Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 488/2022-T
Data da decisão: 2023-03-02  IRC  
Valor do pedido: € 2.142.689,09
Tema: Eliminação da dupla tributação económica de lucros distribuídos. Agravamento percentual das taxas de tributação autónoma. Artigo 88.º, n.º 14, do Código do IRC.
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Sumário:

O agravamento da taxa percentual da tributação autónoma quando os sujeitos passivos apresentem prejuízo fiscal, nos termos do disposto no artigo 88.º, n.º 14, do CIRC, não constitui qualquer limitação ao princípio da eliminação da dupla tributação económica de lucros distribuídos, constante do artigo 4.º, n.º 1, da Diretiva 2011/96/UE. 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

Acordam em tribunal arbitral

 

I – Relatório

 

            1. A..., S.A., pessoa coletiva número ..., com sede na ..., ..., ...-... Lisboa, Portugal, sociedade dominante do Grupo B..., vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade da autoliquidação de IRC, relativa ao ano de 2019, bem como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa contra ela deduzida.

 

Fundamenta o pedido nos seguintes termos.

 

A Requerente apresentou no dia 29 de julho de 2020 declaração Modelo 22 do grupo de sociedades, referente ao exercício de 2019, onde procedeu à autoliquidação de tributações autónomas em IRC no montante total de € 5.240.715,05.

 

Parte deste montante em tributações autónomas resultou da aplicação do agravamento de taxa em 10 pontos percentuais, previsto no artigo 88.º, n.ºs 14 e 21, do Código do IRC, em resultado do Grupo ter apurado prejuízo fiscal relativamente a esse exercício.

 

No entanto, esse prejuízo só foi apurado por virtude da dedução à base tributável de dividendos recebidos de empresas do grupo, em aplicação do artigo 51.º do CIRC e da Diretiva n.º 2011/96/UE, do Conselho, de 30 de novembro, que têm por objetivo eliminar a dupla tributação económica dos lucros obtidos pelas sociedades comerciais no espaço nacional e no espaço do mercado único da União Europeia.

 

Com efeito, o total de dividendos excluídos da base tributável foi de € 709.756.761,33 e o prejuízo fiscal declarado foi de € 486.233.041,82, pelo que o prejuízo fiscal só existe por ter ocorrido a subtração à base tributável dos dividendos, visto que teria sido apurado, se assim não fosse, um lucro tributável no montante de € 223.523.719,51.

 

O artigo 4.º, n.º 1, da Diretiva 2011/96/UE (Diretiva sociedades-mães e afiliadas) prevê como um dos métodos para suprimir a dupla tributação económica, a não tributação dos dividendos pagos pelas sociedades afiliadas às sociedades-mãe, disposição que foi transposta para o direito interno através do artigo 51.º, n.º 1, do CIRC.

 

Contudo, o TJUE tem interpretado essa disposição do direito europeu no sentido de obstar a que os Estados-Membros possam aplicar medidas fiscais que, ainda que de forma indireta, impliquem a limitação do efeito de exclusão da tributação dos dividendos recebidos pela sociedade-mãe das suas filiais, e, designadamente, quando, havendo prejuízo fiscal, a sociedade-mãe passe a ficar sujeita a imposto sobre esses dividendos em exercícios fiscais posteriores, quando apresente um resultado positivo.

 

Com base no mesmo entendimento, não pode haver lugar ao agravamento das taxas da tributação autónoma quando esse agravamento seja desencadeado pelo apuramento de prejuízos fiscais que, por sua vez, são causados por efeito da aplicação do mecanismo de eliminação da dupla tributação, na medida em que é a não tributação dos dividendos que gera o prejuízo fiscal e, indiretamente, origina a tributação autónoma nos termos do artigo 88.º, n.º 14, do CIRC.

 

De onde se conclui pela ilegalidade do n.º 14 do artigo 88.º do CIRC por violação do artigo 4.º, n.º 1, da Diretiva 2011/96, transposta para a legislação portuguesa pelo artigo 51.º e segs. do CIRC.

 

A Autoridade Tributária, na sua resposta, sustenta que não só é incorreta a imputação exclusiva da origem do prejuízo fiscal do grupo à dedução dos lucros distribuídos, como não tem lugar a invocação da doutrina do ato claro no respeitante aos acórdãos do TJUE, dada a inexistência de qualquer similitude entre a situação sub judice e os contextos factuais e legais em que se inserem as questões apreciadas pelo Tribunal. 

 

E a pretensa conexão que a Requerente pretende estabelecer entre a aplicação do regime de eliminação da dupla tributação económica dos lucros distribuídos em IRC e a majoração das taxas de tributação autónoma é infundada, tendo em conta que a majoração estabelecida no n.º 14 do artigo 88.º do CIRC é de aplicação a qualquer sociedade ou grupo de sociedades quando sejam declarados prejuízos fiscais, independentemente de haver ou não lugar à aplicação do regime do n.º 1 do 51.º, e o agravamento em 10% da tributação autónoma não constitui uma tributação adicional dos lucros distribuídos porque a sua base de incidência não remete, de forma direta ou indireta, para aqueles rendimentos.

 

Nas situações fácticas subjacentes aos acórdãos do TJUE a relação e o agravamento da tributação remete sempre para uma sobrecarga da tributação incidente, direta ou indiretamente, sobre rendimentos provenientes de lucros distribuídos que tem como causa o modus operandi do regime de eliminação da dupla tributação económica dos lucros distribuídos consagrado nas respetivas legislações nacionais.

 

Por outro lado, não pode ser estabelecido qualquer paralelismo entre os citados acórdãos do TJUE e a situação em presença.

 

No caso do acórdão proferido no Processo C-138/07 estava em causa a isenção integral dos dividendos apenas quando a dedução redundasse em prejuízo fiscal, tendo Tribunal considerado que a sociedade-mãe era indiretamente tributada relativamente a esses dividendos por efeito da tributação acrescida em exercícios seguintes.

 

Do mesmo modo, no acórdão do TJUE, tirado no Processo C- 68/15, analisava-se a tributação «fairness tax» aplicada sobre os rendimentos provenientes de lucros distribuídos, que correspondia a uma contribuição especial diferente do imposto sobre as sociedades e do imposto sobre os não residentes, tal como no acórdão relativo ao Processo C-365/16, que se referia a uma contribuição adicional incidente sobre dividendos.

 

Em todas essas situações estavam em causa disposições de direito interno de que resultavam restrições à eliminação integral da dupla tributação económica provocadas pela imposição de tributações adicionais sobre a sociedade-mãe, no momento da redistribuição dos lucros ou pelo diferimento temporal da dedução dos lucros à base tributável da sociedade-mãe, com eventuais perdas de vantagens fiscais.

