Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 23/2022-T
Data da decisão: 2023-02-14  IRS  
Valor do pedido: € 3.559.722,31
Tema: IRS - Cláusula geral anti- abuso; aplicação da lei no tempo; reclamação necessária.
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SUMÁRIO:

  1. O artigo 38.º da LGT é “uma norma que tem por função o desenvolvimento de normas de incidência tributária", razão pela qual, nos termos dos n.ºs 1 e 4 do artigo 12.º da LGT, a redação dada à referida norma pela Lei n.º 32/2019, de 3 de maio, apenas será aplicável para o futuro.
  2. Na medida em que implicando a nova redação da norma a redução das garantias do contribuinte, nomeadamente quanto às exigências do ónus da prova do lado da Autoridade Tributária, seria sempre de aplicar o artigo 38.º, n.º 2, da LGT na redação vigente à data dos factos, por aplicação do artigo 12.º, n.º 3, da LGT, quando determina que “As normas sobre procedimento e processo são de aplicação imediata, sem prejuízo das garantias, direitos e interesses legítimos anteriormente constituídos”.
  3. Esta regra, ao salvaguardar as garantias, direitos e interesses legítimos anteriormente constituídos tem ainda amparo constitucional no princípio da proibição da retroatividade da lei fiscal consagrado no artigo 103.º, n.º 3, da CRP, preceito que proíbe não só impostos retroativos, mas também qualquer outra norma fiscal retroativa desfavorável que “é sempre constitucionalmente ilícita”.
  4. Com a reclamação graciosa obrigatória do artigo 63.º, n.º 11, do CPPT, na redação conferida pela Lei n.º 32/2019, o legislador visou dar uma última oportunidade de reponderação por parte da Requerida, que pode robustecer a sua fundamentação inspetiva contraditando os factos e circunstâncias introduzidas pelo SP, sem incorrer em fundamentação a posteriori, uma vez que é a decisão que recaia sobre a reclamação que constitui a decisão final do procedimento inspetivo.   
  5. Em qualquer caso, consubstanciando a decisão de indeferimento expresso uma revogação parcial por substituição na parte de direito em que se amparou o RIT, aquela decisão da reclamação não poderia deixar de valer como a decisão final a ter em conta na apreciação da aplicação dos pressupostos da CGAA, no caso em apreço.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

  1. RELATÓRIO

 

1. A..., com o número de identificação fiscal ... e B..., com o número de identificação fiscal ..., casados, ambos residentes na ..., n.º ..., ...-... Estoril, doravante designados por “Requerentes” ou, individualmente, por “Sujeito Passivo A” e “Sujeito Passivo B”, respetivamente, vêm, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, da alínea a) do n.º 3 do artigo 5.º, da alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 10.º, todos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”) e, bem assim, dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 março, solicitar a  constituição de Tribunal Arbitral em matéria tributária, com vista à anulação da decisão de indeferimento expresso da reclamação graciosa n.º ...2021..., apresentada com vista à anulação do ato de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) n.º 2020..., do ato de liquidação de juros compensatórios subjacente, bem como da demonstração de acerto de contas emitida, da qual resultou o montante a pagar de € 1.478.892,21, todos por referência a 2016 e, bem assim, do ato de liquidação de IRS n.º 2020..., do ato de liquidação de juros compensatórios subjacente, bem como da demonstração de acerto de contas emitida, da qual resultou o montante a pagar de € 938.020,64, todos por referência a 2017 e, bem assim, do ato de liquidação de IRS n.º..., do ato de liquidação de juros compensatórios subjacente, bem como da demonstração de acerto de contas emitida, da qual resultou o montante a pagar de € 1.142.809,46, todos por referência a 2018, totalizando um valor a pagar de € 3.559.722,31, pretendendo ainda a anulação dos atos de liquidação subjacentes à apresentação da reclamação graciosa, o que fazem nos termos e com os fundamentos seguidamente expostos:

 

2. O Pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) e automaticamente notificado à Requerida.

Os Requerentes procederam à nomeação de árbitro, na pessoa do Dr. Manuel Lopes da Silva Faustino e a Requerida nomeou a Dr.ª Manuela Roseiro, ambos árbitros vogais, que aceitaram a nomeação.

Nos termos do artigo 6.º, n.º 2, do RJAT foi designada como Presidente do Tribunal, por acordo entre os árbitros vogais, a Conselheira Maria Fernanda Santos Maçãs que aceitou.

Em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral coletivo ficou constituído em 17 de maio de 2022.

 

3. Os Requerentes sustentam o pedido com a argumentação que sumariamente se indica.

 

A)Da violação do n.º 2 do artigo 38.º da LGT, por inexistência dos respetivos pressupostos de aplicação 

A1) Da aplicação da Lei no tempo, do ónus da prova e do dever de fundamentação

  1. Os Requerentes começam por sustentar que a aplicação, no caso em concreto, do disposto no n.º 2 do artigo 38.º da LGT, na redação do artigo 3.º da Lei n.º 32/2019, de 3 de maio, tal como invocado pela Unidade dos Grandes Contribuintes nos pontos 45. a 58. da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, se afigura manifestamente ilegal, por violação das regras de aplicação da Lei no tempo e errónea fundamentação da decisão.
  2. Para os Requerentes, o artigo 38.º da LGT é uma norma que tem por função o desenvolvimento de normas de incidência tributária, razão pela qual, nos termos dos n.ºs 1 e 4 do artigo 12.º da LGT, a redação da referida norma pela Lei n.º 32/2019, de 3 de maio, apenas será aplicável para o futuro, pelo que a posição assumida pela Unidade dos Grandes Contribuintes é errónea e ilegal.
  3. A aplicação do artigo 38.º da LGT, na redação da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro, tem efeitos práticos relevantes ao nível do ónus da prova, que não foi cumprido pela Requerida no caso dos autos.
  4. Contudo, da análise do relatório final de inspeção verifica-se que a Autoridade Tributária se limitou a invocar que “[f]oi efetuada uma sucessão de atos e negócios jurídicos, coordenados entre si, que embora ocorressem em momentos temporais diversos tiveram como objetivo comum o de conseguir uma vantagem fiscal ilegal” (cf. a pág. 21 do Documento 12) e, bem assim, que, "[o]s fluxos financeiros resultantes de dividendos de dividendos distribuídos pela E... SGPS SA, chegam ao acionista A..., não como dividendos sujeitos a tributação em IRS, mas unicamente sob a forma de reembolso de créditos, sem tributação em IRS” (cf. as págs. 31 e 32 do citado Documento 12)”.
  5. De facto, não basta os Serviços de Inspeção Tributária - para justificar um alegado abuso e o recurso à Cláusula anti abuso (CGAA) - invocar que os mesmos não celebraram “os actos e negócios (…) sob formas típicas e normais” - devendo, antes, a fim de cumprir o ónus de fundamentação que se impõe na matéria em apreço, nos termos do artigo 74.º da LGT  e do artigo 63.º do CPPT (na redação aplicável à data dos factos), indicar quais os atos e negócios em concreto que deveriam ter sido praticados pelo Sujeito Passivo A.     
  6. Tal como amplamente exposto em sede de inspeção tributária e no âmbito do procedimento de reclamação graciosa como abaixo se explanará em pormenor, o Sujeito Passivo A pretendeu reorganizar o seu património mobiliário - incluindo as ações da E...- e a sua atividade empresarial, através da adoção de uma forma societária comummente utilizada para este efeito, devendo entender-se que os suprimentos em causa consubstanciam um mecanismo de financiamento (..) normal, semelhante ao financiamento bancário, pelo que é manifestamente abusivo da parte da Autoridade Tributária requalificar o seu reembolso como dividendos.
  7. Adicionalmente, ao rejeitar a forma como a alienação foi feita, caberia à Autoridade Tributária identificar as “formas típicas e normais” através das quais seria possível ao Sujeito Passivo A levar a cabo a sua pretensão (de reestruturação patrimonial e empresarial), sem o (alegado) abuso que lhe vem imputado, por forma a cumprir o dever de fundamentação que sobre si impende.
  8. A realidade é que, até ao presente, os Requerentes ainda não lograram compreender a que “formas típicas e normais” deveriam, na senda do defendido pela Autoridade Tributária, ter recorrido, por forma a granjear aquele que foi o seu objetivo: a reorganização (através da constituição de uma holding pessoal para o efeito) dos distintos investimentos do Sujeito Passivo A, consubstanciando, como se vem deixando claro, uma reorganização empresarial e patrimonial perfeitamente linear e legítima.
  9. Posto isto, o que resulta da análise do relatório de inspeção tributária é que a realidade material não foi devidamente dissecada pelos Serviços de Inspeção Tributária, que se limitaram a olhar para um conjunto de operações que lhes suscitou alguma desconfiança, sem atentarem em todo o cenário empresarial em que se insere a D..., enquanto holding pessoal do Sujeito Passivo A, em clara violação dos princípios da legalidade, da imparcialidade e do inquisitório - consagrados nos artigos 55.º e 58.º da LGT -, nos termos dos quais a Autoridade Tributária está obrigada a carrear para o procedimento (incluindo o inspetivo) todos os elementos probatórios necessários para proferir uma decisão adequada e justa.
  10. A Autoridade Tributária limita-se enveredar por um juízo conclusivo e genérico sobre a adequação dessas “formas típicas e normais” a que se refere (reitere-se, sem as identificar), ao invés daquelas por que optou o sujeito passivo na hipótese em apreço, o que desde logo contende com os imperativos de segurança jurídica que devem conformar o ordenamento jurídico tributário.
  11. Em suma, a legalidade da tributação (e a sua própria constitucionalidade, nos termos do artigo 104.º da Constituição da República Portuguesa - CRP) apenas se verificará se for possível juntar no âmbito do processo todos os factos que permitam apurar a verdade material da situação subjacente à mesma, o que, por força da atuação dos Serviços de Inspeção Tributária no caso em análise, não sucedeu.
  12. Significa, pois, que a Autoridade Tributária não cumpriu o ónus da prova que sobre si impendia, nos termos do artigo 74.º da LGT, pelo que as conclusões retiradas em sede do relatório de inspeção tributária e, consequentemente, nas liquidações de IRS ora contestadas, afiguram-se manifestamente ilegais.

 

A2) Dos pressupostos de aplicação da CGAA

  1. Os Requerentes argumentam que, não tendo a Autoridade Tributária dado cumprimento ao ónus da prova na aplicação da CGAA, é manifesto que não se encontram preenchidos os pressupostos de que depende a aplicação da cláusula geral anti abuso, consagrada no n.º 2 do artigo 38.º da LGT, que a doutrina e a jurisprudência apontam como requisitos cumulativos:
  1. no elemento meio, que diz respeito à via livremente escolhida - ato ou negócio jurídico, isolado ou parte de uma estrutura de atos ou negócios jurídicos sequenciais, lógicos e planeados, organizados de modo unitário - pelo contribuinte para obter o desejado ganho ou vantagem fiscal;
  2. no elemento intelectual, que exige que a escolha daquele meio seja “essencial ou principalmente dirigid[a] (…) à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos” (artigo 38.º, n.º 2 da LGT), ou seja, que exige, não a mera verificação de uma vantagem fiscal, mas antes que se afira, objetivamente, se o contribuinte “pretende um ato, um negócio ou uma dada estrutura, apenas ou essencialmente, pelas prevalecentes vantagens fiscais que lhe proporcionam”;
  3. no elemento resultado, que contende com a obtenção de uma vantagem fiscal, em virtude da escolha daquele meio, quando comparada com a carga tributária que resultaria da prática dos atos ou negócios jurídicos “normais” e de efeito económico equivalente;
  4. no elemento normativo, que “tem por sua função primordial distinguir os casos de elisão fiscal dos casos de poupança fiscal legítima, em consideração dos princípios de Direito Fiscal, sendo que só nos casos em que se demonstre uma intenção legal contrária ou não legitimadora do resultado obtido se pode falar naquela”;
  5. e, por fim, no elemento sancionatório, que, pressupondo a verificação cumulativa dos restantes elementos, conduz à sanção de ineficácia, no exclusivo âmbito tributário, dos atos ou negócios jurídicos tidos por abusivos, “efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas” (cf. a parte final do disposto no n.º 2 do artigo 38.º da LGT).

 

  1. Das discrepâncias detetadas na informação disponibilizada pelos requerentes no âmbito da inspeção tributária
  • Sobre as (alegadas) discrepâncias detetadas na informação disponibilizada em sede inspetiva pelos Requerentes manifestam a convicção de que os Serviços de Inspeção Tributária teriam chegado a conclusões diferentes caso lhes tivessem sido solicitados esclarecimentos adicionais.
  • Consideram que o facto tributário, ou seja, a obrigação de retenção na fonte, ocorreu, na esfera da E... em 29 de dezembro de 2015, data em que todas as formalidades já se encontravam cumpridas.
  • Invocam, por último, os Requerentes a omissão de pronúncia sobre tais discrepâncias na decisão proferida sobre a reclamação graciosa apresentada junto da Unidade dos Grandes Contribuintes, cuja petição continha a descrição factual e pormenorizada do iter que foi prosseguido.

 

  1. Da extemporaneidade do acionamento do mecanismo previsto no n.º 2 do artigo 38.º da LGT pelo decurso do respetivo prazo de caducidade
  1. Os Requerentes alegam que, a haver abuso nos termos expendidos pela Autoridade Tributária - isto é, quanto à constituição da D... e à operação de compra e venda das ações da E... por parte do Sujeito Passivo A… -, tal natureza abusiva situar-se-ia tão só no momento da constituição da sociedade e da aquisição das referidas ações, em 2015, momento em que a forma jurídica alegadamente abusiva se constituiu, termos em que, tendo passado a relevar o prazo geral de caducidade do direito à liquidação, previsto no artigo 45.º da LGT, conclui-se que o prazo de caducidade aplicável é de 4 anos.

 

D)Da inexistência da obrigação tributária do Sujeito Passivo A… no caso vertente

  1. Os Requerentes alegam que a aplicação da retenção na fonte à taxa liberatória prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 71.º do Código do IRS, com a natureza de pagamento liberatório, deve ser efetuada pela entidade devedora dos rendimentos, no momento da sua colocação à disposição, nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 101.º daquele Código, em vigor à data dos factos. Ou seja, as conclusões sufragadas em sede da inspeção tributária não deveriam operar sobre o Sujeito Passivo A - como se verificou no caso em análise, em que foram emanadas liquidações adicionais de IRS -, mas antes, operar sobre a entidade obrigada à retenção na fonte aquando do pagamento dos (alegados) dividendos ao seu beneficiário, por se aplicação das regras gerais previstas para a responsabilidade tributária (cf. os artigos 20.º e ss. da LGT), devendo por esse motivos as liquidações de imposto, tendo  como destinatários os ora Requerentes, ser anuladas.

 

E)Do enriquecimento indevido (e ilegítimo) do Estado

  1. Os Requerentes alegam que o Sujeito Passivo A… criou a expetativa de que as liquidações adicionais de IRS a serem emitidas na sequência da referida ação inspetiva teriam subjacente um acerto/compensação face ao montante de IRS, que havia  sido pago por referência ao ano de 2015, a título de mais-valia, pela venda da sua participação social na E... à D...- situação que referiu aos Serviços de Inspeção Tributária nas diligências encetadas -, pelo que foi com manifesta surpresa que se viu confrontado com o avultado montante de imposto a pagar, apurado nas liquidações de IRS ora contestadas, o que não se verificou, continuando os Requerentes a ver-se privados do montante (na sua ótica, devido) que pagaram em 2016, na sequência da apresentação da sua declaração Modelo 3 de IRS, no valor de € 1.859.343,66.

 

F)Da incompetência territorial dos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Lisboa para a prática dos atos de inspeção

  1. Os Requerentes argumentam, entre o mais, que (…) ao emitir os atos tributários em crise, por referência aos Requerentes, a Unidade dos  Grandes Contribuintes não fez mais do que atuar ao abrigo das atribuições e competências que, nos termos da lei, lhe estão reservadas no que respeita aos contribuintes que integrem aquela unidade, nos termos do disposto na alínea f) do n.º 2 do artigo 34.º da Portaria n.º 320-A/2011, de 30 de dezembro, mas não se verificou ao nível do procedimento inspetivo tributário desencadeado com vista à fiscalização da situação tributária dos Requerentes, com especial incidência sobre factos que os próprios Serviços de Inspeção Tributária vêm assacar ao Sujeito Passivo A que, à data dos factos, já estava integrado naquela Unidade Orgânica da AT e submetido às suas competências.
  1. Tanto o projeto de relatório de inspeção tributária, como o relatório final de  inspeção tributária procedem da Direção de Finanças de Lisboa - tendo sido assinados pelo respetivo Diretor de Finanças -, quando o deveriam ter sido pela Unidade dos Grandes Contribuintes, inexistindo sequer qualquer despacho de delegação de competências, situação tacitamente reconhecida pela Unidade dos Grandes Contribuintes na decisão de indeferimento da reclamação graciosa, o que determina a invalidade do procedimento de inspeção, por violação do princípio da igualdade (in casu, os artigos 16.º e 17.º do RCPITA), o que, em consequência, determinará a ilegalidade das liquidações emitidas.
  1. Acresce que também não decorre do projeto de relatório de inspeção tributária, nem do relatório final de inspeção, que os mesmos hajam sido posteriormente ratificados pelo órgão competente - ou seja, pela Unidade dos Grandes Contribuintes.
  2. Finalmente, é evidente que a Diretora-Geral da Autoridade Tributária autorizou a aplicação da CGAA (cf. o despacho de autorização constante no citado Documento 10), no entanto, tal situação não permite, per se, a sanação da incompetência da Direção de Finanças de Lisboa para a realização dos atos e conclusões inspetivas.

 

F) Do Direito a juros indemnizatórios

  1. Alegam os Requerentes que a dar-se provimento à sua pretensão, através da declaração de ilegalidade dos atos de liquidação de IRS ora contestados, deverão ser reembolsados do montante indevidamente pago, que se cifra em € 3.559.722,31, devendo, ainda, ser ressarcidos    pelo período em que se viram privados da quantia indevidamente paga, nos termos do artigo 43.º da LGT.

 

4.  Na Reposta argumenta a Requerida nos termos que sumariamente se seguem.  

  1. A Requerida começa por teorizar sobre os pressupostos da aplicação da Cláusula anti abuso destacando-se a alegação de que o teor do citado n.º 2 do artigo 38º da LGT conduz à aplicação conjugada da teoria da fraude à lei e da teoria do abuso de formas jurídicas. Nesta medida, a atuação do Requerente para ser fraudulenta, tem, como tal, de permitir substituir as situações de facto tributadas por outras que, gerando as mesmas consequências práticas e económicas, resultem numa vantagem fiscal, obtida em fraude à lei, o que significa que foi obtido um resultado que a lei não consente, que a lei não quis, ou, noutras palavras, um resultado contrário ao propósito, à intenção da norma.
  2. (…) “tendo a D... sido constituída a 16-12-2015, e tendo adquirido as ações da E... SGPS no valor de € 13.287.076,14, passados 9 dias da sua constituição, e não dispondo para o efeito de valores para efetuar esse pagamento, foi na sua esfera reconhecida uma dívida ao seu sócio-gerente, a título de suprimentos”, “O que permitiu ao Requerente tornar-se credor da D..., por esse valor global.”
  3. “A operação de aquisição das participações sociais ao Requerente, bem como a distribuição dos lucros da E... SGPS à D..., que imediatamente foram utilizados para pagar a dívida criada com a aquisição daquelas participações, visou a atribuição de dividendos não tributados.” Ou seja, tais atos permitiram ao Requerente transferir as suas participações na E... SGPS para a D... e assim incorporar na sua esfera os rendimentos originados pelos dividendos gerados e distribuídos pela participada e isso sem que comportasse o IRS que era devido por retenção na fonte.”
  4. Para a Requerida, “no caso em apreço, a AT verificou a existência de factos que revelam a “anormalidade estrutural” da operação levada a cabo, sendo que “a D... foi, na operação em causa, utilizada para intermediar os pagamentos de dividendos ao acionista que detêm o capital.” “Os negócios e actos jurídicos assim planeados foram celebrados de forma artificiosa, com vista à eliminação de impostos (retenção na fonte de IRS) que seriam devidos em resultado de facto, acto ou negócio jurídico de idêntico fim económico”, sendo que, para a Requerida a D... não ter qualquer outra actividade que não a que resulta do seu papel “instrumental” (mera peça do “puzzle” montado) face ao referido fim.
  5. Assim sendo, para a Requerida estão “reunidos todos os pressupostos legais, estabelecidos no n.º 2 do artigo 38º da LGT para aplicação da cláusula geral anti abuso à operação sub judice”.
  6. Mais concretamente no que concerne ao elemento meio, alega a Requerida que, “No caso sub judice, estamos perante actos que, se analisados isoladamente, não contendem em princípio com o direito.”
  7. Todavia, quando vistos no seu conjunto, permitem apurar que foram, exclusiva ou predominantemente, dirigidos à obtenção de uma vantagem fiscal que, de outra forma, não seria atingida.
  8. A Requerida conclui que (…) “toda a engenharia fiscal descrita, de carácter inusitado, complexo e artificioso, se encontra desprovida de utilidade ou sentido imediato sob o ponto de vista económico, visando unicamente um fito: a distribuição de lucros não tributados”, o que importa para o preenchimento do elemento meio.
  9. Quanto ao elemento resultado, conclui a Requerida que foi só “para não sofrer a oneração tributária, que o Requerente actuou como actuou, contrariamente ao espírito da lei”, emergindo a sociedade veículo como “meramente instrumental para o fim pretendido: a transformação do fluxo financeiro”.
  10. Relativamente ao elemento intelectual, em que o fim preponderante é o de obtenção de vantagem indevida, salienta a Requerida “que sendo o objectivo a distribuição de dividendos da E... SGPS, tal desiderato poderia e deveria ter sido atingido com a sua simples distribuição aos seus accionistas”.
  11. “Ao invés, o Requerente enveredou por uma série de actos jurídicos, mais complexos e dispendiosos, que, face à realidade económica em concreto, não demonstra a sua razoabilidade, denunciando, claramente, a intenção artificiosa da sua utilização – foi criada uma estrutura que permitiu retirar os dividendos sem qualquer tributação, através da sua transformação em recebimento de dívida.”
  12. Em especial, o “controlo da D... permitiu ao Requerente transformar um pagamento de dívida das acções, que deveria ocorrer em 120 dias, em suprimentos, a reembolsar em prazo indeterminado, furtando-se à tributação em IRS correspondente”.
  13. “Pelo que, repita-se, os negócios e actos jurídicos assim planeados foram celebrados de forma artificiosa, com vista à eliminação de impostos (retenção na fonte de IRS) que seriam devidos em resultado de facto, acto ou negócio jurídico de idêntico fim económico, configurado, in casu, no pagamento de dividendos directamente pela E... SGPS.”
  14. Finalmente, quanto ao elemento normativo, relativo à utilização de meios fraudulentos ou artificiosos e com abuso de formas jurídicas, argumenta a Requerida que, “no caso sub judice, como se analisou no âmbito do procedimento inspectivo, está em causa a alínea h) do n°2 do artigo 5° do Código do IRS”, sendo que, “Com o negócio da compra e venda das acções da E... SGPS. criou-se um crédito para comprar algo que antes já pertencia, em forma de participação directa, ao acionista Requerente.”
  15. Assim sendo, “Sem a utilização daqueles meios, que viabilizaram a transformação de dividendos em recebimento de dívida, os beneficiários pessoas singulares – os accionistas - não evitariam a tributação”, pois tais “rendimentos ficariam sujeitos a imposto, nos termos gerais, como rendimentos da categoria E do IRS.”
  16. Em suma, “A estrutura montada permitiu, assim, a obtenção de um resultado que se revela fraudulento, por se encontrar em fraude com a citada alínea h) do nº2 do artigo 5º do Código do IRS e que, por assim ser, não pode ser admitido.

