Sumário:
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Na aplicação das convenções de dupla tributação celebradas entre Portugal e outros Estados da OCDE, os Comentários à Convenção-modelo para a eliminação da dupla tributação são, pelo menos, elemento coadjuvante ou auxiliar de interpretação, para efeitos do disposto nos artigos 31 e 32 da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados.
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Segundo os Comentários, a determinação sobre se o trabalho prestado se enquadra numa relação de emprego ou numa relação de prestação de serviços é um assunto que releva, essencialmente, do direito interno do Estado onde o trabalho é prestado. In casu, a autoridade tributária dinamarquesa, aplicando um princípio de prevalência da substância sobre a forma, chegou à conclusão de que o trabalho prestado pelo Requerente a uma entidade residente na Dinamarca configurou uma relação de emprego.
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Havendo desacordo entre os Estados sobre a qualificação de uma relação jurídica como uma relação de “emprego”, devem aplicar-se os testes e os fatores adicionais de qualificação elencados nos parágrafos 8.13 a 8.15 do Comentário ao artigo 15. No caso concreto, os elementos de facto trazidos aos presentes autos não sustentam a conclusão de que a Dinamarca, enquanto Estado a cujo direito interno incumbe prima facie a decisão de qualificar uma dada relação jurídica, tenha reclamado competência para tributar o Requerente ao arrepio do quadro definido pela CDT Portugal-Dinamarca, mormente do seu artigo 15, n.º 1.
DECISÃO ARBITRAL
I. Relatório
1. A..., titular do n.º de identificação fiscal..., com domicílio fiscal na ..., n.º ..., ..., ...-... Lisboa (doravante, Requerente), apresentou, em 15 de fevereiro de 2022, pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2, n.º 1, al. a), e 10, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em matéria Tributária (doravante, RJAT), com as alterações subsequentes, e da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, alterada pela Portaria n.º 287/2019, de 3 de setembro, que vincula vários serviços e organismos do Ministério das Finanças e da Administração Pública à jurisdição do Centro de Arbitragem Administrativa.
2. No pedido de pronúncia arbitral, o Requerente pede:
(i) a anulação da decisão de indeferimento parcial que recaiu sobre o recurso hierárquico e a consequente anulação do ato de liquidação n.º 2020...;
(ii) a condenação da Autoridade Tributária no reembolso do montante de €1.778,76, suportado, em excesso, pelo Requerente, acrescidos de juros indemnizatórios, devidos nos termos do artigo 43 da Lei Geral Tributária (doravante, LGT).
3. É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, AT ou Requerida).
4. O pedido de constituição de tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD em 16 de fevereiro de 2022.
5. O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6, n.º 2, alínea a) e do artigo 11, n.º 1, al. a), ambos do RJAT, o Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou como árbitro singular, o Exmo. Senhor Dr. Tito Barros Caldeira, que comunicou a aceitação do encargo no prazo devido.
6. Foram as partes, no mesmo dia, notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar (cf. artigo 11, n.º 1, al. b) e c) do RJAT, em conjugação com o disposto nos artigos 6 e 7 do Código Deontológico do CAAD), pelo que, ao abrigo da al. c) do n.º 1 do artigo 11 do RJAT, o Tribunal Arbitral ficou constituído no dia 27 de abril de 2022.
7. Em 03 de maio de 2022, o Tribunal Arbitral proferiu Despacho ordenando a notificação da Requerida para apresentar Resposta, juntar cópia do Processo Administrativo e solicitar, querendo, a produção de prova adicional (cf. artigo 17.º do RJAT). O Despacho foi notificado na mesma data.
8. A Requerida veio apresentar resposta, em 06 de junho de 2022, remetendo o Processo Administrativo. Em despacho com data de 24 de outubro de 2022, o árbitro designado determinou, ao abrigo do artigo 21, n.º 2 do RJAT, a prorrogação, por dois meses, do prazo para a prolação da decisão arbitral. Por despacho com data de 11 de novembro de 2022, o Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou como árbitra a signatária, em face da renúncia do Exmo. Senhor Dr. Tito Barros Caldeira.
9. Assim, em 20 de dezembro de 2022, proferiu a Relatora despacho com o seguinte teor:
«(...)
1 - Foi requerida, no âmbito do processo em epígrafe, produção de prova testemunhal por parte do requerente.
Solicita-se ao requerente que, no prazo de 5 (cinco) dias contados a partir da data da notificação do presente Despacho, venha ao processo dizer (i) se mantém interesse na realização da sobredita diligência (inquirição de testemunha) e (ii) e sobre que factos, constantes do pedido arbitral, incidirá a diligência.
2 - Assumindo que o requerente mantém interesse na realização da diligência, agenda-se a reunião a que alude o artigo 18, n.º 1 do RJAT para o dia 16 de janeiro de 2023, às 14h30, devendo a inquirição da testemunha apresentada ter lugar no âmbito desta reunião.
3 – Neste sentido, solicita-se às partes que, até 5 (cinco) dias antes da data agendada para a realização da reunião, venham ao processo dizer se pretendem participar na diligência presencialmente, nas instalações do CAAD em Lisboa ou no Porto, ou por meios telemáticos, via WEBEX.
