SUMÁRIO:
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Estando em causa imposto de IVA indevidamente liquidado em Portugal, uma vez que o IVA seria devido em França (IVA francês), por errónea aplicação das regras do imposto pela Requerente, não está preenchido o requisito essencial à revisão, que o erro seja imputável aos serviços, nos termos do disposto no n.º1, 2ª parte, do artigo 78.º da LGT .
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Verifica-se também impossibilidade de recorrer ao prazo excecional do artigo 78.º, n.º 4, da LGT, dado inexistir injustiça grave ou notória, uma vez que o erro de enquadramento da operação é, precisamente, imputável a comportamento negligente da Requerente.
DECISÃO ARBITRAL
Fernanda Maçãs (árbitra presidente), Raquel Montes Fernandes (árbitra vogal) e Ana Paula Marques Rocha (árbitra vogal), designadas pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formarem este Tribunal Arbitral Coletivo, constituído em 23 de setembro de 2022, acordam no seguinte:
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RELATÓRIO
1. A..., LDA., NIPC..., com sede na Rua ..., n.º ..., ...-... Coimbra, após notificação do indeferimento do Pedido de Revisão Oficiosa apresentado referente aos ACTOS DE LIQUIDAÇÃO DO IVA de 2017 e 2018 e, havendo requerido a constituição de tribunal arbitral em matéria tributária, ao abrigo do art.º 10.º n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 11/2011, de 20 de Janeiro, vem pedir a pronúncia arbitral sobre a legalidade daquelas liquidações e do indeferimento do pedido de revisão oficiosa, no montante global de 162.659,00€, sendo entidade requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (ATA ou AT).
O pedido de constituição do tribunal foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT.
A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, de acordo com os artigos 5.º, n.º 3, alíneas a) e b) e 6.º, n.º 2, do RJAT, o Conselho Deontológico do CAAD designou a árbitra presidente e as árbitras vogais supra identificadas, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
Em 5 de setembro de 2022 foram as Partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído, em 23 de setembro de 2022, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD.
2. A fundamentar o pedido a Requerente apresentou os fundamentos que sumariamente se indicam:
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Para a Requerente, a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa é ilegal por se verificar uma clara falta de fundamentação, que conduz a uma errónea qualificação e quantificação dos factos tributários, que igualmente se verifica de per si, bem como dúvida sobre a existência do facto tributário por erro nos pressupostos de facto e de direito, a qual se traduz, a final, numa injustiça grave e notória.
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Há violação do disposto no artigo 55.º da LGT, verifica-se duplicação de colecta e o indeferimento do pedido de revisão oficiosa constitui autêntico abuso de direito, nos termos do disposto no artigo 334.º do CC. No caso, o abuso de direito é manifesto porque a AT pretende ficar com um montante que não lhe pertence; o mesmo é dizer que pretende enriquecer sem causa.
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Esquece-se, por isso, a AT, que está sujeita, desde logo, ao princípio da justiça, como consta do art.º 55º da LGT, “A administração tributária exerce as suas atribuições na prossecução do interesse público, de acordo com os princípios da legalidade, da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da celeridade, no respeito pelas garantias dos contribuintes e demais obrigados tributários”.
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Alega a Requerente que “o artigo 55.º, em sintonia com o art. 266.º, n.º 2, da C.R.P., impõe aos órgãos da administração tributária uma actuação respeitadora dos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade. Apesar da omissão da referência, nesta norma, ao princípio da boa-fé, a sua aplicação é imposta por aquela norma constitucional e a própria L.G.T. supõe a sua observância no âmbito do princípio da colaboração entre a administração tributária e os contribuintes (art. 59.º) e concretiza a sua aplicação ao estabelecer o regime das informações vinculativas (art. 68.º).”
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“O princípio da boa-fé determina que a administração deve relacionar-se com os particulares de acordo com as regras da boa-fé, ponderando os valores fundamentais do direito, designadamente, a confiança suscitada pela sua actuação e o objectivo a alcançar. Como se referiu, embora não arrolado neste artigo, o princípio da boa-fé, que tem suporte no art. 266.º, n.º 2, da C.R.P., encontra reconhecimento na L.G.T. nos seus arts. 59.º, n.º 1, e 68.º”.
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“E à AT compete concretizar a revisão dos actos tributários ao abrigo dos princípios da justiça, da igualdade e da proporcionalidade”.
