Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 405/2022-T
Data da decisão: 2023-02-27  IRS  
Valor do pedido: € 48.545,79
Tema: IRS - Facto tributário e verificação dos elementos objetivo e subjetivo. O sujeito passivo da relação jurídica tributária constituída pela verificação do facto tributário. Simultaneidade e irreversibilidade.
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SUMÁRIO:

  1. De harmonia com o disposto na alínea a) do n.º 3 do artigo 10.º do CIRS, nos casos de promessa de compra e venda, presume-se que o ganho é obtido logo que verificada a tradição ou posse dos bens e direitos objeto do contrato, sendo esse o momento da verificação do facto tributário, salvo elisão da presunção, e da consequente constituição da relação jurídica tributária que culmina com a liquidação do imposto ao sujeito passivo dessa mesma relação jurídica tributária.
  2. A detenção de um imóvel titulada por um contrato de arrendamento convola-se em posse, ainda que meramente obrigacional se ao contrato não for conferida eficácia real, com a  celebração de contrato de promessa de compra e venda, entre o locador e o locatário com o mesmo objeto, verificando-se, nesse momento, a modificação da situação tributária subjacente, uma vez que a promessa de compra e venda desencadeia a aplicação da norma de incidência consagrada na alínea a) do n.º 3 do artigo 10.º do CIRS.
  3. O elemento subjetivo do facto tributário não é modificável por morte da pessoa singular que o preenchia no momento da verificação daquele.
  4. A morte do sujeito passivo de uma relação jurídica tributária projeta-se na transmissão da responsabilidade tributária nos termos do disposto no artigo 29.º, n.º 2, da LGT, mesmo para dívidas de imposto ainda não liquidadas.
  5. Os herdeiros não são sujeitos passivos relações jurídicas tributárias constituídas em vida do autor da herança e nas quais ele ocupa a posição passiva (o contribuinte direto), mas apenas responsáveis tributários e só no âmbito da responsabilidade tributária poderão ser denominados sujeitos passivo nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 18.º da LGT.
  6. A responsabilidade subsidiária efetiva-se por reversão do processo de execução fiscal, nos termos do n.º 1 do artigo 23.º da LGT, e não por liquidação do tributo ao responsável.

 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

  1. RELATÓRIO

           

            A..., titular número de identificação fiscal..., casado com B..., titular do número de identificação fiscal..., ambos residentes fiscais em ... n.º ..., ..., Genebra, Suíça, doravante “Requerentes”, tendo sido notificados da liquidação oficiosa de IRS n.º 2022..., referente ao IRS devido pelos rendimentos auferidos em 2020, bem como da respetiva demonstração da liquidação de juros e acerto de contas, emitida pelo Serviço de Finanças de Cascais em 15.02.2022, que apurou um montante de IRS e juros a pagar de € 48.545,79, respeitante ao período de tributação de 2020 e dela discordando, vêm, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e no artigo 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, pedir a constituição de tribunal arbitral que julgue o diferendo que os opõe às autoridades fiscais portuguesas.

    É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA, (doravante também identificada por "AT" ou "Requerida")

    O pedido de Constituição do Tribunal foi aceite em 06-07-2022 pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT.

    Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação que lhe foi dada pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal singular o signatário que comunicou a aceitação do encargo no prazo legal.

    Tendo as partes sido informadas da designação do signatário como árbitro, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, em conformidade com o preceituado no n.º 8 artigo 11.º do RJAT, decorrido o prazo previsto no n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, sem que as Partes nada viessem dizer, o Tribunal Arbitral Singular ficou constituído a 20 de setembro de 2022.

    Em 13 de setembro de 2022 foi proferido o despacho arbitral previsto no artigo 17.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT) e nesse mesmo dia notificado à Requerente e à Requerida.

    Na sequência da tramitação normal do Processo, a Requerida, em 17 de outubro de 2022 e apresentou Resposta: (i) informando que havia sido parcialmente anulado o ato; e (ii) propugnando pela manutenção do ato tributário e a consequente improcedência do pedido de pronúncia arbitral, exclusivamente por impugnação, não tendo, consequentemente, levantado quaisquer exceções.

    A Requerida protestou juntar o processo administrativo, não o tendo feito até à data prevista para a prolação da decisão arbitral.

    Em 28 de outubro de 2022 foi proferido despacho arbitral a solicitar aos Requerentes que aperfeiçoassem a petição inicial, designadamente no que dizia respeito à expressa identificação dos vícios imputados à liquidação impugnada.

    Em 31 de outubro de 2022, após ter sido remetida ao Tribunal a p. i., aperfeiçoada, foi proferido despacho arbitral no sentido de, querendo, a Requerida exercer o contraditório, o que não fez.

    Em 18 de novembro de 2022 foi proferido despacho arbitral dispensando a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e, bem assim, as alegações, designando-se, ainda, o dia 18 de dezembro de 2022 como data-limite para a prolação da decisão arbitral.

 

  1.   SANEAMENTO

 

     O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, face ao preceituado na alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT e é competente.

     As Partes gozam de personalidade e de capacidade judiciárias, são legítimas, e encontram-se regularmente representadas, tudo em conformidade com o disposto no artigo 4.º, n.º 2, do mesmo diploma e ainda no artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

     O processo não enferma de nulidades

     Nada obsta, pois, ao conhecimento de mérito.

 

 

  1.   PEDIDO

           

            Os Requerentes pedem ao Tribunal que conceda provimento ao pedido de pronúncia arbitral, determinando-se, em consequência a anulação do ato de liquidação adicional de IRS n.º 2022..., de 15.02.2022, e respetiva demonstração de liquidação de juros e acerto de contas, respeitantes ao período de tributação de 2020, que apuraram um montante de IRS e juros a pagar de € 48.545,79, com todas as consequências legais.

