimento para apresentar requerimento de constituição de Tribunal Arbitral para apreciação da legalidade das liquidações de IRC por retenção na fonte acima identificadas, em conformidade com o disposto nos artigos 95.º, n.º 2, alínea d), da LGT, 102.º, n.º 1, alínea d), do CPPT e 10.º, n.os 1, alínea a), e 2, do RJAT.
26.º Assim, perante a presunção de indeferimento tácito verificada no âmbito da reclamação graciosa apresentada, encontram-se verificados os pressupostos para o Requerente apresentar o presente requerimento de constituição de Tribunal Arbitral, em sede do qual explanará as motivações de Direito que em seu entender sustentam a ilegalidade das liquidações de IRC acima identificadas.
(…)
80.º Quaisquer dúvidas que, não obstante a referida jurisprudência, pudessem subsistir relativamente à comparabilidade entre os OICVM residentes em território nacional e os OICVM residentes noutro Estado-Membro da União Europeia, foram definitivamente superadas por força do Acórdão AllianzGIFonds AEVN do Tribunal de Justiça da União Europeia, de 17 de Março de 2022 (Processo n.º C-545/19) (…)
(…)
112.º Ou seja: o Estado português não pode justificar a discriminação em referência com a necessidade de garantir a eficácia de controlos administrativos na medida em que nem sequer concede aos OICVM não residentes a possibilidade de comprovarem que cumprem, no seu Estado-Membro de residência, exigências equivalentes às previstas na legislação portuguesa.
113.º Note-se ainda que a doutrina tem igualmente rejeitado a possibilidade de justificar medidas discriminatórias com fundamento na necessidade de prevenção da fraude e evasão fiscal (…)
114.º Também as eventuais dúvidas que subsistissem relativamente à impossibilidade de justificar a restrição à livre circulação de capitais decorrente do regime consagrado no artigo 22.º do EBF ficaram definitivamente dissipadas face à posição afirmada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia no Acórdão AllianzGi-Fonds AEVN de 17 de Março de 2022 (Processo n.º C-545/19) (…)
(…)
115.º Ou seja: o Estado português não pode justificar a discriminação em referência com a necessidade de evitar a fraude e a evasão fiscal ou de garantir a eficácia de controlos administrativos na medida em que tal resultaria numa presunção inilidível, e como tal contrária ao princípio da proporcionalidade, do carácter artificioso das operações em causa e do incumprimento por parte do Requerente, no seu Estado de residência, de exigências equivalentes às previstas na legislação portuguesa.
(…)
123.º Neste contexto, no caso em apreço, o cômputo dos juros indemnizatórios deve iniciar-se na data das retenções na fonte indevidas, a esse entendimento não se opondo o facto de as liquidações impugnadas terem sido operadas por uma entidade privada – o B...–, porquanto é inequívoco que aquela exerce, nos termos dos artigos 20.º da LGT e 94.º do CIRC, um verdadeiro poder delegado por uma entidade pública, tendo as referidas liquidações por retenção na fonte sido operadas no exercício efectivo desse poder.
124.º Neste sentido pronunciou-se o Tribunal Arbitral constituído sob a égide do Centro de Arbitragem Administrativa na Decisão Arbitral de 19 de Outubro de 2020, proferida no âmbito do processo n.º 926/2019-T: «Neste caso, independentemente de a ilegalidade ser ou não imputável a Autoridade Tributária e Aduaneira, há direito da Requerente a juros indemnizatórios nos termos desta alínea d) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT. Os juros indemnizatórios são devidos, nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 3, alínea d), e 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, 61.º, n.º 5, do CPPT, 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril, à taxa legal supletiva, e contados desde a data de 05-04-2017 (data da distribuição dos dividendos que coincidirá com a data na retenção na fonte dos IRC retido), em que se considera que ocorreu o pagamento indevido, até à data do processamento da respectiva nota de crédito» – cfr. Decisão Arbitral de 19 de Outubro de 2020 (Processo n.º 926/2019-T).
125.º Refira-se ainda que carece de fundamento a tese segundo a qual o erro nos pressupostos de facto e de direito é imputável aos Serviços da Administração Tributária apenas no momento em que os mesmos se pronunciem (ou devam pronunciar) sobre o mesmo, na medida em que os mesmos não gozam de legitimidade para questionar as leis que estão incumbidos de aplicar.
(…)
128.º Face ao exposto, necessariamente se conclui que, não tendo o imposto em referência sido autoliquidado pelo Requerente, mas objecto de retenções na fonte efectuadas por uma entidade terceira (na qualidade de substituto tributário) no interesse da Administração Tributária, o erro na prolação de tais liquidações terá de ser imputável «aos serviços», nos termos e para os efeitos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT.
129.º Termos em que se conclui que, na medida em que seja reconhecido, por esse Douto Tribunal Arbitral, o erro imputável aos serviços da Administração Tributária na prolação das liquidações que se encontram na origem dos presentes autos, o Requerente, tendo efectuado o respectivo pagamento através do mecanismo da retenção na fonte, terá direito ao pagamento de juros indemnizatórios ao abrigo dos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT, sob pena de violação do artigo 22.º da CRP, razão por que se peticiona a declaração do referido erro e o reconhecimento do concomitante direito do Requerente a juros indemnizatórios, a computar sobre o montante de EUR 618.626,20 e a partir das datas das retenções na fonte desse montante pelo B... até ao seu efectivo e integral pagamento. ”
3. O Requerente juntou diversos documentos ao pedido de pronúncia arbitral.
4. Cumpridos os necessários e legais trâmites processuais, designadamente os previstos no Decreto-Lei n.º 10/2011 e na Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, foi constituído Tribunal Arbitral Colectivo em 21 de Novembro de 2022, formado pela Professora Doutora Rita Correia da Cunha (presidente), Professora Doutora Clotilde Celorico Palma e Professora Doutora Ana Paula Marques Rocha, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro.