 

5. Em 18 de setembro de 2022, foi emitido pelo tribunal despacho do seguinte teor:

"1. Analisados os factos indicados pelo SP para produção de prova testemunhal verifica-se que na sua maior parte tais factos encontram-se suportados em documentos, outros afiguram-se conclusivos e outros integram argumentos de direito. Apresentando-se os factos relevantes comprovados documentalmente e não sendo contestados não carecem de qualquer outra prova adicional.

Acresce que a audiência não se justifica sequer para a compreensão do alegado esquema ilisivo por o mesmo não se apresentar complexo.

Neste contexto, considerando que a prova testemunhal não se afigura que possa trazer qualquer acréscimo substantivo para a formação da convicção do tribunal nem tão pouco para a descoberta da verdade material, o julgamento traduzir-se-ia na prática de ato inútil, proibido pela lei processual. 

Termos em que se indefere o pedido de produção de prova testemunhal.

2. Não havendo lugar a produção de prova constituenda e não tendo sido suscitada matéria de excepção, dispensa-se a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, em nome do princípio da autonomia do Tribunal na condução do processo e em ordem a promover a celeridade, simplificação e informalidade deste, Vd. arts. 19.º, n.º2 e 29.º, n.º2, do RJAT.  

3.Estando em causa matéria de direito, que foi claramente exposta e desenvolvida, quer no Pedido arbitral, quer na Resposta, dispensa-se a produção de alegações escritas devendo o processo prosseguir para a prolação da sentença. 

4. Designa-se o dia 17 de Novembro como prazo limite para prolação da decisão arbitral.(…)”.

6.  O Tribunal, em 27 de novembro de 2022, emitiu despacho deferindo o pedido da Requerida quanto à junção aos autos da decisão arbitral proferida no processo n.º 860/2021-T, nos termos que se dão por reproduzidos.

 

  1. SANEADOR

O Tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2º e dos artigos 5º e 6º do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas.

O processo não enferma de nulidades.

Cumpre apreciar e decidir.

 

III- DO MÉRITO

III-I- MATÉRIA DE FACTO

A1) Factos dados como provados

Com relevância para a decisão de mérito, o Tribunal considera provada a seguinte factualidade:

 

  1. Os Requerentes são casados e residentes, para efeitos fiscais, em território português, estando aqui sujeitos a tributação em sede de IRS, pela totalidade dos rendimentos auferidos, compreendendo os rendimentos obtidos no estrangeiro.
  2. Em 30-05-2017, os requerentes A... NIF ... E B... NIF..., no estado civil de casados, procederam à entrega da declaração de rendimentos de Modelo 3 de IRS nº (...- 2016 - ...- ...) referente ao ano de 2016, tendo declarado como auferidos no Anexo A, rendimentos provenientes de trabalho dependente no valor total de 216.665,10€ disponibilizados pelas entidades: C..., S.A., NIF ... no valor de 201.476,32€ e F... LDA NIF ... no valor de 7.601,69€ (SP A –A...) e G... CRL NIF ... no valor de 7.587,09€ (SP B –B...) e no anexo J, rendimentos obtidos no estrangeiro, no Q4A, campo 401, rendimento de categoria A no valor de 5.500€, imposto pago no estrangeiro no valor de 439€, no Q9.2A, campo 951, foram declaradas alienação de partes sociais e outros valores mobiliários (Código G90), no valor total de 2.407.535,62€, cujo valor de aquisição totaliza os 2.416.119,44€ e despesas e encargos no valor de 3.760€ (tendo assim apurado menos valias), da qual resultou a liquidação n.º 2017... de 05-07-2017, com um valor de imposto a reembolsar de 4.034,43€.
  3. Em 30-05-2018, os requerentes A... NIF ... e B... NIF..., no estado civil de casados, procederam à entrega da declaração de rendimentos de Modelo 3 de IRS nº (... - 2017 - ... - ...) referente ao ano de 2017, tendo declarado como auferidos no Anexo A, rendimentos provenientes de trabalho dependente no valor total de 290.411,87€ disponibilizados pelas entidades: C..., S.A., NIF ...no valor de 271.558,98€, F... LDA NIF ... no valor de 7.919€ e H..., INC. – SUCURSAL NIF ... no valor de 2.908€ (SP A –A...) e G... CRL NIF ... no valor de 2.684,42€ e I... CRL NIF ... (SP B –B...), no anexo F, Q4, campos 4001 e 4002, rendimentos prediais no valor de 5.000€ (SPs A e B), relativamente ao prédio com a seguinte descrição matricial (...-R-...) e no anexo G, Q9, campos 9001 a 9002 (SP A), em que foram declaradas alienação de partes sociais e outros valores mobiliários (Códigos G02 e G03), no valor total de 3.322.968,59€, cujo valor de aquisição totaliza os 115.500€ (tendo assim apurado mais-valias), cuja entidade emitente é J..., LDA NIPC..., Da qual resultou a liquidação n.º 2018... de 01-06-2018, com um valor de imposto a pagar de 451.545,38€.
  4. Em 28-06-2019, os requerentes A... NIF ... e B... NIF..., no estado civil de casados, procederam à entrega da declaração de rendimentos de Modelo 3 de IRS nº (...- 2017 - ...-...) referente ao ano de 2018, tendo declarado como auferidos no Anexo A, rendimentos provenientes de trabalho dependente no valor total de 216.627,31€ disponibilizados pelas entidades: C..., S.A., NIF ... no valor de 200.146,35€ e F... LDA NIF ... no valor de 8.240,48€ (SP A – A...) e I... CRL NIF ... (SP B –B...), no anexo F, Q4, campos 4001 e 4002, rendimentos prediais no valor de 5.000€ (SPs A e B), relativamente ao prédio com a seguinte descrição matricial ...-R-...) e no anexo G, Q9, campos 9001 a 9021 (SP A), em que foram declaradas alienação de partes sociais e outros valores mobiliários (Código G01), no valor total de 4.177.041,86€, cujo valor de aquisição totaliza os 4.206.493,21€, despesas e encargos no valor de 3.536,92€ (tendo assim apurado menos-valias), cuja entidade emitente é BANCO K... S A NIPC..., da qual resultou a liquidação n.º 2019... de 29-06-2019, com um valor de imposto a reembolsar de 6.293,04€.
  5. A..., NIF..., integra o perímetro de competência da Unidade dos Grandes Contribuintes desde 2017 e B..., NIF..., seu cônjuge, desde fevereiro de 2020.
  6. Não obstante, com base nas Ordens de Serviço n.ºs OI2019.../... de 18-06-2019 e OI2019... de 07-09-2019, a Direção de Finanças de Lisboa levou a cabo uma ação inspetiva interna de âmbito parcial – IRS aos requerentes A... NIF ... e B... NIF..., visando o controlo de esquemas de planeamento fiscal agressivo (…104-03), relativamente aos anos fiscais de 2016, 2017 e 2018. Tendo sido concluído a 17-11-2020.
  7. Desta ação, resultou na aplicação da norma anti abuso prevista no nº 2 do art.º 38.º da LGT, nos anos de 2016, 2017 e 2018 e outras correções, aos rendimentos da Categoria E (Relatórios de inspeção que se dão por integralmente reproduzidos para os devidos e legais efeitos).
  8. Através da utilização da sociedade D..., Lda. NIF..., os dividendos pagos pela sociedade E... SGPS, SA, NIF ... foram distribuídos sem que ocorresse a tributação em sede de IRS, na esfera do beneficiário (sócio-gerente único), sujeito passivo singular (ora requerente) A... NIF ... no valor total de 11.852.503,71€ (sendo 4.678.756,59€ em 2016, 3.059.000€ em 2017 e 4.114.747,12€ em 2018).
  9. Das conclusões da ação inspetiva, resultou o apuramento/correção (ponto III.1.1, i e ii), página 27 do Relatório de Inspeção):
  1. No ano de 2016, de rendimento ILIQUIDO de Cat. E (capitais/dividendos) no valor total de 4.678.756,59€ (do qual resultou um rendimento coletável corrigido de 2.534.575,06€), de que resultou diferencial de imposto em falta de 1.298.725,53€;
  2. No ano de 2017, rendimento ILIQUIDO de Cat. E (capitais/dividendos) no valor total de 3.059.000€ (do qual resultou um rendimento coletável corrigido de 1.792.595,05€), de que resultou diferencial de imposto em falta de 853.809,63€;
  3. No ano de 2018, rendimento ILIQUIDO de Cat. E (capitais/dividendos) no valor total de 4.114.747,12€ (do qual resultou um rendimento coletável corrigido de 2.251.974,30€), de que resultou diferencial de imposto em falta de 1.082.773,01€.
  1. De acordo com o que foi apurado, a sociedade E... SGPS, SA, NIF ... pagou dividendos à sociedade D..., Lda. NIF ... (sem tributação, nos termos do art.º 51º do CIRC - campo 771, nas declarações de rendimentos M22 de 2015 e 2016 - e dispensa de retenção na fonte nos termos do art.º 97.º, n.º 1, al. c) do CIRC) – 2017 e 2018), no montante total de 11.855.766,08€ (4.678.837,50€ em 2015/2016, 3.717.899,34€ em 2017 e 3.459.029,24€ em 2018 – quadro 1 das páginas 19 e 24 do RIT), sendo a quase totalidade desses lucros no valor total de 11.852.503,71€ (sendo 4.678.756,59€ em 2016, 3.059.000€ em 2017 e 4.114.747,12€ em 2018 – quadro 2 da página 19 e quadro 2 da página 24 do RIT), transferida em seguida (pela D...) para o ora requerente (A...) a título de reembolso do crédito/dívida formado com a operação de alienação (em 2015) das partes de capital que aquele detinha na E... SGPS, SA, NIF ... respeitantes a 6.050 ações representativas de 60,5% do capital, pelo valor de 13.287.076,14€ (sendo que as mesmas foram adquiridas em 2012 por 6.050€, e valorizadas muito acima do valor nominal em pouco mais de mais de 3 anos, conforme ponto ii), página 22 do Relatório de Inspeção).
  2. De acordo com o RIT, “(…) apesar de ter sido acordado o pagamento dessas ações, pela compradora, no prazo de 120 dias a contar da data do contrato, este ocorreu em vários anos não se encontrando essa dívida saldada. De referir que, a sociedade compradora não dispunha de meios financeiros, nem património à data para efetuar essa aquisição ou garantir esse pagamento. O preço das ações está a ser pago pela transferência dos lucros recebidos da E... para A... . É manifesto que o incumprimento do prazo para o pagamento do preço, que permanece só parcialmente pago, e a óbvia ausência de racionalidade económico-financeira, do contrato de compra e venda das ações, só se podem compreender considerando que o detentor de capital e gerente da D... Lda. é simultaneamente vendedor das ações da E... SGPS. As condições do negócio, bem como todos os atos e negócios jurídicos praticados previamente, inserem-se no contexto da procura de determinado resultado fiscal (não tributação da distribuição de lucros).
  3. Pela venda dessas ações o sujeito passivo A... declarou mais-valias, em sede de IRS, no exercício de 2015, no valor de €13.281.026,14 (=€13.287.076,14 - €6.050,00). No anexo G da declaração de rendimentos (Modelo 3) este indicou tratar-se de alienação onerosa de partes sociais de micro e pequenas empresas, sendo o saldo positivo entre as mais-valias e as menos-valias considerado em 50% do seu valor, como dispõe o n.º 3 do artigo 43.º do Código do IRS, pelo que somente o valor de €6.640.513,07 foi sujeito a tributação. Sobre esse valor de €6.640.513,07 incidiu a taxa especial de 28%, prevista na alínea c) do n.º 1 do art.º 72º do CIRS, tendo resultado o pagamento do valor de €1.859.343,66, (imposto relativo a tributações autónomas) (…)” (ponto ii, páginas 22 e 23 do RIT).
  1. Assim sendo, os serviços da Inspeção tributária concluíram que “(…) conjugação dos atos e negócios jurídicos (i) constituição da D... Lda (ii) venda à D..., Lda. de participações sociais na E... SGPS SA, a crédito; (iii) distribuição de lucros pela E... SGPS SA à D... Lda; iv) pagamento de parte do preço das participações a um dos titulares originários da E... SGPS SA, permitiu eliminar os impostos que seriam devidos se a estrutura jurídica da empresa se mantivesse na sua forma originária. Se a E... SGPS SA tivesse distribuído lucros ao seu acionista, este haveria de ser tributado em IRS, nos termos do artigo 5º n.º 2 alínea h) do CIRS (…)”. (ponto iii, páginas 23 e 24 do RIT).
  2. Perante esta factualidade, os serviços de Inspeção Tributária da DF de Lisboa propuseram a aplicação de Cláusula geral anti abuso (CGAA) prevista no art.º 38.º n.º 2 da LGT e cujo procedimento se encontra previsto no art.º 63.º do CPPT, cuja autorização foi dada em 03-12-2020, por Despacho da Sr.ª Diretora-geral da AT.
  3. As correções fiscais (nos temos do nº 4 do art.º 65º do CIRS) foram refletidas na esfera jurídico-tributária do titular dos rendimentos de capitais – Cat. E (dividendos) auferidos na qualidade de acionista da D... (A...), sendo os montantes auferidos incluídos no anexo E da declaração de rendimentos modelo 3 do IR dos anos de 2016, 2017 e 2018 por englobamento e considerados em apenas 50% conforme o disposto no artigo 40º-A, n.º 1, do CIRS[1] no valor de 2.339.378,30€, 1.529.500€ e 2.057.373,56€, respetivamente,  e sujeitos a englobamento por aplicação das taxas gerais previstas no art.º 68.º do CIRS (redações dadas pela Lei n.º 7-A/2016, de 30/03, pela Lei n.º 42/2016 - 28/12 e pela Lei n.º 114/2017, de 29/12 respetivamente).
  4. Através do ofício nº..., de 09/10/2020, da DF de Lisboa (Registo CTT nº RH RH ... PT), os sujeitos passivos, foram notificados a 12-10-2020 (nos termos do nº 1 do art.º 39.º do CPPT) do teor do projeto de relatório de Inspeção Tributária elaborado, nos termos previstos nos artigos 60.º da LGT e 60.º do RCPITA, para, no prazo de 30 dias exercer o direito de audição prévia, conforme previsto no n.º 5 do art.º 63º do CPPT.
  5. Os Sujeitos Passivos exerceram esse direito mediante apresentação de exposições que deram entrada na Direção de Finanças de Lisboa – entrada GPS nº 2020..., de 13-11-2020.
  6. Após terem sido analisados os factos e argumentos trazidos pelos sujeitos passivos no exercício do direito de audição, concluiu-se que os mesmos não são suscetíveis de alterar as conclusões que constavam do projeto de relatório, tendo assim sido mantida a posição aí vertida e as respetivas correções em sede de Relatório Final de Inspeção.
  7. Na sequência das conclusões do procedimento inspetivo, no dia 17-11-2020, os serviços elaboraram:
    1. A declaração oficiosa modelo 3 de IRS n.º ... - 2016 -... - ... referente ao ano de 2016, englobando para o SP (A...), no anexo E, rendimentos da Categoria E (capitais), no Q4B, campo 451, no valor de 2.339.378,30€€.
    2. Que deu origem a liquidação oficiosa nº 2020 ... de 04-12-2020 com valor de imposto a pagar de 1.474.857,78€ (demonstração de acerto de contas n.º 2020..., da qual resultou o montante a pagar de 1.478.892,21€), entretanto regularizada com data de 14-01-2021.
    3. Desta liquidação ainda resultaram juros compensatórios no valor de 180.166,68€ conforme disposto no art.º 35.º da LGT conjugado com o art.º 91.º do CIRS e sobretaxa de IRS no valor de 84.972,73€.
    4. A declaração oficiosa modelo 3 de IRS n.º ... - 2017 - ...- ... referente ao ano de 2017, englobando para o SP (A...), no anexo E, rendimentos da Categoria E (capitais), no Q4B, campo 451, no valor de 1.529.500€.
    5. Que deu origem à liquidação oficiosa n.º 2020 ... de 04-12-2020 com valor de imposto a pagar de 1.389.566,02€ (demonstração de acerto de contas n.º 2020..., da qual resultou o montante a pagar de 938.020,64€), entretanto regularizada com data de 20-01-2021.
    6. Desta liquidação ainda resultaram juros compensatórios no valor de 84.211,32€ conforme disposto no art.º 35.º da LGT conjugado com o art.º 91.º do CIRS e sobretaxa de IRS no valor de 52.961,89€.
    7. A declaração oficiosa modelo 3 de IRS n.º ... - 2018 -... - ... referente ao ano de 2018, englobando para o SP (A...), no anexo E, rendimentos da Categoria E (capitais), no Q4B, campo 451, no valor de 2.057.373,56€.
    8. Que deu origem à liquidação oficiosa nº 2020... de 04-12-2020 com valor de imposto a pagar de 1.136.516,42€ (demonstração de acerto de contas n.º 2020..., da qual resultou o montante a pagar de 1.142.809,46€), entretanto regularizada com data de 20-01-2021.
    9. Desta liquidação ainda resultaram juros compensatórios no valor de 60.036,45€ conforme disposto no art.º 35.º da LGT conjugado com o art.º 91.º do CIRS.
  8. Discordando, em 17-05-2021 (Entrada nº ... de 17-05-2021), através das mandatárias, os ora requerentes apresentaram reclamação graciosa dos atos tributários atrás referidos (liquidações oficiosas de IRS 2016, 2017 e 2018) ao abrigo do art.º 68º e seguintes do CPPT, alegando nomeadamente que:

“Se, porém, os Serviços de Inspeção Tributária tivessem solicitado ao Sujeito Passivo A os devidos esclarecimentos face às diversas situações que entenderam reputar de incongruentes e, em consequência, abusivas, o Sujeito Passivo A teria decerto contribuído para o cabal esclarecimento de eventuais dúvidas, o que, acredita, teria conduzido a que os resultados da inspeção se revelassem consentâneos com a realidade material em apreço - o que, in casu, manifestamente não sucedeu.

“Foi, portanto, com admiração e estranheza que os Reclamantes tomaram conhecimento do teor do projeto de relatório de inspeção tributária, o qual insinuava a sua participação em esquemas de planeamento fiscal abusivo/agressivo e, sobretudo, da intenção de aplicação da cláusula geral antiabuso ao seu caso.

“Desde logo, importa referir que as conclusões alvitradas pelos Serviços de Inspeção Tributária, que resultaram nas liquidações adicionais de IRS ora reclamadas, as quais se basearam na verificação de alegadas configurações artificiosas com o intuito de alcançar uma vantagem fiscal ilegal, não se revelam consentâneas com a realidade material vertente, conforme adiante se deixará claro.

“E mais se refira, a propósito, que da análise do relatório de inspeção tributária se constata que essa realidade material não foi devidamente dissecada e analisada pelos Serviços de Inspeção Tributária, que se limitaram a olhar para um conjunto de operações que lhes suscitou alguma dúvida e suspeição, sem curarem de olhar a todo o cenário empresarial em que se insere a D..., enquanto holding pessoal do Sujeito Passivo A, o que denota uma violação clara violação dos princípios da legalidade, da imparcialidade e do inquisitório - consagrados nos artigos 55.º e 58.º da LGT -, nos termos dos quais a Autoridade Tributária está obrigada a carrear para o procedimento (incluindo o procedimento inspetivo) todos os elementos probatórios necessários/indispensáveis à prolação de uma decisão justa e adequada.

“Cabia, portanto, à Autoridade Tributária (in casu, aos Serviços de Inspeção Tributária) apurar a verdade material, em concreto, com especificação dos factos em que as suas conclusões surgem ancoradas, porquanto a mesma decorre, naturalmente, do princípio da legalidade tributária, como é amplamente reconhecido pela jurisprudência e doutrina abaixo citada”.

  1. A reclamação foi analisada no âmbito do processo SICAT nº ...2021... de 17-05-2021, tendo sido proferido a 14-10-2021 pela Diretora Adjunta da Área da Justiça Tributaria da Unidade de Grandes Contribuintes (UGC), despacho de INDEFERIMENTO, concluindo-se pela legalidade dos atos tributários em causa, da aplicação da CGAA previsto no art.º 38º nº 2 da LGT e demais vícios invocados (Projeto/Informação nº ...-AIR3/2021 de 13-09-2021 e nº 200-AIR3/2021 de 14-10-2021 da Divisão da Justiça tributaria da UGC, em anexo e que se dão por integralmente reproduzidos para os devidos e legais efeitos), do seguinte teor:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  1. Através dos ofícios nºs ...-DJT de 15-10-2021 da UGC (Registo CTT nº RF...PT), foram as mandatárias notificadas do referido despacho de indeferimento para os devidos e efeitos legais. Tendo sido validamente notificados a 19-10-2021 nos termos do nº 1 do art.º 39º do CPPT.
  2. Discordando, os sujeitos passivos apresentaram o presente PPA.
  3. Mais concretamente, quanto à D..., Ld.ª, resulta do Relatório de Inspeção Tributária (RIT), que aquela sociedade foi constituída em 16-12-2015, tendo sido declarado o início de atividade na mesma data.
  4. Encontra-se inscrita para o exercício da Atividade “Outras Atividades Consultadoria para os Negócios e a Gestão” e na certidão permanente consta como objeto “A prestação de serviços de consultadoria, gestão, planeamento estratégico e investimento de sociedades comerciais.”
  5. O domicílio fiscal da D..., Lda. situa-se na ..., ..., ..., ...-... Lisboa (domicílio fiscal idêntico ao da E..., SGPS).
  6. O capital da sociedade é de € 1.000,00 e os rendimentos que obteve foram fundamentalmente provenientes dos dividendos distribuídos pela E... SGPS, os quais foram deduzidos no campo 771 do Q07 das declarações mod. 22 de IRC apresentadas relativamente aos respetivos exercícios, os quais não foram, legalmente, tributados em IRC:
    1. Exercício de 2015: € 2.704.350,00;
    2. Exercício de 2016: € 2.632.650,00;
    3. Exercício de 2017: € 3.059.736,84;
    4. Exercício de 2018: € 3.459.029,24.