 

O legislador nacional optou, ao transpor a Diretiva 90/435/CEE, entretanto substituída pela Diretiva 2011/96/UE, pelo regime de isenção previsto no artigo 4.o n.o 1, alínea a), prevendo a inclusão dos dividendos na base tributável da sociedade-mãe e seguidamente a sua dedução sem quaisquer condicionamentos, sucedendo apenas que a subtração do resultado líquido dos rendimentos provenientes de lucros distribuídos, nos termos do n.º 1 do artigo 51.º do CIRC, confere a vantagem de redução da base tributável e pode redundar no apuramento de prejuízos fiscais, se as outras operações ou atividades desenvolvidas pela sociedade-mãe gerarem rendimentos inferiores aos gastos e perdas suportados.

 

Daí não decorre que o agravamento das taxas de tributação autónoma pelo apuramento de prejuízos fiscais colida com os objetivos e o sistema estabelecido no artigo 4.º da Diretiva 2011/96/UE, porquanto a tributação autónoma prevista no artigo 88.º CIRC não tem qualquer impacto direto ou indireto na tributação dos dividendos na esfera da sociedade-mãe. 

 

Conclui no sentido da improcedência do pedido.

 

2. No seguimento do processo foi dispensada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e notificadas as partes para apresentarem alegações escritas pelo prazo sucessivo de 10 dias.

 

Em alegações, a Requerente e a Requerida mantiveram as suas anteriores posições. 

 

3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.

 

Nos termos do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 6.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 12.º da Lei n.º 7/2021, de 26 de fevereiro, os árbitros foram designados pelas partes que indicaram o árbitro presidente. Os árbitros designados comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228. ° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 2 de dezembro de 2022.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 11.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções.

 

Cabe apreciar e decidir.

 

II - Fundamentação

 

Matéria de facto

 

4. Os factos relevantes para a decisão da causa que poderão ser tidos como assentes são os seguintes.

 

  1. A Requerente, na qualidade de sociedade dominante do Grupo B..., apresentou, em 29 de julho de 2020, declaração agregada de IRC Modelo 22, referente ao exercício de 2019, procedendo a autoliquidação de tributações autónomas em IRC no montante total de € 5.240.715,05.
  2. Parte do montante em tributações autónomas resultou da aplicação do agravamento da taxa aplicável em 10%, previsto no artigo 88.º, n.ºs 14 e 21, do Código do IRC.
  3. O Grupo Fiscal B... apurou com respeito ao exercício fiscal de 2019 um prejuízo fiscal, que inscreveu no campo 382 do quadro 09 da declaração de rendimentos IRC Modelo 22, no montante de € 486.233.041,82.
  4. No campo 771 do quadro 07 das Declarações de Rendimentos IRC Modelo 22 de 2019 foram deduzidos à matéria coletável dividendos pagos pelas sociedades que integram o Grupo Fiscal B..., no total de € 709.756.761,33, assim discriminados:

A... S.A: € 686.204.583,15;

                       C... S.A.: € 1.701.000,00;

D... S.A. € 2.000.000,00;

E... S.A.: € 35.093,00;

F… SGPS S.A.: € 9.486.000,00;

G... S.A.: € 2.090.880,00;

H... UNIPESSOAL, LDA: € 8.239.205,18.

  1.  Os dividendos provenientes de participações em sociedades residentes em Portugal totalizaram o montante de € 89.012.973,00.
  2. Os dividendos provenientes de sociedades residentes noutros Estados Membros da União Europeia totalizaram o montante de € 605.413.396,04.
  3. Os dividendos provenientes de Estados terceiros totalizaram o montante de € 15.330.392,19.
  4. Em 4 de fevereiro de 2022, a Requerente apresentou reclamação graciosa contra a autoliquidação de IRC respeitante ao exercício de 2019.
  5. A reclamação foi indeferida por despacho do Diretor do Serviço Central de 17 de maio de 2022, praticado com delegação de competências, e notificado em 23 de maio seguinte.
  6. O despacho de indeferimento baseou-se na informação dos serviços n.º 111-AIR2/2022, que, na parte relevante, é do seguinte teor:

[…]

13. Após a leitura da petição de reclamação - cujos argumentos assentam no entendimento da reclamante de que existe ilegalidade na aplicação do n.º 14 do artigo 88.º do CIRC, por violação do direito comunitário, havendo, por isso, fundamento para a anulação parcial do valor declarado (na modelo 22 do "Grupo B..." respeitante a 2019), a título de tributações autónomas (-) -, afigura-se-nos que a AT não tem competência para se pronunciar sobre o seu teor, tendo em consideração que:

  1.  a AT está vinculada às normas legais vigentes, dentro dos limites dos poderes que lhe estão atribuídos, e em conformidade com os fins para que os mesmos poderes foram concedidos (cf. artigos 266.º da Constituição da República Portuguesa, 3.º, n.º 1, do Código de Procedimento Administrativo e 55.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária);

ii) o procedimento de reclamação graciosa visa apreciar a conformidade do ato tributário (de que são exemplo as liquidações e as autoliquidações) com a lei e não a conformidade desta com o direito comunitário (cf. artigo 68.º n.º 1 do CPPT).

14. Neste sentido, pronunciou-se, nos seguintes termos, o Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), no âmbito do processo n.º 362/2020-T: 'ta vinculação da AT ao princípio da legalidade (cfr, CRP, art. 66.º, n.º 2 e LGT, art. 55.º) impede que possa desaplicar uma norma com fundamento na sua incompatibilidade com o direito comunitário. Sobre esta matéria - embora com referência ao direito a juros indemnizatórios e à eventual inconstitucionalidade das normas - é pacífica a jurisprudência dos tribunais superiores (-).

15. Na mesma linha de argumentação, o CAAD, noutro processo (n.º 189/2021 concluiu que “não cabe, no entanto, à Administração Pública, particularmente à Administração Tributária, sob pena de subversão do princípio da separação de poderes, usurpando a função dos tribunais nacionais aos quais cabe em primeira linha garantir a aplicação do Direito da União, recusar a aplicação de medidas de natureza legislativa legitimamente aprovadas pelo Governo ou pela Assembleia da República, com fundamento em inconstitucionalidade, em ilegalidade ou oposição a tratado internacional vinculativo do Estado português, ou ao direito derivado da União Europeia, salvo quando estiverem em causa direitos fundamentais;

Uma vez, de acordo com os critérios gerais de interpretação das leis previstos na lei civil e na lei fiscal, o resultado da interpretação dessas normas seja o da sua inconstitucionalidade, ilegalidade ou incompatibilidade com o TJUE ou o direito derivado da União, a Administração Tributária não pode deixar, mesmo assim, de as aplicar, deixando para os tribunais o controlo da constitucionalidade ou ilegalidade que exclusivamente lhes cabe"