5. Notificada em 21 de Novembro de 2022 nos termos do artigo 17.º, n.º 1, do RJAT, veio a Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”) apresentar resposta a 5 de Janeiro de 2023, alegando, sumariamente, que devem ser mantidas as retenções na fonte impugnadas, devendo-se concluir pela improcedência do PPA e, em consequência, pela improcedência do pedido de juros indemnizatórios, nos seguintes termos:
“10.º Como é óbvio, os OIC não abrangidos pelo artigo 22.º do EBF, como é o caso da Requerente, não está sujeito a tributação autónoma sobre os dividendos.
11.º Do alegado pela Requerente é possível concluir que os regimes fiscais aplicáveis aos OIC constituídos ao abrigo da legislação nacional e dos OIC constituídos na Bélgica, não são genericamente comparáveis, pois que a tributação dos primeiros compreende uma tributação em IRC sobre um lucro tributável que integra rendimentos marginais e repousa sobretudo no Imposto do Selo, ao passo que, aparentemente, os segundos estavam isentos de tributação no imposto sobre o rendimento e, aparentemente, também de outros impostos.
12.º Recorda-se que um OIC constituído e estabelecido em Portugal, embora isento de retenção na fonte, está sujeito a uma tributação autónoma sobre os dividendos, à taxa de 23%, se as correspondentes partes sociais não forem detidas, de modo ininterrupto, pelo período de um ano e, além disso, esses rendimentos, quando forem parte integrante do valor líquido global do OIC, em cada trimestre, ainda sofrem a incidência do Imposto do Selo.
13.º Ao passo que os dividendos distribuídos por uma sociedade residente em Portugal a um Fundo de Investimento constituído ao abrigo da legislação de Bélgica, apenas foi objeto de retenção na fonte, a título definitivo, à taxa de 15% (taxa máxima estabelecida no artigo 10.º da CDT).
14.º Para efeitos de comparação da carga fiscal incidente sobre os dividendos auferidos em Portugal pelos OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF e os OIC constituídos no Bélgica, é redutor, e manifestamente insuficiente para extrair conclusões, atender apenas ao imposto retido na fonte e abstrair de outras imposições suscetíveis de onerar fiscalmente os dividendos.
(…)
35.º Ora, o artigo 63.º do TFUE visa assegurar a liberalização da circulação de capitais dentro do mercado interno europeu e entre este e países terceiros, portanto, proíbe qualquer restrição ou discriminação que resulte do tratamento fiscal diferenciado concedido pelas disposições da lei nacional a entidades de Estados-membros ou de países terceiros que crie condições financeiras mais desfavoráveis a estes últimos e seja suscetível de os dissuadir de investir em Portugal.
36.º No entanto, para se avaliar se o tratamento fiscal aplicado aos dividendos obtidos em Portugal é menos vantajoso do que o tratamento fiscal atribuído aos dividendos obtidos pelos OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF e se tal diferenciação é suscetível de afetar o investimento em ações emitidas por sociedades residentes, teria de ser colocado em confronto o imposto retido na fonte, com carácter definitivo, à taxa de 15%, e os impostos – IRC e Imposto do Selo - que incidem sobre os segundos, e que, em conjunto, podem, em certos casos, exceder 23% do valor bruto dos dividendos.
37.º Além do mais, o imposto retido à Requerente poderá eventualmente dar lugar a um crédito de imposto por dupla tributação internacional tanto na esfera da Requerente, bem como na esfera dos investidores, sendo que esta última questão a Requerente não esclareceu.
38.º A verdade é que a Requerente não esclareceu/provou (apenas alegou) se, no caso concreto, existiu ou não um crédito de imposto por dupla tributação internacional na esfera da própria Requerente ou dos investidores.
39.º Assim, contrariamente ao afirmado pela Requerente, não pode afirmar-se que se esteja perante situações objetivamente comparáveis, porquanto, a tributação dos dividendos opera segundo modalidades diferentes, e nada indica que a carga fiscal que onera os dividendos auferidos pelos OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF possa ser mais reduzida do que a que recai sobre os dividendos auferidos em Portugal pela Requerente, antes, pelo contrário.
40.º Assim, cumpre tecer algumas clarificações, ainda que se considere que a Requerente, por estar isenta de imposto sobre o rendimento na Bélgica, não teria direito a qualquer crédito fiscal por retenção de impostos no estrangeiro e, igualmente, não teria também a possibilidade de solicitar à respetiva autoridade tributária, o reembolso dos impostos retidos no estrangeiro, sempre se dirá que,
41.º Sendo os rendimentos do Fundo tributados na esfera dos investidores, por distribuição ou imputação, fica-se sem saber se o direito ao crédito de imposto é transferido para os investidores proporcionalmente aos rendimentos distribuídos ou imputados anualmente,
42.º cumprindo assim um dos objetivos do regime de transparência fiscal que é o de assegurar a neutralidade na tributação dos rendimentos dos investimentos realizados diretamente pelos investidores ou por intermédio desse tipo de instrumentos financeiros.