Num total de…. € 11.855.766,08.

  1. Analisando-se os montantes obtidos a título de rendimentos, se infere que a sua quase totalidade provém da distribuição de dividendos pela E... SGPS, sociedade cujas ações o Requerente alienou para a recém-criada (final de 2015) D..., Lda. por referência aos anos 2015 a 2018.
  2. As declarações periódicas de IVA dos exercícios de 2015, 2016 e 2018 encontram-se a “zeros”, não revelando operações ativas ou passivas.
  3. Também conforme consta no RIT, registou gastos de FSE- Fornecimentos e Serviços Externos (conta 62) ocorridos no exercício de 2018, com Outros Trabalhos Especializados (conta 6221119), que incluem €750,00 com o Revisor Oficial de Contas, da L...– SROC Lda.
  4. A forma de obrigar a sociedade é com uma assinatura, a do gerente e sócio único, o Requerente.
  5. A D... possui somente um colaborador não remunerado na sua estrutura societária – o sócio-gerente e requerente - sendo que nos exercícios de 2015, 2016, 2017 e 2018 foi indicado pela sociedade que se contabilizavam duas horas por ele trabalhadas e não possui estrutura física, imóveis ou viaturas em seu nome, equipamentos ou gastos associados à sua utilização e não paga rendas pelas instalações que ocupa.
  6. Na data da sua constituição, o capital da D... estava assim distribuído:

... M... €1,00, de 16/12/2015 a 27/12/2015

... A... €999,00 16/12/2015

... A... €1,00 a partir de 28/12/2015

Sendo que, no entanto, no balancete de 31-12-2015 consta como detentor das quotas no valor de € 1.000,00 apenas o ora Requerente, dado que o outro sócio lhe transmitiu a sua quota de € 1,00 na data de 28-12-2015.

  1. Quanto à venda das ações da E... SGPS para a D..., resulta do processo de inspeção que, por contrato de compra e venda de ações de 24-12-2015, a D... adquiriu a A... 6050 ações, representativas de 60,5% do capital da E... SGPS, pelo valor de € 1-lhe3.287.076,14, valor a ser pago no prazo de 120 dias pela adquirente.
  2. Na sequência da venda das ações, o Sujeito Passivo A realizou uma mais-valia, no valor de € 13.287.076,14, resultante da diferença entre os valores de realização e de aquisição das referidas ações, nos termos seguintes: € 13.287.076,14 - € 6.050,00 = € 13.281.026,14.
  3. A mais-valia resultante da operação descrita foi devidamente declarada pelos Requerentes na declaração anual de rendimentos Modelo 3 de IRS - que é entregue conjuntamente por ambos -, através do preenchimento do Anexo G, referente a mais-valias e outros incrementos patrimoniais.
  4. A  mais-valia, no montante de € 13.281.026,14, foi assim sujeita a tributação em sede de IRS, em 50% do seu valor, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 43.º do Código do IRS, que prevê que [o] saldo referido no n.º 1, respeitante às operações previstas na alínea b) do n.º 1 do artigo 10.º, relativo a micro e pequenas empresas não cotadas nos mercados regulamentado ou não regulamentado da bolsa de valores, quando positivo, é igualmente considerado em 50% do seu valor(sublinhado dos Requerentes).
  5. Em consequência, foi liquidado e pago pelos Requerentes, por referência à alienação das ações da E..., imposto no montante de € 1.859.343,66, mediante aplicação da taxa especial  prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 72.º do Código do IRS, de 28%, nos termos abaixo: [(€ 13.281.026,14 x 50%) x 28%] = € 1.859.343,66.
  6. Foi tomada a decisão de gestão de, em vez de restituir no prazo acordado o valor por que comprou as ações ao Requerente, para o que poderia ter sido contraído um financiamento bancário, a D... - que é controlada pelo Requerente – transformar essa dívida em suprimentos do mesmo valor, sem prazo de reembolso.
  7. O financiamento foi então efetuado pelo Sujeito Passivo A, sob a forma de suprimento, à D..., e, também numa decisão de gestão, nesta foi deliberado que, em vez de distribuir dividendos, fosse paga a dívida e, nesse contexto, foi o sócio parcialmente reembolsado pela sociedade, nos anos de 2016, 2017 e 2018, através da restituição dos montantes de € 4.678.756,59, € 3.059.000,00 e € 4.114.747,12, respetivamente.
  8. As demonstrações de resultados extraídas das IES apresentadas pela D... apresentam os seguintes valores (RIT, pp 7):

 

  1. Os balanços extraídos das IES apresentadas pela D... apresentam os seguintes valores (RIT, pp. 7 e 8):

 

  1. Após efetuar as correções extra contabilísticas, constantes no quadro seguinte, a sociedade D... de apurou os seguintes resultados para efeitos fiscais, por exercício (RIT, pp . 8 e 9):

 

  1. Pela análise da rubrica de ativo não corrente, esta é constituída por participações financeiras, nos seguintes montantes (RIT, pp.11 e 12) :

 

  1. O valor de €13.287.076,14, na tabela anterior, corresponde a 6050 ações representativas de 60,5% do capital social da “E... SGPS” as quais foram adquiridas pela D... ao seu sócio gerente-A..., NIF..., em 24/12/2015, conforme contrato de compra e venda de ações (vide anexo 3 ao RIT). No exercício de 2017 o acréscimo no valor das participações de €433.571,59, refere-se à aquisição de 2.500 ações do capital social da “E... SGPS” as quais foram adquiridas pela D... a N..., NIF ..., em 09/10/2017, conforme declaração modelo 4, de aquisição e/ou alienação de valores mobiliários da D... tornando-se esta última detentora de 62% do capital social da E... SGPS. Essa alienação de ações, por N... em 2017, ocorreu por um valor aproximado de €173,43 por ação. No exercício de 2018 houve um acréscimo de €5.498,89 resultante de aquisição de participações da O... Fund (RIT, pp. 12)
  2. O Requerente, apesar de ter alienado, em 2015/12/24, a maioria das ações que detinha da E... SGPS, manteve-se como Presidente do Conselho de Administração desta última, conforme consta na certidão permanente da E... SGPS SA (vide anexo 8 ao RIT). Para além disso, a D... tinha uma percentagem de direito de voto na E... SGPS igual à da sua participação, conforme consta no quadro 050603B do anexo A da IES desta última, dos exercícios 2015 a 2018, pelo que atendendo que A... é sócio único, e gerente, da D... (desde 2015/12/28), tem também, indiretamente, poder de decisão na E... (RIT, pp. 12 e 13):

 

  1. Por sua vez, a E... SGPS tem sede na ..., ..., ..., ...-... Lisboa – a mesma da D...-, e a 31-12-2015, o seu capital tinha a seguinte composição:

 

  1. No seguimento da constituição da D... e da compra, ao ora Requerente, das ações que detinha na E... SGPS, esta última transferiu – conforme ata n.º 45 de 14-12-2015 - o montante líquido de € 2.028.262,50 para a D..., a título de adiantamento por conta de lucros (correspondente a € 2.704.350,00, sujeito a retenção na fonte, à taxa de 25%, no montante de € 676.087,50, que, verificados a posteriori os pressupostos da eliminação da dupla tributação económica dos lucros distribuídos, foi reembolsado à D..., conforme modelo 22 IRC – vide RIT, pp. 12-15).
  2. Conforme ata n.º 12, foram aprovadas as contas do Exercício de 2015, com o Resultado Líquido do Exercício no valor de € 9.316.310,64, bem como deliberado a aplicação dos resultados do exercício, sendo que € 428.559,97 foram transferidos para resultados transitados e € 4.415.000,00 foram distribuídos aos sócios.
  3. À D... coube o montante de € 1.974.487,50, conforme consta no RIT, pagos em 30-05-2016 conforme extratos bancários, sendo que, ao dividendo distribuído, no valor bruto de € 2.632.650,00, foi efetuada retenção na fonte, à taxa de 25%, pelo montante de € 658.162,50, valor incluído, verificados os pressupostos da eliminação da dupla tributação económica dos lucros distribuídos, no reembolso efetuado à D... em 27-07-2017, conforme apurado na declaração modelo 22 de IRC do exercício de 2016.
  4. Assim, relativamente ao ano de 2015, dos € 9.316.310,64 do Resultado Líquido do Período, €4.470.000,00 foram adiantamento sobre lucros aos acionistas, sobre lucros do exercício (ata n.º 45), €4.415.000,00 foram lucros distribuídos aos acionistas e €428.559,97 foram transferidos para resultados transitados (ata n.º 12).
  5. Relativamente ao ano de 2016, a 15-05-2017, através das atas n.º 68 e n.º 15, são aprovadas as contas do Exercício de 2016, com o Resultado Líquido do Exercício no valor de € 5.067.205,94, o qual foi deliberado distribuir aos acionistas.
  6. Em 04/07/2017 foram pagos à D..., lucros sobre o exercício de 2016 pela E... SGPS, SA, no valor de € 3.059.736,84, conforme extratos bancários.

O valor indicado corresponde ao valor bruto do dividendo distribuído, o qual não foi sujeito a retenção na fonte, por dela estar dispensado nos termos da alínea c) do n.º 1 do art.º 97.º do CIRC.

  1. Por seu turno, a 30-05-2018, conforme ata n.º 80, foram aprovadas as contas do exercício de 2017 com o Resultado Líquido do Exercício no valor de € 7.212.627,32, deliberando-se distribuir aos acionistas a título de dividendos, o montante de € 5.860.516,19.
  2. Em 2018/08/06 foram pagos à D..., lucros correspondentes ao exercício de 2017 pela E... SGPS, SA, no valor de €3.459.029,24, conforme extratos bancários (vide anexo 5 do RIT).
  3. O valor indicado corresponde ao valor bruto do dividendo distribuído, o qual não foi sujeito a retenção na fonte por dela estar dispensado nos termos da alínea c) do n.º 1.º do art.º 97.º do CIRC.
  4. Neste contexto, nos anos de 2015, 2016, 2017 e 2018 o valor líquido dos dividendos distribuídos à D... pela E... SGPS SA (vide anexo 5 do RIT), bem como o valor das retenções na fonte efetuadas à referida sociedade e que posteriormente lhe foram devolvidas, foram, os seguintes:

 

  1. A D... pagou a A..., por conta do valor de venda das ações da E... SGPS SA, durante 2016, 2017 e ainda em 2018, o valor de € 11.852.503,71, verificando-se, pois, que aquele ainda tinha um saldo a seu favor de € 1.434.572,43.
  2. Enquanto atividade económica indireta[2], destacam-se a permanente participação nos órgãos de gestão da sociedade participada e os investimentos realizados pela D... desde a sua constituição, em 2015, até ao ano de 2019 (cf. Documentos 15 a 18 juntos pelo Requerente):
  1. Aquisição, em 24 de abril de 2017, de uma participação de 50% do capital social da sociedade J..., Lda., pelo valor de € 3.219.968,59;
  2. Aquisição, em 31.12.2018, de 10.724 ações da Facebook ao Sujeito Passivo A pelo montante de € 1.241.554,94.
  3. Subscrição de 4.000 unidades de participação no fundo luxemburguês O..., SICAV-RAIF (doravante designado por “O...”) em 15 de novembro de 2018 e realização inicial de capital, no montante de € 5.498,89, em 20 de dezembro de 2018. Em 2019, 2020 e 2021 ocorreram realizações adicionais de capital no referido fundo no montante de € 42.583,41, € 105.562,66 e 78.147,32, respetivamente. Nessa medida, o investimento na referida entidade, globalmente considerado, ascende ao total de € 231.792,28.
  4. Subscrição de 14.336 unidades de participação no P... ... (doravante designado por “P...”) em 15 de outubro de 2018. Em 2019, ocorreu uma realização de capital, por parte da D..., no montante de € 1.539.246,00. 
  5. As participações acima referidas, adquiridas em 2017 e 2018, acabaram por apenas ser refletidas nas contas de 2019 da D..., sendo que, à semelhança do sucedido aquando da aquisição da participação na E..., o respetivo preço acordado não foi pago de imediato, tendo o consequente crédito, também com referência a estas operações, sido reconhecido como suprimento do Sujeito Passivo A à sua holding pessoal.
  6. As ações da Facebook em 2019, sofreram uma valorização muito significativa (acima de € 700.000,00), consubstanciando tal valorização um ganho sujeito a IRC na esfera da D... . Nessa medida, quando (e se) as mesmas vierem a ser alienadas, tal operação terá, naturalmente, como consequência o pagamento de imposto em montante muito significativo.
  7. Subsequentemente, nos anos de 2020 e 2021, foram realizados outros investimentos pela D..., em diferentes setores de atividade, os quais importa elencar na presente sede, por permitirem eliminar quaisquer dúvidas a respeito da efetiva prossecução de atividade por parte da referida sociedade. Vejamos, abaixo: 
  • Realização de investimento de € 3.000,00 na sociedade S..., Lda., consubstanciando a (i) aquisição de quotas no capital social da referida entidade e a (ii) realização de prestações suplementares;
  • Aquisição de ações da E..., em fevereiro de 2020, totalizando um investimento de € 56.297,40;
  • Realização de investimento de € 200.000,00, através da subscrição de unidades de participação no fundo de capital de risco Q..., ..., em dezembro de 2020, no âmbito de uma chamada de capital.
  • Aquisição de ações da R..., Inc., em janeiro, outubro e dezembro de 2021, totalizando um investimento de € 56.297,40;
  • Realização de prestações suplementares na sociedade S..., Lda. em junho, agosto e novembro de 2021, num investimento que monta ao valor de € 1.662.821,02;
  • Realização de investimento de € 1.662.821,02, através da subscrição de unidades de participação no T..., LP, em maio de 2021;
  • Aquisição de quotas da sociedade U..., Lda., em outubro de 2021, totalizando o montante investido € 200.000,00;
  • Realização de investimento de € 3.000,00 na sociedade V..., Lda., consubstanciando a (i) aquisição de quotas no capital social da referida entidade, bem como a (ii) realização de prestações suplementares.
  1. A reconstituição (desconsideração?) da operação negocial acaba por resultar em liquidações de IRS na esfera tributária do Requerente, tido como beneficiário efetivo da vantagem fiscal pretensamente ilegal auferida, proveniente do rendimento de capitais (lucros distribuídos) supostamente elidido, acrescido, por englobamento, ao rendimento global já declarado nas declarações modelo 3 respeitantes aos anos de 2016 a 2018, englobamento esse que é uma opção e não uma obrigação e, mais, é prerrogativa exclusiva do titular dos rendimentos, porquanto a tributação normal dos dividendos distribuídos ocorre no quadro da substituição tributária própria, por retenção liberatória na fonte efetuada pela entidade devedora, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 71.º do Código do IRS, sendo uma obrigação imodificável por vontade das partes.
  2. Os Requerentes, embora não concordando com as correções efetuadas pela Requerida, procederam ao pagamento das liquidações impugnadas, no valor global de € 3.559.722,31.

 

A2) Factos dados como não provados

Com relevo para a decisão não existem factos alegados que devam considerar-se não provados.

 

A3) Fundamentação da matéria de facto

Relativamente à matéria de facto, importa, antes de mais, salientar que o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, antes, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e distinguir a matéria provada da não provada, tudo conforme o disposto nos artigos 123.º, n.º 2, do CPPT e 607.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e Ex), do RJAT.

Os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cf. o artigo 596.º do CPC).

No que se refere aos factos provados e não provados, a convicção dos árbitros fundou-se na análise crítica da prova documental, junta aos autos, incluindo o processo administrativo, e na posição assumida por ambas as Partes em relação aos factos essenciais, sendo que as questões controvertidas são estritamente de Direito, como adiante se verá.

 

III-II- DO DIREITO

III-II-1- Questões Prévias

 

A)Da incompetência territorial dos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Lisboa para a prática dos atos de inspeção

 

Através do Ofício n.º ...-.../2021, datado de 15 de outubro de 2021, os Requerentes foram notificados da decisão final de indeferimento da reclamação graciosa por si apresentada (cf. citado Documento 1), com base nos seguintes argumentos quanto à invocada incompetência territorial dos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Lisboa para a prática dos atos de inspeção que aqui estão em causa (sublinhado do original):

  • no que respeita à incompetência territorial da Direção de Finanças de Lisboa para a prática dos atos de inspeção, refere a Autoridade Tributária que “da nossa parte, concordamos apena em parte com o enquadramento jurídico-tributário desenhado pelos Reclamantes, quanto à competência para a prática dos atos de inspeção residir na UGC, podendo apenas ser praticados por outro serviço mediante decisão fundamentada da entidade que os tiver ordenado, e, em regra, em caso de incompetência territorial, que será aqui relativa, deveria ser sujeito a ratificação”, concluindo, porém, que “quanto ao ato de ratificação não (…) lhe assistem as exigências de fundamentação idênticas às indicadas no art.º 17.º do RCPITA alegadas pelos Reclamantes” (cf. os pontos 27. e 28. da decisão de indeferimento da reclamação graciosa);
  • ainda a respeito, a Autoridade Tributária refere que “houve de facto um pedido de extensão de competência efetuado pela Direção de Finanças de Lisboa no âmbito dos respetivos procedimentos de inspeção e consultáveis nos autos dos mesmos, e esse não carece de notificação ao sujeito passivo”, aditando que tal pedido “ocorreu a 25 de novembro de 2020, feito pela Diretora de Finanças Adjunta, tendo obtido autorização por despacho do Diretor da UGC no mesmo dia” (cf. os pontos 31. e 32. da decisão de indeferimento da reclamação graciosa);
  • por fim, indica a Autoridade Tributária que “à data de abertura do procedimento inspetivo, apenas o A... (…) integravam (sic) o perímetro de competência da Unidade dos Grandes Contribuintes, sendo que B... (…) pertencia ainda à circunscrição territorial da Direção de Finanças de Lisboa” (cf. o ponto 35. da decisão de indeferimento da reclamação graciosa);
  •  “(…) o relatório final de inspeção possui como autor da decisão a Diretora-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) e não o Diretor de Finanças de Lisboa”, pelo que “a decisão do procedimento foi em conformidade com o disposto no n.º 6 do art.º 62.º do RCPITA devidamente sancionada por quem de direito, não o Diretor de Finanças nem o Diretor da UGC mas sim a Diretora-Geral da AT” (cf. os pontos 39. e 44. da decisão de indeferimento da reclamação graciosa).

 

Apreciando.

O Requerente já integrava a UGC desde 2017. Face às atribuições e competências desta Unidade, designadamente no plano da competência que abrange todo o território nacional, não parece ter sido devidamente ponderado que, com início em 2019, a Direção de Finanças de Lisboa, procedesse à inspeção aos anos fiscais de 2015, 2016, 2017 e 2018. É certo que o sujeito passivo B… não integrava, ainda, a UGC. No entanto, tendo os sujeitos passivos optado, nos anos em causa, pela tributação conjunta e sem prejuízo da inspeção posterior, parece deveria prevalecer a competência territorial nacional da UGC para proceder aos atos inspetivos aos exercícios em causa, por hierarquicamente superior à competência territorial distrital da Direção de Finanças de Lisboa e com base no princípio de que "quem pode o mais, pode o menos", quando a inverso já não é verdadeira. Porventura a solução apropriada seria a de dividir os atos inspetivos pelos períodos em que a competência sem qualquer dúvida se encontrava na esfera de cada um dos Órgãos. Mas tem de reconhecer-se que tal divisão não deixaria de criar inconvenientes de vária ordem, tanto para os Serviços, como para os próprios Requerentes.

O princípio de que a competência territorial se fixa no início do procedimento, consagrado no n.º 5 do artigo 10.º do CPPT, não pode aqui ser aplicado, uma vez que, naquela data, já a competência para a realização dos atos inspetivos era, sem dúvida, da UGC. Há, pois, da parte da Direção de Finanças de Lisboa um erro sobre os pressupostos de facto e de direito sobre a competência territorial suscetível de fazer prevalecer o vício de incompetência territorial invocado pelo Requerente.

Porém, não se pode aceitar - embora essa não aceitação não influencie a improcedência da competência territorial - que "o relatório final de inspeção possui como autor da decisão a Diretora-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira", uma vez que o artigo 63.º do CPPT apenas confere àquele Órgão a competência para autorizar a aplicação da cláusula geral anti abuso-como, de resto, resulta do próprio despacho. E essa autorização, de natureza procedimental meramente interna, é dada aos órgãos competentes da AT para sancionarem o RIT enquanto instrumento de inspeção Tributária e efetuarem correções que forem devidas. Trata-se, pois, de um ato constitutivo de uma relação jurídica exclusivamente interna que tem por sujeitos passivos os órgãos competentes da AT e não o Requerente.

Deve, aliás, recordar-se que o órgão competente originário para proceder à correção das declarações apresentadas pelos contribuintes de IRS é o diretor de finanças, em cuja área se situe o domicílio fiscal dos sujeitos passivos, nos termos do disposto no n.º 5 do artigo 66.º do CIRS. Acresce àquele órgão a competência própria para sancionar, nos termos do n.º 6 do artigo 62.º do RCPIT, o Relatório da Inspeção Tributária[3] que sobe à Diretora-Geral, já sancionado com efeitos externos (perante os Requerentes), para efeitos de autorização de aplicação da CGAA.

