Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 151/2022-T
Data da decisão: 2023-03-09  IRC  
Valor do pedido: € 90.023,86
Tema: IRC. Regime simplificado. Despesas não-documentadas e tributação autónoma. Vício de fundamentação.
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DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros Fernando Borges de Araújo (árbitro presidente), Jorge Bacelar Gouveia e Luísa Anacoreta (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 23 de maio de 2022, acordam no seguinte:

  1. RELATÓRIO
  1. A..., UNIPESSOAL, LDA., doravante designada “Requerente”, NIPC..., com sede na Rua ..., n.º ..., ..., ...-... ..., veio no dia 9 de março de 2022, ao abrigo dos artigos 2º n.º 1 alínea a), 5º n.º 3 alínea a), 6º n.º2 alínea a), 10º n.º 1 alínea a), todos do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprova o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”) e do artigo 102º nº 1, alínea a) do Código do Procedimento e Processo Tributário (“CPPT”), requerer a constituição de Tribunal Arbitral, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada por “AT”), com vista à declaração de ilegalidade e consequente anulação da demonstração de liquidação de IRC n.º 2021..., da demonstração de liquidação de juros n.º 2021 ... e da demonstração de acerto de contas n.º 2021... do ano de 2017, da demonstração de liquidação de IRC n.º 2021... e da demonstração de acerto de contas n.º 2021... do ano de 2018, e da demonstração de liquidação de IRC n.º 2021 ... e da demonstração de acerto de contas n.º 2021 ... do ano de 2019.
  2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 10 de março de 2022, sendo notificado à AT em 17 de março de 2022.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.° 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação em vigor, o Conselho Deontológico designou como árbitros do Tribunal Arbitral coletivo o Prof. Doutor Fernando Araújo como árbitro presidente, a Prof.ª Doutora Luísa Anacoreta e o Prof. Doutor Jorge Bacelar Gouveia, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 23 de maio de 2022 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação em vigor, o Tribunal Arbitral coletivo foi constituído em 23 de maio de 2022.

  1. Em suporte das suas pretensões alega a Requerente, em síntese:
  1. Em processo de inspeção tributária foram efetuadas correções para efeitos de IRC aos anos de 2017, 2018 e 2019.
  2. Na sequência de dita inspeção, a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) procedeu à emissão das liquidações de IRC de 2017, 2018 e 2019 supra identificadas.
  3.  As correções efetuadas pela AT são duas: no coeficiente do regime simplificado a aplicar e nas saídas de caixa que foram consideradas despesas não documentadas, sujeitas a tributação autónoma.

Quanto ao coeficiente do regime simplificado:

  1. A Requerente celebrou, em 27 de maio de 2006, um contrato (adiante apenas contrato inicial) com a sociedade B..., SA, pessoa coletiva n.º..., do qual consta a seguinte cláusula:

“1.1. Pelo presente Contrato o Franquiador concede ao Franquiado pelo prazo que adiante se indica, o direito, a licença e a franquia (doravante a Franquia ) para:

  1. Adoptar e utilizar o Sistema ... exclusivamente no estabelecimento comercial situado na Avenida ..., loja ..., na cidade de Famalicão, com uma superfície total de 35 m2 (de aqui em diante o “Estabelecimento”) e em consequência: o Franquiado não poderá desenvolver nenhuma parte do Sistema ... em nenhum outro local para além do Estabelecimento sem o prévio consentimento do Franquiador.
  2. Anunciar ao público a sua condição de franquiada do Franquiador;
  3. Adoptar e utilizar, unicamente em relação à venda dos Produtos ... que tenham sido designados pelo Franquiador, os nomes comerciais e as marcas comerciais e de serviços que o Franquiador designará como integrantes do Sistema ... .”  
  1. Em 1 de outubro de 2013, foi celebrado um aditamento ao contrato inicial, tendo em vista uma “melhoria na gestão de stocks”, do qual resulta “uma divisão do produto da venda”, mantendo-se, não obstante, a qualificação do contrato subjacente como contrato de franquia ou franchising.
  2. O objeto da Requerente é o seguinte: comércio, importação, exportação e representação de artigos de vestuário, acessórios de moda, calçado, têxteis-lar, cosméticos, artigos de perfumaria e artigos de marroquinaria.
  3. Os funcionários da empresa são trabalhadores por conta de outrem, com categorias de empregados de balcão, cumprindo horário comercial. No cumprimento das suas funções, atendem ao balcão, mostram a roupa aos clientes finais, encomendam peças, aceitam trocas e devoluções, recebem pagamentos dos clientes finais e recebem formação sobre vendas. A gerente trabalha também na loja e executa o mesmo tipo de funções.
  4. Antes do aditamento ao contrato inicial era comum haver ruturas de stock na esfera da Requerente. Ao alterar a gestão das vendas, foi possível aceder diretamente aos stocks do franquiador e fazer uma gestão mais eficiente das encomendas, reduzindo o tempo de espera, tornando as trocas mais eficientes e deixando o cliente final mais satisfeito.
  5. A AT concluiu que a Requerente obteve rendimentos previstos na tabela do artigo 151º do Código do IRS, mais concretamente no código 1319 – comissionistas.
  6. O comissionista é o agente que, no quadro de um contrato de representação comercial (ou de agência), e com poderes de representação, se obriga a prospetar, agenciar, promover e comercializar, em nome e por conta do principal, sendo remunerado através de comissões determinadas em certa percentagem dos valores das operações.
  7. A Requerente não tinha poderes de representação, não estava obrigada a prospetar, não agenciou, não promoveu e não agiu em nome e por conta do principal.
  8. Assim, alega a Requerente, a sua atividade não é uma atividade de comissionista.
  9. A Requerente procedeu, nos anos em questão, à venda de bens, mais concretamente vestuário, calçado e acessórios, na sua loja, devendo ser tributada pelo coeficiente das vendas (0,04), para efeitos de regime simplificado de tributação em sede de IRC.
  10. Não deve, portanto, ser aplicado o coeficiente das prestações de serviços de 0,75, já que a Requerente não presta serviços, não é comissionista.