43.º Pois bem, a Requerente insiste na ideia de que a AT deveria aplicar a norma jurídica do artigo 63.º do TFUE em conformidade com as interpretações do TJUE proferidas até à presente data, todavia, isso equivale a remeter para a doutrina dos acórdãos que só pode ser entendida atendendo às circunstâncias dos casos concretos submetidos àquele Tribunal.
44.º E a prova é a de que o intérprete só pode vincular-se às decisões do TJUE, quando delas resultem orientações claras, precisas e inequívocas e que tenham resultado da apreciação da conformidade com o Tratado de realidades factuais e normativas idênticas, o que não sucede com as realidades subjacentes aos acórdãos relativos a processos que envolvem fundos de investimento.
45.º Ora, com o devido respeito, a jurisprudência do TJUE não autoriza o intérprete a extrair a conclusão, em abstrato, de que a mera existência de uma retenção na fonte de IRC incidindo apenas sobre os dividendos pagos por uma sociedade residente a um Fundo de Investimento estabelecido noutro Estado-Membro constitui por si só uma restrição à livre circulação dos fluxos de capital no espaço europeu, sem que seja feita uma apreciação global do regime fiscal aplicável aos Fundos de Investimento constituídos e estabelecidos em Portugal.
46.º Para efeitos de averiguar, em concreto, se as situações objetivas dos OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF e dos Fundos de investimento estabelecidos noutros Estados-Membros são comparáveis, no tocante à tributação dos dividendos distribuídos por uma sociedade residente, necessário se torna comparar a carga fiscal que onera uns e outros em relação ao mesmo tipo de investimentos.
47.º Só deste modo será possível concluir se a desvantagem de cash-flow criada pela retenção na fonte de IRC, aos fundos de investimentos estabelecidos noutros Estados-Membros da UE, cria um obstáculo ao acesso ao mercado financeiro nacional, colocando-os numa situação desfavorável quando comparada com a situação tributária aplicada aos OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF.
48.º Para avaliar se a legislação nacional aplicável aos OIC constituídos e estabelecidos em Portugal é discriminatória relativamente ao tratamento dos fundos de investimentos de outros Estados Membros não basta olhar apenas o n.º 10 do artigo 22.º do EBF, pois, mesmo quando o que é sindicado é a tributação incidente sobre os dividendos pagos por uma sociedade residente a um fundo de investimento estabelecido na Bélgica, impõe-se levar em conta todos os ónus fiscais incidentes sobre tais rendimentos e sobre os ativos que lhe dão origem.
49.º Deste modo, embora sobre os dividendos pagos por sociedades residentes aos OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF não exista a obrigação de retenção na fonte (cf., n.º 10 do mesmo artigo), a verdade é que estão sujeitos a uma tributação autónoma, à taxa de 23%, por aplicação conjugada do n.º 11 do artigo 88.º do Código do IRC e do n.º 8 do mesmo artigo 22.º do EBF, exceto se as correspondentes ações forem detidas, de modo ininterrupto, por período igual ou superior a um ano.
50.º Acresce que as ações integram o património dos OIC e, caso os rendimentos provenientes dos dividendos sejam capitalizados1, i.e., reinvestidos pelo Fundo, entram para o cálculo do valor tributável em Imposto do Selo, nos termos definidos no n.º 5 do artigo 9.º do Código do Imposto do Selo.
51.º Consequentemente, reitera-se que, para avaliar se da legislação nacional resulta um tratamento discriminatório dos fundos de investimento de outros Estados-Membros contrário ao TFUE, por constituir uma restrição à liberdade de circulação de capitais, a análise não pode cingir-se à consideração estrita das regras de retenção na fonte, há que atender à carga fiscal a que estão sujeitos os OICs abrangidos pelo artigo 22.º do EBF relativamente aos dividendos e às correspondentes ações, pois, só com esta visão global pode concluir-se com um mínimo de segurança que os fundos estrangeiros que investem em ações de sociedades residentes em Portugal são colocados numa situação mais desfavorável.
(…)
67.º Deste modo, reitera-se que se reputa de ligeira e simplista a conclusão de que o regime de tributação dos OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF se mostra contrária ao Direito da União Europeia e que contraria as disposições do TFUE relativas ao princípio da não discriminação em razão da nacionalidade, bem como relativas à livre circulação de capitais, porquanto, se baseia apenas no n.º 3 dessa disposição, alheando-se do disposto no n.º 8 do mesmo preceito, bem como da tributação em Imposto do Selo.
68.º Assim, um OIC constituído ao abrigo da lei portuguesa e um Fundo de Investimento constituído ao abrigo das normas de outro Estado Membro, não estão em situações comparáveis para efeitos de averiguar se existe um tratamento discriminatório em termos fiscais e uma clara restrição à liberdade de circulação de capitais.”
6. Em 24 de Janeiro de 2023, proferiu este Tribunal Despacho nos seguintes termos:
“(1) Considerando que as partes não requereram a produção de prova adicional, que as partes expuseram com clareza a sua posição nos articulados iniciais respetivos, e que a Requerida não invocou exceções na sua Resposta, determina-se a dispensa da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e de alegações escritas finais.
(2) Notifique-se as partes de que a decisão arbitral será proferida até ao final do prazo estabelecido no artigo 21.º, n.º 1, do RJAT;
(3) Notifique-se a Requerente para proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente no prazo de 10 dias.”
7. O Requerente juntou aos autos comprovativo de pagamento da taxa arbitral subsequente em 13 de fevereiro de 2023.
II. Saneamento do Processo
1. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo uma vez que foi apresentado no prazo previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT.