4 - Mais se determina, em virtude da redistribuição do presente processo à Relatora e da necessidade de realizar diligências probatórias, a prorrogação, pelo período de dois meses, do termo do prazo para a prolação a decisão arbitral, conforme previsto no n.º 2 do artigo 21 do RJAT.
(...)»
10. Por requerimento apresentado no dia 12 de janeiro de 2023, veio o Requerente solicitar o adiamento da diligência e reunião agendadas para o dia 16 de janeiro de 2023, às 14h30, em virtude da impossibilidade de a testemunha por si arrolada estar presente no dia e hora previamente fixados. Na sequência deste pedido, foram a diligência e a reunião a que alude o artigo 18, n.º 1 do RJAT, reagendadas para o dia 09 de fevereiro de 2023 (cf. despacho da Relatora, com data de 12 de janeiro de 2022), tendo, logo de seguida, a Requerida, por requerimento apresentado no dia 13 de janeiro de 2022, manifestado a sua anuência relativamente à nova data.
11. A diligência processual e, bem assim, a reunião a que alude o artigo 18, n.º 1 do RJAT realizam-se na data agendada. Nela compareceram a Relatora, os Ilustres mandatários do Requerente e o Ilustre representante da AT. Finda a audição da testemunha arrolada pelo Requerente determinou a Relatora que o processo prosseguisse para alegações escritas, facultativas e simultâneas, a apresentar no prazo de 10 (dez) dias, contados a partir da data da realização da reunião, de harmonia com o preceituado no artigo 120, n.º 1 do CPPT, aplicável ex vi do artigo 29, n.º 1, al. c) d RJAT. Ademais, fazendo uso do artigo 21, n.º 2 do RJAT, A Relatora prorrogou o prazo para a prolação da decisão arbitral por dois meses, a fim de que as partes pudessem apresentar as suas alegações escritas, determinando que a decisão arbitral seria proferida até ao dia 27 de abril de 2023, em obediência ao disposto no artigo 18, n.º 2 do RJAT.
12. A Requerente apresentou alegações escritas no dia 20 de fevereiro de 2023, reiterando o que constava do pedido de pronúncia arbitral. A Requerida apresentou as suas alegações escritas na mesma data, reiterando o teor da resposta.
II. Síntese da posição das partes
13. A posição das partes pode ser sintetizada da seguinte forma:
(a) O Requerente pugna pela anulação do ato de indeferimento parcial do recurso hierárquico e pela anulação da liquidação de IRS com fundamento no facto de, não soçobrando dúvidas de que tanto o Estado do trabalho (Dinamarca) como o Estado da residência (Portugal) tributaram os rendimentos obtidos no estrangeiro, deveria a AT ter aplicado o método para a eliminação da dupla tributação previsto na CDT entre Portugal e Dinamarca, conferindo-lhe o direito ao crédito de imposto por dupla tributação internacional a que aludem os artigos 23, n.º 2, a) da CDT Portugal-Dinamarca e 81, n.º 1 do CIRS.
(b) Isto sucede porque, nos termos do par. 8.4 dos comentários da OCDE ao artigo 15 da Convenção-modelo da OCDE, a menos que se verifique alguma das situações mencionadas no par. 8.11 – o que, no entender do Requerente, não é o caso – cabe ao Estado do trabalho (Dinamarca) determinar se a atividade prestada por um indivíduo nesse Estado constitui materialmente uma relação de emprego. Ora, tendo as autoridades fiscais dinamarquesas qualificado a relação entre o Requerente e a B... Dinamarca como uma relação de emprego, à luz de critérios objetivos definidos nesses comentários, não pode a AT afastar essa qualificação, sob pena de efetuar uma interpretação e aplicação da lei (portuguesa) em desconformidade com o direito internacional.
(c) A Requerida (AT) entende, por seu turno, que estão verificados os requisitos de que o n.º 2 do artigo 15 da CDT entre Portugal e a Dinamarca faz depender a tributação exclusiva pelo Estado da residência de rendimentos auferidos por um residente por força de um emprego exercido no outro Estado parte. Por conseguinte, a Dinamarca, enquanto Estado da fonte, não pode tributar esses rendimentos. Com efeito, o poder de o Estado da fonte desconsiderar a qualificação formal (como contrato de prestação de serviços) que as partes deram a um determinado negócio jurídico em benefício da sua substância (como contrato de trabalho) não é ilimitada, devendo assentar em critérios objetivos. O artigo 15, n.º 2 da CDT ficaria esvaziado de sentido se fosse permitido ao Estado da fonte considerar os serviços como sendo prestados ao abrigo de uma relação de emprego em casos em que essa relação de emprego claramente não existe.
(d) Entende a Requerida que não se encontra demonstrada a existência de uma relação de emprego entre o Requerente e a B... Dinamarca, designadamente porque não se encontra demonstrado que a remuneração auferida pelo Requerente no âmbito do trabalho prestado na Dinamarca foi paga por conta da B... Dinamarca, no contexto do “hired-out labour”. Mais do que isso, entende a Requerida que não subsistem dúvidas sobre a inexistência de tal relação, para efeitos do disposto no comentário n.º 8.11 (ao artigo 15, n.º 2 da CDT), não devendo haver lugar ao crédito de imposto por dupla tributação internacional nos termos do artigo 81, n.º 1 do CIRS.
III – Saneamento
14. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, atenta a conformação do objeto do processo (cf. artigos 2, n.º 1, al. a) e 5 do RJAT).