16. Em face da vinculação da AT ao princípio da legalidade, e uma vez que:

a) o artigo 88.º n.º 14 do CIRC - a observar pela AT, em cumprimento desse princípio é claro quando prevê o agravamento das taxas de tributação autónoma em 10% nos casos em que o sujeito passivo apurou um prejuízo fiscal no período a que respeitam quaisquer dos factos tributários referidos nos n.ºs anteriores relacionados com o exercício de uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola não isenta de IRC;

b) é igualmente claro que a sujeição à aplicabilidade do disposto no referido artigo 88.º n.º 14 tem cabimento no caso dos autos, a partir do momento em que o "Grupo B..." apurou e considerou um prejuízo fiscal, com referência ao período de tributação de 2019 (cf. § IV);

- conclui-se que não é de efetuar qualquer reparo ao valor considerado pelo "Grupo B..." em matéria de tributações autónomas, visto que aquele está em conformidade com as normais legais vigentes no ordenamento jurídico nacional, relativamente às quais a AT está, conforme anteriormente sublinhado, adstrita ao seu cumprimento.

  1. O pedido arbitral deu entrada no dia 12 de agosto de 2022.

 

Factos não provados

 

Não existem quaisquer factos não provados relevantes para a decisão da causa.

 

O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária com a resposta.

 

            Matéria de direito

 

5. A questão em debate traduz-se em saber se a dedução à matéria tributável dos dividendos pagos à sociedade-mãe pelas sociedades afiliadas, segundo o disposto no artigo 51.º, n.º 1, do CIRC, viola o artigo 4.º, n.º 1, da Diretiva 2011/96/UE quando possa gerar prejuízo fiscal no âmbito do grupo societário e determinar, em consequência, o agravamento de 10 pontos percentuais das taxas de tributação autónoma, nos termos do artigo 88.º, n.º 14, do mesmo Código.

 

A Requerente defende que é a não tributação dos dividendos, por efeito da aplicação do mecanismo de eliminação da dupla tributação, transposto para o direito interno pelo artigo 51.º, n.º 1, do CIRC, que origina o prejuízo fiscal e, indiretamente, provoca o agravamento das taxas de tributação autónoma. E esse efeito, que resulta da não tributação, contraria a interpretação que tem sido atribuída pelo Tribunal de Justiça à referida disposição da Diretiva, que vai no sentido de impedir que os Estados-Membros apliquem medidas fiscais que, mesmo de forma indireta, impliquem a limitação do regime de exclusão da tributação dos dividendos recebidos pela sociedade-mãe das suas afiliadas.

 

Em contraposição, a Autoridade Tributária considera que a majoração estabelecida no n.º 14 do artigo 88.º do CIRC não constitui uma tributação adicional em sede de IRC dos lucros distribuídos, nem tem como base de incidência esses rendimentos, e não há qualquer paralelismo entre os acórdãos do TJUE a que a Requerente faz menção e a situação do caso. Isso porque nessa jurisprudência estavam em causa disposições de direito interno de que resultavam restrições à eliminação da dupla tributação económica, quer pela imposição de tributações adicionais sobre a sociedade-mãe, no momento da redistribuição dos lucros, quer pelo diferimento temporal da dedução dos lucros à base tributável da sociedade-mãe, com eventuais perdas de vantagens fiscais.

 

Para a análise da questão, interessa começar por ter presente as disposições de direito europeu e de direito interno que mais diretamente relevam para a solução do caso.

 

A Diretiva 2011/96/EU do Conselho, de 30 de novembro de 2011, que revogou a Diretiva 90/435/CEE do Conselho, de 23 de julho de 1990, relativa ao regime fiscal comum aplicável às sociedades-mães e sociedades afiliadas de Estados-Membros diferentes, e reformulou por razões de clareza essa Diretiva, aplica-se, designadamente, conforme prevê o  seu artigo 1.º, n.º 1, alínea a), à distribuição dos lucros obtidos por sociedades de um Estado-Membro e provenientes das suas afiliadas de outros Estados-Membros.

 

Acrescenta o n.º 2 desse artigo 1.º que a Diretiva “não impede a aplicação das disposições nacionais ou convencionais necessárias para evitar fraudes e abusos”.

 

 Como resulta do seu considerando (3), o objetivo da Diretiva é isentar de retenção na fonte os dividendos e outro tipo de distribuição de lucros pagos pelas sociedades afiliadas às respetivas sociedades-mãe, bem como suprimir a dupla tributação de tais rendimentos ao nível da sociedade-mãe, pretendendo instituir um regime segundo o qual, “quando uma sociedade-mãe recebe, na qualidade de sócia da sociedade sua afiliada, lucros distribuídos, o Estado-Membro da sociedade-mãe deve abster-se de tributar estes lucros, ou tributá-los autorizando simultaneamente a sociedade-mãe a deduzir do montante do imposto devido a fração do imposto sobre as sociedades pago pela sociedade afiliada sobre esses lucros (considerando (7)).

 

É tendo em conta esses objetivos, que o artigo 4.º, n.º 1, da Diretiva apresenta a seguinte redação:

 

1. Sempre que uma sociedade-mãe ou o seu estabelecimento estável, em virtude da associação da sociedade-mãe com a sociedade sua afiliada, obtenha lucros distribuídos de outra forma que não seja por ocasião da liquidação desta última, o Estado-Membro da sociedade-mãe e o Estado-Membro do estabelecimento estável da sociedade-mãe:

a) Abstêm-se de tributar esses lucros; ou

b) Tributam esses lucros autorizando a sociedade-mãe e o estabelecimento estável a deduzirem do montante do imposto devido a fração do imposto sobre as sociedades paga sobre tais lucros pela sociedade afiliada e por qualquer sociedade subafiliada, na condição de cada sociedade e respetiva sociedade subafiliada estarem abrangidas pelas definições constantes do artigo 2.º e satisfazerem em cada nível os requisitos previstos no artigo 3.º, até ao limite do montante correspondente do imposto devido.

[…]

3. Cada Estado-Membro conserva a faculdade de prever que os encargos respeitantes à participação e as menos-valias resultantes da distribuição dos lucros da sociedade afiliada não sejam dedutíveis do lucro tributável da sociedade-mãe. Se, nesse caso, as despesas de gestão relativas à participação forem fixadas de modo forfetário, o montante forfetário não pode exceder 5% dos lucros distribuídos pela sociedade afiliada.