2. Verifica-se a competência deste tribunal arbitral, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.
3. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas (cfr. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT, e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
4. O processo não enferma de nulidades e não foram identificadas questões prévias relativas ao pedido principal, pelo que se impõe, agora, conhecer do mérito do pedido.
III. Fundamentação
1. Questões decidendas
Conforme vimos, a questão decidenda consiste em determinar a conformidade dos normativos internos em vigor à data dos factos tributários ora sindicados – mais concretamente o CIRC e o EBF – relativos ao regime de tributação dos dividendos auferidos por OIC, com os princípios estabelecidos no Direito da UE, em particular com o artigo 63.º do TFUE.
2. Matéria de facto
2.1. Factos provados
Em face das posições das partes expressas nos articulados, bem como dos documentos integrantes do processo administrativo, julgam-se como provados os seguintes factos pertinentes para a decisão da causa:
a) O Requerente é um OICVM, com sede e direcção efectiva no Reino da Bélgica, constituído e a operar ao abrigo da Loi relative à certaines formes de gestion collective de portefeuilles d’investissement, de 3 de Agosto de 2012, que transpõe para a ordem jurídica belga a Directiva 2009/65/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Julho de 2009, que coordena as disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes a alguns OICVM – cfr. cópias de certificado de residência do Requerente e de certidão emitida pela Financial Services and Markets Authority ao abrigo do artigo 2.º do Regulamento UE n.º 584/2010, da Comissão, de 1 de Julho de 2010, juntas pelo Requerente como documentos n.ºs 2 e 3, e publicação do referido acto legislativo belga, disponível em https://etaamb.openjustice.be/fr/loi-du-03-aout2012_n2012003296.html.
b) O Requerente é administrado pela sociedade C... (C...), entidade também com residência no Reino da Bélgica – cfr. documento n.º 3 junto pelo Requerente.
c) O Requerente é residente para efeitos fiscais no Reino da Bélgica, nos termos e para os efeitos do artigo 4.º da Convenção para Evitar a Dupla Tributação e Prevenir a Evasão em Matéria de Impostos sobre o Rendimento e o Capital entre a República Portuguesa e o Reino da Bélgica (“CEDT Portugal/Bélgica”) – cfr. documento n.º 2 junto pelo Requerente.
d) A 9 de Janeiro, 14 de Maio, 3 de Julho e 10 de Dezembro de 2020, o Requerente auferiu dividendos distribuídos por sociedades comerciais com residência fiscal em território português, no montante de € 2.946.269,18, os quais foram aí sujeitos a tributação em sede de IRC, através de retenção na fonte liberatória, no montante total de € 618.626,20, nos seguintes termos (cfr. cópias das liquidações de IRC por retenção na fonte, juntas como documento n.º 4 pelo Requerente):
e) As retenções na fonte de IRC referentes aos dividendos auferidos pelo Requerente nos meses de Janeiro, Maio, Julho e Dezembro de 2020 foram efectuadas e entregues junto dos cofres da Fazenda Pública através das guias de retenção na fonte n.ºs..., ..., ... e..., pelo B..., pessoa colectiva com o número de identificação fiscal português ..., na qualidade de entidade registadora e depositária de valores mobiliários, ao abrigo do artigo 94.º, n.º 7, do CIRC – cfr. documento n.º 4 e cópia do requerimento apresentado pelo Requerente a 3 de Agosto de 2022, junta como documento n.º 5.
f) O Requerente não obteve qualquer crédito de imposto no seu Estado de residência relativo às retenções na fonte objecto do presente pedido de pronúncia arbitral, seja ao abrigo da CEDT Portugal/Bélgica, seja ao abrigo da lei interna do Reino da Bélgica – cfr. cópia de declaração da entidade gestora do Requerente junta como documento n.º 6.
g) Não se conformando com a tributação por retenção na fonte de IRC que incidiu sobre os dividendos decorrentes de participações detidas em sociedades residentes em território português, no dia 17 de Fevereiro de 2022, o Requerente apresentou reclamação graciosa das liquidações de IRC por retenção na fonte referentes aos períodos de Janeiro, Maio, Julho e Dezembro de 2020, abrigo do disposto nos artigos 68.º e 131.º a 133.º do CPPT, 95.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), da LGT e 137.º, n.ºs 1, 2 e 3, do CIRC – cfr. documento n.º 1 junto pelo Requerente.
h) A referida reclamação graciosa, que correu os seus termos sob o n.º ...2022..., não foi objecto de decisão da Administração Tributária no prazo referido no artigo 57.º, n.º 1, da LGT.
i) O Requerente apresentou o pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo arbitral em 14 de Setembro de 2022.
2.2. Factos não provados
Não há factos relevantes para a decisão que não se tenham provado.
2.3. Fundamentação da matéria de facto
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de seleccionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT). Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, n.º 7, do CPPT, a prova documental e o processo administrativo juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.
3. Questões de direito
3.1. Da violação do Direito da União Europeia
Encontrando-se a aludida matéria de facto dada como provada, importa seguidamente determinar o direito aplicável aos factos subjacentes, de acordo com as questões supra.