Quanto às despesas não documentadas:

  • Os valores contabilizados na conta 27802 – gerência por contrapartida da conta caixa, em 2017, 2018 e 2019, dizem respeito a empréstimos/mútuos feitos pela sociedade à gerente C..., conforme contratos celebrados em data oportuna.
  • Os empréstimos foram feitos no interesse da sociedade e sujeitos a juros à taxa legal, deles constando que “a gerente se encontra numa situação de insolvência, recebe o salário mínimo, e é fundamental para a imagem da sociedade que a gerente possa pagar os compromissos pessoais junto de credores para não incumprir com o plano fixado pelo tribunal”.
  • A existência de contratos de mútuo consubstancia-se em prova documental da natureza da operação, da qual se identificam os destinatários e fins para que revertem as saídas de dinheiro e, assim, tais saídas de dinheiro não se consubstanciam em despesas não documentadas conforme invoca a AT.
  • A gerente foi declarada insolvente no âmbito processo n.º .../...1T8VNF que correu termos na 2ª secção de Comércio do Tribunal Judicial de Vila Nova de Famalicão.
  • A gerente não procedeu ainda à devolução dos empréstimos, pois não o faz antes de exonerado o seu passivo, uma vez que, se o fizesse, ficaria em situação ilegal de favorecimento de credores.
  • O incumprimento das obrigações da gerente perante terceiros como supermercados, escola, AT, farmácia, e outros fornecedores, contamina a reputação da Requerente, prejudicando as vendas.
  • A gerente recebe apenas o salário mínimo e necessita de incorrer em despesas para assegurar a sua boa apresentação (como cabeleireiro, sapataria, modista) que são essenciais para que continue a interagir com clientes e a promover as vendas.
  • A Requerente tem confiança que, uma vez ultrapassado o período de exoneração, a gerente possa começar a pagar as suas dívidas para com a sociedade.
  • O valor em causa não põe em causa a solvabilidade da empresa.

Quanto a um alegado vício de fundamentação:

  1. Considera a Requerente que recai sobre a AT o dever legal de fazer referência expressa aos factos e às disposições legais subjacentes ao ato de sua iniciativa, sendo que a fundamentação que não contenha esta referência é sempre insuficiente e tem por consequência a sua nulidade.
  2. Não consta do ato de liquidação qualquer fundamentação autónoma, de facto ou de direito, nem qualquer remissão expressa ou implícita para o relatório de inspeção que o antecedeu, muito menos que qualquer entidade haja assumido a responsabilidade de elaboração do ato de liquidação em conformidade com as conclusões do relatório de inspeção.
  3. Estando, por isso, inquinada de vício de forma a decisão sob contestação, nos termos do artigo 268.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP) e do artigo 77.º da LGT, devendo ser anulada em conformidade, de acordo com o disposto no artigo 163.º do Código de Procedimento Administrativo (CPA).
  4. Só fazendo expressa menção dos elementos elencados no referido n.º 2 do artigo 77.º da LGT se dará devido cumprimento à lei, não podendo por consequência, a AT omitir os elementos de facto e as disposições legais subjacentes aos atos de liquidação, prejudicando irremediavelmente a defesa do sujeito passivo.
  5. Conclui a Requerente que as liquidações de IRC resultam de:

- erro de qualificação das operações;

- excesso na quantificação da matéria tributável para efeitos de IRC;

- erro na fundamentação, já que do relatório de inspeção não constam razões que permitam fundamentar as correções efetuadas.

Pelo que, segundo a Requerente, devem ser anuladas as liquidações de IRC dos anos de 2017, 2018 e 2019, e as respetivas demonstrações de liquidação de juros e de acerto de contas.

  1. A AT apresentou resposta e juntou o processo administrativo, invocando em síntese,

Quanto à aplicação do coeficiente do regime simplificado:

  1. Em 1 de outubro de 2013 foi efetuado um aditamento ao contrato de franchising, sofrendo alterações o modelo de negócio da Requerente, nomeadamente:

- os produtos para venda passam a ser fornecidos em regime de consignação;

- o preço de venda ao público é fixado pelo franquiador;  

- o produto da venda é dividido em duas partes, uma de 36% que pertence ao franquiado e outra de 64% que pertence ao franquiador;  

- o franquiador instala na loja um terminal de pagamento automático (TPA) seu e o franquiado compromete-se a fazer todos os recebimentos, pagos pelos clientes por cartão de débito ou crédito, através desse TPA; 

- o franquiado passa a emitir um máximo de três faturas mensais correspondentes ao produto das vendas que lhe são imputáveis (36%). 

  1. Com o aditamento ao contrato, a Requerente deixa de adquirir as mercadorias vendidas na loja e de emitir faturas ao cliente final, sendo que os seus proveitos passam a ser determinados em função de uma comissão correspondente a 36% das vendas realizadas.
  2. A matéria coletável relevante para efeitos da aplicação do regime simplificado deve, assim, ser obtida através da aplicação do coeficiente de 75%, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 86.º-B do CIRC, uma vez que os rendimentos obtidos pela Requerente estão especificamente previstos na tabela do artigo 151.º do Código do IRS, mais concretamente no código 1319 – Comissionistas. 