No entanto, e atento o disposto no artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 6/2013, de 17 de janeiro, não pode deixar de se admitir aqui que, tratando-se de um ato consequente da decisão proferida sobre o Relatório de Inspeção Tributária elaborado quando o Requerente já era considerado Grande Contribuinte, não haja violação de qualquer norma de competência tanto em razão do território, com em razão da matéria, por não ter sido elaborado pela UGC que, nos termos da alteração efetuada pelo diploma citado ao artigo 16.º da LGT, tem legalmente atribuída uma competência específica para praticar atos de inspeção tributária - verificados que sejam os respetivos pressupostos temporais, como é aqui o caso - relativamente a todos os Grandes Contribuintes, independentemente da localização do seu domicílio ou sede.

Sem prejuízo de não poder dar-se como provado nos termos previstos no n.º 6 do artigo 84.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aqui aplicável por força do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, que foram efetuadas as diligências relatadas na Instrução da reclamação graciosa no sentido de prevenir formalmente o vício de incompetência, uma vez que no PA apresentado pela Requerida não se junta nada mais do que o RIT e nem este está completo, está provado que as conclusões do Relatório da Inspeção Tributária relativo aos Requerentes e aos exercícios de 2015, 2016, 2017 e 2018, junto pelos Requerentes como documento 12, foram expressamente sancionadas pelo Diretor da Unidade dos Grandes Contribuintes em 26-11-2020, ou seja, antes de o processo ter subido à Diretora-Geral para os efeitos previstos no n.º 3 do artigo 63.º do CPPT[4], um despacho-sanação que extingue qualquer tipo de incompetência territorial ou em razão da matéria que, porventura, tivessem ocorrido e torna mesmo inconsequente a afirmação da Requerida de que o RIT foi sancionado pela Diretora-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira que, não tendo competência originária para sancionar relatórios da IT, também lhe está vedada a respetiva avocação[5].

E pode ainda acrescentar-se que a reclamação graciosa prévia prevista no artigo 63.º do CPPT foi já endereçada incondicionalmente ao Diretor da Unidade dos Grandes Contribuintes, pelo que os próprios Requerentes lhe reconheceram a competência para a decidir.

Em conclusão, não procede o vício de incompetência territorial invocado pelos Requerentes.

 

B) Da extemporaneidade do acionamento do mecanismo previsto no n.º 2 do artigo 38.º da LGT pelo decurso do respetivo prazo de caducidade

  • Quanto à caducidade do direito à liquidação, pode ler-se que “não é o momento da constituição da sociedade “D... o facto tributário único segundo o qual deve o imposto incidir”, sendo que “[c]aso não tivesse sido celebrada a operação descrita, mantendo a detenção das ações na esfera dos Reclamantes, os montantes por estes recebidos seria a titulo de distribuição de lucros ou dividendos, tributados como tal nesses mesmos anos” (cf. os pontos 67. e 69. da decisão de indeferimento da reclamação graciosa);
  • Quanto à existência de um vício de caducidade do direito de ação à disposição anti abuso, verifica-se que “[r]eportando-se o procedimento em causa a facto com início em 2015, podemos com toda a assertividade assegurar que não se encontra em causa a garantia prevista no n.º 3 do art.º 63.º do CPPT, na redação prévia às alterações promovidas pela Lei do Orçamento de Estado para 2012” (cf. o ponto 79. da decisão de indeferimento da reclamação graciosa);

No Plano Estratégico de Combate à Fraude e Evasão Fiscais e Aduaneiras 2012-2014 prevê-se [pp. 27]

3.1.6. Aplicação das normas anti-abuso

A cláusula geral antiabuso tem tido uma utilização limitada pela administração tributária, nomeadamente, por causa de constrangimentos legais relativos ao seu âmbito e prazo de aplicação.

Torna-se, por isso, necessário flexibilizar a utilização das normas antiabuso, nomeadamente, circunscrevendo de forma expressa o procedimento previsto no artigo 63.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário à cláusula geral antiabuso, eliminando o prazo nele consagrado e definindo em que momento a sua utilização pode ser autorizada pelo dirigente máximo da administração tributária e aduaneira.

Medidas:

9. Alterar o artigo 63.º do CPPT para consagrar expressamente que este procedimento tributário se reporta exclusivamente à aplicação da cláusula geral antiabuso, eliminando o prazo específico para a sua aplicação e clarificando em que momento deve ser autorizado pelo dirigente máximo. Desta forma, flexibiliza-se a utilização das normas antiabuso, tornando-as mais eficazes no combate aos esquemas de planeamento fiscal abusivo e de elevada complexidade.

Foi, pois, com esta motivação que se eliminou o primeiro prazo de caducidade de 3 anos, não se estabelecendo nenhum outro. Teria querido o legislador que, em prejuízo da certeza e da segurança jurídicas, que integram o quadro das garantias dos contribuintes[6], a AT nunca pudesse aplicar a CGAA ou que a pudesse aplicar quando entendesse, sem dependência de prazo? Ambas as posições são radicalistas e inaceitáveis. A tese hoje consensual é a de que a CGAA pode ser aplicada dentro do prazo normal de caducidade, previsto no artigo 46.º da LGT. Ou melhor, pode ser aplicada num quadro temporal que permita efetuar a liquidação ou liquidações dela resultantes dentro do prazo de caducidade, contado segundo as regras gerais, porque o início do procedimento[7] para aplicação da CGAA não tem efeito suspensivo da liquidação.

Questão conexa é a de saber, uma vez definido o arco temporal de aplicação da CGAA, qual o momento em que o prazo começa a contar. E, aqui, as posições tendem também a coincidir[8]. De facto, desde que a vantagem indevida tenha sido obtida com a prática de mais do que um ato, vem prevalecendo a tese que, originariamente, foi definida no Acórdão do TCAS de 15/02/2011, Processo n.º 4355/10, nos seguintes termos: "Estamos aqui perante as denominadas "step by step transactions" nas quais se encontra uma "facti species" complexa, envolvendo uma sucessão de actos/ negócios coordenados entre si, embora possam ocorrer em momentos temporais diversos, e com o objectivo comum de conseguir uma vantagem fiscal. Face a esta espécie de operações, deve o aplicador da lei operar um tratamento integrado visualizando-as como uma única transacção, propendendo para um único e final resultado. Trata-se da "step transaction doctrine", a qual se deve aplicar ao caso dos autos, daí decorrendo que a disposição anti -abuso pode e deve aplicar-se ao momento decisivo e final que é representado, "in casu", pela recepção de acréscimos patrimoniais como dividendos dedutíveis, em vez de juros, que seria o que aconteceria na ausência da operação compósita evasiva".

Adotando-se, como se adota, este entendimento, no caso dos autos não pode, pois, deixar de considerar-se que o ato, no conjunto dos atos até então praticados, que desencadeia o início da contagem do prazo de caducidade ocorre com a decisão de gestão da D... de pagar dívida e não distribuir dividendos, o que sucedeu, pela primeira vez, em 2016. Ora, tendo o ato tributário sido praticado em dezembro de 2020, conforme prova documental anexa pelos Requerentes, não se tinha verificado, ainda, o termo do prazo de caducidade para aplicação da CGAA, tendo por referência o ano de 2016[9].

 

III-II-2- Quanto à legalidade da liquidação

 

No Pedido, os Requerentes pedem a declaração de ilegalidade dos atos tributários impugnados com os seguintes fundamentos:

A)-Da alegada violação do disposto no n.º 2 do artigo 38.º da LGT, por inexistência dos respetivos pressupostos de aplicação;

  • a1) Da aplicação da lei no tempo, ónus da prova e dever de fundamentação 
  • a2) Dos pressupostos da aplicação da CGAA

B)-Da alegada extemporaneidade do acionamento do mecanismo previsto no n.º 2 do artigo 38.º da LGT pelo decurso do respetivo prazo de caducidade;

C)-Da alegada inexistência da obrigação tributária do Sujeito Passivo A no caso vertente;

D)-Do alegado enriquecimento indevido (e ilegítimo) do Estado;

E)-Da alegada incompetência territorial dos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Lisboa para a prática dos atos de inspeção;

F)-Do alegado direito a juros indemnizatórios.

 

Decididas as questões prévias que impediriam o prosseguimento do processo, impõe-se a análise das ilegalidades invocadas pela ordem elencada pelos Requerentes. 

 

  1. Da violação do n.º 2 do artigo 38.º da LGT, por inexistência dos respetivos pressupostos de aplicação

 

§1.º-1- Da Aplicação da lei no tempo, do ónus da prova e dever de fundamentação 

No Pedido Arbitral, no que respeita à verificação ou não dos pressupostos da aplicação da Cláusula  anti abuso, os Requerentes começam por suscitar a questão da aplicação da lei no tempo, porquanto, “Não obstante o relatório final de inspeção se reportar ao n.º 2 do artigo 38.º da LGT, na redação da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro, a Unidade dos Grandes Contribuintes vem erroneamente e em manifesta contradição com o próprio relatório final de inspeção - defender a aplicação, ao caso em análise, dos n.ºs 2 e seguintes do artigo 38.º da LGT, na redação da Lei n.º 32/2019, de 3 de maio".

Tendo a lei nova, como melhor será analisado mais adiante, introduzido importantes alterações de direito material e processual ao regime da CGAA, com reflexos deste instituto na intensidade no ónus da prova, importa, antes de entrarmos na apreciação da aplicação da lei no tempo, averiguar preliminarmente se na análise da ilegalidade dos atos tributários ora impugnados devemos atender à fundamentação constante do relatório de inspeção, por força do princípio da proibição da fundamentação a posteriori, ou à fundamentação constante do indeferimento da reclamação. Dito por outras palavras, importa analisar se o indeferimento da reclamação pode assentar em fundamentos novos sem que tal vá contra o princípio da proibição da fundamentação a posteriori.

A resposta a esta questão leva-nos a indagar qual o especial sentido e alcance que a nova disposição de natureza processual prevista no artigo 63.º, n.º 11, do CPP, ao instituir uma reclamação prévia obrigatória, assume no contexto do regime da cláusula anti abuso.

Vejamos.    

 

§1.º-2- Do sentido e alcance da reclamação graciosa obrigatória

No contencioso tributário de natureza anulatória, garante-se ao Sujeito Passivo a possibilidade de se dirigir, quer através da impugnação judicial, quer da reclamação graciosa, contra o ato final do procedimento tributário (liquidação), arguindo toda a panóplia de vícios de ilegalidade assacáveis à decisão administrativa definidora da situação jurídico fiscal.

Em regra, por força do princípio da tutela jurisdicional efetiva, a reclamação administrativa tem natureza facultativa, com vista a afastar quaisquer obstáculos ao acesso direto ao tribunal pelo Sujeito Passivo.

A ordem jurídica oferece, porém, situações em que a reclamação graciosa assume, a título excecional, natureza prejudicial obrigatória. Trata-se de situações justificáveis nos casos ditos atípicos em que, não havendo uma pronúncia administrativa antecedente que em primeira linha tenha ponderado e ditado o direito, o Sujeito Passivo, antes de acionar a via judicial está obrigado a expor previamente a sua pretensão perante a administração tributária para obter uma primeira ponderação e pronúncia administrativa. São os casos da autoliquidação, da retenção na fonte ou do pagamento por conta, em que o contribuinte pretende defender os seus direitos sem que antes tenha havido uma definição prévia da autoridade tributária. No fundo, a reclamação administrativa prévia encontra ainda justificação enquanto corolário da natureza anulatória do contencioso anulatório dirigido contra o ato final decisório.          

Acontece que esta justificação da reclamação prejudicial obrigatória não é transponível para o caso em apreço. 

Veio o artigo 63.º, n.º 11, do CPPT, na redação conferida pela Lei n.º 32/2019, dispor que “a Impugnação da liquidação com base na disposição antiabuso referida no n.º 1 (que remete para o artigo 38.º, n.º 2, da LGT), será obrigatoriamente precedida de reclamação graciosa”.

A aplicação da cláusula anti abuso passou, assim, a pressupor um necessário e prévio pronunciamento administrativo, ainda que no âmbito de num procedimento administrativo inspetivo, que apesar de culminar numa pronúncia administrativa, a lei não quer que seja a decisão final. Importa indagar a razão de ser desta impugnação administrativa prévia, com vista a perceber o que terá levado o legislador a consagrar inovadoramente uma reclamação administrativa prévia nesta matéria.

 A questão foi exaustivamente analisada por TOMÁS CANTISTA TAVARES (cfr."Nova redação e novo contencioso da cláusula anti-abuso no direito fiscal: art. 38.º da LGT e art. 63.º do CPPT”, in CJT, n.º 29, pp 39 e ss) que, por concordarmos com a doutrina defendida, passamos a seguir.

Refere o mencionado autor, entre o mais, que “o Fundamento para a reclamação prévia e necessária do art. 63.º, n.º 11, do CPPT arranca e ancora-se nas características e na natureza do próprio instituto da CGAA: na complexidade da análise dos seus requisitos e na singularidade (e violência) da sua estatuição, com a ineficácia, em termos fiscais, de operações (construções) com validade jurídica e permissão económica”.

Neste contexto, o objetivo será dar oportunidade ao particular de, perante os fundamentos da decisão que aplique a CGAA, a qual precisamente tem de ser mais exaustiva e ponderada, como o impõe o art. 63.º, n.º 3, do CPPT, exercer o necessário contraditório, podendo não apenas explicitar melhor a sua visão sobre a não verificação dos requisitos da CGAA, como acrescentar novos argumentos e provas.

Em suma, segundo o Autor que estamos a seguir “(…) a reclamação graciosa visa “forçar” o contribuinte a explicar integralmente a operação empreendida, refutando a aplicação, ao caso, dos requisitos da CGAA. (…). O impugnante pode desenvolver o que escreveu na reclamação prévia – e efetivar, evidentemente, tal retórica como prova testemunhal. Mas não pode introduzir novos argumentos factuais, se não os levou à Reclamação Graciosa. A reclamação prévia não é apenas uma etapa cronológica necessária à ação judicial, mas molda também o próprio objeto do subsequente processo em tribunal.”

Acrescenta ainda que deste particular contexto resulta a não aplicação da proibição da fundamentação a posteriori, princípio que, como é sabido, proíbe que a autoridade tributária introduza novos argumentos ao longo do processo, quando não os levou à fundamentação do ato tributário, que fica desta forma cristalizado, enquanto justificação definitiva do ato de liquidação. No entanto, no caso em apreço, o referido princípio não se aplica no tema da CGAA, porquanto a fundamentação só cristaliza, sendo a partir de então insuscetível de modificação, com a argumentação aduzida na decisão administrativa de indeferimento expresso da reclamação graciosa.

Com a reclamação graciosa prévia e necessária, o contribuinte tem de introduzir de forma expressa e detalhada os fundamentos que na sua opinião não legitimam a aplicação da CGAA- e que só moldam definitivamente a fundamentação, após a sua reponderação, apreciação e análise pela Autoridade Tributária. Isso é assim para conferir conteúdo positivo e prescritivo à reclamação graciosa; e porque, estando a aplicação da CGAA dependente da análise concreta de situações complexas, é justo qua ambas as pares tenham a obrigação jurídica de as detalhar pormenorizadamente, para assim servir de base à verdadeira fundamentação do ato e ao real objeto do processo, que será depois analisado pelo poder judicial.”(cfr. ob. cit. p. 40).  

Por sua vez, da parte da Autoridade Tributária, esta, perante a defesa do contribuinte em sede de reclamação graciosa, “pode depois robustecer a sua fundamentação inspetiva, contraditando os factos e circunstâncias novos que o reclamante introduziu no processo e que a Autoridade Tributária, aquando da inspeção, não poderia antecipar ou conhecer, porque apenas na posse do contribuinte.

Em suma, no fundo, dada a multiplicidade factual e a complexidade dos pressupostos de aplicação da CGAA, o legislador quis dar uma última oportunidade de reponderação por parte da Requerida em face da nova argumentação do contribuinte, sem limitar, porém, os poderes de investigação da Requerida em face da factualidade e argumentos apresentados na reclamação. Assim sendo, a fundamentação a ter em conta é a que consta da decisão que decida a reclamação, sem que se possa falar em fundamentação a posteriori, uma vez que vai ser esta decisão a encerrar o procedimento inspetivo.      

A tese exposta tem perfeita aplicação no caso em apreço.

Senão vejamos.

Os Requerentes apresentaram, em 4 de maio de 2021, uma reclamação graciosa com vista à anulação das liquidações aqui impugnadas, invocando, em suma, os seguintes argumentos:

  1. A incompetência territorial dos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Lisboa para a prática dos actos de inspeção, por violação dos artigos 16.º e 17.º do RCPITA;
  2. A violação do n.º 2 do artigo 38.º da LGT, por inexistência dos respetivos pressupostos de aplicação;
  3. A extemporaneidade do acionamento do mecanismo previsto no n.º2 do artigo 38.º da LGT (GCAA), pelo decurso do prazo de caducidade para o efeito; e
  4.  A inexistência da obrigação tributária do Sujeito Passivo A no caso sub judice .

 

Quanto ao mérito, os Requerentes, entre outros argumentos, pugnaram pela não verificação dos pressupostos da CGAA, designadamente devido à ausência de qualquer artifício na celebração do negócio jurídico motivador da aplicação da disposição anti abuso, porque do relato histórico das circunstâncias e eventos que motivaram a criação da “D..., Lda.” e a sua atividade envolveu sempre manifestações da legítima intenção de adotar uma gestão empresarial para o seu património pessoal. Por outro lado, os Requerentes utilizaram para o efeito instrumentos e formas jurídicas legítimas, normais e habituais na condução dessa mesma gestão empresarial, bem como adotaram um comportamento em tudo coerente com esse propósito”, acusando os serviços de inspeção de não valoração adequada dos argumentos e explicações expendidos durante o processo inspetivo, não se tendo sequer pronunciado sobre os argumentos de facto alegados e a prova produzida. Concretamente os Requerentes chegam, como pode ler-se na decisão da reclamação, a formular de juízos velados de má conduta na atuação dos serviços de inspeção tributária, com falta de zelo e cego para os esclarecimentos por si prestados.

Em face desta argumentação, na decisão que recaiu sobre a reclamação, no que diz respeito ao não preenchimento dos pressupostos da aplicação da disposição anti abuso, pode ler-se que a boa decisão passava pela compreensão jurídica do instituto e os objetivos a que o mesmo se propõe, tomando como ponto de partida a própria norma. Sobre esta questão, pode ler-se na decisão que recaiu sobre a reclamação:  

 

 

      

 

Em suma, perante a argumentação dos Requerentes no sentido de que os serviços de inspeção não haviam dado cumprimento ao ónus de prova que sobre si impendia de que “as operações  ou negócios jurídicos praticados haviam sido efetuados com intuito ardiloso, orientado para a evasão das responsabilidades tributárias que caberiam na ausência dessas operações ou negócios”, a Requerida, no entender deste Tribunal, tinha à sua frente dois caminhos: i) Reanalisar a prova produzida pelos Requerentes e encetar mais indagações e recolha de provas com vista a satisfazer aquele ónus de prova ou; ii) Confirmar e reforçar sem mais a fundamentação que havia sido sustentada pelos serviços de inspeção.

A Unidade dos Grandes Contribuintes não seguiu o primeiro caminho, acabando por confirmar a fundamentação seguida pelos serviços de inspeção, dizendo-se expressamente que se remete para as conclusões do relatório. Confirmação do relatório de inspeção, quanto à análise levada a cabo sobre a verificação dos pressupostos da cláusula anti abuso, que inclui nomeadamente o alegado quanto ao não apuramento da verdade material no que concerne às práticas artificiosas e fraudulentas.

Neste sentido, argumenta-se, na decisão de indeferimento da reclamação, que se torna inútil qualquer pronúncia que não tenha em conta o pensamento jurídico relevante para a decisão da causa, uma vez que, partindo-se da norma aplicável, ou seja, o n.º 2 do artigo 38.º, da LGT, segundo a redação dada pelo artigo 3.º da Lei n.º 32/2019, de 3 de maio, aquele pressuposto havia deixado de subsistir.

 Repete-se que ali ficou expressamente referido que:

“As exigências relacionadas com as práticas artificiosas caem, bastando-se agora apenas pela confrontação dos efeitos tributários das operações económicas, tornando-se desnecessário a demonstração de qualquer juízo de censura na conduta dolosa do contribuinte.”

E, como vimos, acrescenta-se: 

"Ora, foi esse o exercício prestado pelos serviços de inspeção”.

Resulta claramente do exposto que a Unidade dos Grandes Contribuintes, partindo do pressuposto da aplicação ao caso em apreço do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, segundo a nova redação, não apenas considerou dispensável proceder, em sede de reclamação, a quaisquer indagações materiais ou valoração da prova, tal como peticionado pelos Requerentes, como interpretou que essa foi a orientação seguida no relatório de inspeção.

Para além de confirmar a materialidade investigatória e as conclusões, aquela Unidade limita-se a adequar o direito ao percurso seguido pelos serviços de inspeção enveredando por outra e nova fundamentação de direito, substituindo a seguida no relatório de inspeção pela nova fundamentação jurídica. No fundo, a decisão de indeferimento expresso acaba por se consubstanciar numa revogação parcial por substituição, na parte de direito, do RIT. Razão pela qual, ainda que não se adira à tese atrás mencionada, quanto ao sentido e alcance da reclamação necessária, a decisão de indeferimento expresso da reclamação não poderia, em qualquer caso, deixar de valer como a decisão final - e nunca como fundamentação a posteriori - a ter em conta na apreciação da aplicação dos pressupostos da CGAA, no caso em apreço.

É, por conseguinte, à luz da fundamentação constante desta decisão de indeferimento da reclamação graciosa, cuja anulação, de resto, vem requerida, que este Tribunal deve aferir a ilegalidade dos atos tributários agora impugnados.

 

§2.º Da Lei aplicável, ónus da prova e dever de fundamentação 

Como vimos, os Serviços de Inspeção Tributária concluíram, em suma, que foram realizados os seguintes passos que, embora legais, são suscetíveis de censura:

  1. Constituição da sociedade D...
  2. Alienação das ações da E...;
  3. Distribuição de dividendos da E..., D...;
  4. Pagamento de parte do preço das ações ao Sujeito Passivo A.

Para concluírem no sentido da verificação dos pressupostos da cláusula anti abuso, os serviços de inspeção procederam à interpretação e aplicação dos pressupostos daquele instituto à luz da redação introduzida pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro, ao n.º 2 do artigo 38.º da LGT.