Neste contexto, toma-se nota que o Tribunal Arbitral, numa situação similar, nos termos constantes do despacho arbitral proferido no Processo n.º 93/2019-T, de 9 de Julho de 2019, colocou as seguintes questões prejudiciais ao TJUE, ao abrigo do disposto no artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), a saber:
“1. O artigo 56.º [CE] (atual artigo 63.º TFUE), relativo à livre circulação de capitais, ou o artigo 49.º [CE] (atual artigo 56.º TFUE), relativo à livre prestação de serviços, opõem-se a um regime fiscal como o que está em causa no litígio no processo principal, constante do artigo 22.º do EBF, que prevê a retenção na fonte de imposto com caráter liberatório sobre os dividendos recebidos de sociedades portuguesas a favor de OIC não residentes em Portugal e estabelecidos noutros países da UE, ao mesmo tempo que os OIC constituídos ao abrigo da legislação fiscal portuguesa e residentes fiscais em Portugal podem beneficiar de uma isenção de retenção na fonte sobre tais rendimentos?
2. Ao prever uma retenção na fonte sobre os dividendos pagos aos OIC não residentes e reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção de retenção na fonte, a regulamentação nacional em causa no processo principal procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes, uma vez que a estes últimos não lhes é dada qualquer possibilidade de aceder a semelhante isenção?
3. O enquadramento fiscal dos detentores de participações dos OIC será relevante para efeitos de apreciação do caráter discriminatório da legislação portuguesa, tendo presente que esta prevê um tratamento fiscal autónomo e distinto (i) para os OIC (residentes) e (ii) para os respetivos detentores de participações dos OIC? Ou, tendo presente que o regime fiscal dos OIC residentes não é, de todo, alterado ou afetado pela circunstância de os respetivos participantes serem residentes ou não residentes em Portugal, a apreciação da comparabilidade das situações para fins de determinar o caráter discriminatório da referida regulamentação deve ser realizada apenas por referência à fiscalidade aplicável ao nível do veículo de investimento?
4. Será admissível a diferença de tratamento entre OIC residentes e não residentes em Portugal, tendo em conta que as pessoas singulares ou coletivas residentes em Portugal, que sejam detentoras de participações de OIC (residentes ou não residentes) são, em ambos os casos, igualmente sujeitas (e, em regra, não isentas) a tributação sobre os rendimentos distribuídos pelos OIC, sujeitando os detentores de participações em OIC não residentes a uma fiscalidade mais elevada?
5. Tendo em consideração que a discriminação em análise no presente litígio diz respeito a uma diferença na tributação do rendimento relativamente a dividendos distribuídos pelos OIC residentes aos respetivos detentores de participações nos OIC, é legítimo, para efeitos da análise da comparabilidade da tributação sobre o rendimento considerar outros impostos, taxas ou tributos incorridos no âmbito dos investimentos efetuados pelos OIC? Em particular, é legítimo e admissível, para efeitos da análise de comparabilidade, considerar o impacto associado a impostos sobre o património sobre despesas ou outros, que não estritamente o imposto sobre o rendimento dos OIC, incluindo eventuais tributações autónomas?”
A decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia no antedito processo consta do Proc. C-545/19, Caso AllianzGI-Fonds AEVN, que se encontra disponível para consulta emhttps://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf;jsessionid=AED083FA8FA02CE95E7517CE8B347E6D?text=&docid=256021&pageIndex=0&doclang=pt&mode=req&dir=&occ=first&part=1&cid=422856, que damos como reproduzido, tendo o TJUE decidido, em conclusão, que, “O artigo 63.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado-Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.”
O aludido Acórdão do TJUE proferido no Processo C-545/19 tem a maior relevância para a discussão da questão material controvertida, uma vez que as questões prejudiciais objecto de reenvio para o TJUE nesse processo são em tudo idênticas às que se colocam nos presentes autos.
Neste contexto, importa ainda salientar que se constata a existência de jurisprudência arbitral consolidada relativa à questão decidenda, segundo a qual o artigo 22.º, n.º 1, do EBF, na parte em que limita o regime nele previsto a organismos de investimento colectivo constituídos segundo a legislação nacional, excluindo organismos de investimento colectivo constituídos segundo a legislação de outros Estados membros da União Europeia, viola o princípio da liberdade de circulação de capitais consagrado no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia. Cite-se, nomeadamente, as decisões proferidas nos Processos n.ºs 90/2019-T, de 23 de Julho de 2019, 528/2019-T, de 27 de Dezembro de 2019, 926/2019-T, de 19 de Outubro de 2020, 717/2021- T, de 27 de Abril de 2022 e 114/2022-T, de 25 de Novembro de 2022.
As questões prejudiciais colocadas ao TJUE no antedito Processo n.º 93/2019-T poderiam ser suscitadas de forma idêntica nos presentes autos.
Como o TJUE começou por salientar, “Uma vez que as questões são submetidas à luz tanto do artigo 56.° TFUE como do artigo 63.° TFUE, há que determinar, a título preliminar, se e, sendo caso disso, em que medida uma legislação nacional como a que está em causa no processo principal é suscetível de afectar o exercício da livre prestação de serviços e/ou a livre circulação de capitais.”
Ora, como o TJUE decidiu, “O artigo 63.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.”
Com efeito, como o TJUE conclui, “Ao proceder a uma retenção na fonte sobre os dividendos pagos aos OIC não residentes e ao reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção dessa retenção na fonte, a legislação nacional em causa no processo principal procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes,” (cfr. Caso AllianzGI-Fonds AEVN, parágrafo 38).
Isto é, em conformidade com a decisão do TJUE, o regime previsto nos artigos 94.º, n.º 1, alínea c), 94.º, n.º 3, alínea b), 94.º, n.º 4 e 87.º, n.º 4, do CIRC, ao prever que os rendimentos obtidos em Portugal estão sujeitos a retenção na fonte liberatória a uma taxa de 25% (enquanto se prevê uma isenção de tributação aplicável, nos termos do artigo 22.º do EBF, a dividendos auferidos por OIC residentes), não é compatível com o princípio da livre circulação de capitais.