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“Pelo que, tendo a impugnante, junto um conjunto de documentos que atestam todas as operações em causa e comprovativo do pagamento do imposto à AT francesa (Pagamento Efectuado por Transferência Bancária no dia 01-09-2021 (via Bankinter) para SIEE (Direction Générale des Finances Publiques): 145.202,00 Euros (em anexo); IVA pago a Portugal e apurado pela França no período de 01/2017 a 03/2018: 162.659,00 Euros, (ver anexo – aviso emitido pelas Autoridades Francesas); Crédito em 09/12/2019 independente e autónomo de taxa sobre valor ajustado apurado por França, independente e autónomo deste pedido (IVA no período de 01/2017 a 03/2018): 17.457,00 Euros (ver anexo - aviso emitido pelas Autoridades Francesas); Em suma, IVA pago a França do período de 01/2017 a 03/2018: 162.659,00 Euros)”.
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“Dúvidas não poderão subsistir que, ao abrigo dos princípios da justiça, da igualdade, da proporcionalidade e da neutralidade do IVA, sempre deveria ter decidido no sentido de deferir o pedido de revisão, sendo que o primado do princípio da justiça deve prevalecer face a qualquer situação de ordem formal que seja.”
3. Por sua vez, a Requerida, argumentou, em síntese:
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Os Serviços da AT, em sede de decisão do pedido de revisão oficiosa, não se debruçaram sobre a legalidade das autoliquidações de 2017 e 2018 cuja anulabilidade (se presume, ante o pedido da Requerente, tão abstrato quanto lhe foi possível deduzir) vem peticionar.
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A Requerida limitou-se a discorrer acerca dos diversos pressupostos de admissibilidade do pedido de revisão oficiosa, tendo concluído pela impossibilidade de aceitação do pedido de revisão nos termos, para os efeitos e no prazo previsto no artigo 78.º, n.º 2 da LGT – erro na autoliquidação subsumido a erro imputável aos serviços -, atenta a revogação daquela norma pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março (Lei do Orçamento do Estado para 2016).
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O mesmo se diga quanto à impossibilidade de recorrer ao prazo excecional do artigo 78.º, n.º 4 da LGT, dado inexistir injustiça grave ou notória, uma vez que o erro de enquadramento da operação é imputável a comportamento negligente da Requerente.
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Rematou o procedimento gracioso, decidindo-se assim:
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«Excluída por intempestividade encontra-se a possibilidade de revisão oficiosa com fundamento em ilegalidade, previsto na 1ª parte do n.º 1 do art.º 78.º da LGT, uma vez que estão em causa as declarações dos períodos 1701 a 1803, submetidas nos prazos legais, e o pedido de revisão foi apresentado em 2020-09-21, quando se encontrava manifestamente ultrapassado o prazo de 120 dias a contar do termo do prazo para pagamento voluntário do tributo, nos termos conjugados do art.º 70.º e 102.º, n.º 1 do CPPT.»
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Reitera a Requerida que, quanto aos alegados vícios propriamente ditos de que as autoliquidações pudessem enfermar, não há, nem houve, ao longo do procedimento, qualquer discussão a respeito, o que equivale a dizer que a AT não se pronunciou sobre o mérito da questão, o que, desde logo, implicaria necessariamente a validação do montante referido pela Requerente como tendo sido pago em excesso, por alegadamente já tê-lo pago junto das autoridades francesas.
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“Resulta inequívoco que estamos perante um ato administrativo em matéria tributária que, por não apreciar ou discutir a legalidade dos atos de autoliquidação, não pode ser sindicável através de impugnação judicial (e arbitral), nos termos previstos na alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º do CPPT.”
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“Pelo exposto, verifica-se, no caso concreto, uma exceção dilatória que se traduz na incompetência material do tribunal arbitral, a qual prejudica o conhecimento do mérito da causa, devendo determinar a absolvição da Entidade Requerida da instância, atento o disposto nos artigos 576.º, n.º 1 e 577.º, alínea a) do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT”.
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“Ainda que assim não se venha a entender e caso o Tribunal decida pela sua competência material perante a situação em apreço, sempre se dirá que o prazo para a apresentação do pedido de revisão oficiosa se encontrava esgotado, uma vez que, conforme explicado supra, a situação em análise não se reconduz a duplicação de coleta”.
