Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 476/2022-T
Data da decisão: 2023-02-20  IVA  
Valor do pedido: € 266.256,94
Tema: IVA - Art. 21.º do CIVA; Princípio da equivalência.
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Sumário:

O princípio da equivalência não se opõe ao art. 21.º do CIVA, mantido pela cláusula standstill, que institui uma exclusão total ou parcial do direito à dedução do IVA suportado com despesas relativas a veículos, deslocações, representação e estadias, mesmo que essas despesas beneficiem de regime pretensamente mais favorável, quanto à sua dedutibilidade em sede de IRC.

 

Decisão arbitral

 

Os árbitros Prof. Doutor Rui Duarte Morais (Presidente), Prof. Doutor Tomás Cantista Tavares (relator) e Dr. Henrique Nogueira Nunes, designados pelo CAAD para formar o Tribunal Arbitral coletivo, constituído em 10/10/2022, acordam no seguinte:

 

1. Relatório

A..., S.A., pessoa coletiva n.º..., com sede em..., ..., ...-... ..., matriculada na Conservatória do Registo Comercial de ... sob o mesmo número, com o capital social de € 500.000.000,00 (doravante “A...”), e B..., S.A. pessoa coletiva número ..., matriculada na Conservatória do Registo Comercial de ... sob o mesmo número, com sede no ... ..., ...-... ..., freguesia ..., concelho da ..., distrito de Coimbra (“B...”), apresentaram um pedido de constituição do tribunal arbitral coletivo, em coligação, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n,º 1, al. a), 5.º, n.º 3, al. a), 6.º, n.º 2, al. a), todos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante AT), com vista à declaração de ilegalidade dos indeferimentos expressos de reclamações graciosas das autoliquidações de IVA do ano de 2020 (janeiro a Dezembro) e, por consequência, peticionando a anulação parcial das autoliquidações de cada um dos meses de 2020 de cada requerente, nos segmentos contestados neste processo, no valor total de 27.667,65€ em relação à A... e de 238.589,29€ em relação à B....

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação, nomeadamente com a notificação à AT. Os árbitros comunicaram a sua aceitação no prazo aplicável. As partes não manifestaram vontade de recusar a sua designação.

O tribunal arbitral foi constituído em 10/10/2022. A AT efetuou resposta, por impugnação.

Perante o Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (doravante TJUE) no proc. C-459/21, de 9/12/2022 (e da Sentença arbitral no proc. 513/2020-T), o Tribunal decidiu prescindir da reunião do art. 18.º do RJAT, da inquirição das testemunhas e das alegações finais, por desnecessidade e inutilidade – atenta a Primazia do Direito da União Europeia, a clareza dessa decisão do TJUE e aplicação precisa do seu conteúdo ao caso dos autos, tudo isto também nos termos da autonomia do tribunal na condução do processo (art. 16.º, al. c), do RJAT).

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, como se dispõe no art. 2.º, n.º 1, al. a) e 4.º, ambos do RJAT.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

O litisconsórcio e a cumulação de pedidos são legais.

O processo não enferma de nulidades e não há qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.

As Requerentes estribam as suas pretensões nos dois seguintes argumentos essenciais:

a) Ilegalidade por tratamento discriminatório de tais despesas em sede de IVA face ao IRC (despesas sobre veículos, deslocações, estadias e representação)

b) O art. 21.º, al. a) a d) do CIVA e a cláusula standstill (em que se sustenta) violaria a Constituição (igualdade, capacidade contributiva e proporcionalidade) e o direito da União Europeia (princípios da neutralidade [dedução] e equivalência).

A AT refuta estes argumentos – como se indicará mais à frente.

 

2. Matéria de facto

2.1. Factos provados

Consideram-se provados os seguintes factos relevantes para a decisão:

a) A A... entregou as suas declarações periódicas de IVA de 2020 – de janeiro a dezembro – sem proceder à dedução do IVA nas despesas relativas a veículos (exceto no gasóleo com dedução de 50 %), deslocações, estadias e representação, no valor anual de 27.667,65€, assim decomposto pelos seguintes meses: Janeiro: € 2.788,20 Fevereiro: € 2.167,00 Março: € 5.006,86 Abril: € 1.076,61 Maio: € 336,05 Junho: € 265,60 Julho: € 592,01 Agosto: € 453,55 Setembro: € 1.239,19 Outubro: € 915,78 Novembro: € 2.275,08 Dezembro: € 10.551,71.

b)  A B... entregou as suas declarações periódicas de IVA de 2020 – de janeiro a dezembro – sem proceder à dedução do IVA nas despesas relativas a veículos, (exceto no gasóleo com dedução de 50%), deslocações, estadias e representação, no valor anual de 238.589,29€, assim decomposto pelos seguintes meses: Janeiro: € 9.877,83 Fevereiro: € 17.592,19 Março: € 45.429,45 Abril: € 21.376,55 Maio: € 15.190,27 Junho: € 21.113,51 Julho: € 16.969,99 Agosto: € 18.187,31 Setembro: € 21.511,60 Outubro: € 16.170,36 Novembro: € 22.377,13 Dezembro: € 12.793,11.