 

Transpondo para o direito nacional essa diretiva, o artigo 51.º do Código do IRC, sob epigrafe “Eliminação da dupla tributação económica de lucros e reservas distribuídos”, na sua atual redação, e na parte que mais interessa considerar, é do seguinte teor:

 

1 - Os lucros e reservas distribuídos a sujeitos passivos de IRC com sede ou direção efetiva em território português não concorrem para a determinação do lucro tributável, desde que se verifiquem cumulativamente os seguintes requisitos: 

a) O sujeito passivo detenha direta ou direta e indiretamente, nos termos do n.º 6 do artigo 69.º, uma participação não inferior a 10 % do capital social ou dos direitos de voto da entidade que distribui os lucros ou reservas;

 b) A participação referida no número anterior tenha sido detida, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à distribuição ou, se detida há menos tempo, seja mantida durante o tempo necessário para completar aquele período;

c) O sujeito passivo não seja abrangido pelo regime da transparência fiscal previsto no artigo 6.º; 

d) A entidade que distribui os lucros ou reservas esteja sujeita e não isenta de IRC, do imposto referido no artigo 7.º, de um imposto referido no artigo 2.º da Diretiva n.º 2011/96/UE, do Conselho, de 30 de novembro, ou de um imposto de natureza idêntica ou similar ao IRC e a taxa legal aplicável à entidade não seja inferior a 60 % da taxa do IRC prevista no n.º 1 do artigo 87.º; 

e) A entidade que distribui os lucros ou reservas não tenha residência ou domicílio em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável constante de lista aprovada por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças. 

 

Por sua vez, o artigo 88.º do mesmo Código, referindo-se às taxas de tributação autónoma, nos seus n.ºs 14 e 21, na redação vigente à data dos factos, dispõe nos seguintes termos:

 

14 – As taxas de tributação autónoma previstas no presente artigo são elevadas em 10 pontos percentuais quanto aos sujeitos passivos que apresentem prejuízo fiscal no período a que respeitem quaisquer dos factos tributários referidos nos números anteriores relacionados com o exercício de uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola não isenta de IRC.

[…]

21 – Para efeitos do disposto no n.º 14, quando seja aplicável o regime especial de tributação dos grupos de sociedades estabelecido no artigo 69.º, é considerado o prejuízo fiscal apurado nos termos do artigo 70.º.

 

6. O TJUE tem avaliado a compatibilidade de regulamentações internas com o direito europeu, inicialmente por referência à Diretiva 90/435,  sempre na perspetiva de que o objetivo da diretiva é o de garantir a neutralidade, no plano fiscal, da distribuição de lucros, por uma filial estabelecida num Estado-Membro, à sua sociedade-mãe estabelecida noutro Estado-Membro, de  modo a evitar uma dupla tributação dos lucros, em termos económicos, ou seja, evitar que os lucros distribuídos sejam tributados, uma primeira vez, à filial e, uma segunda vez, à sociedade-mãe.

 

Nesse sentido, no acórdão proferido no Processo C-138/07 (caso Cobelfret), o Tribunal considerou que o artigo 4.º, n.º 1, primeiro travessão, da Diretiva 90/435 deve ser interpretado no sentido de que se opõe à legislação de um Estado-Membro, que prevê que os dividendos recebidos por uma sociedade-mãe sejam incluídos na sua matéria coletável, para seguidamente serem deduzidos até 95%, na medida em que, no período de tributação em causa, reste um lucro após dedução dos outros lucros isentos.

 

Estava em causa, nesse caso, um regime que previa que os dividendos recebidos pela sociedade-mãe eram acrescentados à sua matéria coletável e posteriormente deduzidos, num montante correspondente a 95%, apenas na medida em que existam lucros tributáveis por parte da sociedade-mãe, o que tinha como efeito a redução das perdas da sociedade-mãe até ao montante dos dividendos recebidos, impedindo-a de beneficiar inteiramente da vantagem fiscal concedida pela Diretiva, salvo no caso de não ter sofrido, relativamente aos seus outros rendimentos tributáveis, um resultado negativo no mesmo período (considerandos 35 e 37). Nesse condicionalismo, como se refere no considerando 45, quando a sociedade-mãe não tenha realizado outros lucros tributáveis durante o período em que os dividendos são recebidos, o regime instituído pelo Estado-Membro não permite alcançar inteiramente o objetivo de prevenção da dupla tributação económica, como previsto no artigo 4.º, n.º 1, primeiro travessão, da Diretiva 90/435.

 

No acórdão do TJUE C-68/15 estava em análise uma contribuição especial diferente do imposto sobre as sociedades (“fairness tax”) incidente sobre uma redistribuição de dividendos pela sociedade-mãe no exercício seguinte ao do seu recebimento, que tinha como consequência submeter esses lucros a uma tributação que ultrapassa o limite de 5% previsto no artigo 4.º, n.º 3, da Diretiva 90/435.

 

O Tribunal de Justiça considerou que o artigo 4.º, n.º 1, alínea a), da Diretiva proíbe aos Estados-Membros tributar a sociedade-mãe ou o seu estabelecimento estável pelos lucros distribuídos pela sociedade afiliada à sociedade-mãe, sem distinguir se a tributação tem como facto gerador a receção desses lucros ou a sua redistribuição (considerando 79).

 

E respondeu a essa questão dizendo que o artigo 4.º, n.º 1, alínea a), da Diretiva sociedades-mãe e sociedades afiliadas, lido em conjugação com o n.º 3 desse artigo, deve ser interpretado no sentido de que o preceito se opõe a essa legislação fiscal nacional, na medida em que conduz a uma dupla tributação desses lucros, ao permitir que a tributação exceda o limite previsto para encargos respeitantes à participação na afiliada que tenha distribuído os benefícios (considerandos 80 e 82).

 

Uma situação similar colocava-se no acórdão do TJUE proferido no Processo n.º C-365/16, que teve como objeto a legislação francesa que previa a cobrança de uma contribuição adicional ao imposto sobre as sociedades, no momento da distribuição dos dividendos pela sociedade-mãe, cuja matéria coletável é constituída pelos montantes dos dividendos distribuídos, incluindo os provenientes das suas afiliadas não-residentes.

 

Remetendo para a fundamentação constante do já citado acórdão referente ao Processo C-68/15, o Tribunal considerou verificada a violação do artigo 4.º, n.º 1, alínea a), da Diretiva, na medida em que a incidência da contribuição adicional sobre dividendos distribuídos por uma sociedade-mãe pode igualmente compreender lucros provenientes das suas afiliadas com sede noutros Estados-Membros, e, desse modo, corresponde a uma dupla tributação dos lucros na esfera jurídica da sociedade-mãe.

 

No acórdão tirado no Processo C-39/16, tendo em conta o disposto no artigo 4.º, n.º 2, da Diretiva 90/435, discutia-se uma disposição de direito nacional nos termos da qual os juros pagos por uma sociedade-mãe a título de um empréstimo não são dedutíveis do lucro tributável dessa sociedade-mãe até um montante igual ao dos dividendos obtidos de participações detidas no capital de filiais, mesmo que esses juros não digam respeito ao financiamento dessas participações.

 

Entendeu o Tribunal que o artigo 4.º, n.º 2, da Diretiva permite unicamente a um Estado-Membro excluir da dedutibilidade do lucro tributável de uma sociedade-mãe os encargos respeitantes à participação desta no capital de uma filial e não permite aos Estados-Membros excluir tal dedução no que respeita a todos os juros de empréstimos contraídos por uma sociedade-mãe até um montante igual ao dos dividendos gerados pelas suas participações nas suas filiais (considerandos 44 e 45).

 

Acrescentando que a referida disposição da Diretiva privaria de efeito útil a regra constante do n.º 1 do mesmo artigo, se fosse interpretada no sentido de que permite aos Estados-Membros opor-se à dedução do lucro tributável de uma sociedade-mãe de todos os encargos decorrentes de juros de empréstimos até um montante correspondente ao dos dividendos, que beneficiam de uma isenção de imposto (considerandos 52 e 57).

 

O acórdão do TJUE proferido no Processo C-389/18 (Brussels Securities) teve por objeto uma alteração da legislação belga, instituída na sequência do acórdão Cobelfret, relativa ao regime de rendimentos tributados definitivamente (RTD), que passou a prever que a parte dos RTD que não pode ser deduzida durante a um exercício fiscal, devido à insuficiência de lucros, pode ser reportada para os exercícios fiscais posteriores por tempo ilimitado e com prioridade relativamente aos resultados positivos realizados pela sociedade-mãe nos exercícios subsequentes, uma vez que os restantes elementos dedutíveis, designadamente a dedução por capital de risco (DCR) só podem ser deduzidos se e na medida em que isso seja ainda possível após a dedução prioritária.

 

O Tribunal decidiu, nesta situação, que tanto a tributação direta da sociedade-mãe a título dos lucros distribuídos pela sua filial, como os casos em que a sociedade-mãe é indiretamente tributada pelos dividendos recebidos da sua filial, pode levar à perda de uma vantagem fiscal e a uma tributação da sociedade-mãe mais agravada do que se esses dividendos tivessem sido excluídos da sua base tributável. Uma vez que a carga fiscal da sociedade-mãe poderá ser afetada, deve considerar-se que esta última é indiretamente tributada pelos dividendos recebidos da sua filial (considerandos 40 e 45). Tendo-se entendido ainda que, embora os efeitos prejudiciais de uma regulamentação nacional possam verificar-se em certos casos e não de forma sistemática, isso não impede que essa legislação seja incompatível com a Diretiva 90/435 (considerando 51).

 

Consequentemente, o Tribunal respondeu à questão prejudicial dizendo que o artigo 4.º, n.º 1, da Diretiva 90/435 deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação de um Estado-Membro que prevê que os dividendos recebidos por uma sociedade-mãe da sua filial devem, num primeiro momento, ser incluídos na base tributável da primeira, antes de, num segundo momento, poderem ser objeto de dedução até 95% do seu montante, cujo excedente pode ser reportado para os exercícios seguintes, sem limitação no tempo, uma vez que essa dedução é prioritária em relação a outra dedução fiscal cujo reporte seja limitado no tempo.

 

7. Tendo em consideração que a Requerente reage contra o agravamento percentual das taxas de tributação autónoma resultante da dedução ao lucro tributável dos dividendos distribuídos pelas sociedades afiliadas, justifica-se efetuar uma mais precisa caracterização do que se entende por tributações autónomas.

 

            Deve começar por dizer-se que a tributação autónoma constitui a principal exceção à tributação do rendimento segundo o princípio do rendimento líquido ou rendimento real, pelo qual o rendimento das pessoas singulares é apurado depois de deduzidas as despesas feitas para a sua obtenção e a tributação das sociedades é determinada de acordo com o lucro apurado pela contabilidade (Saldanha Sanches, Manual de Direito Fiscal, 3.ª edição, Coimbra, pág. 406).

 

Como tem sido frequentemente assinalado, a tributação autónoma começou por se reportar a despesas confidenciais e não documentadas (artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 192/90, de 9 de junho), passando depois a abranger os encargos com viaturas, as importâncias pagas a pessoas com regime fiscal mais favorável e as despesas de representação, e, mais tarde, os encargos com ajudas de custo ou despesas de deslocação.

 

Com a Lei do Orçamento do Estado de 2010 (Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril), a tributação autónoma veio ainda a incluir os encargos relativos a indemnizações pagas a gestores, administradores ou gerentes por virtude de cessação de funções, e, bem assim, os encargos relativos a bónus e outras remunerações variáveis pagas a gestores, administradores ou gerentes quando estas representem uma parcela superior a 25 % da remuneração anual e possuam valor superior a € 27 500. Entretanto, a Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, aditou um n.º 14 ao artigo 88.º, prevendo a elevação das taxas de tributação autónoma previstas nesse artigo em 10 pontos percentuais quanto aos sujeitos passivos que apresentem prejuízo fiscal no período de tributação a que respeitem quaisquer dos factos tributários referidos nos números anteriores.  

 

A introdução do mecanismo de tributação autónoma é justificada por se reportar a despesas cujo regime fiscal é difícil de discernir por se encontrarem numa “zona de interseção da esfera privada e da esfera empresarial” e tem em vista prevenir e evitar que, através dessas despesas, as empresas procedam à distribuição oculta de lucros ou atribuam rendimentos que poderão não ser tributados na esfera dos respetivos beneficiários, tendo também o objetivo de combater a fraude e a evasão fiscais (Saldanha Sanches, ob. cit., pág. 407).

 

Para além disso, a tributação autónoma, embora regulada normativamente em sede de imposto sobre o rendimento, é materialmente distinta da tributação em IRC, na medida em que incide não diretamente sobre o lucro tributável da empresa, mas sobre certos gastos que constituem, em si, um novo facto tributário (que se refere não à perceção de um rendimento mas à realização de despesas). E, desse modo, a tributação autónoma tem ínsita a ideia de desmotivar uma prática que, para além de afetar a igualdade na repartição de encargos públicos, poderá envolver situações de menor transparência fiscal, e é explicada por uma intenção legislativa de estimular as empresas a reduzirem tanto quanto possível as despesas que afetem negativamente a receita fiscal.

 

Naquelas situações especiais elencadas na lei, o legislador optou, por isso, por sujeitar os gastos a uma tributação autónoma como forma alternativa e mais eficaz à não dedutibilidade da despesa para efeitos de determinação do lucro tributável, tanto mais que quando a empresa venha a sofrer um prejuízo fiscal, não haverá lugar ao pagamento de imposto, frustrando-se o objetivo que se pretende atingir que é o de desincentivar a própria realização desse tipo de despesas.

 

No entanto, através de sucessivas alterações legais, o legislador tem vindo a alargar o âmbito da tributação autónoma, tendo passado a incluir os encargos relativos a indemnizações pagas a gestores, administradores ou gerentes quando estes cessem funções, e, bem assim, os encargos relativos a bónus e outras remunerações variáveis pagas a gestores, administradores ou gerentes quando estas ultrapassem certos limiares. O que se mostra justificado como uma forma de assegurar “uma distribuição mais justa dos encargos tributários e a uma moralização progressiva das políticas remuneratórias das empresas”. Como a doutrina tem reconhecido, trata-se, neste caso, de mecanismos de tributação autónoma que se afastam do desígnio inicial de combater a fraude e a evasão fiscais – como sucedia com as despesas não documentadas -, mas que poderão ainda enquadrar-se no objetivo de limitar despesas que poderão repercutir-se no rendimento coletável das empresas.

 

Neste contexto, analisando a questão da tributação autónoma à luz do princípio da tributação das empresas segundo o rendimento real e do princípio da capacidade contributiva, o Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 197/2016, subscreveu o seguinte entendimento.

 

“(…) o IRC e a tributação autónoma são impostos distintos, com diferente base de incidência e sujeição a taxas específicas. O IRC incide sobre os rendimentos obtidos e os lucros diretamente imputáveis ao exercício de uma certa atividade económica, por referência ao. período anual, e tributa, por conseguinte, o englobamento de todos os rendimentos obtidos no período tributação. Pelo contrário, na tributação autónoma em IRC – segundo a própria jurisprudência constitucional -, o facto gerador do imposto é a própria realização da despesa, caracterizando-se como um facto tributário instantâneo que surge isolado no tempo e gera uma obrigação de pagamento com caráter avulso. Por isso se entende que estamos perante um imposto de obrigação única, por contraposição aos impostos periódicos, cujo facto gerador se produz de modo sucessivo ao longo do tempo, gerando a obrigação de pagamento de imposto com caráter regular.

Como é de concluir, a tributação autónoma, embora prevista no CIRC e liquidada conjuntamente com o IRC para efeitos de cobrança, nada tem a ver com a tributação do rendimento e os lucros imputáveis ao exercício económico da empresa, uma vez que incidem sobre certas despesas que constituem factos tributários autónomos que o legislador, por razões de política fiscal, quis tributar separadamente mediante a sujeição a uma taxa predeterminada que não tem qualquer relação com o volume de negócios da empresa”.

 

Em idêntico sentido, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 310/2012 chamou a atenção para a natureza materialmente distinta da tributação autónoma em relação ao imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas, ainda que essa imposição fiscal se encontre formalmente inserida no Código de IRC.

 

A esse propósito, esse aresto sublinhou:

 

“Contrariamente ao que acontece na tributação dos rendimentos em sede de IRS e IRC, em que se tributa o conjunto dos rendimentos auferidos num determinado ano (o que implica que só no final do mesmo se possa apurar a taxa de imposto, bem como o escalão no qual o contribuinte se insere), no caso tributa-se cada despesa efetuada, em si mesma considerada, e sujeita a determinada taxa, sendo a tributação autónoma apurada de forma independente do IRC que é devido em cada exercício, por não estar diretamente relacionada com a obtenção de um resultado positivo, e por isso, passível de tributação.

Assim, e no caso do IRC, estamos perante um imposto anual, em que não se tributa cada rendimento percebido de per si, mas sim o englobamento de todos os rendimentos obtidos num determinado ano, considerando a lei que o facto gerador do imposto se tem por verificado no último dia do período de tributação (cfr. artigo 8.º, n.º 9, do CIRC).

Já no que respeita à tributação autónoma em IRC, o facto gerador do imposto é a própria realização da despesa, não se estando perante um facto complexo, de formação sucessiva ao longo de um ano, mas perante um facto tributário instantâneo.

Esta característica da tributação autónoma remete-nos, assim, para a distinção entre impostos periódicos (cujo facto gerador se produz de modo sucessivo, pelo decurso de um determinado período de tempo, em regra anual, e tende a repetir-se no tempo, gerando para o contribuinte a obrigação de pagar imposto com caráter regular) e impostos de obrigação única (cujo facto gerador se produz de modo instantâneo, surge isolado no tempo, gerando sobre o contribuinte uma obrigação de pagamento com caráter avulso).

Na tributação autónoma, o facto tributário que dá origem ao imposto, é instantâneo: esgota-se no ato de realização de determinada despesa que está sujeita a tributação (embora, o apuramento do montante de imposto, resultante da aplicação das diversas taxas de tributação aos diversos atos de realização de despesa considerados, se venha a efetuar no fim de um determinado período tributário). Mas o facto de a liquidação do imposto ser efetuada no fim de um determinado período não transforma o mesmo num imposto periódico, de formação sucessiva ou de caráter duradouro. Essa operação de liquidação traduz-se apenas na agregação, para efeito de cobrança, do conjunto de operações sujeitas a essa tributação autónoma, cuja taxa é aplicada a cada despesa, não havendo qualquer influência do volume das despesas efetuadas na determinação da taxa”.

Entende-se, nos termos acabados de expor, que a base de incidência da tributação autónoma se não traduz num rendimento líquido, mas num custo dedutível transformado excecionalmente em objeto de tributação, correspondendo a uma sanção legal que se destina a reduzir a vantagem fiscal que poderia resultar de despesas injustificadas ou excessivas. E, neste enquadramento, seria inteiramente contrário à unidade do sistema jurídico que os benefícios fiscais a atribuir aos contribuintes em sede de IRC venham a ser deduzidos à coleta resultante da aplicação de taxas de tributação autónoma.

Como se assinalou, as taxas de tributação autónoma têm a natureza de normas anti-abuso e destinam-se a desencorajar certas situações especiais que visem obter uma diminuição da carga fiscal mediante a dedução de custos que se presume não serem determinados por uma causa empresarial. Além disso, o sistema normativo do imposto tem uma natureza dualista na medida em que integra, de um lado, a matéria coletável baseada no lucro tributável, e, de outro lado, a matéria coletável resultante da aplicação das taxas de tributação autónoma incidente sobre certo tipo de despesas.

Cabe recordar que a tributação autónoma incide sobre certas despesas tipificadas na lei fiscal que tenham sido efetuadas pela empresa, e apenas sobre essas despesas, e não visa a tributação dos rendimentos empresariais que tenham sido auferidos no respetivo exercício económico. E o objetivo do legislador - como se referiu – é o de desincentivar a realização de despesas que possam repercutir-se negativamente na receita fiscal e reduzir artificiosamente a própria capacidade contributiva da empresa.

A lógica da tributação autónoma parece ser esta. A empresa revela disponibilidade financeira para efetuar gastos que envolvem situações de menor transparência fiscal e afetam negativamente a receita fiscal. Nessa circunstância, o contribuinte deverá estar em condições de suportar um encargo fiscal adicional relativamente a esses mesmos gastos (que poderiam ser evitados) e que se destina a compensar a vantagem fiscal que resulta da redução da matéria coletável por efeito da realização dessas despesas.

A despesa constitui um facto tributário autónomo, gerando um imposto a que o contribuinte fica sujeito independentemente de ter obtido ou não rendimento tributável em IRC no mesmo período de tributação. E, assim, o facto revelador da capacidade contributiva é a própria realização da despesa.  

8. Delineados, em termos gerais, os dados legislativos e jurisprudenciais que mais relevam para a decisão da causa, é o momento de reverter à situação do caso concreto.

Deve começar por observar-se que a Requerente, embora formule um pedido de declaração de ilegalidade do agravamento em dez pontos percentuais das taxas de tributação autónoma liquidada relativamente ao exercício de 2019, previsto no artigo 88.º, n.º 14, do CIRC, assenta  a causa de pedir na dedução de dividendos distribuídos à sociedade-mãe pelas sociedades afiliadas, por considerar que foi essa dedução que gerou o prejuízo fiscal que, por sua vez, implicou o agravamento percentual da tributação autónoma.

 

Num primeiro plano de análise, é dificilmente compreensível que uma norma de direito interno, como a do artigo 51.º, n.º 1, do CIRC, que, em cumprimento da Diretiva 2011/96/UE, e em vista à eliminação da dupla tributação económica de lucros, estabelece que os lucros distribuídos à sociedade-mãe não concorrem para a determinação da matéria coletável, é, ela própria, violadora da Diretiva que precisamente impôs a não tributação desses lucros.

 

Com efeito, como se deixou esclarecido e resulta com evidência da jurisprudência do TJUE citada, a Diretiva 2011/96/UE, através do seu artigo 4.º, n.º 1, alínea a), tem como objetivo isentar de tributação os dividendos e outro tipo de distribuição de lucros pagos pelas sociedades afiliadas às respetivas sociedades-mãe, pretendendo evitar uma dupla tributação dos lucros, em termos económicos, ou seja, evitar que os lucros distribuídos sejam tributados à filial e, seguidamente, à sociedade-mãe.

 

E esse objetivo pode ser alcançado por duas vias: ou através do sistema de isenção ou através do sistema de imputação e ulterior dedução dos rendimentos.

 

Ora, o que pretende a Requerente, através do presente pedido arbitral - se bem se entende -, é que haja lugar à inclusão na base tributável dos dividendos distribuídos à sociedade-mãe porque só essa circunstância é que impede o agravamento das taxas da tributação autónoma, que foi desencadeado pelo apuramento de prejuízos fiscais, que, por seu turno, resultaram do mecanismo de eliminação da dupla tributação imposto pelo artigo 4.º, n.º 1, da Diretiva 2011/96 (cfr., a título de exemplo, os artigos 114.º e 119.º do pedido arbitral). Daí conclui a Requerente que a norma do n.º 14 do artigo 88.º do CIRC, que prevê o agravamento das taxas de tributação autónoma em caso de prejuízo fiscal, é ilegal por violação do disposto no artigo 4.º, n.º 1, da Diretiva 2011/96, transposta para a legislação portuguesa pelo artigo 51.º do CIRC (cfr., o artigo 120.º do pedido arbitral).

 

Ou seja, a Diretiva isenta de tributação os dividendos distribuídos pelas sociedades afiliadas à sociedade-mãe em vista a suprimir a dupla tributação desses rendimentos, e o artigo 51.º do CIRC transpôs corretamente para o direito interno essa legislação de direito europeu, e, por conseguinte, a Autoridade Tributária considerou que havia lugar dedução dos dividendos à matéria coletável. Apesar disso, a Requerente entende que foi violada a Diretiva por ter sido afastada a tributação dos lucros distribuídos, na medida em que só a não aplicação, no caso concreto, do mecanismo de eliminação da dupla tributação é que que podia impedir a existência de prejuízo fiscal e o consequente agravamento da taxa de tributação autónoma.

 

Ainda que a argumentação da Requerente deva ser rejeitada liminarmente por constituir um contra-senso e uma interpretação absolutamente contrária à que resulta do elemento literal e racional da norma de direito europeu, há que ter em consideração que toda a jurisprudência do TJUE que é citada no pedido arbitral, e a que se fez referência, nada tem a ver com a situação do caso. 

 

Essa jurisprudência pode ser sintetizada nos seguintes termos.

 

No Processo C-138/07 estava em causa um regime que previa que os dividendos eram deduzidos, num montante correspondente a 95%, apenas na medida em que existissem lucros tributáveis por parte da sociedade-mãe, o que tinha como efeito que a sociedade-mãe não podia beneficiar integralmente da vantagem fiscal concedida pela Diretiva.

 

O Processo C-68/15 referia-se a uma contribuição especial que incidia sobre a redistribuição de dividendos pela sociedade mãe e que tinha como consequência que os lucros ficavam sujeitos a uma tributação que ultrapassava o limite de 5% previsto para despesas de gestão da participação. Tal como no Processo n.º C-365/16 em que se analisava a cobrança de uma contribuição adicional sobre dividendos redistribuídos pela sociedade-mãe que podia incluir lucros provenientes das sociedades filiadas e originava uma dupla tributação económica.

 

No Processo C-39/16 discutia-se uma disposição de direito nacional que considerava não dedutíveis ao lucro tributável de sociedade-mãe os juros pagos por empréstimos obtidos, até ao montante dos dividendos distribuídos pelas sociedades afiliadas, mesmo que esses juros não dissessem respeito ao financiamento das participações detidas nessas sociedades.

 

Ainda no Processo C-389/18 estava em consideração o reporte para exercícios fiscais posteriores, por tempo ilimitado, dos rendimentos que não pudessem ser deduzidos num exercício fiscal, por insuficiência de lucros, o que originava indiretamente um agravamento da tributação aplicável à sociedade-mãe.

 

Em todas estas situações, o Tribunal de Justiça reconheceu que a legislação de direito nacional limitava a dedução dos lucros distribuídos pelas sociedades afiliadas à sociedade-mãe, implicando, de algum modo, uma perda da vantagem fiscal concedida pelo artigo 4.º, n.º 1, alínea a), da Diretiva 90/435/CEE (entretanto substituída pela Diretiva 2011/96/EU), e pondo em causa o objetivo da prevenção da dupla tributação dos lucros na esfera da sociedade-mãe.