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“Neste sentido, o ato que vem impugado é inimpugnável, atenta a figura de caso decidido, caso resolvido”.
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«Com o chamado caso decidido administrativo há, em bom rigor, uma situação jurídica consolidada pelo facto de o ato que lhe deu origem se ter tornado inimpugnável. Estamos no âmbito da inimpugnabilidade.» (Ac. STA, 07-03-2019, processo n.º 2647/14.9BELSB).
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A inimpugnabilidade do ato impugnado é uma exceção dilatória, nos termos do disposto no artigo 89.º, n.º 4, al. i) do CPTA, pelo que deve a Requerida ser absolvida da instância.
4. Notificada para o efeito por via de despacho arbitral de 25 de setembro de 2022, a Requerida apresentou Resposta em 31 de outubro de 2022, defendendo, por impugnação e por exceção, que o pedido de pronúncia arbitral sub judice devia ser julgado improcedente. Em 3 de novembro de 2022 foi a Requerente notificada pelo Tribunal para, querendo, se pronunciar por escrito sobre a exceção invocada pela AT, ao abrigo do princípio do contraditório, o que veio a suceder em 10 de novembro de 2022. O processo administrativo foi junto pela AT em 2 de novembro de 2022.
5. Ao abrigo do disposto nas alíneas c) e e) do artigo 16.º, e n.º 2 do artigo 29.º, ambos do RJAT, foi dispensada a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, sem oposição das Partes, por via de despacho arbitral de 17 de novembro de 2022, tendo as Partes sido igualmente notificadas, por esta via, para apresentação sucessiva de alegações escritas no prazo de 10 dias. Designou-se, ainda, o dia 23 de março de 2023 como data limite para prolação da decisão. As alegações foram apresentadas pelas Partes em 23 de novembro de 2022 (Requerente) e em 2 de dezembro de 2023 (Requerida), tendo ambas as partes se limitado a remeter para as peças iniciais.
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SANEAMENTO
O Tribunal foi regularmente constituído, tendo em vista as disposições contidas no artigo 2.º nº1 e artigo 5.º nº. 1 e 2, ambos do RJAT.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas, estando ambas regularmente representadas, de harmonia com os artigos 4.º e 10.º nº 2, ambos do RJAT.
Foi suscitada matéria de exceção de incompetência e de intempestividade do pedido de pronúncia arbitral, o que será analisado mais adiante, a título de questões prévias.
O processo não enferma de nulidades.
Cumpre apreciar e decidir.
III- DO MÉRITO
III-1- MATÉRIA DE FACTO
III-1-1- FACTOS DADOS COMO PROVADOS
Com relevo para a apreciação e decisão da causa, dão-se como assentes e provados os seguintes factos:
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Nos exercícios fiscais de 2017 e 2018, a Requerente encontrava-se enquadrada, para efeitos de IVA, no regime normal de periocidade mensal (cfr. fls. 1 e 14 a 58 do PA, cujo teor se dá por reproduzido).
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Por referência aos períodos compreendidos entre janeiro de 2017 e março de 2018, a Requerente apresentou as competentes declarações periódicas de IVA, cujas datas de entrega e valores de imposto a entregar ao Estado se resumem na tabela seguinte:
(cfr. fls. 1 e 14 a 58 do PA, cujo teor se dá por reproduzido)
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A 9 de abril de 2018, a Requerente veio informar a Autoridade Tributária e Aduaneira de que havia sido notificada, a 5 de abril de 2018, da criação do NIF francês n.º FR..., mais informando que:
(cfr. Doc. n.º 1 junto ao PPA, cujo teor se dá por reproduzido).
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Por carta datada de 15 de novembro de 2019, a Requerente foi notificada da cobrança do valor global de EUR 162.659,00 pelo Service des Impôts des Entreprises Etrangeres da Direction Générale des Finances Publiques da República Francesa (cfr. fls. 11 a 13 do PA, cujo teor se dá por reproduzido).
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O valor de EUR 162.659,00 era relativo ao período compreendido entre janeiro de 2017 e março de 2018 e apresentava a seguinte natureza:
(cfr. fls. 11 a 13 do PA, cujo teor se dá por reproduzido)
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A 18 de setembro de 2020, a Requerente apresentou junto da Autoridade Tributária e Aduaneira um Pedido de Revisão Oficiosa das autoliquidações de IVA referidas em B., no qual requereu a devolução da quantia de EUR 162.659,00 que lhe havia sido exigida pela Direction Générale des Finances Publiques da República Francesa, acrescida de juros indemnizatórios (cfr. fls. 1, 9 e 59 do PA, cujo teor se dá por reproduzido).