Acontece que o n.º 2 do artigo 38.º da LGT, na redação introduzida pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro, se limitava a determinar que “[s]ão ineficazes no âmbito tributário os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas”.

Ora, como alegam os Requerentes, não obstante o relatório final de inspeção se reportar ao n.º 2 do artigo 38.º da LGT, na redação da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro, a Unidade dos Grandes Contribuintes veio defender, como vimos, a aplicação, ao caso em análise daquele preceito, na redação da Lei n.º 32/2019, de 3 de maio, na decisão de indeferimento da reclamação graciosa. O que tem reflexos profundos, repete-se, no sentido e extensão dos requisitos de aplicação da CGAA e, em especial, sobre as exigências investigatórias exigidas para dar cumprimento pela Requerida ao ónus da prova.

Vejamos.

Na sequência da publicação da Diretiva (UE) 2016/1164 do Conselho, de 12 de julho, que estabelece regras contra as práticas de elisão fiscal que tenham incidência direta no funcionamento do mercado interno, o artigo 38.º da LGT foi alterado pela Lei n.º 32/2019, de 3 de maio, no que interessa ao caso em análise, passou a estabelecer:

2 - As construções ou séries de construções que, tendo sido realizadas com a finalidade principal ou uma das finalidades principais de obter uma vantagem fiscal que frustre o objeto ou a finalidade do direito fiscal aplicável, sejam realizadas com abuso das formas jurídicas ou não sejam consideradas genuínas, tendo em conta todos os factos e circunstâncias relevantes, são desconsideradas para efeitos tributários, efetuando-se a tributação de acordo com as normas aplicáveis aos negócios ou atos que correspondam à substância ou realidade económica e não se produzindo as vantagens fiscais pretendidas.

 3 - Para efeitos do número anterior considera-se que:

  1. Uma construção ou série de construções não é genuína na medida em que não seja    realizada por razões económicas válidas que reflitam a substância económica;
  2. Uma construção pode ser constituída por mais do que uma etapa ou parte.

4 - Para efeitos de aplicação do disposto no n.º 2, nos casos em que da construção ou série de construções tenha resultado a não aplicação de retenção na fonte com caráter definitivo, ou uma redução do montante do imposto retido a título definitivo, considera- se que a correspondente vantagem fiscal se produz na esfera do beneficiário do rendimento, tendo em conta os negócios ou atos que correspondam à substância ou realidade económica.”

A alteração relevante introduzida na aplicação do preceito mencionado traduz-se no seguinte:

  • Nas palavras que se recortam da decisão da reclamação, a anterior redação da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro, o n.º 2 do artigo 38.º da LGT “fazia depender a aplicação do instituto do “uso de meios artificiosos ou fraudulentos” e com abuso das formas jurídicas, visando a redução, eliminação ou deferimento temporal das responsabilidades tributárias, ou seja era condição sine qua non para a aplicação da disposição antiabuso, a demonstração concreta que as operações ou negócios jurídicos praticados haviam sido efetuados com o intuito ardiloso, orientado para a evasão das responsabilidades tributárias que caberiam na ausência dessas operações ou negócios”; (…)”
  • “Incumbindo à administração fiscal o ónus de fazer prova de que a conduta do contribuinte havia sido realizada com recurso ao logro e tendo como objetivo a evitação da entrega de imposto”.
  • Na atual redação do artigo 38.º da LGT, n.º 2, conferida pela Lei n.º 32/2019, de 3 de maio, entende, entende conclusivamente e sem fundamento plausível no entendimento deste Tribunal, a unidade dos Grandes Contribuintes da AT que “[a]s exigências relacionadas com as práticas artificiosas e fraudulentas caem, bastando-se agora apenas pela confrontação dos efeitos tributários das operações económicas, tornando-se desnecessário a demonstração qualquer juízo de censura na conduta dolosa do contribuinte”.

Assim sendo, como vimos, são os serviços da Autoridade Tributária a reconhecer expressamente que, nomeadamente, era dispensável a análise da prova produzida pelos Requerentes no sentido de que as operações/negócios praticados pelo Sujeito Passivo não foram efetuados com o intuito de evasão das responsabilidades tributárias, que caberiam na ausência de tais operações/negócios, como era exigido pelo n.º 2 do artigo 38.º da LGT, na anterior redação, quando se referia “(…) a atos ou negócios jurídicos  essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso de formas jurídicas.

Orientação esta com reflexos quanto às exigências no cumprimento do ónus da prova que recai sobre a Requerida como é assumido.

Nesta sequência, vêm os Requerentes defender que a posição assumida pela Unidade dos Grandes Contribuintes, no que concerne à redação do artigo 38.º, n.º 2, da LGT aplicável no caso sub judice , viola, desde logo, o disposto no artigo 12.º da LGT que determina:

 “1 - As normas tributárias aplicam-se aos factos posteriores à sua entrada em vigor, não   podendo ser criados quaisquer impostos retroactivos.”

2-- Se o facto tributário for de formação sucessiva, a lei nova só se aplica ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor.

3- As normas sobre procedimento e processo são de aplicação imediata, sem prejuízo das garantias, direitos e interesses legítimos anteriormente constituídos dos contribuintes.

4- Não são abrangidas pelo disposto no número anterior as normas que, embora integradas no processo de determinação da matéria tributável, tenham por função o desenvolvimento das normas de incidência tributária.

Considerando este preceito, como alegam os Requerentes, o artigo 38.º da LGT é “uma norma que tem por função o desenvolvimento de normas de incidência tributária, razão pela qual, nos termos dos n.ºs 1 e 4 do artigo 12.º da LGT, a redação da referida norma pela Lei n.º 32/2019, de 3 de maio, apenas será aplicável para o futuro.”

Nesta medida, concluem os Requerentes, a posição assumida pela Unidade dos Grandes Contribuintes, no que concerne à redação da norma aplicável no caso sub judice, viola o disposto no n.º 4 do artigo 12.º da LGT.

Este Tribunal não pode deixar de acompanhar esta conclusão por a mesma corresponder às melhores regras de aplicação da lei no tempo.

Como é sabido, estas são as regras gerais de aplicação da lei no tempo de acordo com o estatuído no artigo 12.º do Código Civil, cujo princípio geral é o da não retroatividade da aplicação da lei. Neste sentido pode ler-se em J. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1994, p. 233: “(…)  o artigo 12.º, n.º 2, distingue dois tipos de leis ou de normas: aquelas que dispõem sobre os requisitos de validade (substancial ou formal) de quaisquer factos ou sobre os efeitos de quaisquer factos (1ª. parte) e aquelas que dispõem  sobre o conteúdo de certas situações jurídicas e o modelam  sem olhar aos factos que a tais situações deram origem  (2ª. parte). As primeiras só se aplicam a factos novos… (…)”. E, mais adiante, acrescenta o autor que a teoria da aplicação das leis no tempo distinguem entre constituição e conteúdo das Ss Js. À constituição das Ss Js (requisitos de validade, substancial e formal, factos constitutivos) aplica-se a lei do momento em que essa constituição se verifica…” (ob cit, p. 234).

Acresce que sempre seria de aplicar o artigo 38.º, n.º 2, da LGT na redação anterior, nomeadamente na medida em que, se a nova redação do preceito implica redução das garantias do contribuinte, quanto ao funcionamento do ónus da prova, a aplicação da lei na nova redação seria contrária ao disposto no artigo 12.º, n.º 3, da LGT quando determina que “As normas sobre procedimento e processo são de aplicação imediata, sem prejuízo das garantias, direitos e interesses legítimos anteriormente constituídos”.       

É de realçar que esta regra, ao salvaguardar as garantias, direitos e interesses legítimos anteriormente constituídos tem ainda amparo constitucional no princípio da proibição da retroatividade da lei fiscal consagrado no artigo 103.º, n.º 3, da CRP. Com efeito, este preceito proíbe não só impostos retroativos, mas também qualquer outra norma fiscal retroativa desfavorável que “é sempre constitucionalmente ilícita” (cfr.  GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Anotada, Volume I, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p.1093).

Nesta sequência, ainda que por mera hipótese académica se viesse a entender que o legislador se limitou com a lei nova a fazer interpretação autêntica do artigo 38.º, nº 2, da LGT, sendo esta última redação mais desfavorável para os contribuintes, nos termos expostos, no caso em apreço sempre se impunha concluir pela aplicação do artigo 38.º da LGT, na redação dada pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro. 

Em suma, a Requerida, ao aplicar no caso em apreço o artigo 38.º, n.º 2, da LGT, na redação da Lei nova, incorreu em erro nos pressupostos de facto e de direito, o que, em consequência, acarreta violação princípio do ónus da prova e da investigação da verdade material e do inquisitório, o que inevitavelmente conduz à anulação dos atos tributários ora impugnados.

Aliás, a jurisprudência arbitral vai no mesmo sentido, não se tendo encontrado jurisprudência dos tribunais tributários superiores sobre o tema. Com efeito, como se escreveu na Decisão Arbitral proferida no Processo 162/2017, e se reiterou, designadamente, na Decisão Arbitral de 18-10-2021, proferida no Processo 257/2020, a atual redação da CGAA, norma que os Autores qualificam como material ou substantiva de incidência[10] consubstancia uma "norma nova", insuscetível de ter natureza interpretativa, com as necessárias consequências:

Relativamente à versão inicial, a redação atual da CGAA destaca-se por circunscrever a ineficácia de atos e negócios jurídicos ao âmbito tributário, conservando os mesmos a sua validade e eficácia noutros domínios. Digna de nota é, outrossim, a eliminação da exigência de demonstração, sugerindo uma atenuação do standard probatório por parte da AT. No entanto, deve ter-se em conta o artigo 63.º n.º 3 alínea b) do CPPT onde se dispõe que a fundamentação do projeto e da decisão de aplicação da CGAA deve conter a demonstração de que a celebração do negócio jurídico ou prática do ato jurídico foi essencial ou principalmente dirigida à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em caso de negócio ou ato com idêntico fim económico, ou à produção de vantagens fiscais. Esta última referência, feita em termos genéricos, aponta para a irrelevância da questão de saber quem é que efetivamente obteve as vantagens fiscais. Se qualquer das partes envolvida na transação obteve uma vantagem fiscal indevida, por não ter sido contemplada pelo legislador tributário e não ter correspondência com a substância económica, cabe à AT considera-la ineficaz e neutralizar a produção da mesma. Este aspeto é especialmente relevante nos casos em que a vantagem é produzida e obtida dentro de uma lógica de grupo.

O artigo 38.º n.º 2 da LGT vincula a CGAA a um principal purpose test (PPT), formulado pelo legislador nacional como propósito essencial ou principal, e à presença de condutas que indiciem o recurso a meios artificiosos e fraudulentos e o abuso de formas jurídicas. Ponto é que se tenha em vista a) a redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos devidos por força de factos, atos ou negócios de idêntico fim económico ou b) a produção de vantagens fiscais dependentes daqueles meios. Num caso e noutro, a tributação é feita de acordo com as normas aplicáveis na ausência dos atos e meios em causa, não se produzindo as vantagens fiscais referidas.

Da exegese do artigo 18.º n.º 2 da LGT resulta que a AT deve carrear elementos indiciários que lhe permitam estabelecer a existência de uma operação artificiosa e abusiva de acordo com o crivo, de exigência intermédia, da preponderância da prova ou equilíbrio das probabilidades que em vários quadrantes tem vindo a ser associado à aplicação das CGAA’s. Isso obriga a uma abordagem contextual e factual dos casos concretos, simultaneamente atenta à teleologia das normas fiscais e às características e objetivos das transações. Especialmente importante é a análise da transação na sua totalidade, atentando a todos os seus passos e participantes, reservando um escrutínio particularmente exigente quando se tratar de transações envolvendo sócios e sociedades do mesmo grupo. Nestes casos, o princípio da primazia da substância sobre a forma admite que certas entidades “agrupadas” possam ser consideradas com um único contribuinte.

A ambiguidade parece ser o principal objetivo deste tipo de técnica legislativa. Ao recortar a CGAA do artigo 38.º n.º 2 da LGT, o legislador fiscal reconhece a necessidade de preservar a base tributária e habilitar a AT e os tribunais a proteger as finalidades substantivas do legislador fiscal. A incerteza deliberadamente gerada nos contribuintes leva-os a não se aproximarem muito da linha que demarca a fraude e elisão, permitindo, a um tempo, que a CGAA seja suficientemente flexível para acompanhar as novas transações geradas pela dinâmica e acelerada “indústria do planeamento fiscal agressivo” e que a AT e os tribunais preencham as lacunas do sistema fiscal em situações imprevistas e potenciadoras de abusos.

Aliás, numa das últimas Decisões Arbitrais proferidas no CAAD e que a AT requereu fosse junta aos autos e cuja factualidade ocorre em 2016 e 2017 (processo 860/2021, Decisão de 3-10-2022) pode ler-se o seguinte:

34. Um dos mecanismos que permite sindicar a legalidade e colocar em crise o planeamento fiscal realizado pelos contribuintes é a CGAA, que foi precisamente aplicada pela AT aos ora Requerentes de forma a corrigir as respectivas situações jurídico-tributárias. A CGAA está prevista no artigo 38.º, n.º 2, da LGT e, à data dos factos que cumpre apreciar nos presentes autos, tinha a seguinte redacção, que constitui, pois, o enunciado legal pertinente para a resolução do caso (negrito nosso)

“Artigo 38.º

Ineficácia de actos e negócios jurídicos

(…)

2 – São ineficazes no âmbito tributário os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas.”

Em síntese: é o anterior artigo 38.º, n.º 2, da LGT que deve ser aplicado aos factos ocorridos na sua vigência, sendo que a redação atual da norma em causa, e, bem assim, os aditamentos que lhe foram efetuados, constituem norma nova, insuscetível de aplicação retroativa por todos os fundamentos que já foram invocados.

Mas ainda que assim se não entendesse, o que por absurdo se admite, nenhum dos autores que até agora escreveu sobre a nova redação do n.º 2 do artigo 38.º da LGT deixou de assinalar que continua a caber à AT o ónus de provar os pressupostos de aplicação da CGAA, havendo até divergência sobre se com a mesma ou até mais assinalável intensidade. Vejam-se, como meros exemplos o já mencionado estudo de Tomás Cantista Tavares, CJT 29, julho/setembro de 2020, n.º 3, pp. 33; de Diogo Feio, Cláusula geral anti-abuso: antes e depois, ob. cit no inciso anterior, quando compara a "redação anterior" e a "redação" atual, tomando como pilares os elementos que a doutrina e a jurisprudência consolidaram como indispensáveis à verificação dos pressupostos de aplicação da CGAA; e de Bruno Santiago e João Miguel Fernandes, CJT. n.º 30, outubro/dezembro de 2020, A nova cláusula geral antiabuso, de onde respigamos o seguinte extrato (pp. 15): Para além do exposto, a nova CGAA continua a ser suscetível de ser decomposta nas cinco dimensões fundamentais desenvolvidas pelo Professor GUSTAVO LOPES COURINHA: i) o elemento meio; ii) o elemento resultado; iii) o elemento intelectual; iv) o elemento normativo-sistemático; e v) o elemento sancionatório. Conforme teremos oportunidade de ver infra, a análise e interpretação destes vários elementos não só continua a manter a sua relevância em face da nova CGAA como é, inclusive, um instrumento particularmente útil para se perceber as potencialidades desta nova norma e proceder a uma tentativa de avaliação do seu mérito.

Não tem, pois, razão a Requerida mesmo quando, admitindo-se a sua tese, ela não decompõe, na decisão da reclamação graciosa, os elementos da CGAA e, perante a factualidade que consta dos restantes elementos do processo, sobre os quais se deve expressamente pronunciar, os considera ou não preenchidos.

Termos em que, por tudo o quanto vai exposto, é de conceder provimento ao pedido dos Requerentes, com todas as consequências legais.

 

 

III-II-3- Pedidos prejudicados

O Tribunal tem o dever de se pronunciar sobre todas as questões, abstendo-se de se pronunciar sobre questões de que não deva conhecer (segmento final do n.º 1 do artigo 125.º, do CPPT). Contudo as questões sobre que recaem os poderes de cognição do tribunal, são, de acordo com o n.º 2 do artigo 608.º, do CPC, aplicável subsidiariamente ao processo arbitral tributário, por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, “as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (…)”.

Em face da solução dada à questão anteriormente analisada, fica prejudicado o conhecimento de qualquer outra questão incluída no pedido de pronúncia arbitral.

 

III-III -Juros Indemnizatórios

Peticionam os Requerentes que, a dar-se provimento à sua pretensão, através da declaração de ilegalidade dos atos de liquidação de IRS ora contestados, deverão ser reembolsados do montante indevidamente pago, que se cifra em € 3.559.722,31, devendo, ainda, ser ressarcidos   pelo período em que se viram privados da quantia indevidamente paga, nos termos do artigo 43.º da LGT.

Determina a alínea b) do n.º 1 do artigo 24.º do RJAT, que a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos precisos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”.

De igual modo, o artigo 100.º da LGT, aplicável ao processo arbitral tributário por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, estabelece que: “A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei”.

Prescreve, aliás, o artigo 24.º, n.º 5, do RJAT que é devido o pagamento de juros, nos termos previstos na LGT e no CPPT.

De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 43.º da LGT, aplicável subsidiariamente ao processo arbitral tributário, nos termos do referido artigo 24.º, n.º 5 e do artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, “[s]ão devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.

Em face da procedência do presente e da consequente ilegalidade das liquidações ora impugnadas procede igualmente o pedido da Requerente de reembolso dos montantes indevidamente pagos, acrescido dos juros indemnizatórios à taxa legal, conforme se estatui nos artigos 43.º, n.ºs 1 e 4, da LGT e do artigo 61.º do CPPT, desde as datas do pagamento indevido do imposto até integral reembolso das quantias indevidamente pagas.

IV-DECISÃO

 

Termos em que decide este Tribunal coletivo:

  1. Julgar procedente o pedido de anulação da decisão de indeferimento expresso da reclamação graciosa n.º ...2021..., e, consequentemente
  2. Anular os atos de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, de juros compensatórios subjacentes, bem como da demonstração de acerto de contas emitidas, ora impugnados, referentes aos anos de 2016, 2017 e 2018, totalizando o valor de € 3.559.722,31;
  3. Condenar a Requerida ao reembolso do imposto indevidamente pago acrescido de juros indemnizatórios, nos termos legais. 

 

 

V- VALOR DA CAUSA

Fixa-se o valor do processo em € 3.559.722,31 de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, este último ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT

 

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 14 de Fevereiro   de 2023         

 

Os árbitros

 

(Fernanda Maçãs)

 

(Manuel Faustino)

 

(Manuela Roseiro)

(vencida, com declaração de voto)

 

 

 

 

 

 

Declaração de voto

Com muita consideração e respeito, não acompanhei a presente decisão arbitral acerca dos efeitos do despacho de indeferimento da reclamação graciosa, e que motivou a não apreciação dos restantes fundamentos de ilegalidade da liquidação invocados no Pedido, sendo a minha posição a que passo a expor.

 

  1. A DIVERGÊNCIA SOBRE O QUE FOI DECIDIDO

 

1. A fundamentação da decisão arbitral quanto à ilegalidade de actos tributários impugnados: a interpretação da informação da Unidade dos Grandes Contribuintes (UGC)

Dos factos fixados e atento o quadro legal considerado aplicável, a decisão arbitral concluiu:

«Em suma, a Requerida, ao aplicar no caso em apreço o artigo 38.º, n.º 2, da LGT, na redação da Lei nova, incorreu em erro nos pressupostos de facto e de direito, o que, em consequência, acarreta violação princípio do ónus da prova e da investigação da verdade material e do inquisitório, o que inevitavelmente conduz à anulação dos atos tributários ora impugnados».

Esta conclusão teve em conta, designadamente, e em síntese, que:

  • Quanto ao mérito, os Requerentes pugnaram, entre outros argumentos, pela não verificação dos pressupostos da CGAA, designadamente devido à ausência de qualquer artifício na celebração do negócio jurídico motivador da aplicação da disposição anti abuso, porque do relato histórico das circunstâncias e eventos que motivaram a criação da “W..., Lda.” e a sua atividade envolveu sempre manifestações da legítima intenção de adotar uma gestão empresarial para o seu património pessoal. E teriam utilizado para o efeito instrumentos e formas jurídicas legítimas, normais e habituais na condução dessa mesma gestão empresarial, bem como adoptado um comportamento em tudo coerente com esse propósito”, pelo que acusam os serviços de inspeção de não valoração adequada dos argumentos e explicações expendidos durante o processo inspetivo, assim como omissão de pronúncia sobre os argumentos de facto alegados e a prova produzida. Formulam mesmo juízos velados de má conduta na atuação dos serviços de inspeção tributária, com falta de zelo e cego para os esclarecimentos por si prestados.
  • A decisão da Unidade dos Grandes Contribuintes (UGC) que recaiu sobre a reclamação nem procedeu de forma a reanalisar a prova produzida pelos Requerentes, encetar mais indagações e recolher provas com vista a satisfazer aquele ónus de prova, nem se limitou a confirmar e reforçar a fundamentação que havia sido sustentada pelos serviços de inspeção.
  • Na apreciação da reclamação graciosa, a UGC, considerando aplicável ao caso o n.º 2 do artigo 38.º, da LGT, segundo a redação dada pelo artigo 3.º da Lei n.º 32/2019, de 3 de Maio, em que aquele pressuposto de ónus da prova deixou de subsistir, confirmou a fundamentação seguida pelos serviços de inspeção, remetendo expressamente para as conclusões do relatório, e dizendo que “quanto à análise levada a cabo sobre a verificação dos pressupostos da cláusula anti abuso, que inclui nomeadamente o alegado quanto ao não apuramento da verdade material no que concerne às práticas artificiosas e fraudulentas” e que “se torna inútil qualquer pronúncia que não tenha em conta o pensamento jurídico relevante para a decisão da causa”.

 

Da análise da informação da UGC que fundamentou o indeferimento da reclamação graciosa, a presente decisão arbitral retirou:

- Serem de decisiva importância as considerações aí expressas de que, segundo a lei aplicável, “As exigências relacionadas com as práticas artificiosas caem, bastando-se agora apenas pela confrontação dos efeitos tributários das operações económicas, tornando-se desnecessário a demonstração de qualquer juízo de censura na conduta dolosa do contribuinte”, e de que “… foi esse o exercício prestado pelos serviços de inspeção”

- Que a UGC, “ao partir do pressuposto da aplicação ao caso em apreço do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, segundo a nova redação, não apenas considerou dispensável proceder, em sede de reclamação, a quaisquer indagações materiais ou valoração da prova, tal como peticionado pelos Requerentes, como interpretou que essa foi a orientação seguida no relatório de inspeção”, substituindo a fundamentação jurídica seguida no relatório de inspeção por “outra e nova fundamentação de direito”.