Saliente-se que, tal como concluiu o TJUE, “a circunstância de os OIC não residentes não estarem sujeitos ao imposto do selo e ao imposto específico previsto no artigo 88.°, n.º 11, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas [tributações autónomas] não os coloca numa situação objetivamente diferente em relação aos OIC residentes no que se refere à tributação dos dividendos de origem portuguesa.” (cfr. Caso AllianzGI-Fonds AEVN, parágrafo 57).
Acresce que não se considera, contrariamente à AT, que uma tributação autónoma, com natureza anti abuso, expressa e intencionalmente dirigida a entidades residentes em território português, seja considerada como parte integrante das regras gerais de tributação dos OIC residentes em Portugal.
De salientar que a análise da forma como os proveitos gerados na esfera do OIC são distribuídos e tributados na esfera dos seus investidores é irrelevante para efeitos de apreciação da natureza discriminatória da legislação portuguesa e da factualidade em apreço, dado aquela prever um tratamento fiscal autónomo e distinto para os OIC (residentes e não residentes) e os respectivos detentores de participações nos OIC.
Como o TJUE concluiu, “a isenção da retenção na fonte dos dividendos em benefício dos OIC residentes não está sujeita à condição de os dividendos recebidos pelos organismos serem redistribuídos por estes e de a sua tributação na esfera dos detentores de participações sociais permitir compensar a isenção da retenção na fonte (v., por analogia, Acórdão de 10 de maio de 2012, Santander Asset Management SGIIC e o., C‑338/11 a C‑347/11, EU:C:2012:286, n.º 52, e de 10 de abril de 2014, Emerging Markets Series of DFA Investment Trust Company, C‑190/12, EU:C:2014:249, n.º 93)” (cfr. Caso AllianzGI-Fonds AEVN, parágrafo 79).
Como conclui, “[a] necessidade de preservar a coerência do regime fiscal nacional não pode, por conseguinte, ser invocada para justificar a restrição à livre circulação de capitais induzida pela legislação nacional em causa no processo principal”, que é em tudo idêntico ao caso dos presentes autos arbitrais (cfr. Caso AllianzGI-Fonds AEVN, parágrafo 81).
Assim se conclui que, apesar de a AT vir tecer considerações sobre o facto de a análise da comparabilidade entre a carga fiscal a que se encontra sujeito o Requerente relativamente aos dividendos pagos por uma sociedade residente em território português e a carga fiscal que pode incidir sobre os OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF exigir que sejam tidas em consideração todas as formas de tributação que podem ser aplicadas aos dividendos e às correspondentes acções, tal argumentação não procede. Sobre estas questões, aliás, se pronunciou o TJUE de forma clara. O que está em causa é o tratamento em IRC concedido pela norma em apreço – esta norma viola ou não o Direito da União Europeia?
Ora, a resposta do TJUE a esta questão é suficientemente clara para obrigar o legislador e o aplicador das normas à sua interpretação em conformidade e consequente aplicação, não colhendo as considerações ora tecidas sobre os demais tributos.
Ou seja, o que está em causa no presente processo é saber se, nos termos do disposto no artigo 22.º do EBF, existe ou não uma discriminação negativa dos fundos de investimento com as características do Requerente, que resulte numa desvantagem susceptível de constituir uma restrição à liberdade de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º do TFUE, e a resposta do TJUE, em nosso entendimento, é suficientemente clara a este propósito.
Destarte, constatando-se, como começámos por enfatizar, que as questões prejudiciais objecto de reenvio para o TJUE no aludido processo são em tudo idênticas às que se colocam nos presentes autos, tendo em vista o princípio do primado do Direito da União Europeia, conclui-se pela total procedência do presente pedido.
3.2. Do reembolso das quantias pagas e do reconhecimento do direito a juros indemnizatórios
O Requerente peticiona a restituição da quantia de € 618.626,20, bem como o reconhecimento do direito ao pagamento de juros indemnizatórios.
No que se refere ao primeiro dos pedidos, tem o Requerente direito a ser reembolsado das quantias retidas na fonte, no valor total de € 618.626,20, como consequência da declaração de ilegalidade e da anulação das retenções contestadas.
No que respeita ao direito a juros indemnizatórios, e como se salientou na decisão arbitral proferida a 25-11-2022 no processo n.º 114/2022-T, “o TJUE tem decidido que a cobrança de impostos em violação do direito da União tem como consequência não só o direito ao reembolso mas também o direito a juros”. Com efeito, e como se pode ler no Acórdão proferido a 18-04-2013 no processo n.º C-565/11:
“21 Há que lembrar ainda que, quando um Estado‑Membro tenha cobrado impostos em violação do direito da União, os contribuintes têm direito ao reembolso não apenas do imposto indevidamente cobrado mas igualmente das quantias pagas a esse Estado ou por este retidas em relação direta com esse imposto. Isso inclui igualmente o prejuízo decorrente da indisponibilidade de quantias de dinheiro, devido à exigibilidade prematura do imposto (v. acórdãos de 8 de março de 2001, Metallgesellschaft e o., C‑397/98 e C‑410/98, Colet., p. I‑1727, n.os 87 a 89; de 12 de dezembro de 2006, Test Claimants in the FII Group Litigation, C‑446/04, Colet., p. I‑11753, n.° 205; Littlewoods Retail e o., já referido, n.° 25; e de 27 de setembro de 2012, Zuckerfabrik Jülich e o., C‑113/10, C‑147/10 e C‑234/10, n.° 65).