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O pedido de revisão oficiosa das autoliquidações de IVA de 2017 e 2018 foi apresentado em 21 de setembro de 2020.
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A 18 de maio de 2022, a AT indeferiu expressamente o Pedido de Revisão Oficiosa apresentado pela Requerente, notificando-lhe tal decisão através de carta registada.
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A Requerente apresentou o Pedido de Pronúncia Arbitral que deu origem ao presente processo arbitral a 8 de julho de 2022.
III-1-1-2- Factos não provados
Não há factos relevantes para a decisão da causa que devam considerar-se não provados.
III-1-1-3-Motivação da matéria de facto
Os factos dados como provados fundam-se no documento junto aos autos pela Requerente e no acervo documental que consta do Processo Administrativo junto pela Requerida.
Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar os factos que importam para a decisão, levando em consideração a causa de pedir que fundamenta o pedido formulado pela Requerente, conforme o artigo 596.º, n.º 1 e o artigo 607.º, n.º 2 a 4, ambos do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, e consignar se considera tal matéria provada ou não provada, conforme resulta do artigo 123.º, n.º 2 do CPPT.
Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a decisão, em relação às provas produzidas, na íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme o artigo 607.º, n.º 5 do Código de Processo Civil. Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g., força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371.º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.
Assim, tomando em consideração a prova documental junta aos autos, consideraram-se provados, com relevo para esta Decisão Arbitral, os factos acima elencados.
III- 2- MATÉRIA DE DIREITO
III-2-1 - Questões prévias- matéria de exceção
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Quanto à alegada exceção de incompetência
Na resposta, veio a Requerida suscitar, entre o mais, a incompetência do tribunal, por resultar “inequívoco que estamos perante um ato administrativo em matéria tributária que, por não apreciar ou discutir a legalidade dos atos de autoliquidação, não pode ser sindicável através de impugnação judicial (e arbitral), nos termos previstos na alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º do CPPT”.
Com efeito, citando “Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, Áreas Editora, 6.ª edição, volume II, 2011, p. 54”, o mesmo conclui no sentido de que “[…] a impugnação judicial só será meio processual adequado quando o acto a impugnar contiver efectivamente a apreciado da legalidade do acto de liquidação”.
Para a Requerida, quanto aos alegados vícios propriamente ditos de que as autoliquidações pudessem enfermar, não há, nem houve, ao longo do procedimento, qualquer discussão a respeito.
Tal facto é patente no despacho de indeferimento, que afasta o dever de apreciação substantiva da revisão oficiosa por intempestividade daquele mesmo pedido.
O que, de facto, se discute são os pressupostos temporais acerca da oportunidade do pedido efetuado pela Requerente de requerer a revisão dos atos de autoliquidação que entende que deveriam ser anulados.
Em exercício de contraditório veio a Requerente defender que nada obsta ao conhecimento do pedido.
Ora acontece que, analisado o PA pode ler-se, entre o mais, depois de breve exposição e caracterização do regime nas vendas à distância, nos termos dos artigos 10.º e 11.º do Regime de IVA nas Transações Intracomunitárias ( RITI), “(…) Assim, a partir do momento em que o sujeito passivo português realiza vendas à distância para França cujo valor ultrapassa o limite desse país, o sujeito passivo deverá proceder ao seu registo nesse país, passando a partir desse momento a tributar tais transações nesse território, à taxa de imposto aí vigente.”.
E, mais adiante, ainda se conclui “É nosso entendimento de que não assiste razão à Requerente, até porque em Portugal o IVA terá sito indevidamente liquidado pelo que deverá sempre ser entregue”.
Ainda que de forma abstrata, uma vez que, como alega a Requerida, “(…) a Requerente não juntou cópias das faturas anuladas, nem estabeleceu nexo de causalidade entre o imposto entregue em Portugal e o aviso de coleta das autoridades francesas, desconhecendo-se, inclusive, a natureza do imposto cobrado em território francês”, considera-se que, de alguma forma, foi tomada posição sobre a ilegalidade da liquidação em causa.
Termos em que se conclui pela improcedência da exceção da incompetência.
