Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 372/2022-T
Data da decisão: 2023-02-22  IRS  
Valor do pedido: € 19.838,60
Tema: IRS - Importâncias pagas a título de compensação por deslocações, estadias e refeições, natureza compensatória vs. retributiva.
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SUMÁRIO:

  1. Em termos concetuais, as ajudas de custo, quando atribuídas pela pagadora do rendimento do trabalho dependente, constituem valores pagos por causa do trabalho, mas não o remuneram, tendo como objetivo a compensação pelos gastos em que o trabalhador tenha de incorrer por causa do trabalho e em benefício deste.
  2. Para ser clara a fundamentação constante do relatório de inspeção tributária, tinha que se mostrar capaz de criar no Tribunal a convicção de que as ajudas de custo pagas, quer a uma funcionária, quer aos administradores da empresa, não tiveram por finalidade a compensação de despesas realizadas com a sua efetiva deslocação ao serviço e no interesse da sua entidade patronal, o que não sucedeu.
  3. Provando-se a efetividade das deslocações, as quais, segundo as regras da experiência comum, implicam a criação de gastos adicionais, incumbia à AT demonstrar que os montantes pagos a uma funcionária e a administradores para compensação de gastos com deslocações, estadias e refeições foram independentes dessas deslocações, representando um ganho real para o trabalhador, o que não logrou fazer.

 

DECISÃO ARBITRAL

A árbitro Raquel Franco, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral, constituído em 30.08.2022, decide nos termos que se seguem:

 

            1. Relatório

 

A..., S.A., pessoa coletiva n.º..., com sede na Rua..., ..., ..., ..., ...-... Porto (doravante, a "Requerente"), vem apresentar pedido de pronúncia arbitral ao abrigo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 15.º e seguintes do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT) com vista à anulação das liquidações de IRS-RF e juros compensatórios respeitantes aos anos de 2009 e 2010, com os números 2013... e 2014..., nos montantes de € 11.729,16 e € 8.109,44 respetivamente, que foram objeto de reclamação graciosa e recurso hierárquico, cujo indeferimento foi notificado pela Direção de Serviços do IRS através de Ofício datado de 18.03.2022, remetido por via postal.

 

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por “AT” ou simplesmente “Administração Tributária”).

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 20.06.2022.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e na alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular a signatária, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

Em 09.08.2022, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação, nos termos conjugados das alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral foi constituído em 30.08.2022.

 

A Autoridade Tributária apresentou a sua Resposta em 30.09.2022, tendo pugnado pela manutenção na ordem jurídica do ato tributário impugnado e pela absolvição do pedido.

 

Por despacho de 04.10.2022, foi marcada a reunião a que alude o artigo 18.º, n.º 1, do RJAT para 17.11.2022, a fim de serem ouvidas as testemunhas indicadas pelas Partes. Através de requerimento apresentado pela Requerente a 13.10.2022, foi por esta solicitado que a reunião agendada para o dia 17.11.2022 fosse realizada nas instalações do CAAD no Porto, tendo, ainda, sido solicitado o aditamento de uma testemunha ao rol apresentado com o pedido de pronúncia arbitral. O Tribunal determinou, então, que fossem explicitados os factos a que as testemunhas deveriam responder, ao que a Requerente respondeu através de requerimento apresentado em 21.10.2022. Tendo em conta a necessidade de reagendamento da reunião face ao pedido da Requerente para que a mesma se realizasse nas instalações do CAAD no Porto, através de despacho de 08.11.2022, foi fixada nova data para 30.11.2022. Nessa data, teve lugar a reunião, tendo sido ouvidos os testemunhos, bem como as declarações de parte requeridos. Foi, ainda, fixado prazo para apresentação de alegações, o que a Requerente veio a fazer em 16.12.2022. A AT não apresentou alegações.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado na alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º, e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT e é competente.

 

As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

 

O processo não enferma de nulidades.

 

2. Matéria de facto

2.1 Factos provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

 

  1. A Requerente encontra-se coletada pela atividade principal de promoção imobiliária, CAE 41100.

 

  1. O apuramento do IRC baseia-se na contabilidade e a Requerente é tributada nos termos do Regime Especial de Grupos de Sociedades, sendo a Requerente a sociedade dominante e a B..., Lda., a sociedade dominada.

 

  1. São seus administradores, desde o ano de 1997, C..., D... e E... .

 

  1. A ora requerente foi alvo de ações inspetivas externas de âmbito geral, aos exercícios dos anos 2009 e 2010, ao abrigo das ordens de serviço nºs. OI20... e OI20... da DF do Porto.