22 Resulta daí que o princípio da obrigação de os Estados‑Membros restituírem com juros os montantes dos impostos cobrados em violação do direito da União decorre desse mesmo direito da União (acórdãos, já referidos, Littlewoods Retail e o., n.° 26, e Zuckerfabrik Jülich e o., n.° 66).
23 A esse respeito, o Tribunal de Justiça já decidiu que, na falta de legislação da União, compete ao ordenamento jurídico interno de cada Estado‑Membro prever as condições em que tais juros devem ser pagos, nomeadamente a respetiva taxa e o modo de cálculo. Essas condições devem respeitar os princípios da equivalência e da efetividade, isto é, não devem ser menos favoráveis do que as condições relativas a reclamações semelhantes baseadas em disposições de direito interno, nem organizadas de modo a, na prática, impossibilitar ou dificultar excessivamente o exercício dos direitos conferidos pelo ordenamento jurídico da União (v., neste sentido, acórdão Littlewoods Retail e o., já referido, n.os 27 e 28 e jurisprudência referida)”.
Resultando do Acórdão em análise que as condições de cálculo e pagamento dos juros devem ser determinadas por cada Estado-Membro, é à luz do disposto no artigo 43.º da LGT que importa determinar se o Requerente tem direito ao reconhecimento de juros indemnizatórios nos termos por si requeridos, isto é, “ao abrigo do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, a computar sobre o montante de EUR 618.626,20, desde as datas das retenções na fonte indevidas de imposto até efectivo e integral pagamento”.
Dispõe o n.º 1 do artigo 43.º da LGT que “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.
Sucede que, no caso vertente, os erros que afetam as retenções na fonte contestadas pelo Requerente não podem ser imputadas aos serviços da AT (Requerida) para efeitos do disposto na disposição legal acabada de citar, visto que as retenções na fonte não foram praticadas por tais serviços. Diferente é o que acontece com o indeferimento da reclamação graciosa apresentada pelo Requerente uma vez que, não estando exonerada do dever de aplicação do Direito da União Europeia, a Requerida deveria ter deferido a pretensão do Requerente apresentada nessa reclamação. Não o tendo feito, a Requerida manteve uma situação de ilegalidade, sendo-lhe assim imputável erro de direito enquadrável no n.º 1 do artigo 43.º da LGT.
Neste mesmo sentido, pode ler-se no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido no âmbito do processo n.º 0890/16, em 18-01-2017 que “[e]m caso de retenção na fonte e havendo lugar a impugnação administrativa (reclamação graciosa ou recurso hierárquico) o erro passa a ser imputável à AT depois de eventual indeferimento da pretensão deduzida pelo contribuinte”. Nestes termos, conclui-se que não poderá deixar de proceder o pedido de condenação quanto aos juros indemnizatórios, com fundamento em erro imputável aos serviços (no mesmo sentido, v. Decisão Arbitral de 14-05-2019, processo n.º 637/2018-T, Decisão Arbitral de 27-05-2019, processo n.º 678/2018-T; Decisão Arbitral de 13-07-2022, processo n.º 115/2022-T; Decisão Arbitral de 28-07-2022, processo n.º 816/2021-T).
Contudo, e sem prejuízo do entendimento acabado de expor, não tem razão o Requerente quando defende que os juros indemnizatórios são devidos desde as datas das retenções na fonte de imposto indevidas. Com efeito, e relativamente ao momento a partir do qual os juros indemnizatórios são devidos, o Supremo Tribunal Administrativo veio já pronunciar-se no Acórdão proferido no processo n.º 0360/11.8BELRS, de 07-04-2021, no seguinte sentido:
“(…) afigura-se-nos justo e equitativo que a indemnização ao contribuinte (decorrente do pagamento de juros indemnizatórios, pela AT) não retroaja ao momento da prática do ato de retenção na fonte (da responsabilidade do substituto tributário), porquanto, tratando‑se de uma situação de autoliquidação, só com a competente impugnação administrativa, atempada, os serviços da AT ficam em condições de conhecer e reparar uma cometida ilegalidade, sendo, a partir do momento em que não assumem a respetiva reparação, justificado o ressarcimento do sujeito passivo, decorrente de não receber e passar a dispor desde esse momento (que podia ter sido de viragem) do imposto indevidamente entregue ao Estado, através do mecanismo da substituição tributária.
Neste ponto, apenas, resta problematizar se, na situação versada (ou equiparáveis), o dies a quo deve corresponder ao da data da apresentação da impugnação administrativa (reclamação graciosa e/ou recurso hierárquico) ou ao do momento em que os competentes serviços da AT se pronunciam/comunicam o resultado da pronúncia ao contribuinte.
(…) julgamos, justo, adequado e seguro, assumir como marco, para identificar e fixar o disputado dies a quo, o prazo, fixado por lei, para a decisão do procedimento de reclamação graciosa (...), isto é, o período, atualmente, de 4 meses”.
Assim, e acolhendo-se este entendimento (como aconteceu também na Decisão Arbitral de 01-02-2022, processo n.º 345/2020-T; Decisão Arbitral de 23-05-2022, processo n.º 558/2020-T; Decisão Arbitral de 13-07-2022, processo n.º 115/2022-T; Decisão Arbitral de 28-07-2022, processo n.º 816/2021-T; Decisão Arbitral de 25-11-2022, processo n.º 114/2022-T), reconhece-se o direito do Requerente a juros indemnizatórios ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 43.º da LGT, determinando-se, contudo, que tais juros deverão contar-se a partir da data em que a AT se deveria ter pronunciado sobre a pretensão do Requerente e não o fez.