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Quanto à exceção de intempestividade
§1.º Sentido e alcance do artigo 78.º da LGT
No que se refere à análise da admissibilidade temporal do pedido de revisão oficiosa, a Requerente considera aplicável o prazo a que se refere o artigo 78.º, n.º1, da LGT, por existir erro imputável ao serviço. Se assim não se entender, argumenta que “Seja por meio alternativo, seja, como meio complementar, o procedimento de revisão do ato tributário não pode deixar de ser visto como forma de correção da tributação ilegal e injusta, actuando um dever de garantia da legalidade e da justiça, que recai sobre a Administração Fiscal” (Ponto 23.º do Pedido).
Finalmente invoca, ainda, a favor da tempestividade do pedido, a existência de duplicação de coleta.
Vejamos.
A primeira questão que o tribunal deve conhecer consiste em determinar se subsiste, no caso em apreço, erro imputável aos serviços, uma vez que daqui decorre a determinação do prazo de impugnação.
Para tanto, é necessário identificar, desde logo, a norma aplicável, isto é, o artigo 78.º da LGT, o qual dispõe o seguinte:
«1. A revisão dos actos tributários pela entidade que os praticou pode ser efectuada por iniciativa do sujeito passivo, no prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade, ou, por iniciativa da administração tributária, no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços.
2. Revogado
3. A revisão dos actos tributários nos termos do n.º 1, independentemente de se tratar de erro material ou de direito, implica o respectivo reconhecimento devidamente fundamentado nos termos do n.º 1 do artigo anterior.
4. O dirigente máximo do serviço pode autorizar, excepcionalmente, nos três anos posteriores ao do acto tributário a revisão da matéria tributável apurada com fundamento em injustiça grave ou notória, desde que o erro não seja imputável a comportamento negligente do contribuinte.
5. Para efeitos do número anterior, apenas se considera notória a injustiça ostensiva e inequívoca e grave a resultante de tributação manifestamente exagerada e desproporcionada com a realidade ou de que tenha resultado elevado prejuízo para a Fazenda Nacional.
6. A revisão do acto tributário por motivo de duplicação de colecta pode efectuar-se, seja qual for o fundamento, no prazo de quatro anos.
7. Interrompe o prazo da revisão oficiosa do acto tributário ou da matéria tributável o pedido do contribuinte dirigido ao órgão competente da administração tributária para a sua realização».
A questão do sentido e alcance do artigo 78.º da LGT foi analisada, entre outros, no processo n.º 414/2019-T, cuja jurisprudência será seguida, por merecer a concordância deste coletivo.
O instituto da revisão constitui uma concretização do dever de revogar atos ilegais e, como tal, a AT deve proceder dessa forma nas hipóteses em que ocorram erros nas liquidações que se corporizem na arrecadação de tributos em valor superior ao legalmente previsto. Os princípios da justiça, da igualdade e da legalidade que enformam a atividade da AT impõem essa correção oficiosa.
Assim, se por um lado é admissível a revisão do ato por iniciativa do contribuinte no prazo da impugnação administrativa, por outro, a AT, por impulso do contribuinte, também pode promover a denominada «revisão oficiosa».
Neste sentido afirma a jurisprudência[1] que: «Decorre da lei e constitui jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal que a revisão oficiosa de actos tributários a que alude a parte final do n.º 1, do art. 78.º da LGT “por iniciativa de administração tributária” pode realizar-se a pedido do contribuinte (art. 78.º, n.º 7 da LGT), sendo o indeferimento, expresso ou tácito, desse pedido de revisão susceptível de impugnação contenciosa, nos termos do art. 95.º, n.º 1 e 2, al. d) da LGT e art. 97.º, n.º 1, al. d) do CPPT, quando estiver em causa a apreciação da legalidade do acto de liquidação e não prejudicando essa possibilidade a circunstância do pedido de revisão oficiosa ter sido apresentado muito depois de esgotados os prazos de impugnação administrativa, mas dentro do prazo dos 4 anos para a revisão do acto de liquidação “por iniciativa de administração tributária”».
O pedido de revisão também tem de se alicerçar em «erro imputável aos serviços» e ser apresentado no prazo de quatro anos. Ora, esse erro engloba o lapso, o erro material ou de facto, como também o erro de direito.