 

 

 

 

  1. MATÉRIA DE FACTO
    1.  Factos provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

  1. C... era proprietária do prédio rústico sito na freguesia de ..., concelho de ..., descrito na conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ..., inscrito na matriz predial sob o artigo ..., secção ..., designado como “...”, parte da Herdade da ... .
  2. Em 26.07.2016, celebrou, na qualidade de senhoria, um contrato de arrendamento rural entre com a sociedade D..., LDA., contribuinte n.º ... (“D...”), na qualidade de arrendatária, tendo por o prédio antes descrito.
  3. Nos termos do referido contrato de arrendamento rural, o mesmo produziu efeitos a partir de 01.09.2016, sendo celebrado pelo prazo de 25 anos.
  4. O contrato de arrendamento rural foi declarado à AT pela senhoria, C..., em 24.05.2017.
  5. Em cumprimento do contrato de arrendamento rural, C..., recebeu, e declarou à AT através dos respetivos recibos de renda, as primeiras duas rendas anuais relativas a 2016 e a 2017, no valor de € 31.240,00 e de € 9.372,00, respetivamente.
  6. Em 18.05.2017, C..., proprietária do Imóvel, celebrou, na qualidade de promitente vendedora, um contrato promessa de compra e venda do Imóvel (“CPCV”) com a D..., a arrendatária do imóvel, na qualidade de promitente compradora.
  7. Assim, dispunha da seguinte forma o CPCV:

3. A Primeira Contraente [C...], pelo preço de 170.000,00€ (cento e setenta mil euros) promete vender livre de ónus ou encargo, a “Parcela” melhor identificada no final da cláusula anterior à Segunda Contraente [D...], que a promete comprar.

(…)5. Como sinal e princípio de pagamento do preço, a Segunda Contraente entrega à Primeira Contraente, nesta data, a quantia de 140.000,00€ (cento e quarenta mil euros), da qual a mesma dá expressa quitação.

6. O remanescente do preço será pago na data da formalização do contrato prometido, que será celebrado no prazo de 6 anos a contar da presente data que é o prazo que se estima necessário para a conclusão do processo de fracionamento acima identificado.

7. Sem prejuízo do disposto no número anterior, todos os valores pagos pela Promitente Compradora, na qualidade de arrendatária da parcela objecto deste contrato até à data da outorga do contrato prometido, serão convolados em sinal e preço no âmbito do presente Contrato.” (cf. documento n.º 4 com negritos do original e sublinhados nossos).

  1. O prédio objeto do CPCV estava na posse da promitente desde a celebração do contrato de arrendamento rural.
  2. Com o sinal pago na celebração do CPCV e a convolação das rendas entretanto pagas em sinal e preço, o preço acordado para a transação foi integralmente pago.
  3. Em 01.06.2018, faleceu C..., mãe do ora Requerente A..., de quem este era único herdeiro, conforme escritura de habilitação de herdeiros junta como documento n.º 7.
  4. À data da morte da mãe do Requerente, A..., a escritura de compra e venda ainda não tinha sido celebrada.
  5. Assim, naquela data, o ora Requerente A... sucedeu na posição de promitente vendedor no CPCV anteriormente celebrado entre C... e a sociedade D... .
  6. Em 18.08.2020, o ora Requerente A... outorgou, na qualidade de vendedor, contrato de compra e venda do Imóvel com a sociedade D..., na qualidade de compradora.
  7. O ora Requerente A... foi, entretanto, notificado, através do Portal das Finanças, da existência de uma divergência na declaração de rendimentos relativa ao ano de 2020.
  8. Em 30.06.2021, o ora Requerente A... submeteu, também no Portal das Finanças, justificação para a alegada divergência, referindo:

A escritura foi celebrada em 2020, porém o valor de alienação foi recebido anteriormente pela mãe do contribuinte, no dia 18/05/2017. (Vide parte final da escritura), não tendo o contribuinte ..., recebido qualquer quantia. Posto isto, solicitamos agendamento no Serviço de Finanças de modo a percebermos como fazer.

  1. Por e-mail de 08.10.2021, o ora Requerente A... foi informado de que deveria “declarar a venda no anexo G da decl Mod. 3, nos termos do artº 57º CIRS, independentemente da data de pagamento, a oficialização da venda (escritura) ocorreu em 2020. Adquiriu o imóvel por herança em 2018, deverá declarar como valor de aquisição o VPT que consta na liquidação de Imposto do Selo = 649,45€”.
  2. Em 03.12.2021, o ora Requerente A... submeteu no Portal das Finanças um direito de audição prévia relativo à alegada divergência, o qual veio a merecer resposta da AT por e-mail datado de 21.12.2021, de acordo com o qual:

Em referência à audição prévia informa-se: a escritura é o documento que oficializa os atos de compra/venda e o que nela consta é o que, para termos fiscais, deve refletir o negócio efetuado. Assim, deverá ser declarado o que consta na mesma, independentemente de quem é o beneficiário do valor recebido em troca do bem. Nos termos da al a) do nr. 1 do artº 10º CIRS constituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem de alienação onerosa, designadamente de direitos reais sobre bens imóveis.

Nos termos do artº 57º CIRS deve apresentar declaração juntando os anexos que para o efeito sejam mencionados no referido modelo. O facto de ter recebido o valor através de contrato de arrendamento não exclui a obrigação de declaração do ato.

  1. Em fevereiro de 2022, foi emitida a declaração de rendimentos modelo 3 de IRS oficiosa que inclui o Anexo G com o seguinte teor:

 

  1. Em 15.02.2022 foi remetida para a morada do representante fiscal do ora Requerente A... a liquidação oficiosa de IRS n.º 2022 ..., relativa ao ano de 2020, respetiva liquidação de juros e demonstração de acerto de contas.
  2. Não tendo o montante liquidado sido pago voluntariamente, em 09.05.2022 os Requerentes foram citados da instauração contra si do processo de execução fiscal n.º ...2022... .
  3. Os requerentes têm o seu domicílio fiscal na Suíça, onde são residentes.

 

  1. MATÉRIA DE FACTO
    1.  Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto

 

     Não se provou que a promitente compradora do imóvel não tenha pagado IMT aquando da celebração do contrato promessa de compra e venda. Não há outros factos com relevância para a decisão da causa.

     Os factos foram dados como provados exclusivamente com base na prova documental apresentada pelos Requerentes uma vez que a Requerida não juntou o PA, havendo, assim, que aplicar o disposto no artigo 84.º, n.º 6, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aplicável ao pedido de pronúncia arbitral nos termos do disposto no artigo 29.º, n.º 1, al. d), do RJAT.