O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10, n.º 1, alínea a), do RJAT. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4 e 10, n.º 2 do RJAT e artigo 1 da Portaria n.º 112- A/2011, de 22 de março, na redação da Portaria n.º 287/2019, de 3 de setembro).
15. O processo não enferma de nulidades.
Cumpre, pois, apreciar e decidir.
IV – Matéria de facto
§1. Factos provados
16. Com relevo para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:
1.º - Durante o ano de 2017, e no contexto da relação laboral que mantém com a C..., S.A. (doravante, C... Portugal), o Requerente deslocou-se à Dinamarca, onde exerceu a sua atividade no âmbito de um projeto criado e coordenado pela B... Dinamarca, em benefício de uma seguradora dinamarquesa.
2. º - O Requerente permaneceu na Dinamarca por um período inferior a 183 dias.
3.º - As remunerações devidas ao Requerente foram pagas pela C... Portugal e depois debitadas à B... Dinamarca.
4.º - Durante o período em que exerceu a sua atividade profissional em benefício da B... Dinamarca, esta, enquanto entidade responsável pelo projeto, instruiu o Requerente quanto à forma de realizar o trabalho.
5.º - Durante o período em que exerceu a sua atividade profissional em benefício da B... Dinamarca, esta definiu o local onde o trabalho do Requerente deveria ser realizado.
6.º - Durante o período em que exerceu a sua atividade profissional em benefício da B... Dinamarca, esta determinou o número de trabalhadores necessários à realização do projeto e as suas qualificações, inclusivamente as do Requerente.
7.º - A C... Portugal, entidade patronal do Requerente, efetuou retenção na fonte sobre rendimentos auferidos no estrangeiro no montante de €2.200,00 (cf. declaração mensal de remunerações do mês de dezembro de 2017).
8.º - O Requerente foi tributado na Dinamarca pelos rendimentos da atividade profissional aí exercida, nos seguintes termos:
(cf. documento n.ºs 12, junto com o PPA).
9.º - Em 2018, o Requerente submeteu em Portugal a sua declaração Modelo 3 de IRS, com referência ao ano de 2017, não mencionando os rendimentos de fonte estrangeira.
10.º - No dia 07 de novembro de 2019, na sequência de troca automática de informações fiscais internacionais entre as autoridades portuguesa e dinamarquesa, o Requerente foi notificado para corrigir a sua declaração Modelo 3 de IRS, tendo em conta a seguinte informação apurada:
(cf. Documento n.º 13, junto com o PPA)
11.º - No seguimento das alterações efetuadas pelo Requerente à sobredita declaração, a AT emitiu nota de liquidação, sob o n.º 2019..., atribuindo ao Requerente o direito ao reembolso no montante de €3.127,69 (cf. Documento n.º 15, junto com o PPA).
12.º - No dia 16 de dezembro de 2019, o Requerente foi notificado, através do Ofício n.º..., de 12 de dezembro de 2019, de que, em face das divergências que subsistiam entre os valores declarados e os valores comunicados pela Autoridade tributária dinamarquesa, a AT liquidaria imposto adicional (Demonstração de Liquidação n.º 2020...), no valor de €907,86 (cf. Documentos n.ºs 16 e 17, juntos com o PPA).
13.º - No dia 02 de março de 2020, o Requerente procedeu ao pagamento de €4.035,55, montante correspondente aos €3.127,69 do reembolso, acrescidos dos €907,86 apurados pela AT (cf. Documento n.º 18, junto com o PPA).
14.º - No dia 27 de novembro de 2020, o Requerente apresentou reclamação graciosa, invocando o direito de dedução à coleta para eliminação da dupla tributação internacional, por força do imposto pago na Dinamarca, e a tomada em consideração, na liquidação, do montante de imposto retido na fonte (a título de pagamento por conta) pela C... Portugal (cf. Documento n.º 03, junto com o PPA).
15.º - Por decisão adotada no dia 30 de novembro de 2020, a reclamação graciosa foi indeferida, por o Requerente – então reclamante – não ter juntado documentos que comprovassem, de forma inequívoca, o imposto pago na Dinamarca.
16.º- No dia 5 de fevereiro de 2021, o Requerente apresentou recurso hierárquico do ato de liquidação n.º 2020... . O recurso hierárquico foi parcialmente deferido, por se ter constatado que, tendo a entidade patronal (C... Portugal) efetuado retenção na fonte sobre os rendimentos auferidos no estrangeiro, deveria o montante de imposto retido ser deduzido à coleta de IRS (cf. documento n.º 01, junto pelo Requerente com o PPA).
17.º - Na sequência do deferimento parcial do recurso hierárquico, procedeu a AT à liquidação n.º 2022..., da qual resultou um valor de reembolso no montante de €1.427,65 (cf. documento n.º 09, junto pelo Requerente com o PPA).
§2. Factos não provados
17. Não há factos provados com relevo para a discussão da causa.
§3. Fundamentação da matéria de facto
18. O Tribunal arbitral fundou a sua convicção quanto aos factos provados com base na apreciação da prova documental e testemunhal produzida.