Em abono da última conclusão refere igualmente a jurisprudência[2] que: «…tem desde há muito entendido este Supremo Tribunal de forma pacífica que existindo um erro de direito numa liquidação efectuada pelos serviços da administração tributária, e não decorrendo essa errada aplicação da lei de qualquer informação ou declaração do contribuinte, o erro em questão é imputável aos serviços, pois tanto o n.º 2 do art. 266º da Constituição como o artigo 55.º da Lei Geral Tributária estabelecem a obrigação genérica de a administração tributária actuar em plena conformidade com a lei,…».
A «revisão oficiosa» exige que, cumulativamente, se verifiquem os seguintes requisitos: i) o pedido seja formulado no prazo de quatro anos contados a partir do ato cuja revisão se solicita ou a todo o tempo quando o tributo não se encontre pago; ii) tenha origem em «erro imputável aos serviços» e iii) proceda da iniciativa do contribuinte ou se realize oficiosamente pela AT.
Assim, ultrapassado o prazo para a impugnação judicial ou reclamação graciosa, o art. 78.º, números 1, 3 e 4 da LGT estabelece como requisito essencial da «revisão oficiosa» que o erro seja imputável aos serviços.
O «erro imputável aos serviços» admite a patologia de facto e de direito, contudo a ilegalidade não pode ser imputável ao contribuinte por conduta negligente, mas à AT.
É esta a posição do Supremo Tribunal Administrativo quando afirma que: «… qualquer ilegalidade não resultante de uma actuação do sujeito passivo será imputável à própria Administração, sendo que esta imputabilidade aos serviços é independente da demonstração da culpa de qualquer dos funcionários envolvidos na emissão do acto afectado pelo erro» [3]. E, no mesmo sentido: «…é à administração tributária que é imputável esse erro, sempre que a errada aplicação da lei não tenha por base qualquer informação do contribuinte»[4].
Revertendo o exposto para o caso concreto, resulta do Processo Administrativo que está em causa um imposto indevidamente liquidado em Portugal, uma vez que o IVA seria devido em França (IVA francês). E acrescenta-se que, em Portugal, o IVA, ainda que indevidamente liquidado, por errónea aplicação das regras do imposto pela Requerente, deverá sempre ser entregue.
Razão pela qual, não se preenche o requisito essencial à revisão, que o erro seja imputável aos serviços.
A doutrina[5], para além de concordar com a posição jurisprudencial supra referida, ensina que também existirá erro imputável aos serviços quando, apesar da liquidação ter sido efetuada com base na declaração do contribuinte, este tenha adotado uma orientação genérica da AT devidamente publicada, por cumprimento defeituoso do dever de colaboração por parte da AT.
Acontece que não é manifestamente o que se verifica na presente hipótese, na medida em que as declarações de IVA em causa não foram apresentadas com suporte em qualquer informação genérica, matéria que nem se encontra alegada.
Como resulta da matéria de facto dada como provada, as declarações de IVA, dos períodos 201701 a 201803, foram submetidas dentro dos prazos legais e o pedido apresentado em 21 de setembro de 2020. Ora não procedendo o erro imputável aos serviços, o pedido devia ter sido apresentado no prazo da reclamação administrativa, nos termos do disposto no artigo 78.º, n.º, 1 primeira parte, da LGT, a desencadear no prazo de 120 dias a contar do termo do prazo para pagamento voluntário do tributo.
Assim sendo, assiste razão à Entidade Requerida quando defende a intempestividade do pedido de revisão oficiosa, na medida em que a possibilidade de revisão no prazo e moldes da 2ª parte do artigo 78.º, n.º1, da LGT (4 anos) pressupõe a existência de erro imputável aos serviços, o que não se verifica no caso dos autos.
Como vimos, alega também a Requerente que, em qualquer caso, haverá injustiça grave ou notória.
Nos termos do n.º 4 do artigo 78.º da LGT, “O dirigente máximo do serviço pode autorizar, excepcionalmente, nos três anos posteriores ao do acto tributário a revisão da matéria tributável apurada com fundamento em injustiça grave ou notória, desde que o erro não seja imputável a comportamento negligente do contribuinte”.
Ora, como alega a Requerida, no caso verifica-se impossibilidade de recorrer ao prazo excecional do artigo 78.º, n.º 4, da LGT, dado inexistir injustiça grave ou notória, uma vez que o erro de enquadramento da operação é, precisamente, imputável a comportamento negligente da Requerente.