 

Tendo em conta a “lei aplicável, ónus da prova e dever de fundamentação”, a decisão arbitral considerou também:

- Que, em decorrência das inspecções tributárias realizadas, os Serviços da IT, deram como verificados os seguintes passos considerados susceptíveis de censura, apesar de legais: i) Constituição da sociedade W...; ii) Alienação das ações da E...; iii) Distribuição de dividendos da E... à W...; iv) Pagamento de parte do preço das ações ao Sujeito Passivo A, concluindo pela verificação dos pressupostos da cláusula anti-abuso, segundo interpretação e aplicação daquele instituto à luz da redação introduzida pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, ao n.º 2 do artigo 38.º da LGT.

- Mas, não obstante o relatório final de inspeção se reportar ao n.º 2 do artigo 38.º da LGT, na redação da Lei n.º 30-G/2000, de 29/12, a decisão de indeferimento da reclamação graciosa, pela UGC, ao defender a aplicação daquela norma na redação da Lei n.º 32/2019, de 3/5, teve reflexos profundos no sentido e extensão dos requisitos de aplicação da CGAA e, em especial, sobre as exigências investigatórias necessárias para a Requerida dar cumprimento ao ónus da prova.

- A posição assumida pela UGC viola o disposto no artigo 12.º da LGT porque não poderia deixar de se aplicar ao caso a redacção anterior do art.º. 38.º, n.º 2, da LGT, atendendo a que a nova redacção implica redução de garantias do contribuinte quanto ao funcionamento do ónus da prova.

- Ainda que se aplicasse a nova redacção do n.º 2 do art.º 38.º da LGT, cabia à AT o ónus de provar os pressupostos de aplicação da CGAA, havendo até divergências sobre se com a mesma ou até mais assinalável intensidade, o que a Requerida não fez, porque «não decompõe, na decisão da reclamação graciosa, os elementos da CGAA e, perante a factualidade que consta dos restantes elementos do processo, sobre os quais se deve expressamente pronunciar, os considera ou não preenchidos».

 

Ou seja, a decisão arbitral que fez vencimento interpretou a decisão de indeferimento da reclamação graciosa pela UGC como tendo consubstanciado uma revogação parcial por substituição, na parte de direito, do Relatório de Inspecção Tributária, devendo pois o tribunal arbitral aferir a ilegalidade dos atos tributários agora impugnados à luz da fundamentação constante daquela decisão de indeferimento da reclamação graciosa.

E assim, a decisão arbitral concedeu provimento ao Pedido de pronúncia arbitral (PPA), considerando que, face à solução dada às questões analisadas, ficava prejudicado o conhecimento de outras questões (n.º 1 do artigo 125.º, do CPPT).

 

2. Da reclamação graciosa necessária e seus efeitos    

2.1.A reclamação graciosa prevista no artigo 63.º do CPPT

A Lei n.º 32/2019, de 3 de Maio aditou ao artigo 63.º do CPPT, o n.º 11, que dispõe: “A impugnação da liquidação de tributos com base na disposição anti-abuso referida no n.º 1 será obrigatoriamente precedida de reclamação graciosa”

Como norma processual, é de aplicação imediata. 

Tomás Cantista Tavares, no estudo citado na decisão arbitral[11] distingue este caso de reclamação necessária de todos os outros já previstos na legislação tributária, acentuando a finalidade de “abertura da possibilidade de complementar a instrução do procedimento administrativo”.

Interpreta a introdução de uma fase procedimental suplementar como adequada para o contribuinte poder invocar factos que não quis ou não pôde utilizar durante a inspecção tributária. Face a essa faculdade teria a AT a possibilidade de acrescentar novos argumentos em resposta aos fundamentos invocados pelo contribuinte.

Ou seja, o Autor destacou a relevância que o legislador veio a atribuir a posições sustentadas em fase pré judicial, quer num caso (contribuinte) quer no outro (Fisco), na medida em que: 

- O reclamante poderá na lide judicial tentar provar os (eventualmente) novos factos invocados e desenvolver os argumentos agora utilizados (mas já não introduzir novos argumentos factuais se não os levou à RG);

- A AT pode, face a nova configuração da situação, utilizar fundamentos diferentes dos utilizados na fundamentação original da liquidação, aplicando-se apenas a partir do indeferimento da reclamação a proibição de fundamentação a posteriori consagrada pela jurisprudência.

E acrescenta que:

- Isto não significa uma inversão do ónus da prova, a AT tem sempre que provar o preenchimento dos pressupostos de aplicação da CGAA, quer face à lei nova quer à antiga.

- A AT não fica dispensada de uma adequada fundamentação inicial no RIT, esperando que o contribuinte traga factos justificativos na Reclamação Graciosa.

O Autor acentua mesmo que, apesar de o contribuinte poder robustecer a sua fundamentação, contraditando factos e circunstâncias novas face a elementos que não poderia antecipar na inspecção tributária, o que se exige à AT é que faça o seu melhor na inspecção porque uma fundamentação insuficiente inquinará o acto de liquidação.

Ou seja, não parece que ponha em causa que:

- A fundamentação do relatório de inspecção tributária é a que se mantém como indispensável;

- Pode – e deve - ser acrescida, reforçada, alterada – face a elementos trazidos pelo contribuinte na exposição da reclamação graciosa;

- A cristalização da decisão de indeferimento de reclamação graciosa significa que a administração tributária não poderá alterar a fundamentação da liquidação efectuada em momento posterior, na fase judicial.

 

Em suma, não considero que o texto invocado tenha defendido a tese de que a decisão de uma reclamação graciosa que mantenha a decisão reclamada - que foi a que aprovou o relatório de inspecção tributária – possa, sem clara e adequada fundamentação, ser qualificada como uma interpretação autêntica susceptível de substituir todas as afirmações e raciocínios adoptados no relatório em causa.

 

2.2 O presente caso

Na apreciação da reclamação graciosa nos presentes autos, a UGC, partindo do princípio de que se aplicava a nova redacção do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, sustenta a tese de que «as exigências relacionadas com as práticas artificiosas e fraudulentas caem, bastando-se agora apenas pela confrontação dos efeitos tributários das operações económicas, tornando-se desnecessário a demonstração qualquer juízo de censura na conduta dolosa do contribuinte» (ponto 57). 

Disse também: “Ora, foi este o exercício prestado pelos serviços de inspecção” (ponto 58), destacando, em seguida, que lograram os serviços de inspecção demonstrar que a venda das participações da E...SGPS, SA pelo reclamante à sociedade por si detida “D..., Lda. permitiu a evitação da situação que seria devida a título de distribuição de lucros (ponto 59) e que o facto de a sociedade D..., Lda. ter sido constituída em obediência às regras de direito a que se encontra sujeita e praticar outras operações de investimento em participações sociais como as descritas por si, não afastam as conclusões apuradas pelos serviços de inspecção quanto à operação aqui sob escrutínio para as quais remeteram por inteiro (…) (ponto 60).

 

Na interpretação que faço da informação da UGC sobre a reclamação graciosa, não se procede aí a qualquer alteração da factualidade descrita no RIT, nem foi negada a legitimidade e correcção das análises efectuadas sobre a situação de facto e respectiva qualificação tributária pelos serviços de inspecção

O que se verifica é que a UGC, invocando a aplicação da redacção do artigo 38º, nº 2, da LGT, na versão introduzida pela Lei n.º 32/2019, de 3 de Maio, que qualificou, embora sem desenvolvimento, como menos exigente, dispensou-se de apreciar os argumentos aduzidos pelos reclamantes acerca da insuficiência de prova sobre a reunião dos pressupostos exigíveis para aplicação da CGAA.

Concordo que, independentemente de saber se na Reclamação graciosa os ora Requerentes trouxeram ou não factos novos, diferentes dos invocados anteriormente durante o processo de inspecção, e se esses factos eram ou não atendíveis, a decisão da UGC não é satisfatória.

Desde logo porque, para além de avaliar se a nova redacção introduziu, ou não, uma menor exigência para a AT na aplicação da lei[12], a apreciação da reclamação deveria ter – e não o fez – colocado e resolvido a questão da aplicação da lei no tempo.

E, qualquer que fosse a interpretação, deveria ter analisado os fundamentos da reclamação quanto à prova dos factos invocados nas correcções que basearam a liquidação e não dispensar-se de apreciar a argumentação sobre existência ou não dos pressupostos de facto (limitando-se a remeter expressamente para a actuação dos serviços de inspecção e RIT).

Admitamos, pois, que a decisão de indeferimento da reclamação graciosa padece de ilegalidade, por lhe serem imputáveis os vícios de erro sobre os pressupostos de direito e falta de fundamentação. Ambas as situações enquadráveis nas alíneas a) e c) do artigo 99.º do CPPT como ilegalidade fundamento de impugnação.

Mas qual o efeito dessa ilegalidade?

Em que medida condiciona, molda, a apreciação da impugnação da ilegalidade da liquidação?

 

  1. Reclamação e impugnação

3.1 Enquadramento da questão à luz das anteriores conclusões

Do que fica dito supra, considero legitimo concluir que na decisão da Reclamação Graciosa interposta pelos ora Requentes:

  • A AT deveria ter apreciado os argumentos invocados e poderia ter desenvolvido a fundamentação contida no RIT, integrando-se a mesma na decisão na fundamentação da liquidação;
  • A UGC, serviço que analisou a reclamação, não defendeu expressamente que a invocação da lei aplicável contida no RIT (n.º 2 do art. 38.º na redacção vigente ao tempo dos factos) estava errada e que deveria ser substituída pela que invoca (redacção do artigo 38.º na redacção dada pela Lei 32/2019), explicando a razão da sua opção; 
  • A UGC não pretendeu substituir a argumentação quanto à verificação dos pressupostos de aplicação da CGAA, da reunião dos elementos analisados e justificados no Relatório da Inspecção Tributária. Dispensou-se foi de fazê-lo, remetendo para o referido Relatório!

 

Na análise que faço da situação, concluo:

  •  Em momento algum foi analisada a fundamentação do RIT que esteve na base da liquidação impugnada.
  •  A indicação errada da lei aplicável na decisão da reclamação constitui vício que afectará esta e não a decisão de aplicação da CGAA que sustenta a liquidação impugnada.

Diria mesmo que a informação da UGC é, sobre a lei aplicável ao caso, não apenas contraditória com a assumida no Relatório de Inspecção Tributária (RIT) - e que foi aprovada superiormente – como contraditória em si, na medida em que, não declarando errada a interpretação da IT, remete sem reservas para a fundamentação do RIT.

 

  1. A ilegalidade da reclamação graciosa não obsta que seja apreciada a legalidade da liquidação

Tendo em conta o enquadramento da situação, o que defendo é que a ilegalidade da decisão de indeferimento da reclamação graciosa não teria impedido que o tribunal arbitral procedesse à apreciação da legalidade da liquidação.

Considero aplicáveis ao caso as conclusões retiradas pelo TCAN em situação objecto do processo n.º 74/07, sintetizadas no sumário da decisão de 4 de Junho de 2020:

«I. No âmbito do procedimento tributário, a Administração Tributária está sujeita ao princípio do inquisitório (cf. artigo 58.º da LGT), o qual é um corolário do dever de imparcialidade que deve nortear a sua actuação. II. Não tendo a Administração Tributária investigado e analisado os elementos trazidos ao procedimento pelo contribuinte, sem que fundadamente os considere dispensáveis, a sua actuação colide com o princípio do inquisitório, consubstanciando um vício procedimental, que é fundamento de ilegalidade da decisão que recaiu sobre a reclamação graciosa e susceptível de determinar a sua anulação. III.A impugnação judicial de indeferimento de reclamação graciosa tem por objeto imediato a decisão da reclamação e por objeto mediato os vícios imputados ao acto de liquidação. IV. Os vícios do procedimento de reclamação graciosa apenas implicam a anulação da decisão de indeferimento; nunca a anulação do acto tributário de liquidação anteriormente praticado e que não configura o objeto imediato da impugnação judicial. V. Anulado o indeferimento da reclamação por vício procedimental desta, cabe ao tribunal conhecer dos restantes vícios imputados ao acto tributário, uma vez que este é competente para conhecer em tal impugnação.»

Esta decisão identifica uma questão que reputo crucial: para além da distinção entre objecto imediato e mediato no processo, existe a questão de saber qual verdadeiramente o objeto real da impugnação.

Como se refere na decisão de 27/04/2022, do TCAN, proc. 00278/16.BECBR, é posição firmada pelo Supremo Tribunal Administrativo a de que “A impugnação judicial de indeferimento de reclamação graciosa tem por objecto imediato a decisão da reclamação e por objecto mediato os vícios imputados ao acto de liquidação” pelo que “Anulado o indeferimento da reclamação por vício procedimental desta, cabe ao tribunal conhecer dos restantes vícios imputados ao acto tributário, uma vez que este é competente para conhecer em tal impugnação, quer do indeferimento da reclamação, quer dos vícios imputados ao acto tributário[13].

Quanto à racionalidade desta interpretação disse-se no acórdão do STA de 12.10.2011, Proc.nº 0463/11, citado em diversas outras decisões: «Daqui resulta então que, deduzida impugnação judicial do indeferimento de uma reclamação graciosa, das duas uma: a) ou o tribunal confirma o indeferimento, mantendo-se o acto tributário impugnado; b) ou o tribunal anula esse indeferimento, nomeadamente por vício procedimental; neste caso, o tribunal tem de apreciar os vícios imputados ao acto de liquidação, uma vez que a impugnação tem por objecto, tanto a decisão da reclamação, como os vícios do próprio acto de liquidação. E não colhe aqui o argumento no sentido de que com a anulação da decisão da reclamação graciosa fica prejudicado o julgamento da liquidação impugnada e ainda que o julgamento desta, antes da decisão da reclamação graciosa, constituiria a prática de um acto inútil que é proibido por lei. Esta conclusão estaria correcta se a impugnação do indeferimento fosse autónoma da do acto de liquidação. Então, anulado o indeferimento, a Administração Tributária poderia/deveria praticar novo acto que poderia manter ou alterar o acto de liquidação. No presente caso, o legislador entendeu que a impugnação deveria abranger, quer a reclamação, quer o acto de liquidação, pelo que a Administração Tributária não tem de praticar novo acto, já que o tribunal está obrigado a conhecer dos vícios imputados ao acto de liquidação na impugnação do indeferimento da reclamação. E bem se compreende esta opção do legislador pois que, numa situação como a dos autos, a Administração Tributária poderia indeferir novamente a reclamação, após sanação do vício formal, obrigando novamente o contribuinte a impugnar o acto de liquidação com os fundamentos anteriormente invocados. Assim, melhor é que o tribunal conheça logo dos vícios imputados ao acto tributário na impugnação do indeferimento da reclamação. Importaria então conhecer da verificação dos fundamentos para a anulação do indeferimento da reclamação[14]».

Esta interpretação parece ainda ser a coerente com a possibilidade de serem invocados na impugnação vícios não invocados na reclamação graciosa[15], como se concluiu por exemplo, no Acórdão do STA, de 18/05/2011, proc. 0156/11: «I - O objecto real da impugnação é o acto de liquidação e não o acto que decidiu a reclamação, pelo que são os vícios daquela e não deste despacho que estão verdadeiramente em crise II - A impugnação não está, por isso, limitada pelos fundamentos invocados na reclamação graciosa, podendo ter como fundamento qualquer ilegalidade do acto tributário».

É que ambas as situações – susceptibilidade de invocar na impugnação vícios da liquidação não suscitados na reclamação graciosa (situação diferente da possibilidade de invocar factualidade diversa da apresentada na reclamação necessária, como exposto acima) e susceptibilidade de apreciação da legalidade da liquidação, apesar da ilegalidade praticada na apreciação da reclamação que a teve como objecto – decorrem da natureza do acto tributário de liquidação como objecto real da impugnação.

 

  1. O indeferimento da reclamação graciosa no caso concreto 

4.1 A decisão da UGC 

Defendida a posição de que a ilegalidade do indeferimento da reclamação graciosa não deveria impedir a análise da legalidade do acto tributário, suscita-se porém, neste caso concreto, uma questão complementar, ainda quanto ao valor da decisão da UGC.

A informação n.º 200-A AIR3/2021 da UGC, no sentido do indeferimento da reclamação graciosa apresentada pelos ora requerentes, teve a concordância do Chefe de Divisão da Divisão de Justiça Tributária da UGC (no uso de poderes delegados e subdelegados nos termos do despacho 3480/2021, DR II série de 01-04-2021), que despachou, em 14/10/2021: «Concordando com o teor da presente informação prestada, promovo o indeferimento do pedido, disso se notificando os Reclamantes, na pessoa da mandatária».

Na mesma data, a Directora Adjunta da UGC despachou: «Concordando com a informação e parecer prestados, determino o indeferimento do pedido formulado nos autos, com todas as consequência legais, disso se notificando os Reclamantes, na pessoas da mandatária, para os termos e efeitos do disposto nos art.ºs 35.º a 41.º do CPPT».

Com data de 15/10/2021, foi enviado o ofício n.º ...-DST/2021, assinado pelo Director do Serviço Central UGC, indicando que havia sido proferido despacho do Chefe de Divisão de Serviço Central, ao abrigo de subdelegações, e poderia ser objecto de recurso hierárquico no prazo de 30 dias ou impugnado no prazo de 3 meses (cf. doc. 1 junto com PPA).

 

  1. Algumas referências à orgânica da Administração Tributária

Recordando, brevemente, diplomas respeitantes à orgânica da Administração Tributária e relevantes para o presente caso, como a Lei Orgânica da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), aprovada pelo Decreto- Lei n.º 118/2011, de 15 de Dezembro[16], a Portaria n.º 320-A/2011, de 30/12 [17], que, em desenvolvimento da Lei Orgânica, estabelece a Estrutura Nuclear da Autoridade Tributária e Aduaneira, o Decreto- Lei n.º 6/2013, de 17/01 [18], que prevê a específica regulamentação referente à UGC, o RCPITA aprovado pelo Decreto-Lei n.º 413/98, de 31/12 [19] e Despachos de delegação de poderes:

a) Lei Orgânica (Decreto-Lei n.º 118/2011, de 15 de Dezembro)

A AT é dirigida por um director-geral, coadjuvado por 12 subdirectores-gerais, cargos de direcção superior de 1.º e 2.º graus, respectivamente” (cf. artigo 3º, nº 1), competindo ao director-geral, para além das competências que lhe forem conferidas por lei ou nele delegadas ou subdelegadas, designadamente, “promover a execução da legislação tributária e aduaneira e da política do Governo nessas matérias” e “Dirigir e controlar os serviços da AT (…)“ (alíneas a) e f) do artigo 4.º Lei Orgânica).

A organização interna dos serviços da AT obedece a um modelo estrutural misto:
de estrutura hierarquizada em todas as áreas de actividade prosseguidas pela AT com excepção das áreas de actividade específicas das tecnologias e dos sistemas de informação, que possui modelo de estrutura matricial (cf. artigo 6.º). 

Mas a nível dos diferentes órgãos, a Lei Orgânica apenas se refere superficialmente (mais aos cargos dirigentes, mencionando directores de finanças e directores de alfândegas, director de Centro de Estudos Fiscais e Aduaneiros, director da UGC), deixando a definição da estrutura e competência territorial ou específica dos serviços desconcentrados da AT para Portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças.

b) A Portaria n.º 320-A/2011, de 30/12, define como estruturas nucleares da AT, nos serviços centrais, as Direcções de serviços, o Centro de Estudos Fiscais e Aduaneiros e a Unidade dos Grandes Contribuintes e, como serviços desconcentrados, as direcções de finanças e as alfândegas (cf. artigo 1.º e al. ff do n.º 1 do art. 2º).

Quanto à Unidade de Grandes Contribuintes, o artigo 34.º, n.º1, da Portaria dispõe que lhe cabe assegurar no domínio da gestão tributária as relações com os contribuintes que lhe sejam atribuídos e exerce em relação a estes a acção de inspecção tributária e de justiça tributária, atribuindo-lhe no n.º 2 um vasto leque de competências.

c) O RCPIT, em especial no artigo 16.º, regulando o procedimento de inspecção tributária, dispõe quanto à competência material e territorial: «1 - São competentes para o procedimento de inspeção tributária, nos termos da lei, os seguintes serviços da Autoridade Tributária e Aduaneira: a) A Unidade dos Grandes Contribuintes, relativamente aos sujeitos passivos que de acordo com os critérios definidos sejam considerados como grandes contribuintes; b) As direções de serviços de inspeção tributária que nos termos da orgânica da Autoridade Tributária e Aduaneira integram a área operativa da inspeção tributária, relativamente aos sujeitos passivos e demais obrigados tributários que sejam selecionados no âmbito das suas competências ou designados pelo diretor-geral da Autoridade Tributária e Aduaneira; c) As unidades orgânicas desconcentradas, relativamente aos sujeitos passivos e demais obrigados tributários com domicílio ou sede fiscal na sua área territorial. 2 - (Revogado.) 3 - A competência prevista na alínea c) do n.º 1, pode ainda ser exercida por qualquer outra unidade orgânica desconcentrada mediante despacho do diretor-geral da Autoridade Tributária e Aduaneira, com possibilidade de delegação, sem possibilidade de subdelegação.

d) O Decreto-Lei n.º 6/2013, de 17/01, visou operacionalizar a Unidade dos Grandes Contribuintes (UGC), procedeu a adaptação dos diversos códigos e outra legislação tributária, e no seu artigo 9.º, com epígrafe “Competências próprias do director da Unidade de Grandes contribuintes”, dispõe que as competências que diversos códigos tributários e demais legislação não aduaneira remetam, expressa ou implicitamente, para os chefes de finanças, para os diretores de finanças e para o diretor dos Serviços de Inspecção Tributária se devem considerar, relativamente aos grandes contribuintes, dizendo respeito ao diretor da Unidade dos Grandes Contribuintes da Autoridade Tributária e Aduaneira.

O diploma, segundo o preâmbulo, procurou facilitar o cumprimento de obrigações fiscais por parte dos contribuintes, com redução de custos de contexto de redução de riscos de incumprimento e o nível de contencioso, com acréscimo de segurança. 