 

  1. Os motivos das ações inspetivas, tal como descritos pela equipa de análise interna da Direção de Finanças, foram os seguintes factos:
    • Em 2007 iniciou a construção, num lote de terreno, inscrito na matriz sob o artigo ..., da freguesia de ..., que havia adquirido em 2000;
    • Aquele artigo deu origem ao artigo ..., composto por 59 frações, cujo prédio foi concluído em 2009 e iniciado a sua comercialização em 2010;
    • Até 07-07-2010 o sujeito passivo tinha vendido 14 frações, no valor total de €1.404.920,00;
    • Apresentou prejuízos fiscais nos anos de 2007, 2008 e 2009. Declarou na base tributável das declarações periódicas de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) o valor de € 1.579.260,77;

 

  1. Dos Relatórios de Inspeção consta que, no ano de 2009 (capítulo A.5.3.1.2 do relatório), se encontram contabilizados em diversas rubricas da conta 62227 – “Deslocações e Estadas”, valores pagos por cheque à funcionária F... e aos administradores D... e E..., relativos a Refeições, Viagens, Despesas com Hóteis, Deslocações, Alojamento, km’s e Passe.

 

  1. Consta ainda que “A funcionária F... é uma funcionária com funções administrativas e com domicílio fiscal em Matosinhos, e relativamente à qual, para além dos valores pagos, contabilizados na conta 64 – “Custos com o Pessoal”, relativos a salários e a subsídios de alimentação, se encontram ainda contabilizados valores pagos relativos a deslocações (kms) e refeições:

- na conta 622272321 – “Compen. Útil. Viat. Própria –Km’s – Com Mapa“ - € 2.568,47

- na conta 62227263 – “Pessoal – Almoços Pagos” - € 1.842,00”.

 

  1. No relatório da inspeção ao exercício de 2009 consta, no ponto A.5.3.1.2. a fls. 11/18 e 12/18, no que se refere aos valores contabilizados nas contas 622272321 –“Compen. Util. Viat. Própria – Km’s – Com Mapa” e 62227263 – “Pessoal – Almoços Pagos” relativos à funcionária F..., que se trata “de uma funcionária, com funções administrativas e com domicílio fiscal em Matosinhos, e que, para além dos valores pagos (…) relativos a salários e a subsídios de alimentação, encontram-se ainda contabilizados (…) valores pagos, respetivamente, de km’s e refeições (…) que atingem os montantes anuais, respetivamente, de € 2.568,47 e de € 1.842,00, cuja discriminação mensal consta do mapa de trabalho que se junta como documento 1.”

 

  1. De acordo com a AT, “o valor de € 1.842,00 diz respeito a almoços, pequenos-almoços e cafés, referindo o relatório da inspeção a 2009, no ponto A.5.3.1.2. a fls. 12/18, que estão documentadas com talões de caixa e vendas a dinheiro (sem identificação do cliente) de diversos estabelecimentos e diversas localidades (Aveiro, Gaia, Matosinhos, Sra. Da Hora, Vila do Conde, Lavra, Porto)”

 

  1. No que respeita ao valor de € 2.568,47, relativo às despesas com quilómetros, “encontra-se documentado com um mapa mensal, designado por «“Mapa Km’s (F...)”, contabilizado a partir do mês de abril, cujo descritivo é “casa/stand/casa” praticamente todos os dias do mês.»”

 

  1. No ponto B.2.1. do mesmo relatório consta que “Os factos descritos no A.5.3.1.2 do presente capítulo, comprovam o pagamento de valores à funcionária administrativa F... (…) que não são mais do que remunerações, embora contabilizadas como deslocações e estadas, as quais constituem rendimentos do trabalho – categoria A, por força do disposto no artigo 2º do CIRS (…).”

 

  1. Consta do relatório da inspeção a 2009, a fls. 9/18, a seguinte referência à construção, pela Requerente, de um empreendimento designado por “...”: “a construção deste empreendimento composto por 59 frações autónomas foi concluída em 25.07.2009 e que o mesmo se situa na Rua ..., nº ... e..., freguesia de..., Vila Nova de Gaia, a 650 metros do nó rodoviário de acesso à auto-estrada A1 (Porto-Lisboa) e à A44.”

 

  1. A partir de abril de 2009, a funcionária F... passou a dividir o seu horário de trabalho entre a sede da sociedade, sita à Rua ..., no Porto, durante o período da manhã, e o stand de vendas em Gaia, a partir das 14:30 e até às 18:00 de 2ª a 6ª feira, e aos Sábados e Domingos das 10:00 às 17:00 (conforme consta do anúncio publicitário ao “Edifício...” que foi junto como documento 8 ao direito de audição).

 

  1. Como contrapartida desta acumulação de funções, atenta a distância a que o stand de vendas ficava, quer do local de trabalho, quer da residência da funcionária, e uma vez que compreendia trabalho aos fins de semana, foi acordado entre a Requerente e a funcionária em questão que as deslocações para o stand e dali para casa, quer durante a semana, quer aos sábados e domingos, seriam efetuadas em viatura própria.