Um dos factos controvertidos, tendo em conta a resposta apresentada pela AT, prendia-se com saber se as remunerações devidas ao Requerente foram pagas pela C... Portugal por conta da B... Dinamarca (3.º de §1. Factos Provados). Ora, o Tribunal arbitral reputa que tal factualidade se encontra suficientemente demonstrada, por banda do Documento n.º 11, cuja autenticidade a AT (neste momento) não impugna, ao qual acresce o depoimento da testemunha arrolada pelo Requerente – D..., sócia da C... Portugal, afeta à área fiscal dos projetos internacionais – que confirmou, em termos que este Tribunal considera credíveis, que a remuneração do Requerente foi paga pela C... Portugal, a título de débito (a “redebitar”) a imputar à B... Dinamarca (minutos 09’00 e 18’00 da inquirição).
A factualidade subjacente a 4.º, 5.º e 6.º de §1. Factos provados foi confirmada pelo depoimento da testemunha D... . A testemunha esclareceu que a supervisão e orientação de toda a equipa alocada ao projeto em causa, onde se incluía o Requerente, cabia à B... Dinamarca, que era, portanto, a “liderança comum” do projeto (cf. minuto 08’00 da inquirição). A testemunha avançou que foi a B... Dinamarca que, neste sentido, determinou o número e as qualificações dos trabalhadores necessários à realização do projeto em benefício do cliente dinamarquês (cf. minuto 15’30 da inquirição).
A testemunha realçou, adicionalmente, que o projeto que motivou a deslocação do Requerente se tratou de um projeto muito longo, que envolveu a efetiva deslocação e permanência dos trabalhadores na Dinamarca durante um longo período (ainda que inferior a 183 dias), e que o Requerente esteve, durante esse hiato temporal, totalmente afeto àquele projeto, sendo, portanto, a B... Dinamarca a dispor do trabalho do Requerente, cabendo-lhe validar as respetivas férias, juntamente com a C... Portugal (cf. minutos 16’00 e 19’30 da inquirição).
V – Fundamentação de direito
19. A questão de direito que importa aquilatar nos presentes autos prende-se com saber se o Requerente tem direito ao crédito de imposto por dupla tributação internacional a que aludem os artigos 78, n.º 1, j) e 81 do CIRS e que resulta do artigo 23, n.º 2 da CDT concluída entre Portugal e o Reino da Dinamarca, assinada em Lisboa em 14 de dezembro de 2000, e aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 6/2002. Constata-se, com efeito, a partir da factualidade dada como provada, que a Dinamarca tributou os rendimentos aí auferidos pelo Requerente, ao abrigo das regras do “hiring-out of labour” e do artigo 15, n.º 1 da CDT Portugal-Dinamarca. E que esses rendimentos foram igualmente tributados por Portugal, enquanto Estado da residência, por banda da retenção na fonte (por conta) efetuada pela C... Portugal aquando do pagamento da remuneração do trabalhador, ora requerente.
§1. Enquadramento
20. Neste sentido, sendo irrefutável que o mesmo rendimento, auferido pelo mesmo contribuinte, foi tributado em dois ordenamentos jurídicos distintos, é mister averiguar por que razão recusou a AT, no indeferimento (parcial) do recurso hierárquico interposto pelo Requerente, proceder à dedução do crédito de imposto por dupla tributação internacional.
21. Ora, para obstar, por um lado, e para eliminar, por outro, as situações de dupla tributação internacional, os Estados celebram entre si Convenções de dupla tributação (CDT), como foi o caso de Portugal e o Reino da Dinamarca. Estas convenções, que seguem o Modelo da OCDE, procedem à alocação do direito de tributação (exclusivo) entre os Estados partes, em função da categoria de rendimento, e para as situações de competência tributária cumulativa, preveem métodos para a eliminação da dupla tributação (cf. Paula Rosado Faria, “A dupla tributação jurídica internacional e o papel das convenções para evitar a dupla tributação”, Fiscalidade, n.º 29, 2017, pp. 47-62).
22. Destarte, em face do valor infraconstitucional e supralegal do direito internacional convencional no ordenamento jurídico português, as normas internas para a eliminação da dupla tributação só se aplicam na ausência de regras de fonte convencional. Dito isto, importa saber quem é que, nos termos da CDT Portugal-Dinamarca, mormente do artigo 15 (profissões dependentes), que é a norma cujo sentido se afigura controvertido entre as partes, tem o poder para tributar os rendimentos auferidos pelo Requerente na Dinamarca – se Portugal, se a Dinamarca, se ambos – no sentido de avaliar a validade, à luz da Convenção, da decisão da Dinamarca, de proceder à tributação daqueles rendimentos e, consequentemente, da validade de decisão das autoridades portuguesas de rejeitar a dedução do crédito de imposto.
§2. A interpretação da CDT Portugal-Dinamarca
23. Em causa está, portanto, um problema de interpretação da CDT. Ora, a CDT, enquanto tratado internacional, é parte integrante do direito interno logo que vincule o Estado português no plano internacional (artigo 8, n.º 2 CRP). Contudo, ao integrar-se no direito interno, não perde a sua qualidade de direito internacional, razão pela qual deve ser interpretada de acordo com as regras costumeiras que disciplinam a interpretação do direito internacional, mormente com os artigos 31 e 32 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (CVDT).