c) As despesas relativas a veículos reportam-se à aquisição, locação e reparação de viaturas de turismo e similares (mistas), com um custo de aquisição inferior a € 27.500, e à sua gasolina.

d) As despesas de deslocações reportam-se a despesas com gasóleo relativas a viaturas de turismo e similares (mistas) com um custo de aquisição inferior a € 27.500.

e) As despesas de estadias (faturadas à A... e à B...,) reportam-se a deslocações e estadias do pessoal da empresa sujeitas a procedimentos de registo e controlo.

f) As despesas de representação são, designadamente, despesas com refeições, viagens, passeios e espetáculos oferecidos a clientes, fornecedores ou outros terceiros.

g) A A... efetuou reclamação graciosa das autoliquidações de IVA de 2020 (janeiro a dezembro), invocando, com argumentos vários, o direito à total dedução do IVA nas despesas sobre veículos, deslocações, estadias e representação.

h) A B... efetuou reclamação graciosa das autoliquidações de IVA de 2020 (janeiro a dezembro), invocando, com argumentos vários, o direito à total dedução do IVA nas despesas sobre veículos, deslocações, estadias e representação.

i) A AT indeferiu expressamente essas reclamações graciosas intentadas pelas Requerentes.

j) Perante isso, a A... e a  B... intentaram a presente ação arbitral.

 

2.2. Factos não provados

Não há factos não provados com relevância para a decisão

 

2.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto

Relativamente à matéria de facto, o tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe apenas selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada (art. 123.º, n.º 2, do CPPT e art. 607.º, n.º 3, do CPC, aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, al. a) e e) do RJAT.

Os factos considerados provados são os factos essenciais da ação. Foram, em parte, aceites por consenso. Noutra parte, foram dados por provados por se entender que as Requerentes indicaram os valores exatos em que estribam as suas pretensões, por cada situação – nada há no processo que permita concluir em sentido oposto.

 

3. Matéria de direito

3.1 O objeto do processo, argumentação das partes e o Ac. TJUE C-459/21

O objeto deste processo é em tudo similar ao do decidido pelo TJUE no proc. C-459/21, apenas com a diferença que este reporta-se ao IVA de 2020 e aquele ao IVA de 2018. Tudo o resto é similar: nas partes e sua argumentação; na identidade das leis aplicáveis em ambos os processos. Por este motivo, é imperioso aplicar essa jurisprudência do TJUE, tendo em conta a primazia do Direito da União Europeia (mesmo face ao Direito Constitucional) e sua interpretação pelo TJUE, sobretudo quando a decisão é– como foi, aliás, também efetuado pela Decisão do CAAD no proc. 513/2020-T.

As Requerentes entendem que o art. 21.º do CIVA é ilegal quando prevê a exclusão (total ou parcial) do direito à dedução do IVA nas despesas sobre veículos, deslocações, estadias e representação – mas as mesmas são dedutíveis ao rendimento em sede de IRC (pelo art. 23.º do CIRC) e sofrem de baixa tributação autónoma (10%), exceto nas estadias que, na sua ótica, não têm sequer tributação autónoma (art. 88.º do CIRC).

Para as Requerentes, haveria uma equivalência entre ambos os casos: as despesas empresariais são totalmente dedutíveis em IRC e devem ter o mesmo tratamento em IVA, com a aceitação da dedução integral do imposto suportado. Mais ainda: havendo razões (evasão fiscal) que legitimem a exclusão desse direito, deve também haver identidade de estatuições em sede de IRC e IVA, por identidade teleológica. Donde, o art. 21.º do CIVA violaria o princípio da equivalência, ao não prever identidade de soluções em sede de imposto sobre o rendimento (IRC) e consumo (IVA), em relação às despesas em causa no processo.

Este tratamento assimétrico, mais gravoso em sede de IVA, implicaria, ainda segundo as Requerentes, que o legislador nacional teria de afastar a cláusula de standstill do art. 21.º do CIVA, por força do princípio da equivalência, para evitar a ilegal existência de cláusulas automáticas e abstratas que recusam o direito à dedução do IVA (princípio fulcral do imposto).

A AT refuta este segmento argumentativo, invocando, em suma, que a disparidade entre o IRC e o IVA (na natureza, fontes legais, características, bases tributárias e finalidades) não impõem um princípio da equivalência, nos moldes sugerido pelos requerentes.