Quanto à tributação autónoma sobre despesas não documentadas:

  1. A Requerente registou na conta “27802 – Gerência” diversos lançamentos a débito, suportados em documento interno sem identificação do destinatário, que tiveram como contrapartida a saída de dinheiro da conta “111 – Caixa”.
  2. Quando notificada para esclarecer estas saídas de dinheiro e apresentar documentos comprovativos, a Requerente respondeu que os valores em causa correspondem a empréstimos feitos pela sociedade à gerente, C..., NIF..., tendo apresentado contratos de mútuo para cada um dos anos e defendendo que tais empréstimos foram feitos no interesse da sociedade, estão sujeitos a juros e constituem prova documental da natureza das operações, não deixando dúvidas que a destinatária das saídas de caixa é a gerente.
  3. A conta “27802 – Gerência” já apresentava no início de 2017 um saldo de abertura de € 40.980,73, o que parece indiciar que a saída de dinheiro de caixa por contrapartida desta conta era prática usual. Nos três exercícios em causa, 2017, 2018 e 2019, não se encontra evidenciado qualquer reembolso dos empréstimos, nem o reconhecimento de quaisquer juros.
  4. A tributação autónoma das despesas não documentadas tem como fundamento a presunção da existência de rendimento que deixou de ser tributado, não só em sede de IRC como de IRS, podendo, por tal motivo, ser entendida como uma forma de, indiretamente e através da despesa, tributar o rendimento.
  5. Assim, deve-se entender, como se entendeu no processo arbitral n.º 486/2019 T do CAAD, que “as despesas não documentadas a que se refere o artigo 88.º, n.º 1, do CIRC reconduzem-se a saídas de meios financeiros do património da empresa sem um documento de suporte que permita apurar o seu destino ou o seu beneficiário”.
  6. A ser verdade que os empréstimos foram concedidos à gerente para esta fazer face aos seus compromissos pessoais junto dos credores, esta teria a todo o momento a possibilidade de juntar prova dos pagamentos efetuados, o que não fez, nem no decurso da inspeção, nem no exercício do direito de audição. 
  7. No presente pedido arbitral essas provas também não foram juntas e da consulta às dívidas à Autoridade Tributária, o dinheiro desses empréstimos não foi utilizado para saldar essas dívidas.
  8. A Requerente não logrou juntar documentos de suporte que permitam apurar o destino ou os beneficiários das saídas de meios financeiros da sociedade e, como tal, as mesmas devem ser consideradas despesas não documentadas, nos termos do n.º 1 do artigo 88.º do CIRC, e sujeitas a tributação autónoma à taxa de 50%. 

Quanto ao vício de falta de fundamentação:

  • A Requerente foi alvo de três inspeções tributárias, tendo sido notificada do respetivo relatório final, através do ofício n.º ... de 06/10/2021, no qual se podia ler, nomeadamente, o seguinte: “…Fica(m) por este meio notificado(s), nos termos do artigo 62º do RCPITA do Relatório de Inspeção Tributária, que se anexa como parte integrante da presente notificação, respeitante à Ordem de Serviço acima referenciada, das correções meramente aritméticas efetuadas à matéria tributável/ou imposto, sem recurso a avaliação indireta, cujos fundamentos constam do referido Relatório. A breve prazo, os serviços da AT procederão à notificação da liquidação respetiva, a qual conterá os meios de defesa. bem como o prazo de pagamento. se a ele houver lugar. Da presente notificação e respetiva fundamentação não cabe reclamação ou impugnação.” 
  • No RIT, a AT concluiu ser de efetuar correções à Requerente, nomeadamente em sede de IRC, cfr. “…São propostas correções à tributação autónoma, nos termos gerais e de natureza meramente aritmética como se descreve, fundamentada e calculada nos capítulos 111.2 deste relatório, no montante de 4.000,00€ no ano de 2017, 11.259,64€ no ano de 2018 e 11.250,00€ no ano de 2019”. 
  • Da leitura do RIT resulta claro e percetível o caminho percorrido pelos serviços de inspeção para efetuar as correções em causa que deram origem às liquidações impugnadas. 
  • E, resulta tanto do disposto no n.º 1 do artigo 77.º da LGT como do n.º 1 do artigo 63.º do RCPIT, que a fundamentação do ato tributário pode efetuar-se por remissão para o procedimento tributário. 
  • A fundamentação basta-se nos atos de liquidação em si mesmos, uma vez que estes remetem para as correspondentes ordens de serviço (OI), pelo que este vício não pode ser apontado. 

 

  1. SANEAMENTO
  1. O tribunal arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/01. 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se legalmente representadas (cfr. art.º 4.º e n.º 2 do art.º 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011 e art.º 1.º da Portaria n.º 112/2011, de 22/03). 

O processo não enferma de nulidades.