24. Ora, como é sabido, a OCDE publica, com atualização regular, comentários ao texto do seu modelo de convenção, elaborados por um comité de peritos nomeados pelo Estado. Neste conspecto, destaca-se a questão de saber qual o relevo desses comentários na interpretação de uma concreta convenção de dupla tributação, em particular quando as normas convencionais reproduzam fielmente o teor das normas da convenção modelo. Trata-se de uma questão objeto de intensa discussão, havendo algum consenso, na doutrina internacional, no sentido de que os comentários da OCDE (mesmo que elaborados posteriormente à aprovação da CDT) constituem, pelo menos, meio complementar de interpretação das CDT para efeitos do artigo 32 da CVDT (cf. F. Engelen, Interpretation of tax treaties under international law, IFDB, 2004, Ch. 10).
Na doutrina nacional, sublinha Rui Morais que os comentários são elaborados por funcionários nomeados pelas administrações fiscais nacionais, que, caso não concordem com a respetiva redação, devem publicitar tal discordância. Destarte, “[A]o subscrever determinado comentário, a AF de um Estado anuncia publicamente a forma como passará a interpretar determinada norma convencional” (cf. Rui Duarte Morais, “Convenções para evitar a dupla tributação e direito comunitário na jurisprudência recente do STA”, Fiscalidade, 48, 2011, pp. 5-17).
25. Independentemente, pois, destas matizes argumentativas, resulta indubitável – nem as partes deste processo o questionam, antes enveredam maciçamente pela sua análise – que os comentários constituem um elemento auxiliar na interpretação da CDT Portugal-Dinamarca, indiciando um entendimento comum das partes contratantes quanto ao sentido das normas convencionais.[1] O Tribunal arbitral entende que deve ser convocada a versão atual dos Comentários (2017), pelas razões suprarreferidas, desde que, bem entendido, a revisão dos comentários não resulte numa alteração do conteúdo normativo da convenção internacional em causa – e, in casu, não resulta.
§3. As normas da CDT Portugal-Dinamarca
26. Com relevo para o presente caso, e atenta a factualidade dada como provada, importa destacar o disposto nos artigos 3, n.º 2, 15 e 23, n.º 2 da CDT Portugal-Dinamarca, cujo teor é o seguinte:
«(...)
Artigo 3 (Definições gerais)
1 – (...)
2 - No que se refere à aplicação da Convenção por um Estado Contratante, em qualquer momento, qualquer expressão não definida de outro modo terá, a não ser que o contexto exija interpretação diferente, o significado que lhe for atribuído nesse momento pela legislação desse Estado relativa aos impostos a que a Convenção se aplica, prevalecendo qualquer significado decorrente da referida legislação fiscal sobre o que resulte das outras leis desse Estado.
Artigo 15 (Profissões dependentes)
1 - Com ressalva do disposto nos artigos 16.º, 18.º e 19.º, os salários, vencimentos e outras remunerações similares obtidos de um emprego por um residente de um Estado Contratante só podem ser tributados nesse Estado, a não ser que o emprego seja exercido no outro Estado Contratante. Se o emprego for aí exercido, as remunerações correspondentes podem ser tributadas nesse outro Estado.
2 - Não obstante o disposto no n.º 1, as remunerações obtidas por um residente de um Estado Contratante de um emprego exercido no outro Estado Contratante só podem ser tributadas no primeiro Estado Contratante mencionado se:
a) O beneficiário permanecer no outro Estado durante um período ou períodos que não excedam, no total, 183 dias, em qualquer período de 12 meses, com início ou termo no ano fiscal em causa;
b) As remunerações forem pagas por uma entidade patronal ou por conta de uma entidade patronal que não seja residente do outro Estado; e
c) As remunerações não forem suportadas por um estabelecimento estável ou por uma instalação fixa que a entidade patronal tenha no outro Estado.
3 – (...)
Artigo 23 (Eliminação da dupla tributação)
A dupla tributação será eliminada do seguinte modo:
1) Na Dinamarca (...).
2) Em Portugal:
a) Quando um residente de Portugal obtiver rendimentos que, de acordo com o disposto nesta Convenção, possam ser tributados na Dinamarca, Portugal deduzirá do imposto sobre o rendimento desse residente uma importância equivalente ao imposto sobre o rendimento pago na Dinamarca. A importância deduzida não poderá, contudo, exceder a fração do imposto sobre o rendimento, calculado antes da dedução, correspondente aos rendimentos que podem ser tributados na Dinamarca;
b) Quando, de acordo com o disposto nesta Convenção, os rendimentos obtidos por um residente de Portugal forem isentos de imposto neste Estado, Portugal poderá, contudo, ao calcular o quantitativo do imposto sobre os restantes rendimentos desse residente, ter em conta os rendimentos isentos.
(...)»
27. O artigo 15, n.º 1 da CDT, que é idêntico ao artigo 15, n.º 1 da Convenção modelo da OCDE, estabelece, no seu n.º 1, o princípio segundo o qual as remunerações por emprego exercido no Estado de residência do trabalhador só podem ser tributadas nesse Estado, enquanto as remunerações por emprego exercido noutro Estado (que não o da residência) podem ser tributadas nesse outro Estado (place-of-work principle). O artigo 15, n.º 2 da CDT estabelece a chamada “regra dos 183 dias”, que consubstancia, no fundo, uma exceção ao princípio fixado no n.º 1, conferindo competência exclusiva ao Estado da residência para tributar rendimentos auferidos por um emprego exercido noutro Estado contratante, desde que verificadas três condições: (i) o trabalhador permanecer noutro Estado contratante por um período de tempo inferior a 183 dias; (ii) a remuneração ser paga por, ou por conta de, uma entidade empregadora que não seja residente nesse Estado; (iii) a remuneração não ser suportada por um estabelecimento estável ou por uma instalação fixa que a entidade empregadora tenha no outro Estado. Ponto é que o n.º 2 não se aplica – e a competência exclusiva do Estado da residência não existirá – nas situações em que há uma relação de emprego com entidade residente no outro Estado contratante.