     Não há, pois, controvérsia sobre a matéria de facto.

 

  1. MATÉRIA DE DIREITO

 

      A questão que aqui se discute é a de saber quando é que ocorreu o facto tributário que deu origem à liquidação oficiosa de imposto promovida pela Requerida, quando teve conhecimento de que o Requerente, A..., havia outorgado uma escritura de compra e venda e concomitantemente determinar quem é o sujeito passivo da relação jurídica por aquele constituída.

 

     Na verdade, estabelecendo o artigo 10.º, n.º 3, alínea a), a presunção de que a mais-valia se considera realizada, em caso de contrato promessa de compra e venda e com a transferência, irrestrita, da posse do bem para o promitente adquirente, esse terá de ser, por força de lei inalterável por vontade das partes, o momento da verificação do facto tributário, com a consequente determinação  e fixação dos seus elementos subjetivo e objetivo, mesmo que, nomeadamente, por força de pagamento à posterior do preço, se façam sobrelevar os princípios da realização e da capacidade contributiva. A prova exigida para que assim não seja, uma vez que a presunção da al. a) do n.º 3 do artigo 10.º do CIRS não é uma presunção juris et de jure, por se tratar de uma presunção em matéria de incidência e tal a sua inilibilidade estar proibida pelo artigo 73.º da LGT, é a prova sobre se a posse se verificou ou não.

 

     Vejamos:

 

 

 

  1. Posição das Partes

 

     A Requerente invoca como fundamentos para impugnar o ato tributário o vício de violação de lei, enfermando de erro quanto aos pressupostos de facto por errónea qualificação de factos tributários, em concreto dos elementos de facto subjacentes à situação tributária e, bem assim, a caducidade do direito à liquidação, e alega em defesa da sua tese o seguinte:

 

  1. Está em causa nos presentes autos a aplicação do disposto no artigo 15.º e na alínea a) do n.º 3 do artigo 10.º do Código do IRS, em matéria de determinação do sujeito passivo para efeitos de IRS, e no artigo 45.º da LGT, em matéria de caducidade do direito à liquidação.
  2. Dispõe o seguinte o artigo 15.º do Código do IRS:

1 - Sendo as pessoas residentes em território português, o IRS incide sobre a totalidade dos seus rendimentos, incluindo os obtidos fora desse território.

2 - Tratando-se de não residentes, o IRS incide unicamente sobre os rendimentos obtidos em território português. 3 - O disposto nos números anteriores aplica-se aos casos de residência parcial previstos nos n.os 3 e 4 do artigo seguinte, relativamente a cada um dos estatutos de residência.”.      

  1. Do citado preceito resulta que os sujeitos passivos residentes em território português estão sujeitos a IRS pela totalidade dos rendimentos que aufiram, tanto de fonte portuguesa como de fonte estrangeira.
  2. Com efeito, a alegada mais-valia imobiliária que está na origem da liquidação oficiosa de IRS relativa ao ano de 2020 nunca se verificou na esfera jurídica dos ora Requerentes, nem tão-pouco se verificou em 2020.
  3. Em virtude do exposto, o ato de liquidação em causa encontra-se ferido de vício de violação de lei, enfermando de erro quanto aos pressupostos de facto por errónea qualificação de factos tributários, em concreto dos elementos de facto subjacentes à situação tributária em análise.       
  4. Como ensina o Ilustre Conselheiro Jorge Lopes de Sousa, em anotação ao artigo 99.º do CPPT, o erro quanto aos pressupostos de facto compreende qualquer “(…) erro de avaliação, seja motivado por errada apreciação de elementos de facto seja por errada aplicação de normas jurídicas, abrangendo-se nestes elementos a aplicação de critérios técnicos feita pela administração” (cf. Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, 6.ª edição, Áreas Editora, 2011, pág. 117).
  5. Ademais, dispõe o artigo 10.º, n.º 3, alínea a) do Código do IRS:

1 - “Os ganhos consideram-se obtidos no momento da prática dos atos previstos no n.º 1, sem prejuízo do disposto nas alíneas seguintes:

a) Nos casos de promessa de compra e venda ou de troca, presume-se que o ganho é obtido logo que verificada a tradição ou posse dos bens ou direitos objeto do contrato;”.

  1. Como ensina José Guilherme Xavier Basto, “[a] lei prevê que a verificação da tradição da coisa ou da posse dos bens ou direitos objecto do contrato seja equiparada a alienação, determinando-se por essa tradição ou posse o momento da exigibilidade do tributo.” (cf. IRS: Incidência Real e Determinação dos Rendimentos Líquidos, Coimbra Editora, 2007, p. 428, com negrito nosso).        
  2. Ora, como resulta dos factos descritos, o Imóvel em apreço foi objeto:
    1. primeiro, em 26.07.2016, de um contrato de arrendamento rural celebrado entre a proprietária do Imóvel, C... (mãe do ora Requerente A...), e a sociedade D..., através do qual a sociedade D... passou a ter a posse do Imóvel, com direito ao gozo e fruição do mesmo (cf. documento n.º 4 acima junto);
    2. posteriormente, em 18.05.2017, de um CPCV celebrado entre a proprietária do Imóvel, C... (mãe do ora Requerente A...), e a sociedade D..., em cuja data ficou pago por esta sociedade o montante total acordado como preço para a compra e venda do Imóvel (cf. documento n.º 6 acima junto); e
    3. finalmente, em 18.08.2020, de escritura de compra e venda celebrado entre o ora Requerente A... (que sucedeu na posição de promitente vendedor por ser o único herdeiro da sua mãe) e a sociedade D..., que formalizou a transmissão da propriedade do Imóvel do primeiro para a segunda, sem que houvesse lugar a qualquer pagamento, uma vez que o preço se encontrava já pago desde a data do CPCV (cf. documento n.º 8 acima junto).
  3. Assim, em virtude do contrato de arrendamento rural celebrado em 26.07.2016 entre A... e a sociedade D..., à data da celebração do CPCV (18.05.2017), esta sociedade (promitente compradora) já tinha a posse e a fruição do Imóvel objeto do contrato, tornando a celebração do referido contrato promessa de compra e venda o momento fiscalmente relevante para a realização (e tributação) da mais-valia para efeitos de IRS.
  4. Este é, aliás, o entendimento da AT, em concreto da Direção de Serviços do IRS no processo n.º .../2017, de 31.10.2017, com despacho da Exma. Senhora Diretora de Serviços nos termos do qual:

1. Determina o número 3 do artigo 10.º do CIRS que, nos casos de contrato-promessa de compra e venda ou de troca, se presume que o ganho é obtido logo que verificada a tradição ou posse dos bens ou direitos objeto do contrato.