  1. DO MÉRITO

III.1- Matéria de Facto Provada

  1. Com relevo para a apreciação e decisão das questões suscitadas, dão-se como assentes e provados os seguintes factos: 
  1. A Requerente é uma sociedade por quotas que se encontra coletada pelo CAE 47711 - Comércio a retalho vestuário para adultos em estabelecimentos especializados.
  2. A Requerente foi notificada da demonstração de liquidação de IRC n.º 2021..., da demonstração de liquidação de juros n.º 2021 ... e da demonstração de acerto de contas n.º 2021 ... do ano de 2017, da demonstração de liquidação de IRC n.º 2021 ... e da demonstração de acerto de contas n.º 2021 ... do ano de 2018, e da demonstração de liquidação de IRC n.º 2021 ... e da demonstração de acerto de contas n.º 2021 ... do ano de 2019.
  3. As liquidações de IRC referidas em c) decorreram, como indicam, do procedimento de inspeção credenciado pelas ordens de serviço OI2021..., OI2021..., OI2021..., no âmbito do qual foi emitido Relatório Final de Inspeção Tributária, o qual foi remetido à Requerente.
  4. Da liquidação de IRC nº 2021 ... consta “Apuramento proveniente de liquidação do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) decorrente do procedimento de Inspeção, credenciado pela ordem de serviço n.º OI 2021... no âmbito da qual foi remetida a respetiva fundamentação, constante do relatório Final na Inspeção Tributária:
  5. Da liquidação de IRC nº 2021 ... consta “Apuramento proveniente de liquidação do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) decorrente do procedimento de Inspeção, credenciado pela ordem de serviço n.º OI2021... no âmbito da qual foi remetida a respetiva fundamentação, constante do relatório Final na Inspeção Tributária:
  6. Da liquidação de IRC nº 2021 ... . consta “Apuramento proveniente de liquidação do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) decorrente do procedimento de Inspeção, credenciado pela ordem de serviço n.º OI2021... no âmbito da qual foi remetida a respetiva fundamentação, constante do relatório Final na Inspeção Tributária:
  7. A Requerente, na qualidade de franquiado, celebrou em 1 de outubro de 2013, com o franquiador, um aditamento a um contrato de franchising previamente celebrado entre as mesmas entidades. Nos termos desse aditamento, a cláusula relativa ao pagamento dos produtos pelo franquiado ao franquiador foi suprimida, passando este, o franquiador, a instalar na loja do franquiado um terminal de pagamento automático destinado a registar todos os recebimentos de clientes. Passou, igualmente, a ser responsabilidade do franquiado fazer as reposições de produto em função das quantidades existentes. O produto da venda passou a ser repartido entre franquiador e franquiado na proporção de 64% e 36%, respetivamente.
  8. A Requerente optou pela utilização do regime simplificado de tributação em sede de IRC nos anos 2017, 2018 e 2019, tendo aplicado o coeficiente de 4%, correspondente a venda de mercadorias e produtos, em 2017, e 10% em 2018 e 2019, correspondente a prestações de serviços.
  9. Resultante do enquadramento da atividade da Requerente no conceito de comissionista, considerou a AT, para efeitos do regime simplificado de tributação, ser de aplicar nos exercícios acima referidos o coeficiente de 75%.
  10. Na contabilidade, a conta 27802 Gerência evidencia saídas de dinheiro registadas nos valores de 8.000 euros, 22.519,27 euros e 22.500 euros em 2017, 2018 e 2019, respetivamente, sem que seja feita qualquer referência a contratos de mútuo celebrados entre a sociedade e a gerente, ou qualquer outra referência que justifique as saídas de dinheiro.
  11. A Requerente apresentou contratos de mútuo celebrados com a gerente C... nos valores de 8.500 euros, 22.500 euros e 22.500 euros, todos sujeitos ao vencimento de juros, com datas de 2 de janeiro de 2017, 3 de janeiro de 2018 e 2 de janeiro de 2019, respetivamente.
  12. Na contabilidade não há registo, nos anos em apreço, de quaisquer juros relativos a contratos de mútuo celebrados entre a sociedade e a gerente.
  13. Nos contratos de mútuo não foi utilizado um sistema de datação inequívoca da assinatura, nomeadamente, para os anos de 2018 e 2019, o processo de assinatura por chave móvel digital previsto no artigo 3ºA da Lei n.º 37/2014, de 26 de junho, introduzido pela Lei n.º 32/2017, de 1 de junho.
  14. Aquando da celebração de qualquer dos contratos de mútuo não liquidado imposto do selo.
  15. A celebração dos contratos de mútuo não esteve sujeita a deliberação em assembleia geral de sócios.
  16. C... assinou os contratos de mútuo na qualidade de primeira outorgante, representando a A... Lda e, também, de segunda outorgante, enquanto gerente da primeira.
  17. Em 9 de março de 2022 a Requerente apresentou o pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo.

 

III.2- Matéria de facto não provada

  1. Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos pela Requerente e no processo administrativo. 

III.3- Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

  1. Relativamente à matéria de facto, o tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artº 123º, nº 2 do CPPT, e artigo 670º, nº 3 do CPC, ex vi artigo 29º, nº 1, alíneas a) e e) do RJAT). Deste modo os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis das questões de Direito (ver artigo 596º do Código do Processo Civil e artigo 29º, nº 1, alínea e) do RJAT).

O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos junto à petição da Requerente, no processo administrativo junto pela Requerida com a Resposta, nos depoimentos das testemunhas e na posição das partes apreciada pelo Tribunal segundo a sua livre convicção.

 

Cumpre apreciar e decidir.

 

III.4.  Do Direito

III. 4.1 Dos coeficientes aplicáveis ao abrigo do regime simplificado de IRC

O regime simplificado de determinação da matéria coletável em sede de IRC, previsto nos artigos 86.ºA e seguinte do CIRC, é aplicável, por opção, a sujeitos passivos residentes, não isentos nem sujeitos a um regime especial de tributação, que exerçam a título principal uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola, e cuja atividade empresarial seja de pequena dimensão, cumprindo os critérios estabelecidos para esse efeito.

Nos termos do referido regime, a matéria coletável resulta da aplicação de coeficientes específicos a cada tipo de rendimento gerado pelas entidades abrangidas. Daqui resulta que, a lei presume os gastos incorridos pelas empresas, aceitando como reais os rendimentos por ela gerados e utilizando-os como proxy da geração de lucro.

Os coeficientes a aplicar a cada tipo de rendimento gerado pelos sujeitos passivos que, cumprindo os critérios, tenham optado pela tributação pelo regime simplificado encontram-se previstos nas diferentes alíneas do nº1 do artigo 86.º-B do CIRC, cujas alíneas a), b) e c) aqui se transcrevem dada a relevância que assumem para a presente análise (sublinhado nosso):

CIRC - Artigo 86ºB

Determinação da matéria coletável

1 - A matéria coletável relevante para efeitos da aplicação do presente regime simplificado obtém-se através da aplicação dos seguintes coeficientes:

a) 0,04 das vendas de mercadorias e produtos, bem como das prestações de serviços efetuadas no âmbito de atividades de restauração e bebidas e de atividades hoteleiras e similares, com exceção daquelas que se desenvolvam no âmbito da atividade de exploração de estabelecimentos de alojamento local na modalidade de moradia ou apartamento

b) 0,75 dos rendimentos das atividades profissionais especificamente previstas na tabela a que se refere o artigo 151.º do Código do IRS

c)  0,10 dos restantes rendimentos de prestações de serviços e subsídios destinados à exploração;

     (…)

(…)

 

Por seu lado, da lista de atividades constantes da Tabela que se refere a alínea c) do nº 1 do artigo 151.º do Código do IRS consta, na verba 1319, a atividade de “comissionistas”.

Em 1 de outubro de 2013, a Requerente, como forma de otimizar o seu modelo de negócio, evitando perda de vendas por rutura de stocks e gastos acrescidos por acumulação de stock não vendido, celebrou com o seu franquiador uma adenda, nos termos da qual passaria a ser o franquiador a assumir a reposição de stock consoante o comportamento das vendas, como também a receber diretamente dos clientes destinatários finais dos artigos o valor correspondente ao preço. Periodicamente o franquiado passaria a emitir fatura ao franquiador pela parte das vendas que lhe caberia, conforme o critério de repartição de vendas acordado. A adenda ao contrato revelava-se, no contexto, no interesse do franquiador, na medida em que permitia eliminar o risco de crédito sobre o franquiado, e também no interesse do franquiado, que viu eliminado o risco de investimento em inventários, ainda que, por via da cláusula 5.6 do contrato de franquia em vigor, tivesse direito, em determinadas circunstâncias, a troca de inventário não vendido por inventário novo, o que, per si, já fazia diminuir o referido risco.

Conforme consta do Acórdão de 13 de novembro de 2013, do Tribunal da Relação do Porto, Processo nº 0331642, citando Pinto Monteiro (1998)[1], e Pestana de Vasconcelos (2000)[2], “um contrato de franquia, ou franchising, pode definir-se como o contrato mediante o qual o produtor de bens e/ou serviços concede a outrem, mediante contrapartidas, a comercialização dos seus bens, através da utilização da marca e demais sinais distintivos do comércio do primeiro e segundo o plano, método e diretrizes prescritas por este, que lhe oferece conhecimentos tecnológicos e regular assistência”.

Por seu lado, conforme sintetiza o Acórdão de 12 de janeiro de 2015, do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo 1300/12.2TVLSB.L1-1, o contrato de franquia evita para o franquiado encargos com a definição do modelo de negócio e desenvolvimento de estudos de mercado e de conhecimento dos clientes, sendo que o franquiador escapa a riscos de investimento e despesas de controlo de uma rede de agências instaladas longe da sede, além de que controla a concorrência em cada área de ação dos franquiados, impedindo a concorrência desleal. O modelo da franquia, continua o referido Acórdão, reparte os direitos que normalmente pertenceriam a uma empresa comercial, ficando alguns deles no franquiador e outros no franquiado. Esta repartição de direitos conduz a da uma melhor gestão do risco e a um contacto mais direto com a clientela local, tudo decorrendo dos benefícios da rede da franquia e da marca comercial. Este resultado seria mais caro de obter com uma empresa única com várias lojas abertas ao público[3].

Como se verá, com o aditamento de 1 de outubro 2013 ao contrato inicial, celebrado em 27 de maio de 2006, não foram eliminadas características próprias de um contrato de franchising, como as que se expõem em seguida, seguindo a compilação apresentada por Vieira de Oliveira (2014)[4],

  • “O franchising é um sistema de comercialização
  • O contrato de franchising pressupõe uma relação de estreita colaboração entre as partes
  • Ambas as partes têm autonomia jurídica e financeira
  • Há a incorporação do franquiado numa rede homogénea. Para que se dê esta incorporação, o contrato de franchising, normalmente, inclui:
  • A transmissão do direito de explorar a imagem de marca do franquiador ao franquiado.
  • A concessão de licenças de uso de marcas e de uso de outros sinais distintivos do franquiador ao franquiado, com a correspetiva obrigação de uso efetivo.
  • A transmissão de saber-fazer do franquiador ao franquiado.
  • A obrigação do franquiador prestar assistência técnica ao franquiado.
  • A obrigação do franquiado suportar um controlo do franquiador e o dever de este o exercer.
  • A existência de uma contrapartida pecuniária paga pelo franquiado ao franquiador”.

 

Da análise efetuada ao contrato em vigor após a adenda de 2013 decorre, como se disse, que se mantém caraterísticas próprias de um contrato de franchising. Com efeito, atento o considerando:

“O Franquiador desenvolveu um sistema de comercialização para a venda e distribuição de calçado, roupa e acessórios de alta qualidade, sob um formato e um método de negócio próprios e distintivos (de aqui em diante o “Sistema ...").”

 

Prevê o clausulado:

“1.1 Pelo presente Contrato o Franquiador concede ao Franquiado, pelo prazo que adiante se indica, o direito, a licença e a franquia (doravante a "Franquia") para:

  1. adotar e utilizar o Sistema ... exclusivamente no estabelecimento comercial situado na ..., loja ..., na cidade de Famalicão, com uma superfície total de 35 m2 (de aqui em diante o "Estabelecimento") e em consequência o Franquiado não poderá desenvolver nenhuma parte do Sistema ... em nenhum outro local para além do Estabelecimento sem o prévio consentimento do Franquiador. 

b) anunciar ao público a sua condição de franquiada do Franquiador;

c)  adotar e utilizar, unicamente em relação à venda dos Produtos ... que tenham sido designados pelo Franquiador, os nomes comerciais e as marcas comerciais e de serviços que o Franquiador designará como integrantes do Sistema ... .

(…)

 

5.1. O Franquiador cede ao Franquiado o uso da exploração das Marcas nos Produtos que lhe fornece e nos quais aquelas vêm já apostas, para utilização no Estabelecimento e sem prejuízo do disposto na Cláusula referente à Publicidade.

5.2. O Franquiador obriga-se a fornecer ao Franquiado os Produtos de acordo com os termos e condições gerais de venda. Porém, o Franquiador não responderá pela falta de fornecimento devido a causas que não lhe sejam imputáveis.

(…)

5.7. O Franquiador prestará apoio ao Franquiado em relação à abertura e lançamento da atividade, mantendo após a abertura um apoio periódico no que respeita ao funcionamento do Estabelecimento. O Franquiador comunicará ao Franquiado o seu know-how e orientá-lo-á quanto à gestão, financiamento, promoção, métodos operativos e demais elementos relativos ao Sistema ... . 

5.8. O Franquiador facultará ao Franquiado as especificações necessárias para a apresentação interior, mobiliário e instalações do Estabelecimento, prestando-lhe igualmente assistência e apoio em relação à configuração e adaptação das suas instalações, bem como para mobilar o Estabelecimento.

(…)

6.3. O Franquiado deverá manter em todo o momento o interior e o exterior do Estabelecimento em perfeito estado de decoração, reparação e limpeza. 

6.4. O Franquiado deverá realizar a montagem do Estabelecimento com a cooperação do fornecedor do mobiliário, das instalações e dos elementos decorativos ... designados pelo Franquiador e de acordo com a estimativa de gastos adotada que se junta em anexo ao presente Contrato (Anexo 3); o Franquiado suportará todos os gastos da instalação e montagem do Estabelecimento e pagará diretamente ao dito fornecedor. Porém, o Franquiado poderá designar livremente os encarregados da obra do Estabelecimento.

6.5. O desenho do Estabelecimento, incluindo o mobiliário, as instalações, a decoração, os mostruários e os acessórios, deverão ser conforme as normas de imagem do Sistema ... que serão fornecidos pelo Franquiador.

(…)

7.1. O Franquiador entregará ao Franquiado os manuais do negócio e restante material de preparação que contenha a informação detalhada sobre o Sistema ... (assim como qualquer alteração ou variação posterior a estes) incluindo:

a) especificações dos Produtos designados: as ditas especificações serão entregues em suporte magnético, quando este estiver disponível, compatível com o sistema informático do Franquiador;

b) as práticas e políticas comerciais;

c) outros critérios de gestão, publicidade e recrutamento de pessoal.

7.2. O Franquiado compromete-se a adotar e utilizar exclusivamente os métodos e critérios desenvolvidos nos manuais comerciais, tanto nos atuais, como nas posteriores modificações que o Franquiador possa inserir a todo o momento. 

(…)

8.1. Com o objetivo de permitir ao Franquiador proteger e preservar a sua imagem, o Franquiado só poderá utilizar o material e os programas publicitários e promocionais fornecidos e aprovados previamente pelo Franquiador.

8.2. O Franquiado deverá obter a aprovação prévia do Franquiador em matéria de promoção e liquidação dos Produtos e deverá cumprir as normas sobre montras e imagem do Franquiador.

(…)”

 

Conforme facilmente se depreende da análise do clausulado acima, o contrato mantém caraterísticas próprias de um contrato de franquia ou franchising, características essas que vão para além das que tipicamente caraterizam um contrato de comissão ou um contrato de agência. Conforme chama a atenção o já citado Acórdão de 12 de janeiro de 2015, do Tribunal da Relação de Lisboa (sublinhado nosso), “salvo diversa estipulação, o franquiador não assume o risco do negócio do franquiado, e não garante os resultados do investimento deste, mesmo quando apresenta uma previsão dos seus resultados”. Ora, o que se fez com a adenda de outubro de 2013, foi, como acima analisado, alterar o modelo de risco próprio de um contrato de franchising, transferindo-se para o franquiador o risco de gestão de inventário, por contrapartida da divisão do produto da venda na proporção de 64% para o franquiador e 36% para o franquiado. Esta repartição do produto da venda assemelha-se, efetivamente, a uma retribuição por comissão. Na verdade, o franquiado deixa de beneficiar de uma margem bruta entre o preço de venda e o preço de custo dos bens por si adquiridos para venda, para tão somente beneficiar de um proporcional do preço de venda, proporcional esse que fatura periodicamente ao franquiador.

A alteração substancial no risco associado ao modelo de negócio transforma o contrato formulado entre franquiado e franquiador num contrato “atípico”, com caraterísticas de contrato de franchising, mas também de agência. A manutenção das características próprias de um contrato de franchising obsta que este Tribunal encare a atividade do franquiado como mero comissionista, se bem que, na verdade, a eliminação do risco de investimento em inventário, com o afastamento da necessidade de proceder à compra de bens para posterior venda, alterando a remuneração da Requerente para uma retribuição por comissão, é suficientemente relevante para deixar de enquadrar essa atividade como mera “venda de mercadorias”.

Assim, e por ser atípico, o contrato celebrado pela Requerente após a adenda de 2013 não encontra enquadramento na alínea a) do n.º 1 do artigo 88ºB do CIRC, na medida em que a Requerente deixa de proceder à venda de bens por si adquiridos, nem na lista de atividades constantes da tabela anexa ao artigo 151º do CIRS, já que, embora remunerado por proporcional de venda, o mesmo contrato reflete demasiadas características próprias de franchising para a Requerente poder ser encarada como mero comissionista. Tal entendimento deve ter estado na base da alteração de procedimento da Requerente em 2018, ano em que passou a aplicar o coeficiente residual (10%) previsto na alínea c) do n-º 1 do já citado artigo 88ºB do CIRC ao seu volume de negócios, contrariamente ao que havia efetuado em 2017, ano em que aplicou o proporcional previsto na alínea a) (4%).

A AT não acompanhou este raciocínio, defendendo que a adenda de 1 de outubro de 2013 ao contrato inicial celebrado em 27 de maio de 2006 havia “transformado” a atividade da Requerente em “comissionista”, o que não se acolhe conforme acima exposto. Assim, considera este Tribunal que seria de aplicar nos 3 exercícios económicos em análise o coeficiente de 10% ao valor anual de rendimentos gerados pela Requerente, conforme previsto na alínea c) do nº 1 do artigo 88ºB do CIRC. Concorda-se, assim, com o defendido pela Requerente no que se refere aos valores apurados em 2018 e 2019, mas, no que se refere ao exercício de 2017, o IRC a liquidar deverá corresponder a 10% do valor dos rendimentos, e não a apenas 4% como calculado pela Requerente.

 

  1. 4.3 Da tributação autónoma sobre despesas não documentadas

Prevê o artigo 88º do CIRC que as despesas não documentadas são tributadas autonomamente à taxa de 50 %, sem prejuízo da sua não consideração como gasto fiscal.

Nos anos de 2017, 2018 e 2019 identificaram-se na contabilidade da Requerente saídas de caixa sem descrição suficiente que justifique a saída de fundos, nem tampouco a identificação no próprio registo contabilístico do documento de suporte da operação (apenas após pedido da AT foram enviados contratos de mútuo, como adiante se verá).

Na situação não está em causa o enquadramento fiscal a que se refere a segunda parte do preceito 88º do CIRC (não consideração como gasto fiscal), uma vez que a contrapartida das saídas de caixa não teve reflexo em resultados do exercício, mas tão somente na apresentação do património da Requerente. Mas, coloca-se a questão no que se refere à primeira parte do preceito, que foca a tributação autónoma de uma despesa, como o é uma saída de caixa[5], por falta de documentação de suporte.

Após identificar saídas de caixa sem que o documento interno de registo identificasse o beneficiário, a AT solicitou esclarecimentos à Requerente, que se prontificou a apresentar 3 contratos de mútuo, celebrados no início de cada um dos 3 anos, entre a sociedade e a sua gerente. Tais contratos foram assinados pela primeira outorgante,  C..., enquanto representante da Requerente na qualidade de gerente, e pela segunda outorgante, também C..., beneficiária do mútuo e, como já se disse, gerente da Requerente.

Trata-se de contratos que não “deixam rasto” na contabilidade, quer quanto a uma eventual menção no registo das saídas de dinheiro, quer quanto ao reconhecimento de juros por aplicação do princípio contabilístico da especialização dos exercícios. Trata-se de contratos em que ambas as partes são a mesma pessoa física, o que demonstra desde logo conflitos de interesses que deveriam ter sido acautelados. Trata-se de contratos não acompanhados de sistema inequívoco de datação, aliás, bem pelo contrário, pois nem sequer foi pago atempadamente o Imposto do Selo. Trata-se de contratos fora do objeto social da Requerente, a primeira outorgante. Trata-se de contratos suscetíveis de caírem no âmbito do artigo 261º do Código Civil, que refere que “é anulável o negócio celebrado pelo representante consigo mesmo, seja em nome próprio, seja em representação de terceiro, a não ser que o representado tenha especificadamente consentido na celebração, ou que o negócio exclua por sua natureza a possibilidade de um conflito de interesses”. Trata-se de contratos em que a titular da dívida, a segunda outorgante, se encontra em processo de insolvência. E, não obstante todas as caraterísticas atrás enunciadas, trata-se de contratos que, embora se diga que foram celebrados na defesa dos interesses da sociedade, não foram submetidos a aprovação em assembleia de sócios, não obstante o previsto no artigo 259º do Código das Sociedades Comerciais. Ora, que grau de confiança se atribui a estes contratos quanto aos vínculos que os mesmos traduzem?

Se fosse inequívoco que os contratos haviam sido celebrados no interesse da sociedade, tendo sido tomadas as precauções que tal se impunha para que fosse também inequívoca a dívida da gerente à sociedade, seria difícil invocar que as saídas de caixa não estavam documentalmente suportadas. Mas, a verdade é que os contratos aparecem apenas quando pedidos pela AT, como forma de justificação de saídas de caixa não documentadas, sob risco de tributação em 50%. Assim, considera este tribunal que os elementos de prova apresentados pela Requerente não são suficientes para serem identificados como o documento suporte que a lei fiscal exige para justificar as referidas saídas de caixa, pelo que, no que se refere a tributações autónomas, as considerações da AT merecem concordância.

Assim, a liquidação impugnada não enferma de erro sobre os pressupostos de facto ou erro sobre os pressupostos de direito, pelo que não se justifica a sua anulação. Improcede, assim, o pedido de pronúncia arbitral quanto a esta questão.

 

 

III. 4.3 Do vício de falta de fundamentação

A Requerente alega ter ocorrido falta de fundamentação, invocando a esse respeito os artigos 268º da CRP e 77º da LGT.

Em direito tributário a exigência de fundamentação decorre especialmente dos nºs 1 e 2 do artigo 77.º da LGT, que se transcrevem:

LGT - Artigo 77.º
Fundamentação e eficácia

1 - A decisão de procedimento é sempre fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram, podendo a fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem o relatório da fiscalização tributária.

2 - A fundamentação dos atos tributários pode ser efetuada de forma sumária, devendo sempre conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo.