Por fim, importa sublinhar que improcede o pedido subsidiário apresentado pelo Requerente no sentido de reconhecimento do direito a juros indemnizatórios ao abrigo do disposto na alínea d) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT, nos termos da qual “São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias: (…) Em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução”.
No caso vertente, a ilegalidade julgada procedente nos presentes autos não teve como fundamento uma anterior decisão judicial que, com carácter geral e abstracto, julgasse inconstitucionais ou ilegais as normas em juízo. Na verdade, e tal como se decidiu na Decisão Arbitral proferida a 10-11-2021 no processo n.º 189/2021-T (e cujo entendimento foi também acolhido na Decisão Arbitral proferida a 28-07-2022 no processo n.º 816/2021-T),
“Ao referir como fundamento do direito a juros indemnizatórios decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução, o legislador da Lei nº 9/2019, reportou-se diretamente ao mecanismo de fiscalização abstrata da inconstitucionalidade ou ilegalidade regulado no art. 281º da CRP e não à recusa de aplicação em casos concretos por qualquer tribunal de normas legislativas ou regulamentares com fundamento na sua ilegalidade ou inconstitucionalidade que, aliás, está sempre sujeita ao controlo do Tribunal Constitucional., nos termos dos nºs 1 e 2 do art.º 280º da CRP.
Ora, como se referiu, a incompatibilidade de norma de direito nacional com norma de direito internacional, incluindo o TFUE e o próprio direito derivado da União Europeia, vinculativa do Estado português, não está sujeita à fiscalização abstrata do TC, sendo apenas a recusa da sua aplicação pelos tribunais nacionais – e não a sua aplicação por estes- passível de recurso para o TC.
Tal Lei nº 9/2019, como explica o referido Acórdão do STA de 23/10/2019, segue-se à prolação do Acórdão n.º 848/2017, do Tribunal Constitucional, de 13/12/2017 que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes do Regulamento Geral de Taxas, Preços e Outras Receitas do Município de Lisboa, ao abrigo das quais foram efetuadas as liquidações impugnadas, por violação do disposto no n.º 2 do art.º 103.° e na alínea i) do n.º 1 do art.º 165º, da CRP, bem como do nº 1 do art.º 43.º da LGT.
Tal possibilidade de declaração de inconstitucionalidade ou ilegalidade com força obrigatória geral não é aplicável, porque o não prevê, o nº 1 do art.º 281º da CRP, às normas de direito nacional incompatíveis com o TFUE e o direito derivado, apenas passíveis da fiscalização concreta, em caso de recusa da sua aplicação, prevista na alínea i) do nº 1 do art.º 70º da LOTC.
As referidas decisões do CAAD, da autoria de tribunais arbitrais e não de tribunais judiciais, não têm caráter geral e o respetivo caso julgado limita‑se ao processo em que foram proferidas, não podendo ser consideradas para efeitos do reconhecimento do direito a juros indemnizatórios, nos termos da alínea d) do nº 3 do art.º 43º da LGT. Do mesmo modo, o Acórdão do TJUE no proc. C-169/2020 limita-se à verificação do incumprimento pelo Estado português das obrigações previstas no art.º 110º do TFUE, não contendo qualquer declaração de inconstitucionalidade ou ilegalidade do art.º 217º da Lei nº 42/2016, reservada aos tribunais nacionais”.
Tudo visto, e considerando que o Requerente apresentou reclamação graciosa para apreciação da legalidade das retenções na fonte contestadas em 17-02-2022 e que a AT deveria ter-se pronunciado sobre tal reclamação no prazo de quatro meses (cfr. artigo 57.º, n.º 1, da LGT), ou seja, até 17-06-2022, o Tribunal determina que os juros indemnizatórios sobre o montante de € 618.626,20 deverão contar desde o dia 18-06-2022 até ao integral reembolso do referido montante ao Requerente (nos termos dos artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, do artigo 61.º do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril).
IV. Dispositivo
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:
a) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, declarando-se ilegais e anulando-se os actos de retenção na fonte de IRC incidentes sobre o pagamento de dividendos ocorridos nos meses de Janeiro, Maio, Julho e Dezembro de 2020, no montante total de € 618.626,20, declarando-se ilegal e anulando-se também a decisão de indeferimento tácito da reclamação graciosa n.º ...2022...;
b) Julgar procedente o pedido de restituição das importâncias indevidamente retidas na fonte a título de IRC, no montante total de € 618.626,20;
c) Julgar procedente o pedido de juros indemnizatórios sobre o montante de € 618.626,20, contados desde o dia 18-06-2022 até ao integral reembolso do respectivo montante ao Requerente;
d) Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira nas custas do processo.
* * *
Fixa-se o valor do processo em € 618.626,20 (seis centos e dezoito mil, seiscentos e vinte e seis euros e vinte cêntimos), de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, e 306.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 9.180,00 (nove mil, cento e oitocentos euros) a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira, conforme Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
Notifique-se.
* * *
Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5, do Código de Processo Civil (CPC), aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT. A redacção do presente acórdão arbitral rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990.
Lisboa, Centro de Arbitragem Administrativa, 27 de Fevereiro de 2023
As Árbitras,
Rita Correia da Cunha
(Presidente do Tribunal Arbitral)
Clotilde Celorico Palma
(Relatora)
Ana Paula Marques Rocha