E cita a atribuição à UGC, no âmbito da resolução da conflitualidade fiscal administrativa, de competência para a decisão das reclamações graciosas relativamente aos contribuintes abrangidos pela sua competência e gestão tributária.

Assim, de par com a nova redacção do art.º 16.º do RCPITA, é eliminado o n.º 2 do artigo 75.º do CPPT que atribuía competência para a decisão da reclamação graciosa, ao director de serviços da área operativa dos serviços centrais de inspecção tributária para a decisão sobre a reclamação de actos praticados em consequência de procedimentos inspectivos realizados pelos respectivos serviços. 

De realçar que o artigo 75.º do CPPT dispõe, actualmente, sobre a entidade competente para a reclamação graciosa:

1 - Salvo quando a lei estabeleça em sentido diferente, a entidade competente para a decisão da reclamação graciosa é o dirigente do órgão periférico regional da área do domicílio ou sede do contribuinte, da situação dos bens ou da liquidação ou, não havendo órgão periférico regional, o dirigente máximo do serviço3 - O dirigente do órgão periférico regional da área do órgão de execução fiscal é competente para a decisão sobre a reclamação apresentada no âmbito da responsabilidade subsidiária efetivada em sede de execução fiscal. (Redação da Lei n.º66-B/2012, de 31 de Dezembro)

4 - A competência referida nos números anteriores pode ser delegada pelo dirigente máximo do serviço, director de serviços ou dirigente do órgão periférico regional em funcionários qualificados ou nos dirigentes dos órgãos periféricos locais, cabendo neste último caso ao imediato inferior hierárquico destes a proposta de decisão.  (…..)

e) Despacho n.º 6438/2018 (DR II série de 19 de Junho de 2020)

A directora- geral delegou competências suas e subdelegou competências em si delegadas pelo SEAF, em diversos dirigentes, autorizando-os a subdelegar competências delegadas.

No director da UGC delegou, designadamente, competências relativas às áreas de inspeção, justiça e gestão tributárias, dos legalmente considerados grandes contribuintes e cujo acompanhamento seja atribuído à Unidade dos Grandes Contribuintes (…).

Em alguns dos dirigentes delegou competência para apreciação de recursos hierárquicos previstos nos artigos 66.º e 76.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.

A este despacho foi atribuído efeitos a partir de 26 de Outubro de 2019.

f) Despacho n.º 1379/2021 (DR 2ª série de 3 de Fevereiro de 2021), pelo qual o director da UGC, designadamente ao abrigo do art. 9º do DL 6/2013, delegou competências em dirigentes da Unidade, designadamente no director adjunto ..., na área da inspecção tributária, da competência para sancionar os relatórios de ações inspetivas conforme n.º 6 do artigo 62.º do RCPITA, com exceção daqueles de que resulte a liquidação de tributos com base na disposição anti abuso constante do n.º 2 do artigo 38.º da LGT - I, 3.1. alínea f), e na directora adjunta ... a competência para «Decidir no âmbito dos procedimentos de reclamação graciosa, nos termos do artigo 68.º e seguintes do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT)» (cf I, 3.2. alínea c)).

A este despacho foi atribuído efeitos a partir de 10 de Junho de 2020

g) Despacho n.º 3480/2021 (DR 2ª série de 1 de Abril de 2021) pelo qual a directora adjunta ... delegou competências suas, designadamente no Chefe de Divisão de Justiça Tributária,  ..., e ainda competências em si delegada, inclusive para “Decidir no âmbito dos procedimentos de reclamação graciosa, nos termos do artigo 68.º e seguintes do Código de Procedimento e Processo Tributária (CPPT) (…) (até certos valores de liquidação e matéria colectável) (II, 1.4) “.

A este despacho foi atribuído efeitos a partir de 16 de Março de 2021.

 

  1. O desenvolvimento do procedimento tributário – inspecção tributária, decisão, liquidação, reclamação graciosa 

5.1 Da inspecção tributária à liquidação

A inspecção tributária em causa nos autos foi realizada pela Direcção de Finanças de Lisboa no decurso de 2019 e 2020, terminando com o Relatório de Inspecção Tributária final datado de 17 de Novembro de 2020, que, com pareceres favoráveis da chefe de equipa e do chefe de divisão IV, em 18/11/2020, e da Directora de Finanças Adjunta em 19/11/2020, obteve o seguinte despacho, também em 19/11/2020, do Director de Finanças de Lisboa, sendo o teor deste último:

«Visto.

Concordo com os pareceres e com o Relatório da ação inspetiva, em anexo.

O relato da situação tributária observada justifica e fundamenta a correção proposta em sede de IRS – correções à matéria tributável, conforme mapa resumo.

A fundamentação assenta na previsão/estatuição das normas técnicas contidas no Código do IRS (CIRS), na redação vigente à data da prática dos factos, pelo que se consideram reunidos os pressupostos de direito e de facto, para se proceder à sujeição a tributação dos rendimentos de capitais, alínea h), do número 2, do artigo 5.º e artigo 57.º, ambos do CIRS, em obediência à aplicação do disposto no número 2 do artigo 38.º da LGT, conjugado com o artigo 63.º do CPPT.

Remeta-se à consideração superior da Exmª Senhora Diretora Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), para autorização da liquidação do(s) imposto(s).

Notifique-se o sujeito passivo após a decisão da Sra. Diretora Geral da AT.

Lisboa, 19 de Novembro de 2020

O Diretor de Finanças (segue-se a assinatura - Fernando Lopes)»

 

O RIT foi ainda submetido ao Director da Unidade de Grandes Contribuintes (UGC) que em 26/11/2020, despachou: “Sanciono as conclusões do Relatório”.

Seguiu-se o despacho da Directora- Geral da Administração Tributária e Aduaneira, em 3 de Dezembro de 2020: “Autorizo nos termos e com os fundamentos propostos”.

O RIT foi entregue em 04/12/2020 no domicílio dos Requerentes, com ofício nº ... da DF Lisboa (doc. 12 junto com PPA).

Em consonância, os serviços procederam à elaboração dos documentos de correcção (…) e liquidações oficiosas de IRS referentes a 2016, 2017 e 2018, que foram notificadas aos contribuintes.

 

5.2. A reclamação graciosa interposta da liquidação

A reclamação graciosa foi apresentada nos termos do artigo 68.º do CPPT, contra actos tributários de liquidação adicional de IRS, respeitantes aos anos de 2016, 2017 e 2018, invocando a respectiva ilegalidade, com fundamento em incompetência do órgão de administração fiscal que praticara o procedimento inspectivo subjacente à aplicação da norma anti-abuso, erro quanto à verificação dos pressupostos de facto exigidos no n.º 2 do artigo 38.º da LGT[20], caducidade do exercício do direito à liquidação[21], inexistência de obrigação tributária na titularidade do Sujeito Passivo A[22]

 

5.2.1 A questão da competência

Quanto à competência os Requerentes invocam que, dado integrarem o cadastro da UGC, o Sujeito Passivo A desde 2017 e a Sujeito Passivo B, desde Fevereiro de 2020, a Unidade dos Grandes Contribuintes seria única entidade competente para a realização da inspecção, devendo o RIT ser assinado pelo director da UGC e não pelo director de finanças, entidade incompetente territorialmente.

Invocam falta de extensão prévia de competência e respectiva notificação, considerando insuficiente o despacho de concordância aposto pelo director de UGC

Vejamos.

A distribuição de competência em razão do território refere-se «a repartição de poderes entre órgãos centrais e órgãos locais, ou a distribuição de poderes por órgãos locais diferentes em função das respectivas áreas ou circunscrições»[23].

Ou seja, a competência territorial refere-se à delimitação em razão do lugar. [24]

A competência atribuída à UGC relativamente aos Grandes Contribuintes, assim classificados qualquer que seja o território, e independentemente de outras previsões normativas referentes a distribuição de competências em matéria tributária, não constitui propriamente uma questão de competência territorial, em função do local, sendo antes derivada de razões encontradas pelo legislador para concentrar num serviço central o exame e decisão da situação de contribuintes considerados de elevada relevância económica e fiscal (art.º 68.º-B da LGT), envolvendo, designadamente, elevado montante de imposto ou situações consideradas complexas. 

Tendo em conta que poderes a lei atribui aos vários órgãos da AT para exercerem e prosseguirem as atribuições da pessoa colectiva a que pertencem, creio que nesta situação se tratará mais de apreciação não tanto da competência como de “legitimação”[25] para o exercício dos poderes.

Mas, questão de competência ou legitimação, suscita neste procedimento tributário as seguinte dúvidas:

a) Qual o efeito do procedimento de inspecção tributária, respectivas conclusões e decisão se terem realizado no âmbito da direcção de finanças e não da UGC;

b) Qual o valor da intervenção da directora- geral através do despacho aposto no RIT final.

Quanto à primeira dúvida:

Admitindo que bastaria a qualificação desde 2017 como Grande Contribuinte de um dos Requerentes - o Sujeito Passivo A…, interveniente nos actos em causa nos autos - para atribuir competência à UGC, em detrimento da Direcção de Finanças do domicílio fiscal dos Requerentes, qual o efeito desta dissonância?

O Relatório de Inspecção Tributária foi objecto de despachos de concordância do Director de Finanças de Lisboa, em 19 de Novembro de 2020, e do Director da UGC, em 26 de Novembro de 2020.

Por um lado, não se trata propriamente de um caso de incompetência territorial, ambos os departamentos estão em condições de conhecer a realidade em causa, a direcção de finanças até é, neste caso, o departamento originalmente competente para agir, visto ser o do domicílio fiscal dos contribuintes.

Por outro lado, ainda que a irregularidade observada fosse causadora de anulabilidade, não se vê razão para a invalidade não ser sanável nos mesmos termos em que a incompetência territorial o pode ser. 

Neste sentido, veja-se Acórdão do TCAS de 19/08/2016, proc. 09765/16, em que se decidiu:

«3) A preterição das regras de distribuição de competência territorial dos serviços inspectivos implica a sanção da mera anulabilidade dos actos assim praticados (artigo 163.º/1, do CPA, ex vi artigo 2.º/d), do CPPT). 4) No caso, ocorreu a ratificação-sanação dos actos inspectivos em presença através da confirmação por parte da Direcção de Finanças de... do relatório inspectivo elaborado pela Direcção de Finanças de ... (artigo 164.º/1, do CPA), mediante o proferimento de despacho de concordância com o mencionado relatório final de inspecção por parte do Director de Finanças de...» (sumário)

E, de uma forma mais genérica, quanto à susceptibilidade de sanação de actos anuláveis disse-se no Acórdão do TCAS de 27/01/2022, proc. 1075/05.1BELSB:

«Os artigos 79.º da Lei Geral Tributária (LGT) e 137.º do CPA (na redacção aplicável) permitem a ratificação dos autos anuláveis. A ratificação destina-se a sanar invalidades de acto anterior, sanando vícios de competência ou proveniente da preterição de uma formalidade na sua formação, mantendo inalterável o conteúdo do acto, pertencendo o poder de ratificar o acto ilegal ao órgão competente para a prática do acto. “Ratificação-sanação é o acto pelo qual o órgão competente decide sanar um acto anulável antes praticado, mantendo o seu conteúdo decisório, mas suprindo as ilegalidades formais ou procedimentais que o viciam, inclusivamente quanto à competência, assim transformando um acto ilegal noutro válido perante a ordem jurídica.” (Marcelo Caetano, in Manual de Direito Administrativo, volume I, 10.º Edição, 1965, Coimbra Editora, pág. 557; no mesmo sentido vide Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, Vol II, 7.ª Reimpresão da Edição de 2001, págs. 474 a 476). Como ponderam Mário Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonçalves e J. Pacheco de Amorim “Tradicionalmente, a ratificação (-sanação) é o acto através do qual o órgão competente sana o vício de incompetência (relativa) de um acto da autoria de um órgão incompetente. (…) Deve entender-se que a ratificação não é restrita à sanação do vício da incompetência, como o sugere, aliás, o n.º 3 do preceito legal: inclui-se no conceito, portanto, a sanação dos restantes vícios não atinentes ao conteúdo do acto (porque se tratará então de uma reforma, conversão ou de uma revogação por ilegalidade), ou seja, as invalidades formais e procedimentais, quando estas sejam superáveis (nesse momento post acto).”.

Quanto à segunda dúvida:

Acresce que o processo foi depois submetido à consideração da directora-geral com vista à autorização da subsequente liquidação (liquidação essa que se fundamenta no RIT). 

Qual o valor desta intervenção da Directora- Geral quanto ao conteúdo do relatório?

Este é um ponto em que também me distancio da decisão arbitral quando considera «Mas não se pode aceitar - embora essa não aceitação não influencie a improcedência da competência territorial - que "o relatório final de inspeção possui como autor da decisão a Diretora-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira", uma vez que o artigo 63.º do CPPT apenas confere àquele Órgão a competência para autorizar a aplicação da cláusula geral anti abuso-como, de resto, resulta do próprio despacho. E essa autorização, de natureza procedimental meramente interna, é dada aos órgãos competentes da AT para sancionarem o RIT enquanto instrumento de inspeção Tributária e efetuarem correções que forem devidas. Trata-se de um ato constitutivo de uma relação jurídica exclusivamente interna que tem por sujeitos passivos os órgãos competentes da AT e não o Requerente».

É que a importância da intervenção da directora-geral no procedimento havido não pode deixar de ser ponderada na avaliação da relevância do indeferimento da reclamação, efeitos quanto à eventual substituição da decisão que fundamentou a liquidação impugnada.

Embora a redacção do artigo 63.º do CPPT possa evidenciar alguma ambiguidade, deve-se ter em conta a sua evolução.

Resultava da redacção inicial que a liquidação de tributos com base em quaisquer disposições anti-abuso dependia de abertura de procedimento próprio, sendo este delineado em duas fases distintas:

- 1ª - Autorização de dirigente máximo do serviço para aplicação da norma em causa- esta decisão constituía acto destacável, acto administrativo sobre questão tributária que poderia ser impugnada através de acção administrativa especial;

- 2ª - Tomada definitiva de posição pela administração, e subsequente liquidação. Na impugnação da liquidação não eram atacáveis os vícios próprios da autorização mas apenas os vícios que afectavam o acto de liquidação[26].

 

5.2.2 As competências dos dirigentes da AT na aplicação da CGAA

A situação seria já então pouco clara, na medida em que o n.º 9 do art.º 63.º do CPPT previa que a decisão de autorização [27] fosse fundamentada com: a) A descrição do negócio jurídico celebrado ou do acto jurídico realizado e da sua verdadeira substância económica; b) A indicação dos elementos que demonstrem que a celebração do negócio ou prática do acto tiveram como fim único ou determinante evitar a tributação que seria devida em caso de negócio ou acto de substância económica equivalente; c) A descrição dos negócios ou actos de substância económica equivalente aos efectivamente celebrados ou praticados e das normas de incidência que se lhes aplicam.

A Lei n.º 64-B/2011, de 30/12, alterou a redacção do artigo 63.º do CPPT eliminando a primeira fase, mas continuando a exigir, como autorização prévia e obrigatória, despacho de dirigente superior (nº7), norma que se manteve sucessivamente, inclusive com as alterações da Lei n.º 32/2019, de 3/5. 

Mas, qual o significado e valor desta decisão do dirigente máximo? 

Parece-me curial entender-se que a decisão do dirigente máximo do serviço ao intervir no processo de aplicação da norma anti-abuso, concordando com o RIT e suas conclusões, e mandando liquidar imposto em conformidade, se apropria dos fundamentos invocados para o procedimento autorizado.

Pode negar-se à directora- geral competência para decidir sobre o conteúdo que lhe foi submetido porque os diplomas que regem a orgânica da AT atribuem essa competência directamente a órgãos periféricos locais ou regionais, ou à UGC? (artigo 10.º, nºs 2, 3, 4, do CPPT e Decreto-Lei n.º 6/2013, de 17/1)?

Sendo certo que o artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 6/2013 atribui competências próprias ao director da UGC (aliás como a outros dirigentes), não considero, porém, que essa competência exclua a do dirigente máximo do serviço.

Em termos doutrinários trata-se de saber se as competências atribuídas a órgãos periféricos locais e regionais da AT, assim como a serviços centrais, são não apenas próprias mas também exclusivas.

Os diplomas que regem a orgânica da administração tributária e aduaneira, prevêem as competências, o conjunto de poderes funcionais dos diferentes órgãos que visam assegurar a prossecução ou realização dos fins ou interesses da pessoa colectiva em que o mesmo se insere, através de uma organização (repartição) racional de tarefas ou missões. Os actos praticados pelos diferentes órgãos estarão viciados de incompetência se desrespeitarem os limites legalmente estabelecidos, invadindo a esfera de poderes funcionais de outros órgãos, quer quanto à matéria, território, hierarquia.

Em que medida esse vício abrange o caso de um órgão hierarquicamente superior ao órgão competente praticar um acto que, por lei estava reservado ao poder de actuação do subalterno ou era da sua competência exclusiva?

A competência própria, que é directamente atribuída por lei, não deverá porém ser confundida com a competência exclusiva já que esta apenas existe quando a competência do subordinado não se inclui na do superior hierárquico. [28]

No caso dos autos, trata-se de averiguar se a intervenção quanto à aplicação da norma anti-abuso pela dirigente máxima do serviço, directora- geral, constitui apenas uma autorização para se realizar a inspecção, deixando a fundamentação, a realizar posteriormente, totalmente ao critério de outro órgão, hierarquicamente inferior, mas detentor de uma competência originária e exclusiva.

Ora o que a redacção do artigo 63.º do CPPT vigente à data da inspecção em causa nos autos[29] consagra (n.ºs 3, 5 e 7) é um controlo da fundamentação, ao prever-se que o dirigente máximo do serviço autoriza a aplicação da norma tendo em conta a) A descrição do negócio jurídico celebrado ou do acto jurídico realizado e dos negócios ou actos de idêntico fim económico, bem como a indicação das normas de incidência que se lhes aplicam; b) A demonstração de que a celebração do negócio jurídico ou prática do acto jurídico foi essencial ou principalmente dirigida à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em caso de negócio ou acto com idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais. 

Tendo presente a controvérsia e evolução doutrinária em direito administrativo sobre a existência ou não de uma regra geral no sentido de as competências dos superiores hierárquicos inferiores abrangerem as dos seus inferiores[30] há que ter em conta a orgânica actual da AT e a finalidade do controlo previsto no artigo 63.º do CPPT.

Cabe ao dirigente máximo da AT, designadamente: “Promover a execução da legislação tributária e aduaneira e da política do Governo nessas matérias” e “dirigir e controlar os serviços da AT” (alíneas a) e f) do n.º 1 do artigo 4º do Decreto- Lei n.º 118/2011, de 15 de Dezembro).  

Nem o artigo 16.º do RCPITA[31] nem qualquer outra norma que atribua competências a diferentes órgãos da AT pode, se isso não decorrer clara e explicitamente da lei, significar uma restrição das competências do dirigente máximo.

Antes pelo contrário, fica evidente o papel do dirigente máximo em todas as questões tributárias, incluindo a inspecção, como, por exemplo, na indicação de sujeitos passivos a inspecionar[32] ou no sancionamento de relatórios de inspecção tributária para efeitos de eficácia vinculativa (art.º 64.º do RCPITA).

Outro exemplo será precisamente o da aplicação da norma anti-abuso do artigo 38.º da LGT, tendo em conta o disposto no art.º 63.º do CPPT.  

 

Deve ainda notar-se que se detecta uma evolução da administração tributária no sentido de concentração de poderes, centralmente.

Uma ampla atribuição de competências próprias e exclusivas a órgãos periféricos locais, com destaque para as repartições de finanças no arcaico sistema fiscal - anterior às reformas das décadas de 1980 e 1990, à existência de um número fiscal e de uma intensa informatização - tinha plena justificação na exclusividade do conhecimento das realidades tributárias pelos dirigentes desses órgãos situados junto às populações.

 Actualmente, pelo contrário, a decisão e controlo centrais, têm-se alargado, ainda que sejam acompanhados de desconcentração, com atribuição simultânea de poderes próprios concorrentes e generosas delegações de poderes.

A desconcentração actual, por delegação de poderes ou com atribuição de competência comum[33] a dois ou mais órgãos, constitui situação diversa de atribuição muito ampla de poderes exclusivos e próprios a órgãos em escalões inferiores da cadeia hierárquica.

E a concentração prender-se-á com a salvaguarda da legalidade e igualdade tributária e, em grande medida com a eficácia, atendendo à realidade tecnológica.

Verifica-se o reconhecimento dessa evolução em diversas decisões judiciais (TCA e STA) na análise de competência concorrente de órgãos locais e serviços centrais.[34]

Sobre a matéria, o Acórdão do Pleno do STA proferido em 5 de Junho de 2019, no proc. 0493/09, 0BESNT, apesar de não ter decidido a oposição de acórdãos por ter mandado baixar os autos, contém estas considerações que julgamos ilustrativas do acima defendido: «Está em causa uma competência para efeitos correctivos das declarações dos sujeitos passivos em sede de IVA, a efectivar pela entidade que tenha elementos ao seu dispor para proceder à rectificação, nos termos legais, e por respeito aos princípios mais elementares do direito tributário como sejam o princípio da verdade material, da legalidade e da própria indisponibilidade do direito ao crédito fiscal que num primeiro momento o legislador entendeu fixar na figura/órgão da Administração Tributária mais próximo do sujeito passivo, mas que o evoluir dos tempos e dos meios de informação, determinou a partilha de competências com outros órgãos da Administração Tributária designadamente a Direcção de Serviços do IVA, ou Serviço de Administração do IVA, quando fossem detentores de elementos necessários para o apuramento do imposto ou juros compensatórios. Acresce que, também a nosso ver, é esta a única interpretação que se coaduna com o disposto no artigo 87.º do CIVA, na redacção então em vigor, que, expressa e inequivocamente, estabelecia a competência concorrente da Direcção de Serviços de Cobrança do IVA».

Aliás, essa evolução é nítida até no processo de execução fiscal.

Inicialmente, e na tradição do processo tributário, em que os serviços locais da administração tributária eram o órgão de execução fiscal (cf. redacção inicial dos artigos 149.º e 150.º do CPPT), passou-se à previsão de que o órgão competente para a execução fiscal é a administração tributária, cabendo ao dirigente máximo do serviço designar, por despacho, quais os órgãos (da AT) competentes para instaurar e praticar actos da execução (redacção do n.ºs 1 e 2 do art. 150º do CPPT, dada pela Lei n.º 64-B/2011, de 30/12).