 

  1. A AT refere, na decisão que recaiu sobre o recurso hierárquico, que: “Mais acrescenta, no que diz respeito às despesas com almoços, pequenos-almoços e cafés, que, “não é apresentada qualquer justificação para as despesas terem sido efetuadas em diversos estabelecimentos e diversas localidades (…) quando estariam alegadamente em causa, deslocações para o stand de vendas em Vila Nova de Gaia.” e que “não se vislumbra a razão de serem pagos almoços de segunda a sexta feira, quando a funcionária só começaria a trabalhar no stand de vendas, alegadamente, a partir das 14H30m até às 18H00, ou seja, a deslocação não obrigaria a funcionária a almoçar fora do local habitual de trabalho (sede da empresa).”
  2.  
  3. No que se refere aos valores pagos aos administradores da Requerente e contabilizados em várias rubricas da conta 625 – “Deslocações, Estadas e Transporte”, relativos a refeições, viagens, hotéis, deslocações e alojamento são os que constam do seguinte quadro:

 

 

  1. Na conta 62227164 – “Administração - Viagens”, estão registados custos, relativos a uma viagem a Barcelona, realizada por D..., G... e H..., cujos documentos de suporte estão em nome da sociedade I..., S.A., no valor global de € 598,86, valor pago por cheque a D... .

 

  1. Nas seguintes contas, estão contabilizados valores pagos aos administradores, respetivamente, a D... e a E..., como refeições, cujos documentos de suporte são talões de caixa, recibos ou vendas a dinheiro, que não identificam a empresa, dizem respeito a despesas, de almoços, pequenos-almoços, jantares, cafés, etc, para mais do que uma pessoa, apresentam mais do que um documento de despesa por dia e de localidades diferentes:

•62227165 – “Administração - Refeições”;

•62227307 – “Empresas do Grupo - Refeições”;

 

  1. Nas restantes rubricas, supra identificadas, estão contabilizados como custos, valores de despesas apresentadas por D... e E..., relativas a diversas deslocações e viagens efetuadas, ao longo do ano, nomeadamente, ao Algarve, Serra da Estrela, Régua, Lisboa, Fátima e a Paris, bem como, as respetivas despesas de alojamento e hotel.

 

  1. Daqui concluindo a AT, em ambos os relatórios, que “Os factos descritos no [A.5.3.1.2 e A.4.3.1.3] do presente capítulo, comprovam o pagamento de valores (…) aos administradores D... e E..., que não são mais do que remunerações, embora contabilizadas como deslocações e estadas, as quais constituem rendimentos do trabalho – categoria A, por força do disposto no artigo 2.º do CIRS, estando o sujeito passivo obrigado a efetuar retenção na fonte de IRS (…).”

 

  1. No âmbito do acompanhamento a entidades diversas integradas pela Requerente, os seus administradores são chamados a reuniões, assembleias gerais, celebração de protocolos, etc., implicando a realização de deslocações e estadas a Lisboa (no caso da K... e da L...), Coimbra e Leiria/Fátima (no caso da L... e da M...), Chamusca/Almeirim (no caso da J...).

 

  1. Tanto o administrador D..., como o administrador E..., além de acompanharem o desenvolvimento imobiliário da sociedade no âmbito da promoção imobiliária, eram também administradores da J..., SA, em representação da A..., SA.,

 

  1. Motivo por que são chamados a representar a J... junto de diversas entidades do ramo da indústria cerâmica, como seja:

- A K..., SA, em que o administrador D... foi nomeado Membro do Conselho de Administração;

- A L..., na qualidade de Membro da Direção e Presidente do subsector da Cerâmica Estrutural e do Conselho Fiscal;

- O M...–..., na qualidade de Presidente do Conselho de Administração;

- O agrupamento complementar de empresas designado N..., ACE, na qualidade de Presidente.

 

  1. De acordo com a AT, os valores em falta de retenção na fonte de IRS e datas exigíveis da entrega são os seguintes:

 

 

  1. Na sequência de ações de inspeção aos anos de 2009 e 2010, a coberto das ordens de serviço OI20... e OI20..., e de acordo com as respetivas conclusões, foram emitidas as notas de liquidação de retenção na fonte de IRS 2009 e 2010, com os números 2013 ... e 2014 ..., nos montantes de € 11.729,16 e de € 8.109,44.

 

2.2 Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto

 

Não existem factos com relevo para a decisão que tenham sido considerados não provados.

 

2.3 Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

 

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), e 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT.

 

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto consolidada.

 

No que se refere aos factos provados, a convicção da árbitra fundou-se nas posições assumidas pelas partes nas respetivas peças processuais, na análise crítica da prova documental junta aos autos e, ainda, na prova testemunhal realizada em audiência.

 

3. Matéria de direito

 

3.1 Posições das Partes

 

A discussão entre as Partes nos presentes autos diz respeito à qualificação dos valores, pagos pela Requerente a uma funcionária (F...) e aos seus administradores, relativos a deslocações, viagens e refeições. A Requerente sustenta que os mesmos foram pagos como compensação por despesas que a funcionária e os administradores fizeram em benefício da sociedade, em situações em que tiveram que incorrer nessas despesas para poderem contribuir para a atividade produtiva da empresa. A AT contesta, afirmando que tais valores eram pagos para aumentar a retribuição paga às pessoas em causa em virtude do seu trabalho normal para a empresa e não em benefício específico desta, devendo ser consideradas como rendimento do trabalho dependente, o que implicava que tivessem sido sujeitas à correspondente retenção na fonte.

 

A Requerente entende que a fundamentação avançada pela AT não permite afastar o carácter compensatório inerente ao pagamento destas despesas e, assim, concluir que se trata de rendimentos do trabalho dependente.

 

Relativamente aos valores pagos a administradores, aduz os seguintes argumentos:

  1. atendendo às atividades efetivamente prosseguidas pela Requerente e previstas no seu objeto social – que compreendem tanto a gestão de participações sociais como a construção e o desenvolvimento de projetos imobiliários – bem como às Notas de Lançamento que precedem o pagamento destas despesas aos administradores em causa e estão subjacentes aos respetivos registos contabilísticos em contas apropriadas, verifica-se que se trata de despesas relacionadas com o exercício destas atividades e por essa razão registadas nas contas 62227307 – “Empresas do Grupo – Refeições”, 62227165 – “Administração – Refeições” e 62227 – “Deslocações e Estadas”,
  2. A AT não promoveu qualquer correção em sede de IRC a estes gastos, confirmando, assim, a sua relevância e indispensabilidade para a realização dos proveitos ou para a manutenção da fonte produtora, como se impunha, à data, no artigo 23.º do Código do IRC, confirmando que se trata de gastos relacionados com a prossecução das atividades desenvolvidas pela Requerente
  3. A prova de que se trata de despesas incorridas pelos administradores no interesse da Requerente e ao serviço desta extrai-se dos documentos que constam dos autos e que comprovam essa relação e do registo contabilístico que a Requerente lhes imprimiu, contabilizando-as como despesas da sua “Administração” e das “Empresas do Grupo” e, como tal, estritamente relacionadas com o exercício da sua atividade.
  4. É patente que se trata do reembolso de despesas incorridas pelos administradores da Requerente quer no âmbito do desenvolvimento da atividade imobiliária, quer da atividade cerâmica, por via da gestão da participação de capital detida na “J..., S.A.”, tal como estava ao alcance da AT comprovar e lhe competia fazê-lo em cumprimento do princípio do inquisitório enunciado no artigo 58º da Lei Geral Tributária, que impõe à AT o dever de «no procedimento, realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido».

 

A Requerente remete, ainda, para o Acórdão do TCASul de 04.06.2020, proferido no Proc. 15/14.1BEALM, em especial para o seguinte segmento:

«I. Em termos conceituais, as ajudas de custo, quando atribuídas pela entidade patronal, ou seja, pela entidade pagadora do rendimento do trabalho dependente, constituem valores pagos por causa do trabalho, mas não o remuneram, ela tem outros fins, designadamente a compensação pelos gastos a que o trabalhador careça de encarar, por causa do trabalho e em benefício deste. II – Para ser clara a fundamentação do relatório de inspeção tributária tinha que se mostrar capaz de criar no intérprete (julgador) a convicção de que as ajudas de custo pagas ao trabalhador (…), não tiveram por finalidade, a compensação de despesas realizadas com a sua efetiva deslocação ao serviço e no interesse da sua entidade patronal. (…)»

 

Relativamente às despesas pagas à funcionária F..., a Requerente aduz os seguintes argumentos:

  1. Ficou registado na Acta n.º 115, de 08.08.2008, que o Conselho de Administração da Requerente deliberou “explorar a hipótese de o mesmo [o stand de vendas] ficar sob a responsabilidade da F... com uma remuneração de 1% sobre vendas que venha a realizar e com a condição de assegurar o funcionamento do stand aos fins de semana.”, e dois (2) comprovativos de despesas com almoços ao fim de semana;
  2. Não há, assim, qualquer dúvida de que a funcionária F... estava ao serviço da Requerente enquanto exercia as funções de responsável pelo stand de vendas, e não por sua conta, pois foi nesse pressuposto que foi acordada a acumulação de funções de secretariado e de responsável pelo stand de vendas
  3. Por essa razão e conforme foi referido pela testemunha F..., só emitiu recibos de comissões em nome da Requerente e após o encerramento do stand de vendas cessou a atividade a que havia dado início exclusivamente com esta finalidade.
  4. Em audiência de inquirição de testemunhas e declarações de parte, foi confirmada esta realidade e referido que o local onde se situa o empreendimento imobiliário em V.N.Gaia é distante das paragens dos serviços de transportes públicos da zona e que o percurso em questão implicaria o transporte em três autocarros distintos, motivo por que foi acordada a utilização de viatura própria para o efeito. Foi ainda salientado que o percurso indicado nos mapas apresentados pela funcionária corresponde ao que era efectuado, de facto, uma vez que, durante a semana a funcionária ia a casa (em Matosinhos) buscar o carro para se deslocar para o stand da parte da tarde, deslocando-se para a sede da Requerente, da parte da manhã, através de transporte público e aos fins de semana fazia este mesmo percurso: casa/stand/casa ou Matosinhos/VNGaia/Matosinhos, tal como consta dos mapas.
  5. Para ilustrar o suporte documental do pagamento desta compensação, juntou sete mapas de quilómetros relativos a 2009 e 2010, através dos quais considera que se comprova que todos se encontram assinados pela funcionária F... e só o primeiro destes mapas, elaborado em Abril de 2009, foi preenchido à mão e sem indicação do seu nome (“F...”) no título do documento, que a partir daí passou a ser “MAPA KM (F...) – MÊS DE …” como resulta dos mesmos.