2. Em termos fiscais, a transmissão só ocorre mediante a verificação de dois requisitos cumulativamente: i) A celebração de um contrato-promessa; e ii) A entrega física da coisa objeto do contrato, consubstanciada numa mera mudança de possuidor dos bens (…)”.

  1. No presente caso, é inquestionável que, em 18.05.2017, com a celebração do contrato promessa de compra e venda, passaram a estar verificados os dois requisitos cumulativos.
  2. Isto porque a “entrega física da coisa objeto do contrato, consubstanciada numa mera mudança de possuidor dos bens” já havia ocorrido em 26.07.2016 por efeitos do contrato de arrendamento rural.
  3. Note-se que, como bem ensina o Venerando TCAS em acórdão de 08.10.2020, no processo n.º 2636/05.4BELSB, a existência de tradição não depende de referência expressa no contrato.
  4. E nem se afirme que a tradição não ficou demonstrada por não estar expressamente mencionada no CPCV e por não ter havido lugar ao pagamento de IMT aquando da celebração do CPCV.
  5. Pode ler-se naquele acórdão:

o recorrente pretende que se dê como provado o seguinte facto: "Com a assinatura do contrato promessa dos autos, a promitente-compradora entrou de imediato na posse do prédio a que se refere a alínea C) dos factos assentes". Com efeito, entende que parece resultar provado nos autos tal facto, face ao discurso da sentença recorrida, bem como da alínea C) do probatório, em conjugação com a circunstância de, nos factos provados nada se referir relativamente à tradição do bem. De todo modo, se assim não se entender, salienta que esse facto resulta efetivamente provado, pelos documentos de fls. n.º 22 e 23, e 24 a 30 junto aos autos. Do facto assente na alínea C) do probatório resulta que as partes acordaram que com a assinatura do contrato promessa de compra e venda o promitente comprador entra de imediato na posse do prédio. Cumpre, porém, dar como provados os factos que resultam dos documentos indicados pela recorrente para esse efeito, porque relevante para a decisão do presente recurso, e face à efetiva posse imediata do prédio que vem alegada no art. 4.ª da p.i.” (cf. acórdão do TCAS de 08.10.2020, no processo n.º 2636/05.4BELSB).

  1. Mais refere o Venerando TCAS em acórdão de 04.06.2015, no processo n.º 08096/14 que:

A alínea a) do n.º 3 do artigo 10 é uma norma imperativa e o seu teor é claro. Não se trata da concessão de uma opção, de uma mera possibilidade, de algo que esteja na discricionariedade dos contribuintes ou da Administração fiscal, mas de um comando estrito: sempre que, antes e independentemente da alienação de bens ou direitos susceptíveis de gerar ganhos qualificáveis como mais-valias, seja celebrado um contrato promessa de compra e venda incidente sobre os bens ou direitos em causa e se verifique, simultaneamente ou não, a tradição, ou a posse por parte de outrem, de tais bens ou direitos, o ganho é considerado obtido na data em que se dá a tradição ou se inicia a posse.”.

  1. Refere mesmo o TCAS, fazendo menção a um caso – como o presente – em que a tradição é anterior ao contrato promessa de compra e venda:

Nos casos em que a tradição ou o início da posse já tenham ocorrido anteriormente ao momento da celebração do contrato promessa, é este o da obtenção do ganho (porque é aí que confluem os dois requisitos da alínea a) do n.º 3 do artigo 10º do CIRS: o contrato promessa de compra e venda e a tradição ou posse dos bens ou direitos prometidos).” (cf. acórdão de 04.06.2015, no processo n.º 08096/14)[1].

  1. Note-se que o TCAS é ainda claro no sentido de que “a prova da posse imediata do imóvel para o promitente comprador resulta nos autos, (…) sendo insuficiente a argumentação de que o promitente comprador não liquidou a SISA devida, pois o incumprimento das obrigações fiscais do promitente comprador, não afeta o contrato-promessa celebrado, e muito menos os factos tributários que por força do mesmo se verifiquem.” (cf. acórdão do TCAS de 08.10.2020, no processo n.º 2636/05.4BELSB, com negrito nosso).
  2. Resulta cristalino, como bem salienta a jurisprudência, que para efeitos da aplicação do disposto no artigo 10.º, n.º 3, alínea a) do Código do IRS, é indiferente:
    1. se a tradição vem ou não mencionada no contrato promessa de compra e venda;
    2. se há ou não lugar ao pagamento de IMT; e
    3. se a tradição do bem ocorre simultaneamente ou não à celebração do contrato promessa de compra e venda.
  3. Ora, como ficou demonstrado, os Requerentes não foram partes em qualquer dos referidos contratos.
  4. Com efeito, a mais-valia realizou-se na esfera jurídica de C... que, à data da celebração do CPCV – data relevante para a realização da mais-valia nos termos do artigo 10.º, n.º 3, alínea a) do Código do IRS, uma vez que já tinha havido tradição aquando da celebração do contrato de arrendamento rural, em 26.07.2016 –, era legítima proprietária do Imóvel.
  5. Note-se que C... veio a falecer em 01.06.2018, mais de um ano após a celebração do CPCV (cf. documento n.º 7 acima junto).
  6. Deste modo, resulta claro que a mais-valia imobiliária tributável em IRS se verificou na esfera de C... em 18.05.2017.
  7. Ora, C... nunca foi notificada de qualquer liquidação oficiosa de IRS relativa ao ano de 2017 em virtude de tal mais-valia imobiliária, nem tão-pouco corria contra si qualquer processo executivo destinado à cobrança coerciva de uma dívida de IRS respeitante a tal mais-valia imobiliária realizada em 2017.
  8. Assim, mesmo tendo C... falecido em 01.06.2018 e sendo o Requerente A... o seu único herdeiro (cf. documento n.º 7 acima junto), é evidente que os ora Requerentes não são os sujeitos passivos do IRS devido em função da mais-valia realizada com a alienação do imóvel identificado.
  9. Do exposto resulta que a liquidação oficiosa de IRS em análise enferma também de vício de violação de lei por erro sobre os pressupostos de Direito, decorrente de errónea aplicação das normas jurídicas relevantes.
  10. Com efeito, na medida em que, conforme demonstrado, os Requerentes não auferiram qualquer rendimento, não tendo sido realizada qualquer mais-valia na sua esfera jurídica, a liquidação adicional de IRS sub judice viola o disposto nos artigos 15.º e 10.º, n.º 3, alínea a) do Código do IRS, o que consubstancia vício de violação de lei por erro sobre os pressupostos de Direito, nos termos da alínea a) do artigo 99.º do CPPT.