28. Assim, a aplicação da exceção prevista no n.º 2 está dependente da circunstância de o Estado onde o trabalho é realizado não considerar, com base na sua legislação, doutrina e jurisprudência, que o prestador mantém com a entidade residente uma relação de emprego, leia-se, uma relação que é substantivamente uma relação de trabalho subordinado, e não um contrato de prestação de serviços (cf. Kasper Dziurdž / Frank Pötgens, “Cross-Border Short-Term Employment”, Bulletin for International Taxation, 2014, p. 407).
29. No entender deste Tribunal arbitral, são três as orientações interpretativas que efluem do comentário da OCDE ao artigo 15 da Convenção-modelo.
(a) A primeira é a de que a determinação sobre se o trabalho prestado se enquadra numa relação de emprego ou numa relação de prestação de serviços é um assunto que releva, essencialmente, do direito interno do Estado onde o trabalho é prestado. Essa determinação condiciona, naturalmente, o modo como os Estados aplicam a Convenção [cf. E. Reimer / A. Rust (eds.), Klaus Vogel on Double Taxation Conventions (Article 15 – Income from employment), Fourth Edition, vol. 2, Wolters Kluwer, 2015, par. 98].
Neste sentido, pode suceder, com base num princípio de prevalência da substância sobre a forma, que o direito interno do Estado onde o trabalho é prestado ignore a qualificação formal de um determinado contrato, conferindo relevo à natureza do trabalho prestado e à sua integração no negócio desenvolvido pela empresa, e concluindo, por conseguinte, pela não aplicação da exceção do artigo 15, n.º 2 da CDT (par. 8.4 e 8.7).
Com efeito, esta conclusão é consistente com a teleologia do artigo 15, n.º 2 uma vez que, nestas hipóteses, há uma relação de emprego com entidade residente no Estado onde o trabalho é prestado, não se verificando a condição da al. b) daquele normativo. Quando isto suceda, coerentemente, deverá o Estado da residência eliminar a dupla tributação internacional, mesmo que – e esta é uma precisão muito importante – ao abrigo do seu direito interno aquela relação jurídica não deva ser qualificada como uma relação de emprego (par. 8.10) [cf. E. Reimer / A. Rust (eds.), Klaus Vogel on Double Taxation Conventions (Article 15 – Income from employment), Fourth Edition, vol. 2, Wolters Kluwer, 2015, par. 109: “In such a situation, the Comm. is clear that the residence State must accept the determination of the State of work as to whether there is an employment and who the employer is. Furthermore, the residence State must Grant relief for double taxation, even if under the domestic law of the residence State there is no employment relationship»].
(b) A segunda orientação é a de que existem limites ao dever do Estado de residência de seguir a qualificação dada a uma relação jurídica pelo Estado do trabalho. Em primeiro lugar, o direito do Estado do trabalho de proceder à qualificação da relação jurídica como uma relação de emprego só subsiste se o contexto do tratado internacional não apontar para solução diversa (“unless the context of a particular convention requires otherwise”), tal como, aliás, já resulta do preceituado no artigo 3, n.º 2 da Convenção-modelo e da CDT Portugal-Dinamarca. Em segundo lugar, essa qualificação não pode ser abusiva (par. 8.10). Finalmente, essa qualificação deve ter por base “critérios objetivos”, não vingando em situações em que, à luz dos factos e circunstâncias relevantes, seja claro ou ostensivo que a relação em causa é uma prestação de serviços. É isto que dispõe o par. 8.11 dos comentários. Na verdade, “a exceção resultante do n.º 2 do artigo 15 ficaria desprovida de sentido se os Estados fossem autorizados a qualificar prestações de serviços como emprego dependente, em casos em que essa relação de emprego dependente claramente não existe” (destaque nosso).
(c) A terceira é a de que, para estes cenários de pretensões conflituantes, ou seja, de desacordo entre o Estado da residência e o Estado do trabalho sobre a natureza de uma relação jurídica, os Comentários fornecem uma série de testes e de fatores adicionais de qualificação (additional factors). A valia destes testes e fatores de qualificação é, portanto, a de definir a margem de manobra de que o Estado do trabalho dispõe na interpretação do conceito “emprego” à luz do direito doméstico [cf. E. Reimer / A. Rust (eds.), Klaus Vogel on Double Taxation Conventions (Article 15 – Income from employment), Fourth Edition, vol. 2, Wolters Kluwer, 2015, par. 122: “Since the provisions of paragraph 8.13 et seq. will be applied in the event of disagreement, these provisions arguably set forth the limits of how far the State of work can go in interpreting the term “employment” under domestic law in order for such determination to withstand potential challenge by the other State(…)»].
Assim, os par. 8.13 e seguintes dos Comentários começam por estabelecer um triplo teste, que tem em conta a natureza do trabalho prestado (nature of the services test), a sua integração do negócio da empresa a quem o trabalho é prestado (integration test), e a assunção do risco e da responsabilidade pelos resultados do trabalho (entrepreneurial risk test) [par. 8.13]. Subsidiariamente, haverá que ter em atenção os oito fatores adicionais elencados no par. 8.14 do comentário ao artigo 15, que passam, concretamente, por saber (i) quem tem autoridade para dar instruções ao indivíduo sobre o modo como o trabalho deverá ser realizado, (ii) quem assume responsabilidade pelo local onde o trabalho é prestado, (iii) quem fornece os materiais e os instrumentos necessários à realização do trabalho, (iv) quem determina o número e as qualificações dos trabalhadores necessários à realização do trabalho, (v) quem tem o poder de selecionar os indivíduos que realizarão o trabalho e o poder de fazer cessar a relação contratual com essas pessoas, (vi) quem tem o poder de impor sanções disciplinares relacionadas com o trabalho dessas pessoas, (vii) quem estabelece as férias e o horário de trabalho.
Haverá ainda que ter em conta, neste exercício de qualificação, as relações financeiras que se estabelecem entre a entidade empregadora “formal” (que cede o trabalhador) e a entidade a quem os serviços são prestados, designadamente o modo como a remuneração do trabalhador paga pela primeira é cobrada à segunda, em especial se tal remuneração é apenas um dos muitos elementos envolvidos no contrato de prestação de serviços celebrado entre ambas as entidades (viii). Seja como for, diz-se no par. 8.15, “a questão de saber se a remuneração do indivíduo é diretamente cobrada pela entidade empregadora formal à empresa a quem os serviços são fornecidos é apenas um dos fatores subsidiariamente relevantes na determinação sobre se esses serviços devem ser qualificados por um Estado contratante como prestados no âmbito de uma relação de emprego, em detrimento de um contrato de prestação de serviços entre duas entidades distintas” [cf. E. Reimer / A. Rust (eds.), Klaus Vogel on Double Taxation Conventions (Article 15 – Income from employment), Fourth Edition, vol. 2, Wolters Kluwer, 2015, par. 138: “The OECD MC Comm. places all of the eight tests on equal footing. There is no guidance as to how the eight factors must be weighed or taken into account in general. The only reference as to weighing the factors is in paragraph 8.15, which provides that the financial factor (how the remuneration is charged, the third test) is only one of the subsidiary factors, and by itself is “not necessarily conclusive” for determining whether and with whom the employment relationship exists”].
§4. Aplicação ao caso concreto
30. Entende a Requerida que se encontram preenchidas todas as condições elencadas no n.º 2 do artigo 15 da CDT Portugal-Dinamarca e que, por conseguinte, Portugal, enquanto Estado da residência, tem competência exclusiva para tributar os rendimentos do trabalho dependente auferidos pelo Requerente em razão do trabalho prestado à B... Dinamarca. Naturalmente que o juízo sobre o preenchimento daquelas três condições cumulativas leva pressuposta uma qualificação, pelo Estado português, no sentido de que o Requerente não estabeleceu com a B... Dinamarca uma relação de emprego. Argumenta, ainda, a Requerida que a qualificação, pela Dinamarca, da relação jurídica como uma relação de emprego não tem sustentação à luz dos critérios objetivos a que alude o par. 8.11 dos comentários, em particular dos fatores enunciados nos pars. 8.13 a 8.15 referidos supra, e que a C... Portugal é a entidade empregadora do Requerente, porquanto “[F]oi esta que decidiu que aquele [o Requerente] iria realizar o seu trabalho na Dinamarca e que o mesmo detinha as qualificações necessárias para realizar o trabalho para o qual foi celebrado o contrato de prestação de serviços com a B... Dinamarca”. Durante o período em questão, alega a Requerida, “quem tinha todos os direitos e obrigações, decorrentes da relação trabalhador/empregador, com o Requerente, era a C... Portugal e não a B... Dinamarca” (cf. resposta e alegações escritas apresentadas pela AT).
31. Ora, entende o Tribunal arbitral que a questão controvertida nos presentes autos não é a de saber quem é a entidade empregadora do Requerente ou se a C... Portugal é a entidade empregadora do Requerente. O que importa, atento o facto de a qualificação da relação jurídica subjacente à prestação de trabalho ser, sobretudo, uma decisão que depende do direito interno do Estado onde o trabalho foi prestado – in casu, a Dinamarca – como resulta limpidamente dos pars. 8.4 e 8.7 dos comentários da OCDE, é saber se foram aportados elementos aos presentes autos que permitam sustentar que aquela qualificação é contrariada pelo contexto da CDT Portugal-Dinamarca, ou que não se fundou em critérios objetivos, isto é, que é claramente forçada ou excessiva à luz dos testes e fatores elencados nos pars. 8.13 a 8.15 dos Comentários. O que se pergunta é, por outras palavras, se o conceito de “emprego” de que parte o direito interno da Dinamarca extravasa as fronteiras definidas naqueles parágrafos do Comentário.