(…)

 

Por outro lado, a exigência de fundamentação de atos administrativos lesivos consta do n.º 3 do artigo 268.º da CRP, segundo o qual “os atos administrativos estão sujeitos a notificação aos interessados, na forma prevista na lei, e carecem de fundamentação expressa e acessível quando afetam direitos ou interesses legalmente protegidos”.

Refere o Acórdão de 16 de setembro de 2020, do Supremo Tribunal Administrativo, processo n. 0921/15.6BEPRT: “I - Nas liquidações adicionais praticadas após procedimento de inspeção tributária, o ato de liquidação tem de ser analisado e interpretado em conformidade com o conteúdo do relatório de inspeção. II - Caso o ato de liquidação não contemple a referência expressa ao relatório de inspeção tributária, mas se verifique que o relatório de inspeção identifica cabalmente os factos tributários, os montantes sobre os quais incide o imposto, a taxa a aplicar e sustente a sua decisão na legislação aplicável, preanunciando ainda a emissão do ato de liquidação e a sua posterior notificação, e aquele ato venha a apresentar um conteúdo em tudo correspondente ao que resulta do relatório, tal é suficiente para que se considere preenchido, in casu, o dever de fundamentação do ato de liquidação”.

Conforme destacam Saldanha Sanches e Taborda da Gama (2006)[6], “A exigência de fundamentação (a exposição dos motivos por que se decidiu de um certo modo e não de outro) existe também como condição de racionalidade e de criação de condições materiais para o exercício das competências administrativas e judiciais de re-exame de uma decisão e de uma situação jurídica tributária”. Por força dessa dupla função, a jurisprudência tem concluído que a fundamentação deve cumprir as seguintes características (ver Acórdão do CAAD do Processo T-10/2018);

  1. Oficiosidade: deve partir sempre da iniciativa da administração, não sendo admissíveis fundamentações a pedido;
  2. Contemporaneidade: deve ser coeva da prática do ato, não podendo haver fundamentações diferidas ou supervenientes:
  3. Clareza: deve ser acessível e compreensível por um destinatário médio, evitando tecnicismos e ambiguidades, e mais ainda obscuridades, erros, contradições ou insuficiências, na enunciação dos pressupostos e, no que respeita à liquidação, na explicitação dos montantes calculados e das formas de cálculo;
  4. Suficiência ou plenitude: deve permitir identificar todos os elementos determinantes da decisão tomada (as disposições legais aplicáveis, a qualificação dos factos tributários, a quantificação dos factos tributários, as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo), e nomeadamente a justificação encontrada no quadro normativo – o domínio da legalidade –, e, quando intervenham margens de discricionariedade ou oportunidade, a motivação e as valorações prevalecentes.

Por outro lado, notificado que seja o sujeito passivo da fundamentação das correções em sede de procedimento de inspeção, não necessitam os atos de liquidação que se sigam de reproduzir novamente todos os fundamentos já invocados, devendo a nota de cobrança remetida ao sujeito passivo conter apenas os elementos próprios do ato de liquidação, ou seja a referência à decisão judicial objeto de execução / concretização[7].

Ora entende este Tribunal que as remissões expressas nas notas de liquidação, bem como nas ordens de serviços notificadas à Requerente são suficientes para que seja cumprido o dever de fundamentação que impende à AT. Considera-se, assim, que improcede o Pedido da Requerente no que a este ponto se refere.

  1. DO MÉRITO

Termos em que se decide neste Tribunal coletivo:

  1. Jugar procedente o pedido arbitral no que respeita à ilegalidade da liquidação de IRC (e juros compensatórios) nos anos de 2017, 2018 e 2019, por aplicação do coeficiente de 75% aos rendimentos da Requerente, em vez do coeficiente residual de 10%;
  2. Julgar improcedente o pedido arbitral no que se refere à anulação de tributação autónoma em IRC sobre despesas não documentadas efetuadas em 2017, 2018 e 2019, com a consequente manutenção da liquidação nesta parte;
  3. Julgar improcedente o pedido arbitral no que respeita ao alegado vício de falta de fundamentação.
  1. VALOR DO PROCESSO

De harmonia com o disposto nos artigos 296.º do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de €90.023,86 (noventa mil e vinte e três euros e oitenta e seis cêntimos).

  1. CUSTAS

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem no valor de €2.754,00, sendo 71% a cargo da Requerida e 29% a cargo da Requerente.

Lisboa, 9 de março de 2023

Os Árbitros

                  Fernando Araújo                 

                                                                Jorge Bacelar Gouveia

Luísa Anacoreta



[1] Pinto Monteiro (1998). Contrato de Agência. 3ª ed., pag. 50, Coimbra, Almedina

[2] Pestana de Vasconcelos (2000). O Contrato de Franquia. pag. 21 Coimbra, Almedina

[3] A este propósito, o Acórdão de 12 de janeiro de 2015, do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo 1300/12.2TVLSB.L1-1remete para Mackaay, E. (2021). Law and economics for civil law systems. Edward Elgar Publishing

[4] Vieira de Oliveira, S. (2014) O Contrato de Franchising - O Conteúdo Essencial do Contrato de Franchising, os Desvios ao seu Molde Típico e a Dependência Económica do Franquiado, Mestrado em Direito da Empresa e dos Negócios, Faculdade de Direito, Universidade Catolica Portuguesa.

[5] Ver, por exemplo, Processo do CAAD n.º 486/2019-T

[6] Saldanha Sanches, J.L. e Taborda da Gama, J. “Audição-Participação-Fundamentação: A Co-Responsabilização do Sujeito Passivo na Decisão Tributária”, in Homenagem José Guilherme Xavier de Basto, p. 290

[7] Sobre o vício de fundamentação, ver Declaração de Voto que acompanha o Processo 150/2018-T.