 

A AT sustenta que, relativamente às deslocações e estadas, as correspondentes despesas são suportadas por uma empresa quando se tratem de encargos com transporte, estadias e refeições suportadas com trabalhadores dependentes da empresa por motivos de deslocação destes fora do local de trabalho e mediante a apresentação de um documento comprovativo.

 

Ou seja, este tipo de despesa compreende os gastos de alojamento, viagem e alimentação efetuados por trabalhadores da empresa, ao serviço da mesma, fora do local de trabalho.

 

O documento comprovativo deverá ser uma fatura, em cujo verso deverá constar o nome do trabalhador e o motivo da despesa. Se não houver documento passado em forma legal, ou não for justificado o motivo da despesa e a identificação de quem a efetuou, o gasto não é aceite fiscalmente.

 

Ora, relativamente aos valores pagos à funcionária F..., refere a AT que os documentos apresentados consistem em talões de caixa e vendas a dinheiro dos quais não consta a identificação de quem efetuou a despesa, elemento essencial para se aferir da conformidade dos custos em causa, nomeadamente, de quem as suportou. Além disso, refere que não é apresentada qualquer justificação para as despesas terem sido efetuadas em diversos estabelecimentos e diversas localidades (Aveiro, Gaia, Matosinhos, Sra. da Hora, Vila do Conde, Lavra, Porto), quando estariam alegadamente em causa, deslocações para o stand de vendas em Vila Nova de Gaia.

 

Por outro lado, não vislumbra a razão de serem pagos almoços de segunda a sexta feira, quando a funcionária só começaria a trabalhar no stand de vendas, alegadamente, a partir das 14H30m até às 18H00m, ou seja, a deslocação não obrigaria a funcionária a almoçar fora do local habitual de trabalho (sede da empresa), aliás como se depreende do articulado 13 da petição, quando se alega que “ …só após a hora de almoço e a partir de casa se deslocava para o stand de vendas, com abertura às 14:30 durante a semana”.

 

Relativamente aos valores contabilizados em 2009 na conta 622272321 – “Compen. Útil. Viat. Própria –Km’s – Com Mapa“, no valor de € 2.568,47, e no ano 2010 na conta 62512321 – “Compen. Útil. Viat. Própria –Km’s – Com Mapa”, no valor de € 2.027,08, a AT não aceita os argumentos da requerente porquanto os documentos que suportam os km’s não são de molde a comprovar o alegado, nomeadamente, porque se encontra no descritivo dos mapas que a deslocação é de “casa / stand / casa”, o que significa, que não passava pela empresa, o que está em contradição com o alegado em sede de procedimento inspetivo, no qual é afirmado pela recorrente que de manhã se deslocava para a sede da sociedade, no Porto, utilizando para o efeito o passe pago pela A..., e da parte de tarde deslocava-se para o stand de vendas, em viatura própria, onde permanecia, até ao final do dia, para além de não conterem a identificação da viatura e do respetivo proprietário em que a funcionária se deslocava.

 

Por estes motivos, a AT entende que os montantes percebidos pela funcionária F... não têm finalidade compensatória, antes consubstanciando rendimentos que proporcionam um acréscimo de capacidade contributiva, assim sendo suscetíveis de tributação em sede de IRS, de acordo com o disposto no artº 2º do CIRS.

 

Quanto aos valores pagos aos administradores D... e E..., a título de refeições, viagens, deslocações e alojamentos, a requerente alega que dizem respeito a deslocações e estadas dos administradores, no âmbito da promoção imobiliária, e como administradores da J..., SA, com sede na Chamusca, em representação da A... .

 

Da análise às contas 62227165 – “Administração - Refeições”, e 62227307 – Empresas do Grupo – Refeições” relativas ao exercício do ano 2009, nos valores de € 8.736,45 e € 13.060,33, verifica-se que estão contabilizados valores pagos aos administradores, respetivamente, a D... e a E..., como refeições, cujos documentos de suporte são talões de caixa, recibos ou vendas a dinheiro, que não identificam a empresa, dizem respeito a despesas, de almoços, pequenos-almoços, jantares, cafés, etc., para mais do que uma pessoa, apresentam mais do que um documento de despesa por dia e de localidades diferentes.

 

Nesses termos, entende que a prova apresentada não pode ser considerada como suficiente para fazer prova do alegado, na medida em que dos mesmos não se alcança os motivos da alegada despesa, nomeadamente, a ausência do objetivo da deslocação, tanto mais que a comprovação das ajudas de custo que a recorrente pretende ver relevadas fiscalmente recai sobre ela, pois não estando devidamente documentadas, não beneficia da presunção de veracidade (neste sentido vide Ac. do TCAS de 05/11/2020, proc. n.º 755/09.7BEERLS).