 

Ao contrário, a norma do artigo 51.º, n.º 1, do CIRC admite, sem restrição, a dedução dos lucros distribuídos, e, no caso concreto, a Requerente nem sequer questiona que houve lugar a essa dedução, insurgindo-se apenas contra a circunstância factual de a dedução, corretamente efetuada, ter contribuído para o apuramento de um prejuízo fiscal ao nível do grupo societário, e, como necessária decorrência, ter gerado um agravamento da taxa percentual da tributação autónoma nos termos do disposto no artigo 88.º, n.º 14, do CIRC.

 

Essa consequência não tem, no entanto, qualquer relação com a dedução dos dividendos, nem implica, como se deixou exposto, qualquer violação do artigo 4.º, n.º 1, alínea a), da Diretiva 2011/96/EU, que tem justamente como objetivo isentar de imposto esses rendimentos.

 

Como se deixou assinalado, o mecanismo da tributação autónoma resulta da associação do sujeito passivo à realização de certas despesas e são essas despesas que constituem um facto tributário autónomo que gera o imposto, independentemente de o sujeito passivo ter obtido rendimento tributável em IRC no mesmo período de tributação. A tributação autónoma, embora regulada no âmbito do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas, é materialmente distinta da tributação em IRC e não incide diretamente sobre o lucro tributável da empresa.

 

Trata-se, por outro lado, de um imposto que tem em vista desincentivar a realização de despesas que se enquadram em situações de menor transparência fiscal. Assim se compreendendo que um princípio comum à tributação autónoma seja a diferenciação das taxas aplicáveis em função da especificidade das despesas. É também esse princípio que justifica o agravamento das taxas de tributação autónoma quando o sujeito passivo apresenta prejuízo fiscal no período de tributação a que respeita o facto tributário que origina a tributação autónoma. Visando, por conseguinte, as hipóteses em que os custos se mostram injustificados num quadro de normalidade e em função da situação fiscal da empresa.

 

Como é bem de ver, o agravamento das taxas de tributação autónoma previsto no artigo 88.º, n.º 14, do CIRC não pode ser entendido como uma forma de tributação direta ou indireta dos lucros distribuídos por uma sociedade afiliada à sociedade-mãe, uma vez que o que está em causa não é qualquer restrição à dedutibilidade dos lucros, mas uma realidade distinta que se traduz na verificação de um prejuízo fiscal independentemente das causas que originaram esse prejuízo.

 

Resta considerar que a evitação do prejuízo fiscal, como se deixou entrever, nunca poderia resultar da não dedutibilidade dos dividendos distribuídos, visto que é a própria Diretiva que impõe aos Estados-Membros a abstenção da tributação desses lucros.  

 

Por todo o exposto, o pedido arbitral mostra-se ser improcedente.

 

Reenvio prejudicial

 

9. A Requerente solicitou o reenvio prejudicial para o TJUE, ao abrigo do disposto no artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, caso exista dúvida sobre a interpretação do 4.º, n.º 1, da Diretiva 2011/96/UE, apesar da jurisprudência do TJUE que foi mencionada no pedido arbitral.

 

A referida disposição do TFUE determina que sempre que seja suscitada, perante um órgão jurisdicional de um Estado-Membro, uma questão de interpretação de um dos atos adotados pelas instituições da União, esse órgão pode pedir ao TJUE que sobre ela se pronuncie quando considere necessário, sendo obrigatória a submissão de uma questão dessa natureza ao Tribunal de Justiça quando as decisões do órgão jurisdicional nacional não sejam suscetíveis de recurso judicial no direito interno.

 

Ainda que se entenda que existe essa obrigatoriedade em relação às decisões dos tribunais arbitrais sobre o mérito da causa – tendo em consideração que o recurso para o STA para uniformização de jurisprudência, previsto no artigo 25.º, n.º 2, do RJAT, apenas tem lugar quando haja oposição de julgados quanto à mesma questão fundamental de direito -, o certo é que não subsiste dúvida fundada quanto à interpretação da referida disposição da Diretiva na perspetiva em que a Requerente coloca a questão.

 

Em qualquer dos acórdãos que foram analisados, o Tribunal de Justiça reconheceu existir uma limitação, na legislação de direito interno, quanto à dedução dos lucros distribuídos pelas sociedades afiliadas à sociedade-mãe, implicando, de algum modo, uma perda da vantagem fiscal concedida pelo artigo 4.º, n.º 1, alínea a), da Diretiva 90/435/CEE.

 

A disposição do artigo 51.º, n.º 1, do CIRC, como se deixou exposto, não estabelece qualquer restrição de dedutibilidade nesse campo, e antes instituiu o princípio da eliminação da dupla tributação económica de lucros distribuídos, de modo que esses rendimentos não concorram para a determinação da matéria coletável do sujeito passivo. E o regime constante do artigo 88.º, n.º 14, do CIRC, enquanto facto tributário autónomo, não é, em si, determinante de qualquer limitação à possibilidade de aplicação desse mesmo princípio.    

 

Não há qualquer correlação entre os acórdãos citados e o regime legal previsto no direito nacional e, aliás, o que a Requerente pretende é que, em certo período de tributação, não haja lugar à dedução dos lucros distribuídos por meras razões casuísticas de conveniência fiscal.

 

Entende-se, nestes termos, não haver qualquer justificação para o requerido reenvio prejudicial.

 

Reembolso do imposto pago e juros indemnizatórios

 

10. Sendo de julgar improcedente o pedido principal de declaração de ilegalidade do ato tributário de autoliquidação impugnado, fica necessariamente prejudicado o conhecimento do pedido de reembolso do imposto pago e de pagamento de juros indemnizatórios.

 

 

III – Decisão

 

Termos em que se decide:

  1. Julgar improcedente o pedido arbitral e manter na ordem jurídica o ato tributário de autoliquidação que vem impugnado, bem como a decisão de indeferimento da reclamação graciosa contra ele deduzida;
  2. Julgar prejudicado o conhecimento do pedido de reembolso do imposto pago e de pagamento de juros indemnizatórios.

 

Valor da causa

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 2.142.689,09, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

Notifique.

 

 

Lisboa, 2 de março de 2023

  

 

O Presidente do Tribunal Arbitral

 

Carlos Fernandes Cadilha

 

 

 

O Árbitro vogal

 

Augusto Vieira

 

O Árbitro vogal

 

 

João Menezes Leitão

(Embora admitindo a pertinência do reenvio prejudicial, subscrevo a decisão em atenção à natureza da tributação autónoma)