32. Neste sentido, o Tribunal arbitral recorda que as autoridades dinamarquesas, utilizando o critério da prevalência da substância sobre a forma, chegaram à conclusão, com referência à atividade profissional desenvolvida na Dinamarca (“International hiring-out labour”), que durante aquele período se estabeleceu uma relação de emprego entre o Requerente e a B... Dinamarca. Essa sobreposição da substância à forma teve por base (i) a natureza do trabalho prestado, que se traduziu na participação de um projeto tecnológico desenvolvido pela B... Dinamarca, (ii) em benefício de um cliente dinamarquês, (iii) o facto de a B... Dinamarca assumir a responsabilidade risco pelo trabalho prestado no quadro da realização daquele projeto, (iv) a circunstância de a remuneração do Requerente ter sido paga pela C... Portugal por conta da B... Dinamarca, e ainda fatores subsidiariamente aplicáveis, (iv) tais como o facto de ter sido a B... Dinamarca a supervisionar e controlar o trabalho realizado pelo Requerente, a definir o local onde o trabalho deveria ser realizado, e as qualificações necessárias por parte dos trabalhadores envolvidos no projeto.
33. Os Comentários não exigem a verificação simultânea dos oitos fatores adicionais de qualificação, como resulta limpidamente do exemplo descrito nos par. 8.24 e 8.25 (bastante próximo da hipótese sub judicio, por sinal). Assim sendo, os fatores destacados supra, com arrimo na factualidade demonstrada em 1.º, 3.º, 4.º, 5.º e 6.º de Factos provados, são suficientes, no que respeita à questão jurídica que aqui importa aquilatar, para concluir que a qualificação operada pela Dinamarca tem credenciação objetiva. Dito de outro modo, os elementos de facto trazidos aos presentes autos não sustentam a conclusão de que a Dinamarca, enquanto Estado a cujo direito interno incumbe prima facie a decisão de qualificar uma dada relação jurídica, tenha reclamado competência para tributar o Requerente ao arrepio do quadro definido pela CDT Portugal-Dinamarca, mormente do seu artigo 15, n.º 1.
34. Aliás, sempre se diria que, subsistindo uma situação de dúvida insanável sobre a razoabilidade da qualificação operada pela autoridade tributária dinamarquesa, e não fornecendo os Comentários critério de desempate atendível, deveria tal dúvida ser resolvida em termos que promovessem o objeto e fim do tratado internacional em causa, que é uma Convenção para eliminar a dupla tributação. E in casu não restam dúvidas de que o Requerente foi tributado, pelos mesmos rendimentos, em dois ordenamentos jurídicos distintos.
35. Em suma, o Tribunal arbitral entende que o ato de liquidação foi praticado em violação do disposto no artigo 15, n.º 1 da CDT Portugal-Dinamarca, ou seja, que o Requerente tem direito a um crédito de imposto para eliminação da dupla tributação internacional, a que alude o artigo 23, n.º 2, al. a) da CDT e os artigos 78, n.º 1, j) e 81, n.º 1 do CIRS, pelo que há que anular o ato de liquidação.
§5. Da condenação da AT à restituição do montante de imposto suportado em excesso
36. O Requerente pede ainda a condenação da Administração Tributária na restituição da quantia indevidamente paga, correspondente, no seu entender, ao montante de €1778,76. Ora, procedendo este Tribunal arbitral à anulação do ato de liquidação, pelos fundamentos de que se deu conta, fica prejudicado o conhecimento da restante parte do pedido arbitral, uma vez que o ato de liquidação deverá ser renovado, desta feita sem a ilegalidade de que se encontra ferido.
VI – Juros indemnizatórios
37. A par da anulação parcial do ato de liquidação, e consequente reembolso da importância indevidamente cobrada, o Requerente solicita ainda que se lhe seja reconhecido o direito a juros indemnizatórios, ao abrigo do artigo 43 da LGT.
38. Dispõe o n.º 1 do artigo 43 da LGT que «[S]ão devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido». Não subsistindo dúvidas de que houve erro imputável aos serviços, porquanto a liquidação em excesso procede de uma errada interpretação e aplicação do artigo 15 da CDT entre Portugal e a Dinamarca, há lugar ao pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto.
VII – Decisão
Termos em que o Tribunal decide:
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Julgar procedente o pedido arbitral;
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Anular o ato de indeferimento parcial do recurso hierárquico;
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Anular o ato de liquidação n.º 2020...;
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Julgar procedente o pedido de juros indemnizatórios, devidos desde a data de pagamento indevido do imposto;
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Condenar a Requerida no pagamento das custas do presente processo.
VIII – Valor do processo
Em conformidade com o disposto no artigo 306, n.º 2 do CPC, no artigo 97-A, n.º 1, al. a) do CPPT [« 1- Os valores atendíveis, para efeitos de custas ou outros previstos na lei, para as ações que decorram nos tribunais tributários, são os seguintes: a) Quando seja impugnada a liquidação, o da importância cuja anulação se pretende (...)]», e no artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária [«O valor da causa é determinado nos termos do artigo 97.º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário»], fixa-se o valor do processo em €1.778,76, sem contestação da Autoridade Tributária.
IX – Custas
Nos termos do disposto nos artigos 12, n.º 2 e 22, n.º 4 do RJAT, no artigo 4, n.º 4 e na Tabela I (anexa) do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, o montante de custas é fixado em €306,00, a cargo da Requerida.
Notifique-se.
Porto, 27 de fevereiro de 2023.
Marta Vicente
(Árbitro singular)