 

Do mesmo modo, nas contas 62227166 Administração – Despesas com Hotéis, 62227167 Administração – Outras Deslocações, 62227301 Empresas do Grupo – Deslocações – Comboio, Avião e Outros, e 62227302 Empresas do Grupo – Alojamento, relativas ao exercício do ano 2009, estão contabilizados como custos, valores de despesas apresentadas por D... e E..., relativas a diversas deslocações e viagens efetuadas, ao longo do ano, nomeadamente, ao Algarve, Serra da Estrela, Régua, Lisboa, Fátima e a Paris, bem como, as respetivas despesas de alojamento e hotel, que face à prova apresentada, e que se resume, apenas, a faturas/vendas a dinheiro, não podem ser aceites, na medida em que, apenas desses documentos, sem mais nenhuma prova adicional, não se alcança os motivos da alegada despesa, nomeadamente, o objetivo da deslocação.

 

Efetivamente, o requerente no que diz respeito à despesa coma estadia de 7 (sete) dias no Algarve, no valor de € 722,36, alega que tem a ver com uma proposta de venda feita à A... de uma unidade cerâmica algarvia, cujo diagnóstico técnico-industrial, por observação in loco da unidade industrial em laboração, foi feito pelo administrador E..., durante uns dias. 61. Ora, esta alegação não é suportada por qualquer documento, ou outra qualquer prova admissível em direito, que o confirme, nomeadamente, a alegada proposta de venda, o local da fábrica, etc, etc. 62. E quanto à despesa realizada com a viagem a Paris pelos administradores, no valor de € 2.032,00, alega-se que a mesma teve como objetivo tomarem contato com uma experiência inovadora na área de resorts urbanos para a terceira idade, alegação, que mais uma vez não é comprovada por nenhuma prova documental, ou outra admissível em direito, nomeadamente, o que foi visitado, as datas, etc. 63. Relativamente às despesas com as outras deslocações e viagens realizadas ao longo do ano, concretamente, Serra da Estrela, Régua, Lisboa, Fátima, é alegado que se deram para ir a reuniões a representar a J... junto de diversas entidades do ramo da indústria cerâmica, mas mais uma vez sem apresentarem qualquer prova do alegado, como lhe competia, nos termos do nº 1 do artº 74º da LGT.

 

Relativamente ao exercício do ano 2010, estão contabilizados nas contas 6251165 –“Administração - Refeições”, e 6251263 – “Pessoal – Refeições”, valores pagos aos administradores, respetivamente, a D... e a E..., como refeições, cujos documentos de suporte são talões de caixa, recibos ou vendas a dinheiro, que não identificam a empresa, dizem respeito a despesas, de almoços, pequenos-almoços, jantares, cafés, etc, para mais do que uma pessoa, apresentam mais do que um documento de despesa por dia e de localidades diferentes, e que, face à prova apresentada, que se traduz apenas nos documentos anteriormente apresentados, não pode ser considerada como suficiente para fazer prova do alegado, na medida em que dos mesmos não se alcança os motivos da alegada despesa, nomeadamente, a ausência do objetivo da deslocação, tanto mais que a comprovação das ajudas de custo que a recorrente pretende ver relevadas fiscalmente recai sobre ela, pois não estando devidamente documentadas, não beneficia da presunção de veracidade (neste sentido vide Ac. do TCAS de 05/11/2020, proc. n.º 755/09.7BEERLS).

 

Por sua vez, na rubrica 6251167 – “Administração – Outras Deslocações”, estão contabilizados como gastos, valores de despesas apresentadas por D..., relativas a diversas deslocações efetuadas durante o ano, nomeadamente de comboio, entre Porto-Lisboa, que a recorrente alega que são deslocações para participar em reuniões, mas que não faz qualquer prova do alegado, como lhe competia, nos termos do nº 1 do artº 74º da LGT.

 

Na rubrica 6251265 – “Pessoal – Deslocações – Comboio, Avião e Outros”, está contabilizada como gastos, uma única despesa, no valor de € 2.577,00, apresentada por E..., relativa a um pacote de viagem a Cabo Verde, e que a Requerente alega, que se refere a uma

deslocação do administrador F..., para explorar uma possibilidade de venda da J... para cabo Verde ou Angola, através de um agente local, o que não se concretizou.

 

Ora, mais uma vez, a alegação, não é comprovada por nenhuma prova documental, ou outra admissível em direito, nomeadamente, as razões da alegada possibilidade de venda da J..., o nome do agente local, o local exato da deslocação, e o motivo da deslocação ter sido de sete dias.

 

Assim, considera a AT que, face ao anteriormente exposto, as despesas em causa não tiveram como finalidade a compensação de despesas realizadas com deslocações ao serviço e no interesse da entidade recorrente, mas sim, apenas no interesse pessoal dos seus administradores, sendo assim suscetíveis de tributação em sede de IRS, de acordo com o disposto no artº 2º do CIRS.

 

Por fim, a AT cita o acórdão do TCA Sul proferido em 08/05/2019, procº. n.º 581/13.9BEALM, nomeadamente o excerto em que o Tribunal refere que:

“No citado artº.2, do CIRS, o legislador teve a intenção de tipificar de forma muito ampla ou esgotante, a incidência do imposto, nela se incluindo todos os rendimentos de alguma forma advindos do trabalho dependente. Há que salientar, desde logo, que este conceito de remuneração é mais lato que o acolhido pelo direito laboral, tal como que o relevante para efeitos de incidência das contribuições para a segurança social. É rendimento da categoria A tudo aquilo que o trabalhador receba em razão do seu trabalho, em dinheiro, em espécie ou sob a forma de quaisquer outras vantagens, salvo o expressamente excetuado pela lei. Tais remunerações, qualquer que seja a forma ou denominação sob que se apresentem (cfr. artº.2, nº.2, do CIRS), poderão resultar, quer do cumprimento de obrigações contratuais da entidade patronal, quer de decisões a que esta não se encontra legalmente obrigada (v.g. concessão de prémios). Poderão resultar, ainda, de prestações feitas por terceiros, mesmo que espontaneamente. Por sua vez, o nº.3, do artº.2, do CIRS, pode entender-se como uma norma clarificadora, que mais não faz do que exemplificar ou concretizar o que resulta dos números anteriores do preceito (cfr. Rui Duarte Morais, Sobre o IRS., 2ª. edição, Almedina, 2010, pág. 52).”

 

3.2 Do Mérito

 

A oposição entre Requerente e AT nos presentes autos é clara: a primeira entende que procedeu bem ao registar e considerar como ajudas de custo os valores correspondentes às despesas com deslocações, viagens, estadias e refeições realizadas pela sua funcionária F... e pelos seus administradores durante os anos de 2009 e de 2010, enquanto a AT entende que os referidos valores deveriam ter sido qualificados e tratados como rendimentos do trabalho dependente, sendo sujeitos a retenções na fonte em concordância.

 

De acordo com o artigo 2.º, n.º 1, do CIRS, na redação em vigor à data dos factos, consideram-se rendimentos de trabalho dependente (categoria A) todas as remunerações pagas ou postas à disposição do seu titular, provenientes de trabalho por conta de outrem.

 

As ajudas de custo atribuídas pela entidade patronal constituem valores pagos por causa do trabalho, destinados a servir de compensação por gastos a que o trabalhador tenha de incorrer por causa daquele e em seu benefício – mas não são valores destinados a remunerar o trabalhador pelo seu trabalho dependente para a entidade patronal. Tal como se refere no Acórdão do TCA Sul proferido em 08/05/2019, no processo n.º 581/13.9BEALM, “Constituem ajudas de custo os abonos auferidos pelos trabalhadores, referentes a deslocações (alimentação e alojamento) por si efectuadas em benefício da entidade patronal, desde que se destinem a compensar o trabalhador pelas despesas por si suportadas e relativas a essas mesmas deslocações (cfr.ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 23/3/2010, proc.3616/09; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 29/5/2014, proc.7524/14; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 30/11/2017, proc.712/13.9BEALM; José Guilherme Xavier Basto, IRS: Incidência Real e Determinação dos Rendimentos Líquidos, Coimbra Editora, 2007, pág.129 e seg.). (…) E recorde-se que as ajudas de custo são, pela sua própria natureza e em princípio, compensações por despesas incorridas pelo trabalhador mas a favor da entidade patronal, pelo que só tem sentido tributá-las quando extravasarem essa função e passarem a constituir verdadeira "vantagem económica". Enquanto se limitarem a compensar o trabalhador por despesas efectivamente incorridas a favor da entidade patronal, as somas recebidas não são sequer rendimento líquido daquele. A lei presume que isso acontece quando as aju­das de custo e as importâncias recebidas pela utilização de viatura pró­pria se mantêm dentro dos limites legais previstos para os servidores do Estado, tal como quando sejam observados os pressupostos da sua atribuição aos servidores do Estado (cfr.dec.lei 106/98, de 24/4 - regime jurídico do abono de ajudas de custo e transporte ao pessoal da administração pública). Quando extravasarem aqueles limites, tornam-se tributáveis em I.R.S., a cargo dos trabalhadores (o que implica, obviamente, também obrigações de retenção na fonte para o empregador). Trata-se de um expediente prático e simples de distinguir as duas situações (cfr.ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 30/11/2017, proc.712/13.9BEALM; José Guilherme Xavier Basto, IRS: Incidência Real e Determinação dos Rendimentos Líquidos, Coimbra Editora, 2007, pág.129). (…)

Em conclusão, os pressupostos tributários substantivos do pagamento de ajudas de custo e da sua não tributação que a lei fiscal elege são os seguintes:

1-A realização de uma efectiva deslocação por parte de trabalhador ao serviço e portanto no interesse da sua entidade patronal;

2-O pagamento de quantitativo diário que não exceda os limites anualmente fixados para os servidores do Estado (cfr.ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 30/11/2017, proc. 712/13.9BEALM; João Ricardo Catarino, Ajudas de Custo-Algumas Notas sobre o regime substantivo e fiscal, Fisco, nºs.97/98, Setembro de 2001, pág.77 e seg.).

(…)”

 

No caso presente, a discussão não é referente a um eventual excesso dos limites legais das ajudas de custo, centrando-se apenas nos pressupostos da atribuição das ajudas de custo, ou seja, em saber se, no caso em apreço, as ajudas de custo pagas ao recorrido tiveram por finalidade a compensação de despesas realizadas com a sua efetiva deslocação ao serviço e no interesse da sua entidade patronal.

 

Quanto ao ónus da prova, importa dizer que, relativamente às irregularidades verificadas no boletim de itinerário que a AT pretende valorar, a lei não exige a elaboração de boletins de itinerário semelhantes ao previstos para os funcionários do Estado para que as prestações efetuadas a trabalhadores por conta de outrem assumam a natureza de ajudas de custo ou, sequer, para que seja feita a prova da natureza dessas prestações (neste sentido, cf. o Acórdão do TCA Sul de 06.04.2020, processo 15/14.1BEALM).

 

Relativamente às questões suscitadas pela AT com a documentação das despesas pagas à funcionária F... com refeições, bem como às que foram pagas a administradores com referência a viagens, estadias e refeições, dispõe o artigo 75.º, n.º 1, da LGT, no sentido de que se presumem verdadeiras as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos da lei. O princípio da verdade declarativa coloca na esfera de atuação dos contribuintes a iniciativa no procedimento de apuramento, fixação e pagamento dos impostos, estando a AT vinculada a liquidar os tributos com base na declaração do contribuinte, sem prejuízo do direito que lhe é concedido de proceder, a posteriori, ao controlo dos factos declarados. Assim, só passa a competir ao contribuinte a prova de que declarou todas as situações a que estava legalmente vinculado quando, efetivamente, a AT tenha carreado elementos de facto que sejam suscetíveis de abalar a dita presunção da escrita.

 

Vai no mesmo sentido o aresto do TCA Sul proferido em 08/05/2019, no processo n.º 581/13.9BEALM, no sentido de que “… o ónus da prova de que os montantes percebidos pelo trabalhador não têm finalidade compensatória, antes consubstanciando rendimentos que proporcionam um acréscimo de capacidade contributiva, assim sendo suscetíveis de tributação, compete à Administração Fiscal, contrariamente ao defendido pelo apelante (cfr.artº.342, do C.Civil; artº.74, nº.1, da L.G.Tributária; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 4/5/2004, proc.832/03; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 7/11/2006, proc.1099/06; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 27/1/2009, proc.2690/08; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 29/3/2011, proc.4489/11; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 28/5/2013, proc.6450/13; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 30/11/2017, proc. 712/13.9BEALM;).

 

Entendendo a AT que as despesas em questão eram independentes das deslocações realizadas, quer pela funcionária, quer pelos administradores, representando um ganho real para o trabalhador incumbia-lhe demonstrar isso mesmo. Contudo, os testemunhos e declarações de parte foram claros ao descrever o motivo das deslocações da funcionária F... e o acréscimo de despesas daí resultante. A Ata do Conselho de Administração da Requerente atesta, também, a decisão desta entidade no sentido de colocar a sua funcionária num stand de vendas, distante do local de normal exercício de funções, para o efeito de promoção da venda de apartamentos construídos pela Requerente. As refeições fora de casa e as deslocações para o referido stand são despesas normais decorrentes dessas funções, não assumindo, portanto, natureza retributiva, mas sim compensatória. Relativamente aos valores pagos aos administradores, também não logrou a AT demonstrar, como lhe competia, que as mesmas não se relacionam com as viagens por estes realizadas em representação da Requerente, quer para entidades por esta integradas, quer para clientes. A prova testemunhal e as declarações de parte realizadas em audiência descrevem também, com suficiente grau de pormenor, a razão de ser dessas deslocações e como as mesmas se relacionavam com a atividade produtiva da Requerente, ainda que, por vezes, somente prospetiva. Aceitando-se como verdadeiras as deslocações e os seus motivos, não logrou a AT demonstrar que as referidas despesas foram independentes delas, razão pela qual não pode este Tribunal considerar que os valores em questão devem ser desqualificados de ajudas de custo para passarem a ser qualificados como retribuição no âmbito da categoria A do IRS.

 

Em consequência, as liquidações impugnadas, assim como o indeferimento do recurso hierárquico n.º ...2014..., afiguram-se ilegais, padecendo do vício de violação de lei por erro sobre os pressupostos de facto e de direito subjacentes, pelo que se impõe a sua anulação, com todas as consequências legais.

 

4. Decisão

 

Termos em que este Tribunal Arbitral decide:

 

  1. Declarar a ilegalidade, e determinar a anulação das liquidações de IRS-RF e juros compensatórios respeitantes aos anos de 2009 e 2010, com os números 2013 ... e 2014 ..., nos montantes de € 11.729,16 e € 8.109,44 respetivamente, com as consequências legais que se mostrem devidas;
  2. Declarar a ilegalidade, e determinar a anulação, do indeferimento expresso do recurso hierárquico n.º ...2014... proferido a 17.03.2022 pelo Chefe de Divisão do Serviço Central, ao abrigo de subdelegação de competências, com as consequências legais que se mostrem devidas.

 

5. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto nos artigos 305.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor € 19.838,60 (dezanove mil, oitocentos e trinta e oito euros e sessenta cêntimos).

 

6. Custas

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 1.224,00, de harmonia com a Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

    

Lisboa, 22.02.2023,

A Árbitro

 

 

(Raquel Franco)