  Ademais,

  1. Dispõe o artigo 45.º da LGT:

1 - O direito de liquidar os tributos caduca se a liquidação não for validamente notificada ao contribuinte no prazo de quatro anos, quando a lei não fixar outro.

2 - No caso de erro evidenciado na declaração do sujeito passivo o prazo de caducidade referido no número anterior é de três anos.

3 - Em caso de ter sido efetuada qualquer dedução ou crédito de imposto, o prazo de caducidade é o do exercício desse direito.

4 - O prazo de caducidade conta-se, nos impostos periódicos, a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário e, nos impostos de obrigação única, a partir da data em que o facto tributário ocorreu, excepto no imposto sobre o valor acrescentado e nos impostos sobre o rendimento quando a tributação seja efectuada por retenção na fonte a título definitivo, caso em que aquele prazo se conta a partir do início do ano civil seguinte àquele em que se verificou, respectivamente, a exigibilidade do imposto ou o facto tributário.

5 - Sempre que o direito à liquidação respeite a factos relativamente aos quais foi instaurado inquérito criminal, o prazo a que se refere o n.º 1 é alargado até ao arquivamento ou trânsito em julgado da sentença, acrescido de um ano.

6 - Para efeitos de contagem do prazo referido no n.º 1, as notificações sob registo consideram-se validamente efectuadas no 3.º dia posterior ao do registo ou no 1.º dia útil seguinte a esse, quando esse dia não seja útil.

7 - O prazo referido no n.º 1 é de 12 anos sempre que o direito à liquidação respeite a factos tributários conexos com:

a) País, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável, constante de lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças, que devendo ser declarados à administração tributária o não sejam; ou

b) Contas de depósito ou de títulos abertas em instituições financeiras não residentes em Estados membros da União Europeia, ou em sucursais localizadas fora da União Europeia de instituições financeiras residentes, cuja existência e identificação não seja mencionada pelos sujeitos passivos do IRS na correspondente declaração de rendimentos do ano em que ocorram os factos tributários.”.

  1. Ora, conforme exposto acima, a mais-valia imobiliária em causa foi auferida no ano de 2017, uma vez que foi nesse ano que C... celebrou o contrato-promessa de compra e venda relativo ao imóvel que originou a mais-valia, na qualidade de promitente vendedor, com a sociedade D..., na qualidade de promitente compradora, que, à data da celebração do contrato já tinha em sua posse o imóvel.
  2. Com base no disposto nos n.ºs 1 e 4 do artigo 45.º da LGT, o prazo de caducidade do direito à liquidação do IRS devido em função da mais-valia realizada em 2017 deverá corresponder de 4 anos, contados a partir de 31.12.2017, terminando em 31.12.2021.
  3. Considerando que a liquidação oficiosa de IRS impugnada nos presentes autos foi emitida em 15.02.2022, é notório que à referida data o direito de liquidação do IRS devido em função da realização da mais-valia em causa já tinha caducado.
  4. Mais se acrescenta que a referida liquidação de imposto viola de forma clara os princípios basilares que assenta a tributação das pessoas singulares.
  5. Com efeito, ficou amplamente demonstrado que os Requerentes não receberam qualquer montante resultante da formalização da transmissão do Imóvel.
  6. Ora, o IRS assenta, em primeiro lugar, na conceção de rendimento acréscimo, abordagem segundo a qual o imposto deverá incidir sobre “todo o aumento do poder aquisitivo do contribuinte, incluindo (…) as receitas irregulares e ganhos fortuitos, os quais também devem ser considerados manifestações de capacidade contributiva” (cf. acórdão do TCA Sul, de 30.11.2017, proferido no processo n.º 237/05.6BEALM).
  7. Outro alicerce fundamental deste imposto é o princípio da capacidade contributiva, que reconhece que o sujeito passivo apenas deve pagar imposto se efetivamente tiver um acréscimo de receita.
  8. Neste sentido, veja-se o acórdão do TCA Sul, de 27.10.2016, proferido no processo n.º 07347/14 que salienta que o princípio da capacidade contributiva opera “como pressuposto ou condição visto que impede que a tributação atinja uma riqueza ou um rendimento que não existe; vale como critério ou parâmetro porque determina que a exacção do património dos contribuintes se faça de acordo com a sua “capacidade de gastar” (ability to spend).”.
  9. Ao procurar liquidar imposto sobre um rendimento que, conforme se demonstrou, não foi auferido pelos Requerentes, a AT viola de forma grosseira os fins tributários que estão base da tributação das pessoas singulares, o que, por tudo quanto ficou dito, é manifestamente inadmissível, tanto à luz das regras do código do IRS como à luz da Constituição.

Por seu turno, a Requerida defende, em síntese, o seguinte:

  1. Como questão prévia, a Requerida informa que os Serviços da AT anularam parcialmente o montante liquidado, atendendo à qualificação de "não residentes" dos Requerentes, sem que, contudo, indique em concreto qual o montante anulado. Prosseguindo:
  2. Antes de mais, saliente-se, que só com a comunicação da realização da celebração da escritura pública, a Autoridade Tributária teve conhecimento da transmissão.
  3. Sendo certo que, nem a existência do contrato promessa lhe foi comunicada, nem a lei lhe exige e nem seria possível apurar a existência de contratos promessa em que se verificasse a tradição ou posse do imóvel ou do direito.
  4. Consultado o sistema informático do património da AT (Modelo 11), constata-se que a outorga do contrato-promessa (em que a mãe do requerente era promitente vendedora) não foi comunicada à Autoridade Tributária.
  5. Como tal, não poderá considerar-se a pretensão do requerente, isto é, que o imóvel foi alienado em 2017 através da outorga de contrato promessa de compra e venda com tradição do bem. Aliás, os adquirentes não solicitaram, nessa data, o pagamento do IMT, tendo o mesmo sido liquidado, isso sim, na data da celebração da escritura (conforme se comprovou por consulta ao sistema informático do património da AT).
  6. Acresce que, consultado o sistema informático do património, se constata que o imóvel permaneceu na titularidade do requerente, para efeitos de IMI, até à data da outorga da escritura (2020AGO18), estando antes disso em nome de “C...”, mãe do requerente (e não em nome do comprador desde 2017).
  7. Ademais, a posse do bem (prédio rústico, melhor identificado nos autos) por parte do comprador em data anterior à outorga da escritura (e também anterior ao contrato-promessa) é titulada por contrato de arrendamento rural.
  8. Quer isto dizer que a empresa compradora do imóvel tinha a posse do bem devido a esse contrato de arrendamento rural e não por causa do contrato-promessa.
  9. E comprou o imóvel em 2020, como arrendatária, como se pode verificar por consulta à escritura de compra e venda:

“DISSERAM, AINDA, EM CONJUNTO:

Que por contrato celebrado em dezoito de maio de dois mil e dezassete, a área correspondente à Parcela Destacada foi dada em arrendamento à sociedade representada pelo segundo outorgante, tendo o referido contrato perdurado até à presente data, razão porque esta adquire enquanto arrendatária.”

  1. Ou seja, não houve transmissão da posse do imóvel por efeito da celebração do contrato-promessa, mas sim derivado do contrato de arrendamento rural.
  2. Não terá, pois, aplicação ao caso presente, o disposto na alínea a) do n.º 3 do artigo 10º do Código do IRS.
  3. Assinale-se, também, que a convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato traduz-se no emitir declarações de vontade negocial coincidentes com o clausulado no contrato prometido.
  4. O contrato prometido (contrato futuro) só fica cumprido com a conclusão do negócio e não com a outorga da promessa.
  5. Esta mais não é do que um pré-contrato (ato preparatório e instrumental) do negócio final.
  6. O contrato-promessa considera-se cumprido quando celebrado o contrato prometido, ou seja ficando assim realizadas as prestações pretendidas.
  7. Há, então uma função solutória do pré-contrato que mais não serviu como contrato de segurança ou garantia para preparar e acautelar a outorga do contrato final.
  8. O contrato promessa tem uma vocação transitória, e na relação de dependência, ou instrumentalidade, com o contrato prometido, desaparece do universo jurídico com a celebração deste.
  9. Pelo exposto, não poderá deixar de considerar-se que a alienação foi efetuada em 2020 e não em 2017 como alegado e pretendido pelo requerente.
  10. Ou seja, celebrar-se-iam contratos promessa não comunicados à Autoridade Tributária, aguardar-se-ia pelo decurso do prazo de caducidade para outorgar a escritura (contrato definitivo) e lesar-se-ia o Estado com o não pagamento de impostos em detrimento dos demais sujeitos passivos cumpridores dos seus deveres tributários
  11. Ora, não foi, seguramente, para esse efeito que foram criadas as normas tributárias postas em crise nos presentes autos.
  12. Inexistirão, pois, quaisquer violações de "princípios basilares em que assenta a tributação das pessoas singulares"
  13. Em face do exposto e atenta a sua conformidade com o quadro legal vigente, devem os atos ora impugnados manter-se na ordem jurídica.

 

 

 

  1. Apreciação da questão

 

     O Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, antes, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e distinguir a matéria provada da não provada, tudo conforme o disposto nos artigos 123.º, n.º 2, do CPPT e 607.º, n.ºs 3 e 4 do CPC, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT. 

    

     A Requerente invoca, em primeiro lugar, como inquinando de ilegalidade da liquidação de IRS que impugna, o vício de falta de erro nos pressupostos de facto e de direito sobre o facto tributário. No entanto, face aos factos dados como provados, considera este Tribunal que, antes do mais, deve analisar-se se se está perante uma situação de existência ou inexistência de facto tributário na configuração que o ato tributário lhe atribuiu, nomeadamente ao colocar o Requerente, A..., a ocupar a posição passiva (qualificando-o como sujeito passivo) na relação jurídica tributária que por via da verificação daquele se constituiu. Vejamos.

 

     Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 3 do artigo 10.º do Código do IRS (CIRS) constitui exceção ao disposto no corpo da norma - os ganhos consideram-se obtidos no momento da prática dos atos previstos no n.º 1 - a transmissão nos casos de promessa de compra e venda nos termos seguintes:

 

Nos casos de promessa de compra e venda ou de troca, presume-se que o ganho é obtido logo que verificada a tradição ou posse dos bens ou direitos objeto do contrato.

 

     É unânime na jurisprudência e na doutrina que a constituição do facto tributário ocorre, pois, normalmente, na prática dos atos (transmissões onerosas, que podem ou não ter de ser formalizadas em documento particular ou em escritura pública, suscetíveis de gerarem mais valias), independentemente de o pagamento da contraprestação se verificar logo, posteriormente, ou em modo fracionado. É paradigmático a este propósito todo o Acórdão do TC n.º 100/2022, de 3 de fevereiro, de que se respigam os segmentos seguintes, por centrais e incontornáveis:

 

O artigo 10.º, n.º 3, na redação à data e a respeito de mais-valias, possuía por conteúdo: "os ganhos consideram-se obtidos no momento da prática dos atos previstos no n.º 1", localizando de forma inequívoca a data da verificação do facto tributário no momento da transmissão da participação social («b) alienação onerosa de partes sociais»).  Foi em face da transparência do preceito, por entender que a solução legal era incontornável e que impunha se tivesse a mais-valia como obtida na data da convergência de declarações de vontade à cessão d participação social (com inerente efeito translativo, ex vi artigo 408.º do n.º 1 do Código Civil, que o Tribunal «a quo» se dedicou a analisar a compatibilidade dessa solução legal com o princípio da capacidade contributiva.