 

3.2. O Ac. TJUE C-459/21

O TJUE decidiu que o art. 21.º, n.º 1, do CIVA não é incompatível com o princípio da equivalência. A presente decisão é idêntica, pelos mesmos argumentos.

O tema dos autos é totalmente similar ao desse processo (factos, questões e argumentos), pelo que se decide pela não violação do Direito da União Europeia – e reproduzem-se infra alguns pontos da decisão do TJUE que o comprovam.

“24 As requerentes no processo principal alegam que tais despesas beneficiam de um regime pretensamente mais favorável, quanto à sua dedutibilidade, no âmbito de um imposto direto regulado pelo direito nacional, a saber, o IRC. A este respeito, consideram que o legislador nacional deveria alinhar o mecanismo do direito à dedução vigente em matéria de IVA com o previsto para a dedutibilidade de despesas em sede de IRC, sob pena de violação do princípio da equivalência.

25 Não se pode deixar de observar que esta argumentação assenta numa compreensão errada do alcance do princípio da equivalência.

26 Com efeito, por um lado, o alcance do direito à dedução do IVA suportado a montante é, como o Governo português e a Comissão salientaram com razão nas suas observações escritas, uma questão de ordem material. Não se trata de uma modalidade processual de uma ação destinada a assegurar a salvaguarda de direitos conferidos às requerentes no processo principal pelo direito da União.

27 A este respeito, a interpretação do princípio da equivalência sugerida pelas requerentes no processo principal teria por efeito desvirtuar o alcance deste princípio. Com efeito, se tal interpretação fosse acolhida, haveria o risco de o âmbito de aplicação do referido princípio ser alargado a qualquer questão de ordem material como, em matéria fiscal, a fixação da taxa de IVA. Ora, essa extensão iria além da finalidade prosseguida pelo mesmo princípio, a saber, o enquadramento da autonomia processual dos Estados-Membros.

28 Por outro lado, contrariamente ao que defendem, em substância, as requerentes no processo principal, o mecanismo do direito à dedução do IVA e o regime de dedutibilidade de despesas em sede de um imposto direto, como o IRC, não são comparáveis para efeitos da aplicação do princípio da equivalência.

29 Com efeito, um imposto indireto como o IVA e um imposto direto como o IRC revestem uma natureza fundamentalmente diferente.

30 Além disso, o mecanismo de dedutibilidade, nestas duas formas de imposto, não é comparável e não tem um objeto e uma causa de pedir semelhantes na aceção da jurisprudência recordada no n.° 20 do presente despacho. Com efeito, embora seja certo que o mecanismo instituído pelo artigo 168. ° da Diretiva IVA assenta na dedução do imposto suportado a montante com as despesas referidas nesta disposição, a dedutibilidade em sede de imposto direto pressupõe a dedução dessas despesas, enquanto tais, para efeitos do cálculo do lucro tributável.

31 Por conseguinte, há que responder à questão submetida que o princípio da equivalência deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma regulamentação nacional, mantida ao abrigo do disposto no artigo 176.°, segundo parágrafo, da Diretiva IVA, e que institui uma exclusão total ou parcial do direito à dedução do IVA suportado com despesas relativas a determinados veículos, a deslocações e a estadias, bem como com despesas de representação, mesmo no caso de essas despesas beneficiarem de um regime pretensamente mais favorável, quanto à sua dedutibilidade, no âmbito de um imposto direto regulado pelo direito nacional.”.

 

Por fim: o direito da União Europeia prevalece sobre o Direito Nacional por força do princípio do Primado, ínsito também no art. 8.º, n.º 4, da CRP.

Assim, aplicando a jurisprudência do TJUE, conclui-se que as liquidações impugnadas – ao aplicarem limitações do direito à dedução do IVA previstas no artigo 21.º, n. 1, do CIVA, suportado com despesas relativas a viaturas, despesas de deslocação e estadia e despesas de representação – não são incompatíveis com o princípio da equivalência.

 

3.3. Os juros indemnizatórios

Sendo improcedente o pedido de pronúncia arbitral de anulação das liquidações, improcedem também os pedidos de reembolso, que seriam consequência da anulação, e de juros indemnizatórios, que pressupõem um pagamento indevido (art. 43.º, n.º 1, da LGT).  

 

4. Decisão

De harmonia com o exposto, acorda este Tribunal Arbitral em:

a) Julgar improcedentes todos os pedidos;

b) Absolver a Autoridade Tributária e Aduaneira de todos os pedidos.

 

5. Valor do processo

De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 1, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 266.256,94.

 

6. Custas

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 4.896,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo das Requerentes.

Notifique-se

20 de fevereiro de 2023

Os Árbitros

 

Rui Duarte Morais

 

Tomás Cantista Tavares

 

Henrique Nogueira Nunes

 

 

 (Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 131º nº 5 do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 29º nº 1 alínea e) do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária)