Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 296/2022-T
Data da decisão: 2023-03-06  IMT  
Valor do pedido: € 14.831,24
Tema: IMT. Artigo 236.º/2, da L 83-C/2013, de 31.12. Violação dos princípios da proibição da retroactividade fiscal e da protecção da confiança.
Versão em PDF

 

SUMÁRIO:

  1. O IMT é um imposto de obrigação única, em que a proibição da retroactividade implica o respeito pelos factos tributários passados, ou seja, a não aplicação da lei nova a esses factos, pois a obrigação tributária nasceu e está concluída.
  2. O art. 236.º/2, da L 83-C/2013, de 31.12, em conjugação com o art. 8º/16 da L 64-A/2008, de 31.12, na redacção da L 83-C/2013, estabelece uma tributação retroactiva (retroactividade autêntica), violadora do artigo 103º/3 da CRP, bem como infringe ainda a Constituição, por violação do princípio da protecção da confiança.
  3. A norma do art. 236.º/2 da L 83-C/2013 alcança e agrava a condição resolutiva aposta ao benefício, que vinha do passado, originando, com isso, uma situação de retroactividade.

DECISÃO ARBITRAL

I – Relatório

1.A..., Sociedade Gestora de Organismos de Investimento Colectivo, SA (doravante designada por Requerente), NF..., com sede na ..., ..., ..., ...-... Algés, na qualidade de sociedade gestora e em representação do B...– Fundo de Investimento Imobiliário para Arrendamento Habitacional (doravante designado por Fundo), NF..., veio requerer, ao abrigo do disposto nos art. 2.º/1 a) e 10.º/1 e 2 do DL 10/2011, de 20.1 (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária - RJAT) e dos art. 1.º e 2.º da Portaria 112-A/2011, de 22.3 a constituição de Tribunal Arbitral e deduzir o respectivo pedido de pronúncia sobre a legalidade do despacho de indeferimento do pedido de revisão oficiosa no processo n.º ... 2022 ... do acto de liquidação de Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas e Imóveis (IMT) e do próprio acto de liquidação com o n.º ... (no montante de 14.831,24) e respectivos juros compensatórios.

2.É requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por AT ou Requerida.

3.Em 29.4.2022 o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Ex.mo Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação com a notificação da AT.

4.De acordo com o preceituado nos artigos 5.º/3 a), 6.º/2 a) e 11.º/1 a) do RJAT, o Ex.mo Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o árbitro do Tribunal Arbitral singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável. As Partes, notificadas dessa designação, não manifestaram vontade de a recusar.

5.O Tribunal Arbitral ficou constituído em 5.7.2022.

6.Em 23.9.2022 a Requerida apresentou Resposta, com defesa por impugnação, juntando o processo administrativo.

7.Em 3.1.2023 foi proferido despacho prorrogando, por dois meses, o prazo de emissão e notificação da decisão - nos termos do art. 21.º RJAT - e, bem assim, dispensando a reunião prevista no art. 18.º do mesmo diploma, facultando às partes a possibilidade de, querendo, apresentarem, alegações escritas, sendo, para o efeito, concedido um prazo de 10 dias simultâneos.

8.Requerente e Requerida apresentaram as suas alegações em 17.1.2023, limitando-se a reafirmar o conteúdo produzido nas peças anteriores.

Posição da Requerente

A Requerente alega, como fundamento da sua pretensão, em síntese que:

9.O Fundo representado pela Requerente, foi constituído, em 19.11.2009, como Fundo de Investimento Imobiliário para Arrendamento Habitacional (“FIIAH”), ao abrigo do Regime Especial aplicável aos Fundos de Investimento Imobiliário para Arrendamento Habitacional (“REFIIAH”), aprovado pelos art. 102.º a 104.º da L 64-A/2008, de 31.12.

10.No âmbito da sua actividade, o Fundo adquiriu, ainda antes de 2014, diversos imóveis destinados a arrendamento para habitação permanente, tendo beneficiado da isenção de IMT consagrada no REFIIAH para as aquisições de prédios urbanos ou de fracções autónomas de prédios urbanos destinados exclusivamente a arrendamento para habitação permanente, nomeadamente o prédio urbano inscrito sob o art. matricial n.º ..., fracção CE, sito na freguesia de ... .

11.A referida isenção caducou por força da alteração legislativa introduzida pelo art. 230.º/2 da Lei n.º 83-C/2013, de 31.12, em conjugação com o art. 8.º/16 do REFIIAH, pelo que o Fundo foi notificado do acto de liquidação de IMT, o qual impunha que efectuasse o pagamento de imposto, no prazo de 30 dias, mediante a solicitação da correspondente guia para pagamento.

12.A Requerente entende estar perante um acto praticado pela AT que, respeitando a um imóvel adquirido pelo Fundo em momento anterior à aplicação da norma que determinou a caducidade da respectiva isenção (o art. 8.º/16 do REFIAHH, que apenas entrou em vigor no dia 1.1.2014), não se encontra em conformidade com a legislação aplicável.

13.Assim, haverá inconstitucionalidade da norma contida no art. 236.º/2 da Lei n.º 83-C/2013, de 31.12, em conjugação com o art. 8.º/16 do regime jurídico aplicável aos Fundos de Investimento Imobiliário Fechado para Arrendamento Habitacional (FIIAH) e às sociedades de Investimento Imobiliário para Arrendamento Habitacional (SIIAH), na versão decorrente das alterações levadas a cabo pela aludida lei, já que, de acordo com esse regime, as isenções em sede de IMT e de Imposto de Selo previstas no artigo 8.º/7 a) e 8 caducam se o imóvel adquirido for alienado no prazo de três anos, contados de 1.1.2014.

14.Isto porque, essa isenção de IMT não se encontrava subordinada a qualquer condição de cariz temporal, bastando, para o efeito, a mera observância do facto tributário, i.e. o acto de aquisição do direito de propriedade sobre os imóveis.

15.Não obstante, as alterações legislativas promovidas pelo Orçamento de Estado de 2014 (L 83-C/2013, de 21.12) e vêm estipular novas condições ou requisitos adicionais para a aplicação de benefícios fiscais a operações realizadas até 31.12.2013, que já haviam obtido os benefícios fiscais, as quais têm, assim, carácter retroactivo.

16.Na verdade, a aplicação retroactiva de novas condições e requisitos gerou situações de desaplicação dos benefícios fiscais legitimamente concedidos no passado, ao abrigo da anterior redacção das normas aplicáveis, pelo que a mesma viola o princípio da não retroactividade da lei fiscal (art. 103.º/3 CRP) e, ainda, o princípio da protecção da confiança e da segurança jurídica, todos constitucionalmente consagrados.

17.Conforme a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem vindo a consolidar, este mesmo princípio não poderá deixar de impedir que a lei tributária disponha para o passado, com efeitos retroactivos, prevendo a tributação de actos praticados quando ela ainda não existia, sob pena de se permitir que o Estado imponha determinadas consequências a uma realidade posteriormente a ela se ter verificado, sem que os seus actores tivessem podido adequar a sua actuação de acordo com as novas regras - cf. Ac. Tribunal Constitucional n.º 310/2012, de 20.6.2012, proc. 150/2012). Este mesmo Acórdão lembrou ainda que esta exigência revela as preocupações do princípio da protecção da confiança dos cidadãos, também ele princípio estruturante do Estado de direito democrático, reflectidas na vertente do princípio da legalidade, segundo o qual, a lei, numa atitude de lealdade com os seus destinatários, só deve reger para o futuro, só assim se garantindo uma relação íntegra e leal entre o cidadão e o Estado.

18.A retroactividade na aplicação da lei será, portanto, inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar e quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, desde a 1.º revisão) - cf. Ac. Tribunal Constitucional n.º 287/90, de 30.10.1990.

19.O novo regime, decorrente do art. 236.º da referida L 82-C/2013 é manifestamente prejudicial para o Fundo, defraudando todas as suas expectativas e impedindo-o de adequar as suas decisões de investimento, pelo que é manifestamente inconstitucional, devendo, por conseguinte, ser desaplicada essa norma,

20.Já que se trata da aplicação de lei nova a factos (no caso, factos tributários) antigos (anteriores, portanto, à entrada em vigor da lei nova) – cf. Ac.s TC 128/2009 e 85/2010 de 24.4.2009 e 16.4.2010, no âmbito de impostos de obrigação única, cujos efeitos, legais e fiscais, já tinham sido produzidos, ao abrigo do anterior regime jurídico consagrado para os FIIAH.

21.Nesse sentido, o Tribunal Constitucional decidiu já (ac. 23.10.2019, proc. 915/2019) julgar inconstitucional a norma contida no n.º 2 do artigo 236.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro, em conjugação com o n.º 16 do artigo 8.º do Regime jurídico aplicável aos Fundos de Investimento Imobiliário Fechado para Arrendamento Habitacional e as Sociedades de Investimento Imobiliário para Arrendamento Habitacional, na versão decorrente das alterações levadas a cabo pela aludida Lei, de acordo com a qual as isenções em sede de IMT e de Imposto de Selo previstas nos n.os 7, alínea a), e 8, daquele artigo 8.º caducam se o imóvel adquirido for alienado no prazo de três anos, contados de 1 de Janeiro de 2014, por violação do princípio da protecção da confiança, decorrente do artigo 2.º da Constituição.

Posição da Requerida

22.A Requerida recorda que o Fundo adquiriu o prédio urbano em causa em 31.12.2012, declarando ser destinado a arrendamento para habitação permanente, tendo beneficiado da isenção de IMT consagrada no REFIIAH para as aquisições de prédios urbanos ou de fracções autónomas de prédios urbanos destinados exclusivamente a arrendamento para habitação permanente, ao abrigo do n.º 7 do art.º 8.º do Regime Especial aplicável aos FIIAH/SIIAH, o qual alienado em 18.11.2014 – ou seja, decorridos 10 meses e 18 dias a contar da compra.

23.A referida isenção caducou nos termos do art. 8.º/16 do REFIIAH, aditado pela alteração legislativa introduzida pelo art. 235.º da L 83-C/2013, de 31.12, por ter sido alienado antes de decorrido o prazo previsto no nº 14 do referido artigo, daí decorrendo a liquidação de IMT que a Requerente impugna.

24.O Fundo apresentou pedido de revisão oficiosa do acto de liquidação, no qual exerceu o seu direito de participação, nos termos do art. 60.º da LGT, relativamente ao projecto de indeferimento.

25.Em 24.03.2022, foi proferido o despacho de indeferimento que motivou o pedido de pronúncia arbitral.

26.Relativamente à invocada inconstitucionalidade, a AT lembra que com o regime jurídico aplicável dos FIIAH e das SIIAH, o legislador pretendeu não apenas criar as condições necessárias à colocação de imóveis no mercado de arrendamento, mas acima de tudo permitir às famílias oneradas com prestações dos empréstimos à sua habitação própria e permanente, alienar o imóvel ao Fundo (e de aí permanecerem), assim vendo reduzidos os seus encargos por contrapartida de uma renda de valor inferior à prestação que antes tinham, com a possibilidade de mais tarde exercerem a opção (re)compra do mesmo.

27.Os Fundos constituídos segundo os art. 2.º a 6.º desse regime, beneficiavam, em contrapartida, de um desagravamento fiscal através do reconhecimento de que enquanto se mantiverem na carteira do FIIAH, os prédios urbanos destinados ao arrendamento para habitação permanente que integrem o património dos fundos de investimentos referidos no n.º 1 (art. 8.º/6 do regime jurídico dos FIIAH), redacção que se manteve inalterada com a LOE 2014.

28.Alguns contribuintes assumiram uma interpretação simplista da norma, segundo a qual a isenção seria reconhecida apenas por integrarem o património do Fundo, independentemente do destino efectivo do arrendamento se verificar, mas a AT sempre entendeu que, tratando-se de benefício dependente de reconhecimento, não bastaria a integração dos prédios na carteira do Fundo e a mera intenção do fim a que se destinavam – o arrendamento –, passando então a exigir não só a sua verificação mas também a sua comprovação, através de contrato de arrendamento celebrado entre as partes, com o qual se permitia aferir e determinar o período de vigência do benefício.

29.Essa interpretação está conforme ao entendimento expresso no ac.  175/2018 do Tribunal Constitucional, quando refere que no que toca aos benefícios fiscais consagrados na alínea a) do n.º 7 e no n.º 8 do artigo 8.º do Regime jurídico aplicável aos FIIAH, na versão aprovada pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro isenções de IMT e Imposto de selo, a causa do benefício só pode residir na efectiva disponibilização do imóvel adquirido para arrendamento habitacional. Por isso, a não disponibilização do imóvel para arrendamento habitacional do imóvel adquirido pelo fundo em momento ulterior ao da respectiva aquisição, determinava a caducidade do benefício, com consequente renascimento da correspondente obrigação tributária.

30.Com a aprovação e entrada em vigor da LOE 2014, o legislador manteve a parte enunciativa desse regime, concretizando, no entanto, sob inovação, o conceito do destino efectivo dos prédios, o prazo em que os Fundos deveriam comprovar esse destino e que prédios é que se deveriam considerar abrangidos pelas normas aditadas.

31.Assim, com a LOE 2014, o legislador veio através do art. 235.º, aditar os n.os14 a 16 ao art. 8.º do antedito regime, e através do art. 236.º aprovar uma norma transitória sobre a aplicabilidade do regime, passando a subordinar as aquisições de prédios ocorridas a partir de 1.1.2014 às normas aditadas, a qual prescreve a aplicação de novos pressupostos para a aplicação da isenção em matéria de IMT e de Imposto do Selo.

32.Da referida norma constante do art. 236.º/2 da L 83-C/2013 resulta que, caso os prédios adquiridos na vigência da Lei 64-A/2008, de 31.12, não sejam objecto de contrato de arrendamento no prazo de três anos, contados a partir de 1.1. 2014, ou, sejam alienados dentro desse prazo, os FIIAH e SIIAH perdem o direito à isenção de IMT e de Imposto do Selo prevista no art. 8.º/7 a) e 8, do Regime jurídico aplicável aos FIIAH e às SIIAH, aprovado por aquela Lei.

33.As referidas alterações não permitem inferir, a contrario, que, na ausência de tal prazo, a não afectação pura e simples do imóvel àquele fim não implicasse a perda da isenção.

34.O facto que determina a aplicação da norma isentiva era, já na sua versão original (L 64-A/2008), um facto de natureza complexa de formação sucessiva, que apenas se completava com a efectiva disponibilização do imóvel adquirido para fins de arrendamento.

35.Assim, nos termos definidos pelo Tribunal Constitucional, a causa do benefício só pode residir na efectiva disponibilização do imóvel adquirido para arrendamento habitacional, o que necessariamente significa que a actividade que se visa incentivar não é a mera aquisição do imóvel, ainda que acompanhada da declaração do propósito de o afectar ao arrendamento habitacional; é sim a colocação no mercado de arrendamento habitacional do imóvel adquirido, sendo essa, em definitivo, a actividade cujo exercício se pretendeu estimular através da concessão dos referidos benefícios,

36.E, portanto, o estabelecimento de um prazo dentro do qual o imóvel adquirido terá de ser efectivamente arrendado, sob pena de caducidade das isenções, não significa que a disponibilização do imóvel para aquele fim não integrasse já a condição inicialmente aposta ao benefício, mas sim que, em todos os casos em que o contrato de arrendamento não venha a ser efectivamente celebrado dentro daquele prazo (e ainda que por causa não imputável ao fundo), o benefício caduca, renascendo a correspondente obrigação tributária.

37.Donde, a caducidade das isenções concedidas ao abrigo da versão originária da Lei que aprovou o regime jurídico especialmente aplicável aos FIIAH e às SIIAH ocorre não apenas se o imóvel adquirido não for disponibilizado para arrendamento habitacional em momento posterior ao da respectiva aquisição, mas também se, não obstante aquela disponibilização, nenhum contrato de arrendamento vier a ser efectivamente celebrado por razões não imputáveis ao fundo e/ou o imóvel adquirido acabar por ser alienado na sequência dessa impossibilidade, dentro dos três anos subsequentes à entrada em vigor da nova lei.

38.Assim, quando o 236.º/2 da L 83-C/2013, determina a caducidade dos benefícios, no caso de o imóvel adquirido, apesar de disponibilizado para arrendamento habitacional, não vir a ser efectivamente arrendado dentro de determinado prazo por razões não imputáveis ao fundo e/ou acabar por ser por essa razão alienado de modo a minimizar eventuais prejuízos decorrentes da impossibilidade da sua rentabilização a lei nova transfere para os fundos o risco inerente ao funcionamento do mercado em termos que não só não tinham paralelo no domínio da lei antiga como não eram, em face dos que aí se previam, de modo algum antecipáveis, pelo que a aplicação retroactiva desta norma frusta as expectativas legitimas dos fundos imobiliários na manutenção do regime fiscal em vigor à data de aquisição dos imóveis, pelo que, não havendo qualquer interesse constitucionalmente protegido que justifique a lesão da confiança dos fundos imobiliários, será forçoso concluir pela inconstitucionalidade da referida norma, por violação do principio da tutela da confiança.

39.Daí que o Tribunal Constitucional tenha julgado inconstitucional a tributação assente neste aditamento (L 83-C/2013, de 31.12) e neste regime transitório (art. 236.º/2 da aludida Lei), por violar o art. 103.º/3 da CRP e do princípio da tutela da confiança jurídica, uma vez que os n.os 14 a 16 do art. 8.º do Regime dos FIIAH vem alargar o espectro da incidência do IMT e IS, ao impor novos requisitos necessários à concessão das isenções, que só deverão ter reflexo nas aquisições de imóveis a partir de 01.01.2014.

40.Quanto às aquisições anteriores a 01.01.2014, onde se inclui o caso em apreço, a mera alienação do imóvel antes de decorrido o prazo de três anos contados a partir de 1.1.2014 não faz caducar a isenção, todavia, para estes casos, a consolidação do benefício fiscal continua a depender do preenchimento das condições previstas, nos termos do disposto no artigo 8.º/7 a) e 8, do Regime jurídico aplicável aos FIIAH, na versão aprovada pela L 64-A/2008.

41.A AT tem o poder-dever de exigir ao sujeito passivo prova de que (1) o imóvel foi efectivamente disponibilizado para arrendamento habitacional após a aquisição e antes da alienação (ainda que nenhum contrato de arrendamento tivesse sido celebrado por razões inerentes ao próprio funcionamento do mercado), e (2) que a alienação foi a única alternativa financeiramente viável para a respectiva rentabilização.

42.Ora o Fundo não produziu tal prova – que lhe cabia, nos termos do art. 74.º/1 LGT – pelo que o acto de liquidação de IMT e juros compensatórios em análise, bem como o respectivo despacho de indeferimento não merecem qualquer censura, visto que foram emitidos de acordo com as normas vigentes, ora invocadas, e aplicáveis ao caso concreto.

 

II. Saneamento

43.O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, atenta a conformação do objecto do processo dirigido à anulação de actos de # (v. art.os 2.º e 5.º do RJAT).

44.O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no art. 10.º, do RJAT.

45.As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (v. art.os 4.º e 10.º/2 do RJAT e art. 1.º da Portaria 112-A/2011, de 22.3).

46.Não foram identificadas nulidades ou questões que obstem ao conhecimento do mérito.

 

III. Matéria de facto

Factos provados

47.Os factos relevantes para a decisão da causa que são tidos como assentes são os seguintes:

  1. O Fundo, ora requerente, foi constituído, em 19.11.2009, como Fundo de Investimento Imobiliário para Arrendamento Habitacional (FIIAH), ao abrigo do Regime Especial aplicável aos Fundos de Investimento Imobiliário para Arrendamento Habitacional (REFIIAH), aprovado pelos art. 102.º a 104.º da L 64A/2008, de 31.12;
  2. No âmbito da sua actividade, o Fundo adquiriu em 31,12,2012 o prédio urbano inscrito sob o artigo matricial n.º ..., fracção CE, da freguesia de ..., concelho de Viana do Castelo, declarando ser destinado a arrendamento para habitação permanente, tendo beneficiado da isenção de IMT consagrada no REFIIAH para as aquisições de prédios urbanos ou de fracções autónomas de prédios urbanos destinados exclusivamente a arrendamento para habitação permanente, ao abrigo do art.º 8.º/7 do Regime Especial aplicável aos FIIAH/SIIAH;
  3. O prédio em causa foi alienado pelo Fundo em 18.11.2014;
  4. A referida isenção caducou nos termos do art. 8.º/16 do REFIIAH, aditado pela alteração legislativa introduzida pelo artigo 235.º da L 83C/2013, de 31.12, por ter sido alienado antes de decorrido o prazo previsto no n.º 14 do referido artigo;
  5. Neste âmbito, foi o Fundo notificado da liquidação de IMT para, no prazo de 30 dias, efectuar o pagamento do imposto mediante a solicitação da correspondente guia para pagamento;
  6. Em 19.12.2016, na sequência do pedido efectuado, foi emitida a liquidação n.º..., ora em crise, no montante total de € 14.831,24, que o Fundo pagou integralmente.
  7. Em 17.11.2017, o Fundo apresentou um pedido de revisão oficiosa do referido acto de liquidação de IMT, com fundamento de que o mesmo padece de vício de ilegalidade, uma vez que, no seu entender, a aquisição em causa encontra-se isenta, por força da aplicação da isenção de IMT prevista no art. 1.º do DL 1/87.
  8. Notificado, através do ofício da UGC, de 15-02-2022, do projecto de indeferimento e para, no prazo de 15 dias, exercer, querendo, o seu direito de participação, nos termos e para os efeitos do art.º 60.º da LGT, a Requerente exerceu esse direito;
  9. Em 24.3.2022, foi proferido despacho de indeferimento com o fundamento que o DL 1/87 não se aplica aos FIIAH, tendo estes um regime específico e benefícios próprio, de acordo com a Instrução de Serviço da DSIMT n.º ..., de 09.09.2019.
  10. Em 18.04.2022, a Requerente apresentou o presente pedido de pronúncia arbitral.

Factos não provados

48.Não há factos relevantes para esta decisão arbitral que não se tenham provado.

49.O tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada ou não provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo remetido pela AT.

 

III. Matéria de Direito

50.Determina o art 8.º/7, do regime fiscal especial relativo aos fundos de investimento imobiliário para arrendamento habitacional (FIIAH) e às sociedades de investimento imobiliário para arrendamento habitacional (SIIAH), na sua redacção originária, o seguinte: Ficam isentos do IMT (a) As aquisições de prédios urbanos ou de fracções autónomas de prédios urbanos destinados exclusivamente a arrendamento para habitação permanente, pelos fundos de investimento referidos no n.º 1;

51.Donde, aquisições de prédios urbanos ou de fracções autónomas de prédios urbanos, como sucede no caso em apreço, com os prédios abrangidos pelas liquidações de IMT impugnadas, as mesmas estão isentas desde que destinados exclusivamente a arrendamento para habitação permanente, o que constitui norma especial relativamente à isenção.

52.A L 83-C/2013, de 31.12, aditou ao referido artigo 8.º os números 14 a 16 com a seguinte redacção:

14. Para efeitos do disposto nos n.os 6 a 8, considera-se que os prédios urbanos são destinados ao arrendamento para habitação permanente sempre que sejam objecto de contrato de arrendamento para habitação permanente no prazo de três anos contados do momento em que passaram a integrar o património do fundo, devendo o sujeito passivo comunicar e fazer prova junto da AT do respectivo arrendamento efectivo, nos 30 dias subsequentes ao termo do referido prazo.

15. Quando os prédios não tenham sido objecto de contrato de arrendamento no prazo de três anos previsto no número anterior, as isenções previstas nos n.ºs 6 a 8 ficam sem efeito, devendo nesse caso o sujeito passivo solicitar à AT, nos 30 dias subsequentes ao termo do referido prazo, a liquidação do respectivo imposto.

16 Caso os prédios sejam alienados, com excepção dos casos previstos no artigo 5.º, ou caso o FIIAH seja objecto de liquidação, antes de decorrido o prazo previsto no n.º 14, deve o sujeito passivo solicitar igualmente à AT, antes da alienação do prédio ou da liquidação do FIIAH, a liquidação do imposto devido nos termos do número anterior.

53.A L 83-C/2013 veio, ainda, consagrar no seu art. 236.º, o seguinte regime transitório:

1 — O disposto nos n.ºs 14 a 16 do artigo 8.º do regime especial aplicável aos FIIAH e SIIAH, aprovado pelos artigos 102.º a 104.º da Lei n.º 64 -A/2008, de 31 de Dezembro, é aplicável aos prédios que tenham sido adquiridos por FIIAH a partir de 1 de Janeiro de 2014.

2 — Sem prejuízo do previsto no número anterior, o disposto nos n.ºs 14 a 16 do artigo 8.º do regime especial aplicável aos FIIAH e SIIAH, aprovado pelos artigos 102.º a 104.º da Lei n.º 64 -A/2008, de 31 de Dezembro, é igualmente aplicável aos prédios que tenham sido adquiridos por FIIAH antes de 1 de Janeiro de 2014, contando-se, nesses casos, o prazo de três anos previsto no n.º 14 a partir de 1 de Janeiro de 2014.

54.Em face deste quadro legal, a Requerente entende existir uma inconstitucionalidade por violação do artigo 103.º/3 da CRP, por violação do princípio da não retroactividade da lei fiscal, bem como do princípio da confiança dos cidadãos, sustentando que a retroactividade em causa é autêntica, dada a natureza de imposto de natureza única, em que se enquadra o IMT. Sustenta ainda a violação do princípio constitucional da protecção da confiança dos cidadãos.

55.A Requerida entende que não se verificou a introdução de um regime de caducidade do benefício ou violação do princípio da não retroactividade fiscal. No seu entendimento a lei nova não determinou que os prédios adquiridos anteriormente a 1.1.2014 fossem objecto de tributação em sede de IMT, mas veio apenas densificar o conceito de afectação a arrendamento para habitação permanente e as situações em que a alienação não faz caducar a isenção.

56.A questão jurídica que cumpre solucionar é a de saber se, à luz do art 236,º/2, da L 83-C/2013, de 31.12 e dos n.os 14º, 15º e 16º da L 64-A/2008, de 31.12, na redacção conferida por aquele diploma, a aquisição do imóvel em causa, ocorrida antes de 1.1.2014, pode ser tributada por o imóvel ter sido vendido antes de decorrido o prazo de três anos contados a partir de 1.1.2014 e, por outro lado, em caso afirmativo, se tal solução legal é conforme com o artigo 103º/3, da CRP, que determina que [n]inguém pode ser obrigado a pagar impostos (…) que tenham natureza retroactiva (…). E, bem assim, se tal solução legal é conforme com o respeito pelo princípio constitucional da protecção da confiança dos cidadãos.

57.Face ao quadro legal transcrito, parece evidente que, num fundo de investimento imobiliário para arrendamento habitacional, como aquele que se apresenta nos presentes autos, a partir de 1.1.2014, a venda de um imóvel adquirido em ano anterior, que tenha beneficiado de isenção por o imóvel ter como destino o arrendamento para habitação permanente e que o venda antes de decorridos 3 anos após 1.1.2014, fica sujeito a imposto por força da lei 83-C/2013, de 31 de Dezembro.

58.No entendimento deste Tribunal arbitral, que segue o entendimento expresso pelo Dr. Rui Miguel Zeferino Ferreira pelo Dr. Marcolino Pisão Pedreiro, nas decisões arbitrais proferidas nos processos 482/2020-T e 40/2018-T, o facto tributário em causa, correspondente à aquisição da propriedade por parte do Requerente, verificou-se inteiramente ao abrigo da lei antiga. Na mesma linha de entendimento, é patente que o facto tributário em causa é sujeito a tributação face à lei 83-C/2013, de 31,12, mas não o era face à L 64-A/2008, de 31,12, na sua redacção originária.

59.Com efeito, estamos perante um imposto classificado como imposto de obrigação única, entendimento em que ambas as partes convergem, pelo que nos ensina a Prof.ª Ana Paula Dourado que nos casos dos impostos de obrigação única a proibição da retroatividade implica o respeito pelos factos tributários passados, ou seja, a não aplicação da lei nova a esses factos, pois a obrigação tributária nasceu e está concluída (in Direito Fiscal, Lições, 2015, Coimbra:Almedina, p. 175).

60.Por outro lado, tal como se sublinha no proc. 40/2018-T, a utilização do vocábulo “destinar” expressa a intenção do sujeito passivo no momento do facto tributário e que, declarada perante a Requerida, legalmente se presume verdadeira face ao art. 75º, nº 1, da Lei Geral Tributária, sem prejuízo da Administração Tributário poder ilidir tal presunção nos termos gerais. (...) Salvo o devido respeito por opinião contrária, não parece que estejamos perante uma condição resolutiva. Efetivamente, como escreve Sá Gomes “A condição é resolutiva quando a eficácia do facto tributário suspende os seus efeitos pelas verificação dos pressupostos do benefício fiscal, que é concedido, mas este fica, pela verificação dos pressupostos da referida condição resolutiva, sujeita a caducidade, renascendo então a obrigação tributária (…)” (Teoria Geral Dos Benefícios Fiscais, Cadernos de ciência e Técnica Fiscal, CEF, Lisboa, 991, pag. 147-148). Ora, na redacção primitiva do regime não foram tipificados os pressupostos da ocorrência de hipotética condição resolutiva, nem a lei a estabeleceu. Esta foi, sim, no nosso entendimento, estabelecida pela Lei 83-C/2013, de 31 de Dezembro.

61.Tenha-se ainda presente os termos do acórdão 617/2012, de 19.12.2012 (proc. 150/12), do Tribunal Constitucional no qual se afirma que o facto gerador da obrigação fiscal (...) ocorre indubitavelmente antes da publicação da lei nova, não sendo possível entender que se está perante um facto jurídico-fiscal complexo de formação sucessiva. A aplicação da nova lei a este facto ocorrido anteriormente à sua aprovação envolve, pois, uma retroactividade autêntica. O que releva, face aos princípios constitucionais enunciados, não é o momento de liquidação de um imposto, mas sim o momento em que ocorre o acto que determina o pagamento desse imposto. É esse acto que vai dar origem à constituição de uma obrigação tributária, pelo que é nessa altura, em obediência ao princípio da legalidade, na vertente fundamentada pelo princípio da protecção da confiança, que se exige, como medida preventiva, que já se encontre em vigor a lei que prevê a criação ou o agravamento desse imposto, de modo a que o cidadão possa equacionar as consequências fiscais do seu comportamento. (…) Ora, tendo já ocorrido o facto que deu origem à obrigação tributária posteriormente agravada por lei nova, as razões que presidiram à consagração da regra de proibição da retroactividade neste domínio estão integralmente presentes, uma vez que importa prevenir o risco abstracto de que a lei publicada com retroacção de efeitos provoque agravos financeiros desrazoáveis, pela impossibilidade em que se encontravam os contribuintes afectados, vinculados a tais factos já ocorridos, de prever e prover quanto às suas consequências tributárias, determinadas por lei futura.

62.Afigura-se, portanto, que o art. 236.º/2, da L 83-C/2013, em conjugação com o art. 8.º/16 da L 64-A/2008, na redacção da L 83-C/2013, estabelece uma tributação retroactiva (retroactividade autêntica), violadora do art. 103º/3 da CRP, pelo que não pode o tribunal deixar de desaplicar as mesmas, em obediência à norma consagrada no art. 204.º da CRP.

63.De facto, ao adicionar ao pressuposto originariamente previsto para a isenção – destinação do imóvel adquirido exclusivamente a arrendamento para habitação permanente – os novos pressupostos resultantes do aditamento ao art. 8.º do Regime jurídico aplicável aos FIIAH dos seus actuais n.os 14 a 16 –  a exigência de celebração efectiva de contrato de arrendamento para habitação e de não alienação do mesmo dentro de certo prazo –, a norma do n.º 2 do art. 236.º da Lei n.º 83-C/2013 alcança e agrava a condição resolutiva aposta ao benefício, que vinha do passado, originando, com isso, um caso de retroactividade inautêntica.

64.Apesar de não se encontrar sob incidência da proibição da retroactividade fiscal consagrada no art. 103.º/3 da Constituição  –  e de não ser, por isso, sancionável de forma automática, nos termos em que o são as situações de retroactividade autêntica, a norma constante do art. 236.º/2 da Lei n.º 83-C/2013 apenas poderá ser considerada constitucionalmente conforme se, em face dos elementos que integram a relação jurídico-tributária atingida, for de concluir que a aplicação da nova disciplina jurídica a factos iniciados sob a vigência da lei antiga é compatível com as exigências que, em caso de mutação da ordem jurídica, o legislador ordinário é obrigado a respeitar por força do princípio da protecção da confiança.

65.O princípio da tutela da confiança vem sendo densificado na jurisprudência constitucional no sentido de que a sua tutela depende de dois pressupostos: a) a afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda b) quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no art. 18.º/2 da Constituição.

66.A lesão da confiança constitucionalmente censurável pressupõe, por força daquele primeiro critério, que o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos destinatários expectativas de continuidade, que essas expectativas sejam legítimas, justificadas e fundadas em boas razões e, por último, que os particulares tenham feito planos de vida tendo em conta a perspectiva de continuidade do comportamento estadual, que possam sair frustrados por mutações normativas do ordenamento com que os destinatários das normas não pudessem razoavelmente contar.

67.O conjunto de benefícios fiscais incluídos no Regime jurídico especial aplicável aos FIAAH e SIAAH teve como propósito atrair o investimento privado para a constituição de fundos imobiliários, bem como a aquisição por estes de imóveis destinados ao mercado do arrendamento habitacional.

68.Embora o objectivo último de tal regime fosse dar resposta à situação das famílias que haviam deixado de conseguir suportar o empréstimo contraído para financiamento da aquisição dos imóveis em que residiam, permitindo-lhes manterem-se nos prédios adquiridos, mediante a celebração de contratos de arrendamento habitacional, apesar da respectiva alienação aos fundos imobiliários, o meio escolhido para o alcançar passou pela instituição de um conjunto de benefícios fiscais destinados a incentivar a constituição de fundos imobiliários e a fomentar o investimento destes na aquisição de imóveis para aquele efeito: era através do investimento a realizar pelos fundos imobiliários, incentivado pelo conjunto de vantagens fiscais associadas à aquisição de imóveis para ulterior arrendamento habitacional, que, na lógica subjacente ao regime instituído, tal finalidade seria em definitivo alcançada.

69.Sob a vigência da lei antiga, a destinação do imóvel adquirido ao arrendamento habitacional, através da sua efectiva disponibilização para tal efeito, constituía condição simultaneamente necessária e suficiente para atribuição das isenções concedidas no âmbito do IMT e do imposto de selo. Conforme notado, e bem, pelo Tribunal a quo, nada ali se previa sobre a necessidade de o imóvel adquirido vir a ser efectivamente arrendado e/ou de permanecer na propriedade do fundo adquirente durante um certo prazo, sob pena de caducidade do benefício.

70.Incentivados pelo regime fiscal previsto na L 64-A/2008, os fundos imobiliários realizaram um conjunto de investimentos na aquisição de imóveis, na legítima convicção de que os benefícios fiscais associados a tais aquisições apenas caducariam se o imóvel adquirido não viesse a ser disponibilizado para arrendamento habitacional após a respectiva aquisição e não também se, não obstante essa disponibilização, nenhum contrato de arrendamento viesse efectivamente a ser celebrado dentro de determinado prazo por razões inerentes ao próprio funcionamento do mercado e/ou a fracção adquirida acabasse por ser alienada por ausência de qualquer outra alternativa financeiramente viável para a respectiva rentabilização.

71.A confiança depositada pelos fundos na constância do regime fiscal contemporâneo dos investimentos que decidiram realizar, para além de digna de tutela, não pode deixar de considerar-se atingida pelas consequências da aplicação retroactiva dos novos pressupostos da isenção.

72.Ao determinar a caducidade dos benefícios fiscais no caso de o imóvel adquirido, apesar de disponibilizado para arrendamento habitacional, não vir a ser efectivamente arrendado dentro de determinado prazo por razões não imputáveis ao fundo e/ou acabar por ser por essa razão alienado de modo a conter ou minorar os prejuízos advenientes da objectiva impossibilidade da sua rentabilização no âmbito do destino legalmente prescrito, a lei nova transfere para os fundos o risco inerente ao funcionamento do mercado em termos que não só não tinham paralelo no domínio da lei antiga como não eram, em face dos que aí se previam, de modo algum antecipáveis.

73.De forma totalmente inovatória, passou a decorrer do regime aprovado pela lei nova que, independentemente das razões que possam ter inviabilizado a efectiva celebração do contrato de arrendamento sobre o imóvel, o benefício fiscal caduca pelo mero facto de tal contrato não chegar a ser efectivamente celebrado e/ou de o imóvel adquirido não ter permanecido na propriedade do fundo por determinado prazo, apesar da ausência de qualquer alternativa financeiramente sustentável para a sua detenção. Deste último ponto de vista – que é o que directamente releva no caso sub judice –, decorre da aplicação do novo regime às aquisições realizadas sob a vigência da L 64-A/2008 que o fundo imobiliário, ainda que tenha envidado todos os esforços para viabilizar a celebração de um contrato de arrendamento sobre o imóvel adquirido, é obrigado, sob pena de extinção do benefício, a manter a propriedade do prédio, suportando todos os encargos respectivos, durante os três anos subsequentes à entrada em vigor da L 83-C/2013, mesmo na duradoura e persistente impossibilidade de concretização daquele desiderato.

74.Ao originar a caducidade das isenções fiscais previstas no âmbito do IMT e do Imposto de selo por via do aditamento dos novos pressupostos, não contemplados na lei vigente à data da adquisição dos imóveis, a aplicação retroactiva das alterações introduzidas pela L83-C/2013 frustra as expectativas legitimamente incutidas nos fundos investidores pelo regime fiscal em vista (e sob incentivo) do qual tais aquisições foram decididas realizar, violando aquele mínimo de certeza e de segurança que todos os intervenientes no tráfego jurídico, ao planearem a sua acção e ao realizarem as suas escolhas, devem poder depositar na ordem jurídica de um Estado de Direito.

75.Não se descortinando qualquer interesse constitucionalmente protegido cuja salvaguarda pudesse justificar a lesão da confiança dos fundos imobiliários na manutenção do regime fiscal contemporâneo do ato de aquisição dos imóveis, é de concluir pela inconstitucionalidade, por violação do princípio da tutela da confiança, da norma constante do art. 236.º/2 da Lei n.º 83-C/2013, de 31.12, em conjugação com o art. 8.º/16 do regime jurídico aplicável aos FIIAH e às SIIAH, na versão decorrente da aludida L 83-C/2013, por dela resultar que os prédios adquiridos na vigência da L 64-A/2008, de 31.12, têm de ser efectivamente arrendados num prazo fixo, sem que possam ser vendidos na hipótese de o contrato de arrendamento não vir a ser celebrado, sob pena de caducidade da isenção.

76.A Requerente veio ainda pedir a restituição das quantias indevidamente arrecadadas pela Requerida bem como o pagamento de juros indemnizatórios que se mostrarem devidos, nos termos do artigo 43.º da Lei Geral Tributária.

77.No caso em apreço, é manifesto que, na sequência da declaração de ilegalidade dos actos de liquidação, é procedente a pretensão do Requerente à restituição por força dos artigos 24.º/ 1, b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal é essencial para restabelecer a situação que existiria se a ilegalidade em causa não tivesse sido praticada.

 

IV. Decisão

Em face do supra exposto, decide-se

  1. Julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade do despacho de indeferimento do pedido de revisão oficiosa do despacho de liquidação de IMT supra identificado;
  2. Condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, calculados nos termos legais, em conformidade com o peticionado;
  3. Condenar a Requerida no pagamento integral das custas do presente processo.

 

V. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em 14.831,24 € (catorze mil oitocentos e trinta e um euros e vinte e quatro cêntimos) nos termos do disposto no art. 32.º do CPTA e no art. 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º/1 a) e b), do RJAT, e do artigo 3.º/2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

VI. Custas

Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de 918 € (novecentos e dezoito euros), a pagar pela Requerida, nos termos dos artigos 12.º/2, e 22.º/4, do RJAT, e artigo 4.º/5, do RCPAT.

 

Notifique-se.

Lisboa, 6 de Março de 2023

 

 

O Árbitro

 

 

Rui M. Marrana

Texto elaborado em computador, nos termos do disposto

no art. 131.º/5, do CPC, aplicável por remissão do art. 29.º/1 e), do RJAT.

A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.