Na verdade, como se pode ler na decisão de indeferimento, depois de breve explanação sobre o regime de vendas à distância, “(…) a partir do momento em que o sujeito passivo português realiza vendas à distância para França cujo valor ultrapasse o limite desse país, o sujeito passivo deverá proceder ao seu registo nesse país, passando a partir desse momento a tributar tais transações nesse território, à taxa de imposto aí vigente”.
Assim sendo, como ficou dito, estamos perante uma situação em que o IVA foi indevidamente liquidado, por errónea aplicação das regras do imposto pela Requerente. Acresce que, de acordo com a lei aplicável, ainda que indevidamente liquidado deverá sempre ser entregue.
§2.º Quanto à duplicação de coleta
A duplicação de coleta encontra a sua previsão no n.º 1 do art.º 205.º do CPPT, o qual dispõe: «[h]averá duplicação de coleta para efeitos do artigo anterior quando, estando pago por inteiro um tributo, se exigir da mesma ou de diferente pessoa um outro de igual natureza, referente ao mesmo facto tributário e ao mesmo período de tempo».
Refere Jorge Lopes de Sousa (in Código de Procedimento e de Processo Tributário, III volume, 2011, p 526) que «Os requisitos da duplicação de colecta são, cumulativamente, os seguintes:
a) unicidade dos factos tributários;
b) identidade da natureza entre a tributo pago e o que de novo se exige;
c) coincidência temporal do tributo pago e o que de novo se pretende cobrar. (…)
[…]
A finalidade da duplicação de colecta é impedir que seja repetida a cobrança de um mesmo tributo. A duplicação de colecta resulta da aplicação do mesmo preceito legal mais do que uma vez ao mesmo facto tributário ou situação tributária concreta.
No entanto, torna-se necessário que a realidade fáctica que está subjacente à pluralidade de liquidações seja a mesma, o que não acontecerá, por exemplo, no caso de liquidações adicionais em que se pretende cobrar um tributo que, indevidamente, não foi liquidado inicialmente. Nestas situações de liquidação adicional, a segunda liquidação não incide sobre o mesmo facto tributário ( a mesma parcela de rendimento ou de valor patrimonial ou de despesa, por exemplo) sobre o qual incidiu a primeira”.
Aplicando o exposto ao caso em apreço, verifica-se que não estão preenchidos os requisitos mencionados, dado que o que está em causa, como vimos, é um imposto indevidamente liquidado em Portugal, uma vez que o IVA será devido em França (IVA francês).
Como refere a Requerida, a Requerente:
“Não tendo podido regularizar o imposto indevidamente liquidado a seu favor (por não reunir os requisitos necessários ao exercício de tal direito, entende ter sido liquidado duas vezes imposto sobre as mesmas operações).
Acontece que, e desde logo, mostrando-se o imposto indevidamente liquidado em Portugal e, tendo sido liquidado o imposto devido em França, nunca se estaria perante uma duplicação de colecta (no mesmo estado e sobre o mesmo facto tributário), mas antes, perante uma dupla tributação (em diferentes Estados)”.
Assim sendo, desde logo, a norma de incidência que determinou a liquidação de imposto em França não foi, assim, a mesma que determina que o IVA indevidamente mencionado nas faturas seja devido, mas outra. Não se pode afirmar que a obrigação de liquidação ocorrida em França e o imposto indevidamente liquidado em Portugal, por incorreta aplicação das regras do imposto, signifique que se esteja a exigir um imposto de idêntica natureza, referente ao mesmo facto tributário. Os factos tributários que originaram uma e outra liquidação não são os mesmos. Na verdade, em Portugal o facto tributário é a menção indevida de imposto na fatura [alínea c) do n.º 1 do artigo 2.º do CIVA], enquanto que na liquidação efetivada em França, o facto tributário resultará da transmissão dos bens.
Termos em que não se verifica a alegada duplicação da coleta.
Nesta sequência, procede a alegada intempestividade, tendo-se firmado caso decidido.
Assiste, desta forma, razão à Requerida quando conclui, «Excluída por intempestividade a possibilidade de revisão oficiosa com fundamento em ilegalidade, previsto na 1ª parte do n.º 1 do art.º 78.º da LGT, uma vez que estão em causa as declarações dos períodos 1701 a 1803, submetidas nos prazos legais, e o pedido de revisão foi apresentado em 2020-09-21, quando se encontrava manifestamente ultrapassado o prazo de 120 dias a contar do termo do prazo para pagamento voluntário do tributo, nos termos conjugados do art.º 70.º e 102.º, n.º 1 do CPPT.»