...

 

Exigir, como se pretende na sentença recorrida, que a compaginação constitucional da tributação da mais-valia dependesse, ainda e também, do recebimento do preço pela alienação do ativo valorizado, significaria gerar maior desigualdade relativa entre contribuintes e classes de rendimentos e, nos casos em que fosse aguardado o diferimento do preço, a dilação da tributação equivaleria a uma forma de financiamento público.

 

     É certo que, no caso dos autos, não se coloca a questão do posterior pagamento do preço acordado no CPCV, uma vez que, como nele se refere, o preço ficou integralmente pago no momento da respetiva celebração, com a soma da importância paga nessa data pelo promitente comprador com as rendas por ele já pagas e que foram convoladas em pagamento de sinal e preço.

 

     Mas a transcrição do Acórdão do TC antes efetuada permite afirmar, fundamentadamente, que o facto tributário, e a consequente exigibilidade do imposto, também ocorreu no momento da celebração do CPCV, como se prevê na al. a) do n.º 3 do artigo 10.º do CIRS que constitui em si mesmo uma norma de incidência condicionada pela verificação da tradição ou posse do bem que é objeto do contrato[2].

 

     Considerando a natureza presuntiva do disposto na alínea a) do n.º 3 do artigo 10.º do CIRS e tendo por base a insusceptibilidade de presunções inilidíveis em matéria de incidência tributária nos termos do disposto no artigo 73.º da LGT, teria a Requerida possibilidade de a ilidir. Ou seja, teria a possibilidade legal de provar que não houve posse com o CPCV e, assim, modificar o pressuposto temporal do facto tributário, diferindo-o para o momento da prática do ato translativo da propriedade, a escritura pública de compra e venda.

 

     Mas não pode este Tribunal dar como provada essa elisão. Desde logo, porque a existência anterior à celebração do CPCV de um contrato de arrendamento rural, celebrado em 26-06-2016 e apresentado no Serviço de Finanças de Beja em 25-08-2016, é título bastante, pela sua própria natureza e porque, de acordo com a cláusula 1.ª, a senhoria "deu de arrendamento" e a arrendatária "recebeu" de arrendamento o prédio, isto é, a detenção do prédio foi, com o contrato de arrendamento entregue à locatária. Deste modo, o título pelo qual os adquirentes começaram a possuir o prédio e se mantiveram nessa posse foi, neste caso, o contrato de arrendamento. Esse título, qualificativo da posse, confere-lhes a qualidade de possuidores em nome alheio, já que é pelo título que se afere da relação do possuidor com a coisa, como se decidiu no Supremo Tribunal de Justiça (STJ) no Acórdão de 24-06-2010, Processo n.º 106/06.2TBFCR.C1.S1.

 

     Ora, não se mostra provado que, na data da celebração do CPCV, o prédio tivesse sido devolvido à locadora, pelo contrário, manteve-se na posse do locatário, mas agora com outro título, embora igualmente de natureza meramente obrigacional, uma vez que as partes não atribuíram ao contrato eficácia real. O que se verifica, pois, quanto à posse, é uma mera modificação da natureza do título que a permite. Mas, em termos fiscais, a situação modifica-se substancialmente, porque, como se viu, com a celebração do contrato promessa de compra e venda e a manutenção da posse do terreno, verificou-se a previsão, e correspondente estatuição, da alínea a) do n.º 3 do artigo 10.º do CIRS.

 

     A escritura pública, na parte em que é transcrita pela Requerida, e de harmonia com a qual o contrato de arrendamento teria perdurado até à sua realização, é manifestamente contrária à realidade dos factos dados como provados, uma vez que que, com a assinatura do CPCV a então arrendatária pagou integralmente o imóvel e, por outro lado, deixou de pagar rendas, nem tinha que as pagar - ou seja, as rendas vincendas entre a data da celebração do CPCV e a da celebração da Escritura de compra e venda, não constituíram, nem podiam constituir, qualquer crédito dos herdeiros da falecida perante a promitente compradora. Há, pois que considerar que a escritura pública faz prova plena sobre o que os outorgantes disseram, mas não sobre os factos em si mesmos - Acórdãos do STA de 24-11-1999, Processo 024124 e de 01-02-2005, Processo 066/04.

 

     O que a Requerida vem fazer não é elisão da posse. Os seus fundamentos dirigem-se à justificação do "desconhecimento, antes da escritura", da transmissão geradora do imposto, sugerindo objetivamente, que se tivesse tido conhecimento do CPCV e da posse do prédio, teria liquidado os impostos devidos. Mas tais fundamentos não têm qualquer base legal os serviços periféricos local e regional da Requerida, nem sequer após as informações prestadas pelos Requerentes no âmbito do procedimento de divergência que vem referido, em obediência ao princípio do inquisitório, procuraram encontrar a verdade material. Se o tivessem feito, teriam concluído que o facto tributário ocorreu na data da celebração do CPCV, e não obstante o contrato de arrendamento ter deixado de produzir quaisquer efeitos, a posse do prédio se manteve na esfera da ora promitente compradora. O que se traduziria em dar como comprovada a transmissão do prédio e a ocorrência do facto tributário naquela mesma data, em que a posição passiva da relação jurídica constituída com a verificação do facto tributário não podia deixar de ser, por ainda estar viva, ocupada por C... e em liquidar o imposto em conformidade, exigindo-se, também, os juros compensatórios e as coimas que se mostrassem devidos.

 

     A "continuação ou manutenção" da posse do prédio rústico, então já titulada pelo contrato promessa de compra e venda, não precisa de ser provada (precisaria de ser elidida) porque é uma presunção que neste caso beneficia os Requerentes e, inequivocamente, cumulada com a celebração do CPCV, dá origem imediata à verificação do facto tributário e à concomitante constituição da relação jurídica tributária.

 

     De facto, não existe qualquer obrigação legal de comunicar, pelos particulares, a extinção do contrato de arrendamento. As obrigações de comunicação à AT através da declaração modelo 11 estão cometidas a entidades públicas ou que tenham o poder de autenticar documentos. Por outro lado, como se colhe do seu teor, e porque legalmente o podem fazer, principalmente o CPCV, sem prejuízo de consagrar a sua execução específica, não tem as assinaturas reconhecidas por opção livre das partes.

 

     Não obstante, tem de sublinhar-se, pela análise crítica dos factos documentalmente provados, que havia, e eram do conhecimento da Requerida, muito antes da intervenção dos Requerentes no procedimento de divergência, indícios de que, ou o contrato de arrendamento se tinha extinguido, uma vez que a locatária deixou de emitir recibos de renda no "portal das finanças", como vinha fazendo, e tinha deixado de declarar rendas recebidas, ou, então, tinha havido uma alteração jurídica ao título que fundamentava a detenção/posse do imóvel pela promitente compradora. E esses indícios não foram, no exercício das suas competências e atribuições, objeto de qualquer tipo de controlo por parte dos serviços periféricos regionais ou locais da Requerida, não podendo tal omissão ser imputada aos Requerentes.

    

     Dispõe o n.º 1 do artigo 36.º da LGT que a relação jurídica tributária se constitui com o facto tributário. Isto é, os elementos objetivo e subjetivo do facto tributário - que no IRS é "o rendimento obtido por alguém, pessoa singular" (cfr. artigo 1.º do CIRS) - ficam determinados com o facto tributário e não podem deixar de integrar a relação jurídica tributária que com ele se constitui. E estes elementos não são modificáveis por vontade das partes, reforça o n.º 2 do citado artigo

    

     Nestes termos, o ato tributário aqui impugnado, ao modificar a posição subjetiva na relação jurídica tributária subjacente, não pode deixar de ser considerado um ato ilegal.

 

     A morte de uma pessoa não modifica, nem tem o poder de modificar, as posições subjetivas que, nas relações jurídicas tributárias, se tenham constituído em vida. O que a lei determina, em caso de morte, é uma modificação na responsabilidade tributária, tal como se dispõe no n.º 2 do artigo 29.º da LGT, "As obrigações tributárias originárias e subsidiárias transmitem-se, mesmo que não tenham ainda sido liquidadas, em caso de sucessão universal por morte, sem prejuízo do benefício do inventário" (negrito nosso).

 

     Ou seja, o Requerente, marido, nunca poderia ter sido demandado pela AT como devedor de imposto na qualidade de sujeito passivo de uma relação jurídica tributária que se tinha constituído na esfera jurídica da sua mãe, entretanto falecida, mas apenas como sujeito passivo responsável tributário pelas dívidas fiscais daquela, mesmo que não tivessem ainda sido liquidadas e estivessem em tempo de o ser, como era o caso (à data em que a divergência foi notificada ao Requerente e aos elementos fornecidos no respetivo procedimento), efetivando-se a responsabilidade por reversão no processo de execução fiscal.

 

     Assim, não apenas se verifica o vício do erro sobre os pressupostos de fato e de direto do ato tributário, que os Requerentes invocam, como se poderia aqui, com propriedade, invocar a inexistência de facto tributário, suscetível de gerar a nulidade do ato de liquidação ora impugnado - neste sentido, CASALTA NABAIS, José, A Centralidade do Facto Tributário e a sua Limitada Consideração, Por um Estado Fiscal Suportável - Estudos de Direito Fiscal - Volume VI, Almedina, Coimbra, 2022, pp. 177 e ss. e AVILEZ OGANDO, José, A Nulidade do Ato Tributário, Almedina, Coimbra, 2022, pp. 271/275.

 

     Por tudo o que vem de dizer-se, considera-se integralmente procedente o presente pedido de decisão arbitral.

 

 

 

  1. DECISÃO

            Nos termos e com os fundamentos expostos, este Tribunal decide anular integralmente a liquidação impugnada, com todos os efeitos legais.

 

 

  1. VALOR DO PROCESSO

       Os requerentes indicaram como valor da causa o montante de € 48.545,79, correspondente ao valor total da liquidação impugnada. A Requerida não contestou o valor. No entanto, informou o Tribunal de que a AT teria anulado o imposto liquidado aplicando a decisão do TJUE sobre o regime aplicável às mais-valias imobiliárias obtidas em território português por não residentes.

       Ora, tendo a decisão deste Tribunal sido ancorada em fundamentação diferente, não se vê razão para alterar o valor indicado pela Requerente e não contestado pela Requerida e fixá-lo em € 48.545,79.

 

 

  1. DAS CUSTAS

       Fixa-se em 2.142,00 € o valor das custas, a cargo da Requerida.

 

Notifique-se

 

Lisboa, 27 de fevereiro de 2023

 

O Árbitro singular,

 

(Manuel Faustino)

 

 

 

 



[1] O Tribunal, em face da leitura do acórdão referido, não confirma esta transcrição como uma posição do TCAS, mas como transcrição da alegação dos Recorrentes

[2] Daí que não possamos concordar nem seguir, embora tenha sido proferido por um Tribunal Superior em sede de recurso e como última instância, uma vez que contraria esta jurisprudência do TC (talvez porque, cronologicamente, tivesse sido proferido antes da prolação daquele, embora haja jurisprudência do mesmo Tribunal em sentido discordante), o Acórdão proferido pelo TCAS, no processo 671/07.7 BELRA, de 13-01-2022 que difere a verificação do facto tributário para o momento da realização da escritura de compra e venda, com fundamentos, aliás invocados aqui pela Requerida, mas que não podem proceder. Aliás, esta orientação foi de imediato descontinuada naquele mesmo Venerando Tribunal: v.g. os Acórdãos proferidos nos processos 936/11.3BELS e 409/20.3 BELRA.