Alega a Requerente, em abstrato, que a não aceitação da tempestividade da revisão oficiosa viola o princípio da justiça, da igualdade, e da proporcionalidade, devendo em qualquer caso o primado da justiça prevalecer sobre qualquer situação de ordem formal.
Ora, a verdade é que o acesso à justiça ou o direito à tutela judicial efetiva não é um direito absoluto, devendo articular-se em conformidade com outros princípios e valores fundamentais da ordem jurídica constitucional, como a certeza e a segurança jurídicas, ao serviço dos quais se encontra a fixação de prazos de acesso aos tribunais. Acresce que a existência de prazos legais de acesso aos tribunais também serve o princípio da igualdade de tratamento, não podendo olvidar-se que os princípios da justiça, da igualdade e da legalidade que enformam a atividade da AT impõem a correção oficiosa (como remédio último), mas desde que verificados os respetivos pressupostos. E nunca a mero título de uma alegada prevalência da justiça material sobre a forma. A prevalecer este entendimento facilmente se cairia no arbítrio.
Termos em que não podem deixar de improceder as invocadas inconstitucionalidades, ainda que alegadas sem concretização.
Considerando o exposto, ficam prejudicadas as questões do direito ao reembolso e da condenação no pagamento de juros indemnizatórios.
Também não assiste razão à Requerente quando alega que, sendo de improceder o pedido, deve a Requerida suportar as custas, porquanto a notificou dizendo que a mesma podia interpor impugnação judicial no prazo de três meses, nos termos do artigo 97.º e do artigo 102.º, ambos do CPPT. Para esse efeito, cita jurisprudência do STA, e conclui que não deu azo à ação dirigida a tribunal incompetente, no caso, o CAAD, uma vez que se limitou a observar o que consta da notificação efetuada pela AT.
Ora, também aqui não assiste razão à Requerente.
Com efeito, a Requerente teve oportunidade de impugnar a decisão de indeferimento da revisão oficiosa, tendo tido a oportunidade deste tribunal apreciar da legalidade desse indeferimento porque devidamente impugnado. Acontece que o Tribunal, chamado a decidir, considera que assiste razão à Requerida, mantendo o indeferimento.
Termos em que se considera que a Requerente não foi induzida em erro.
IV- DECISÃO
Termos em que se acorda no presente Tribunal Arbitral:
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Julgar improcedente a exceção de incompetência;
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Julgar procedente a exceção de intempestividade, com a consequente absolvição da Requerida da instância;
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Condenar a Requerente em custas.
V- VALOR DA CAUSA
Fixa-se o valor do Processo em € 162.659,00 de harmonia com as disposições contidas no artigo 299º, nº 1, do CPC, artigo 97º-A do CPPT, e artigo 3º, nº2, do RCPAT.
VI- CUSTAS
Fixam-se as custas do Processo, ao abrigo do nº 4 do artigo 22º do RJAT, no montante de €3.672,00, que ficam a cargo da Requerente.
Notifique.
Lisboa, 10 de março de 2023
O Tribunal Coletivo
Fernanda Maçãs
(Presidente)
Dr.ª Raquel Montes Fernandes (árbitra vogal)
Prof.ª Doutora Ana Paula Marques Rocha (árbitra vogal)
[1] Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido no âmbito do processo n.º 0886/14, de 19/11/2014, relatado pela Conselheira ISABEL MARQUES DA SILVA.
[2] Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido no âmbito do processo n.º 0886/14, de 19/11/2014, relatado pela Conselheira ISABEL MARQUES DA SILVA.
[3] Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido no âmbito do processo n.º 0886/14, de 19/11/2014, relatado pela Conselheira ISABEL MARQUES DA SILVA.
[4] Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido no âmbito do processo n.º 0771/08, de 21/01/2009, relatado pelo Conselheiro LÚCIO BARBOSA.
[5] PAULO MARQUES, A revisão do acto tributário. Do mea culpa à reposição da legalidade., 2.ª edição, Cadernos do IDEFF, n.º 19, Almedina, 2017, p. 219.