E se nesse momento foi mantida, como regra supletiva, a competência dos órgãos periféricos locais (n.º 3 do art. 150.º do CPPT, Lei n.º 64-B/2011), a redacção actual (Lei n.º 100/2017, de 28/08) dispõe que na falta de designação pelo dirigente máximo, a instauração e os atos da execução são praticados no órgão periférico regional da área do domicílio ou sede do devedor.

 

Dito isto, não parece lógico nem razoável que a intervenção do dirigente máximo através da autorização da aplicação da norma anti-abuso, artigo 38.º da LGT, que conduz à liquidação subsequente, fundamentada no relatório de inspecção tributária, não constitua concordância expressa com os termos da respectiva fundamentação.

Também parece ser esta a posição sustentada por Serena Cabrita Neto e Carla Castelo Trindade, em Contencioso Tributário, Almedina, 2022, vol. I, p. 439 «Após o exercício do direito de audição prévia, a Administração Tributária deve requerer ao responsável máximo do serviço em causa ou ao funcionário em quem ele tiver delegado a competência, a autorização da aplicação da CGAA nos termos do art.º 63.º, n.º 7 do CPPT. Neste requerimento a Administração deve fundamentar a aplicação da CGAA, indicando os elementos identificados no artigo 63.º, n.º 3 do CPPT, designadamente a demonstração de que a celebração do negócio jurídico ou a prática do acto jurídico foi essencial ou principalmente dirigida à redução, eliminação ou deferimento temporal do imposto, bem como respondendo às alegações feitas pelo contribuinte em sede de audição prévia. No contexto desta autorização, o dirigente máximo do Serviço deverá apreciar toda a matéria de facto e de direito em causa e poderá concordar ou não com a intenção dos serviços da Administração Tributária de aplicar a CGAA. Assim, podemos afirmar que não se trata de um mero controlo do cumprimento das formalidades procedimentais ou, mas antes de um efectivo controlo de mérito da proposta de decisão da Administração no sentido de aplicar a CGAA. A decisão do dirigente máximo do serviço de autorização de aplicação da CGAA deverá então ser devidamente fundamentada e notificada ao contribuinte. Como se compreende, a decisão de autorização – tal como o projecto de decisão – deverá ser fundamentada nos termos do artigo 63.º, n.º 3 do CPPT, ou seja, deverá conter os elementos previstos neste artigo». (realces nossos)

O que aconteceu no caso dos autos, dado que a Directora-Geral concordou expressamente com os fundamentos propostos no Relatório da Inspecção Tributária, cumprindo o disposto no artigo 77.º, n.º 1 da LGT[35] e artigo 153.º n,º 1 do CPA[36].

 

  1. Competências próprias e delegadas e o indeferimento da reclamação graciosa

Em regra no procedimento tributário a competência de um órgão pode ser delegada e esta subdelegada com autorização do delegante, se a lei não o proibir. [37]

Analisadas as delegações de competência no âmbito da AT, ao tempo do procedimento tributário em causa neste processo (supra, 4.2.) conclui-se que a Directora- geral delegou na Subdiretora -geral, Ana Paula de Araújo Neto as competências ao nível central, regional e local para a área da inspeção tributária e aduaneira (…) autorizando a subdelegação de algumas delas e delegou directamente no Diretor da Unidade dos Grandes Contribuintes (…), as competências relativas às áreas de inspeção, justiça e gestão tributárias, dos legalmente considerados grandes contribuintes e cujo acompanhamento seja atribuído à Unidade dos Grandes Contribuintes, sem prejuízo da observância das orientações e entendimentos superiormente sancionados, quanto a um conjunto de matérias enunciadas (13.1.), assim como competência para decidir pedidos da revisão previstos no artigo 78.º da Lei Geral Tributária, no que respeita aos legalmente considerados grandes contribuintes e cujo acompanhamento seja atribuído à Unidade dos Grandes Contribuintes.

Por outro lado, o Director da UGC tem actualmente (artigos 75.º do CPPT e 16.º do RCPITA, redacção dada pelo DL 6/2013) competência própria para decidir reclamações graciosas relativamente aos grandes contribuintes.

E, o Director da UGC delegou num dos diretores adjuntos da UGC competências no âmbito da área da inspeção tributária, e em outra diretora adjunta da UGC, competências no âmbito da área da justiça tributária, designadamente para apreciação das reclamações graciosas e de recursos hierárquicos, sendo esta competência subdelegada, dentro de certos limites, no Chefe de Divisão da Justiça da Tributária da UGC.

No caso dos autos, o Chefe de Divisão despachou no sentido do “provimento do indeferimento” e foi proferido despacho da Directora Adjunta da UGC determinando o indeferimento da reclamação graciosa.

Mas qual o seu efeito?

 

  1. Conclusão quanto aos efeitos do indeferimento da Reclamação Graciosa

Tendo em conta a análise do procedimento desenvolvido e da actuação das diferentes entidades da AT no uso das respectivas competências, a questão que se torna crucial é saber se a entidade que indeferiu a reclamação graciosa tinha competência para dizer:

- Que o RIT não diz o que dele consta expressamente (ou seja, que foi aplicada à realidade inspeccionada, a redacção do artigo 38.º vigente ao tempo dos factos objecto da inspecção, nos exercícios entre 2015 e 2018)

- Que na inspecção realizada pela DF de Lisboa, cujo RIT serviu de base à liquidação, fora aplicada a redacção do artigo 38.º da LGT introduzida em 2019.

Não entendo que, nos despachos de indeferimento da reclamação graciosa, quer o chefe de divisão da área de JT, quer a directora adjunta UGC, tenham pretendido substituir a materialidade consubstanciada no Relatório de inspecção que fundamentou a liquidação após confirmação da DG da AT - identificação da matéria de facto e respectiva interpretação jurídica quanto ao preenchimento dos pressupostos exigidos no n.º 2 do artigo 38.º da LGT na redacção anterior – tendo apenas concordado com a informação da UGC que, embora tenha considerado aplicável a nova redacção do preceito, se limitou fundamentalmente a remeter para o teor e conclusões do RIT[38]

Defendo ainda que a entidade que decidiu a reclamação graciosa, poderia ter, no uso de competência delegada que lhe está atribuída, e face aos argumentos dos reclamantes, concordado com uma informação que desenvolvesse a argumentação jurídica na defesa da liquidação, ou considerado ilegal o procedimento, designadamente por insuficiência de prova produzida, mas não poderia (e considero que não o fez) substituir a materialidade contida no RIT, omitindo, e substituindo sem justificação, o que nele foi defendido, e expressamente aprovado pela dirigente máxima da administração tributária e aduaneira como base das liquidações ora impugnadas.

Assim, também por esta razão, considero que a verificação de ilegalidade no indeferimento da reclamação graciosa não prejudicava a apreciação da ilegalidade da liquidação.

 

II A ilegalidade da liquidação

 

Em consonância com a posição acima exposta, teria apreciado as restantes questões objecto do Pedido de Pronúncia Arbitral. 

Dada a importância e dificuldade das questões geralmente envolvidas nas situações de aplicação da CGAA, considero, por princípio, ser útil a admissão da prova testemunhal quando requerida.

Porém, segundo resulta dos elementos juntos aos autos e da argumentação dos Requerentes, a prova requerida incidia sobre factos ilustrados documentalmente e/ou factos posteriores aos períodos inspeccionados não susceptíveis de alterar a situação apurada no RIT e a força dos indícios existentes no sentido de prática abusiva, e que fundamentaram a liquidação impugnada.

Vejamos:

 

7. Dos pressupostos de aplicação da CGAA

Quanto ao preenchimento dos pressupostos de que depende a aplicação da CGAA consagrada no n.º 2 do artigo 38.º da LGT, seguindo a análise habitualmente seguida pela doutrina e jurisprudência, e tendo em conta os elementos disponíveis no processo: 

 

7.1. Quanto ao elemento meio

Com vista a verificar se existe um encadeamento de actos e negócios jurídicos considerado abusivo à luz da “step-by-step transaction doctrine”, identifica-se a seguinte sucessão de factos interligados:

1.º O Sujeito Passivo A era desde 2012 accionista e administrador da E..., SGPS, de que detinha 63,5% do capital, acções adquiridas pelo montante de € 6.050,00;

2.º O Conselho de Administração da E... deliberou em 14/12/2015 uma distribuição antecipada de lucros aos sócios, no montante de € 4.470,000,00, de acordo com a respectiva participação no capital;

3.º O Sujeito Passivo A criou, com sede no mesmo local que a E..., em 16/12/2015, a sociedade por quotas “D..., Lda.”, com capital de € 1.000 euros composto por duas quotas, de que se tornou, em 28/12/2015 o único titular (doc. 5 e p. 6 do RIT);

4.º A D... adquiriu ao Sujeito Passivo A, em 24/12/2015, acções da E..., correspondentes a 60,5% do capital que o mesmo detinha nesta sociedade, pelo preço de € 13.287.076,14, a pagar em 120 dias;

5.º O preço das referidas acções (valorizadas muito acima do preço nominal) não veio a ser pago de acordo com o contratado mas alegadamente convertido em suprimentos (não inscritos, ao tempo, como tal na contabilidade - RIT pp. 20 e 47), vindo a ser objecto de reembolsos ao Sujeito Passivo A durante os anos seguintes;

6.º Em 29/12/2015, a E... efectuou uma transferência no valor de € 2. 028.262,50 para a conta da D..., correspondente a montante de dividendos de € 2. 704.350,00, líquido de retenção na fonte, eliminada posteriormente (RIT, p. 13 e anexo V);  

7.º O montante total de dividendos distribuídos pela E... à D..., desde o final de 2015 e durante os anos de 2016, 2017 e 2018, foi de € 11.855.766,08 ­­­- soma de €4.678.837,50, no exercício de 2015, €3.717.899,34, no exercício de 2016, e € 3.459.029,24, exercício de 2017 - configurando-se como os únicos rendimentos auferidos pela D... durante aquele período (RIT, pp. 19 e 23);

8.º Entre 19/04/2016 e 22/08/2018, D... transferiu para o Sujeito Passivo A o montante de €11.852.503,71 (seis movimentos em 2016, um em 2017 e três em 2018) (RIT, pp. 19 e 24).

Este encadeamento de actos e negócios jurídicos mostra que o contrato de compra e venda das acções da E... entre o sócio A e a sociedade W... constitui um negócio consigo mesmo, ou seja, a mesma pessoa (Sujeito Passivo A no presente caso) assumiu a posição de vendedor – enquanto titular das acções alienadas (objecto de uma extraordinária valorização em 3 anos) - e de adquirente, na qualidade de sócio e gerente único da sociedade adquirente. 

Sociedade esta, desprovida de meios financeiros para tal aquisição. Dir-se-á que a transferência de titularidade de acções para uma sociedade desprovida de substância, sem estrutura física e humana, e não dotada de meios financeiros próprios nem de financiamento bancário, seria, em circunstâncias normais de comércio jurídico, operacionalizada por entrega dos títulos para a realização do capital social e não pela criação de uma dívida para com o sócio/ vendedor.

 

7.2. Quanto ao elemento resultado

Trata-se de saber se com a adopção dos actos descritos se alcançou uma vantagem fiscal, para o que há que comparar a carga tributária que se verificaria caso tivessem sido praticados actos ou negócios jurídicos de efeito económico equivalente e não passíveis de gerar a aplicação da cláusula anti-abuso.

No presente caso, isso significa a comparação da carga fiscal decorrente dos negócios e actos descritos no elemento meio com a que resultaria na ausência de prática desses actos, da não constituição da sociedade por quotas cuja finalidade principal se revelou ser a de intermediária, enquanto redistribuidora de dividendos recebidos da sociedade de que o seu sócio era anteriormente accionista.

Comparando as duas situações, o RIT permite concluir que:

- Os Requerentes declararam pela venda das acções à D..., mais-valias, em sede de IRS, no exercício de 2015, no valor de 13.281.026,14= (€13.287.076,14 - €6.050,00), as quais foram somente consideradas em 50% do seu valor, por aplicação do n.º 3 do artigo 43.º do Código do IRS, tendo incidido sobre esse montante a taxa especial de 28%, prevista na alínea c) do n.º 1 do art.º 72º do CIRS, e resultado no pagamento do valor de €1.859.343,66 (imposto relativo a tributações autónomas), referente a essa alienação de ações à D... (RIT, p.23).

- A não ter constituído a sociedade D... - que a AT considerou ser apenas uma sociedade veículo, intermediária de transformação da natureza dos fluxos financeiros - ou a tê-la constituído sem a concomitante imputação de responsabilidades financeiras para com o sócio de uma magnitude idêntica às das acções transferidas pelo mesmo sócio, a carga fiscal seria consideravelmente superior, porque os valores recebidos pelo Requerente, que ascenderam na soma dos três períodos de tributação a € 11.852.503,17, sob forma de lucros distribuídos, seriam tributados como rendimentos de capitais, nos termos do disposto no artigo 5.º, n.º 2, al. h) do CIRS (RIT p. 24).

A AT, englobando esse montante considerado em apenas 50 %, por se tratar de lucros devidos por pessoas coletivas sujeitas e não isentas do IRC (n.º 1, do art.º 40º- A do CIRS), apurou um diferencial de imposto face ao apurado nas declarações de rendimentos modelo 3 de IRS (apresentadas pelo sujeito passivo) e nas simulações de IRS com englobamento em 50% dos referidos rendimentos de capitais (com base nas correções propostas pela Inspeção Tributária), uma soma dos três períodos de tributação a € 3.235.308,17 (RIT, pp. 27 e 45).

Segundo esse apuramento, o Requerente obteve com o referido encadeamento de actos e negócios, na soma dos períodos de tributação, de 2016 a 2018, uma vantagem fiscal de € 1.375.964,51 (=€3.235.308,17- €1.859.343,66) face ao encargo devido a título de mais-valias, se não tivesse estabelecido esse esquema – criação de sociedade, alienação de acções, recebimento do crédito do preço como reembolso de suprimentos, realização dos reembolsos ao longo dos exercícios posteriores, com base nos dividendos pagos pela sociedade de que era originalmente titular à sociedade criada de novo.

A opção por englobamento no rendimento do Sujeito A e não por retenção na fonte foi justificada pela AT por não estar a proceder a uma retroação mas uma reconstituição da operação negocial constituindo o SP A... como “ beneficiário efectivo da vantagem fiscal ilegal elisiva “, acrescendo o rendimento de capitais elidido ao rendimento global já declarado nas mods 3 respeitantes aos anos de 2016, 2017 e 2018» (RIT, p. 25).

Esta opção configura-se coerente com a escolha do Sujeito Passivo A como parte legítima (questão relacionada com a da substituição, tratada adiante).

Assim como não viola a ratio legis da opção entre cálculo do imposto por retenção ou englobamento (escolha da hipótese mais favorável para o contribuinte).

 

7.3. Quanto ao elemento intelectual

De acordo com o disposto no artigo 38.º, n.º 2, da L.G.T à data dos factos, tratava-se de saber se para além da verificação de um tratamento fiscal mais vantajoso, o mesmo foi alcançado como o intuito essencial ou principal do contribuinte. Ou seja, importava concluir se o meio utilizado tinha sido escolhido com a finalidade principal de “redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos”, porque apenas deveriam ser havidas como elisivas as transacções em que o objectivo de economia fiscal fosse manifestamente exclusivo ou principal.

Como tem sido diversas vezes realçado, designadamente no processo do CAAD n.º 173/2015-T: «A demonstração deste intuito principal (fiscal) pode, por isso, revelar-se complexa, e, na maioria das vezes, sê-lo-á, considerando as dificuldades inerentes à prova da vertente subjectiva (isto é, das motivações do sujeito passivo), o que, no limite, conduziria a uma “prova diabólica” ou impossível». (...) «Antes, relevará a motivação desses sujeitos, tal como é revelada em factos objectiva e concretamente apreensíveis, sem que tanto se confunda, obviamente, com a mera corporização, em documentos, de declarações de intenção. Ou seja, a prova do fim fiscal assentará, em conformidade com a concepção objectiva abraçada pelo artigo 63.º do C.P.P.T., em elementos de facto, objectivos, dos quais se retira ilação relativa à intenção do contribuinte».

A interpretação de que a prova exigida no âmbito da aplicação da CGAA não pode ser umaprova diabólica” foi também expressamente acolhida no Acórdão do STA, de 12/01/2022, no proc. 02507/15.6BEBRG.

No caso dos autos, os Requerentes alegam que a sucessão de atos e negócios jurídicos teve o objetivo manifestamente legítimo de agrupar as participações no capital de diversas sociedades, detidas (ou que era sua intenção vir a deter, após a constituição de sociedade com esse intuito) pelo Sujeito Passivo A, numa holding pessoal, permitindo-lhe alcançar alguns objetivos não fiscais que não obteria, segundo é seu entendimento, por outra via.

E contestam a conclusão dos Serviços de Inspeção Tributária de que a sociedade D... não apresentou indícios do exercício de uma atividade económica desde o momento da sua constituição (e até à inspeção) (cf. art 111.º do PPA), defendendo que a AT não cumpriu o ónus da prova que lhe cabia, nos termos do artigo 74.º da LGT, ao não provar que as motivações que orientaram o Sujeito Passivo A foram fiscais e não económicas.

Invocam, tal como o fizeram em audiência prévia sobre o projecto de RIT, factos que comprovariam a actividade desenvolvida pela D..., desde a sua constituição, consistente em prestação de serviços de consultoria e investimentos.

Esta argumentação foi analisada no RIT final, reiterando que «Na esfera da sociedade D..., esses dividendos obtidos da E..., foram os únicos rendimentos que essa sociedade obteve, entre 2015 e 2017 e a principal fonte de rendimento em 2018» [39] (p. 44), e que «A sociedade foi inscrita para o exercício da atividade de OUTRAS ACTIVIDADES CONSULTORIA PARA OS NEGÓCIOS E A GESTÃO (CAE 70220), constando somente na certidão permanente um objeto social mais alargado, constituído por: “A prestação de serviços de consultoria, gestão, planeamento estratégico e investimento de sociedades comerciais”. Conforme referido neste relatório, nos pontos II.3.3 A) e no ponto III.1.1 1) i) (Constituição e atividade da D... Lda), pela análise dos elementos contabilísticos da D... Lda, a mesma não foi dotada de meios físicos, humanos ou técnicos para que esta pudesse prosseguir o seu objeto social, nem tão pouco da liquidez necessária para efetuar os investimentos realizados ou almejados».

Analisando os elementos invocados em audição prévia como comprovativos de uma actividade económica autónoma por parte da D..., contrapõe-se, em síntese no RIT:

Quanto à argumentação quanto à prestação de serviços de consultoria pelo próprio Sujeito Passivo A, sócio e gerente da D... (o que justificaria a inexistência de recursos próprios da sociedade), o RIT verifica que se trata de serviços prestados a empresas de que o mesmo Sujeito Passivo A era também gerente e administrador, como é caso das sociedades X..., SA.

Realça-se que o contrato único apresentado para justificar essa prestação de serviços, é datado de 24/09/2018, reportando-se todavia à prestação de serviços desde 01/01/2018, convencionando os termos e condições da prestação de serviços àquelas entidades pela D..., retroativamente, constando desde logo, o reconhecimento de dívida no valor de €4.500,00, acrescido de IVA à taxa legal em vigor, correspondente a serviços de consultoria, gestão, planeamento estratégico e investimento, desde 01/01/2018 (ou seja de janeiro a setembro de 2018).

E, não obstante indicar que as facturas deveriam ser pagas nos 30 dias seguintes a contar da data da sua apresentação, o valor das faturas, no montante de €4.500,00 + IVA, emitidas em 24/09/2018, não foi pago até final de 2018. Acresce que se indica, que esses serviços seriam faturados trimestralmente, mas a alegada prestação de serviços do último trimestre de 2018, cujo valor iria perfazer €1.500,00 +IVA, não foi faturada a ambas as sociedades.

O RIT observou que: «É ainda de realçar que, não tendo a D...  outros recursos para além do trabalho do próprio sócio, nomeadamente humanos, o exercício da sua função de forma direta ou indireta nessas entidades ou participadas, revela-se similar, ficando assim comprovado que a interposição da D... não se traduziu num valor acrescentado, confundindo-se com a atividade do próprio SP, isto tanto quanto à gestão da D..., quanto às restantes participações. (p. 50/51)»

Considero as observações da IT fundadas já que a verificada interposição da D... com o fim de justificar a prestação pelo Sujeito Passivo A, pessoalmente, de serviços de consultoria a outras sociedades de que é também gerente ou administrador, constituiu uma inutilidade, e, no contexto analisado, aparenta configurar uma peça para justificar a construção de um esquema artificioso, já que a sua assinatura apenas em meados de 2018 pode indiciar reacção a inspecções tributárias iniciadas nesse ano.

Acerca de operações de investimento invocadas pelos Requerentes, como tendo sido realizadas em 2017 e 2018, e invocadas em audição prévia – e na reclamação graciosa – como demonstrando a actividade da D..., o RIT analisa: que de acordo com a análise feita à contabilidade nas ações inspetivas, a actividade e investimentos registados, são Aquisição de 6050 ações da E... SGPS por €13.287.076,14, em 2015 e de 2500 ações da E... SGPS por €433.571,59 a N..., em 2017 (conta 4151); Aquisição de participações da O..., no valor de €5.498,89, em 2018 (conta 4151); Prestação de serviços a 2 sociedades relacionadas com A... em 2018, pelo valor de €9.000,00 ao qual acresceu IVA (conta 722). E que não estão registados na contabilidade do sujeito passivo D... Lda- NIF..., nos anos em causa, quaisquer outros investimentos, empréstimos e fluxos financeiros ocorridos em virtude destes. Omissão essa que ajuda a reforçar, por um lado, que o interesse principal na constituição e uso da D... foi a operação tratada no PRIT e relacionada com a E...; e, por outro lado, que a transferência passiva de outras participações para a D... não traduz que esta tenha uma efetiva atividade económica relacionada com a gestão dessas participações.» (RIT p. 52).

Quanto à J..., o RIT observa que a quota de €12.500.00 da (actualmente) J... adquirida, em 8/5/2017, pela D... era detida pelo próprio Sujeito Passivo A, desde 24/02/2012, na (então designada) sociedade “Y..., Lda”, e que permaneceu gerente da sociedade alienante. 

Conclui que, através dessa operação, o sujeito passivo criou novamente crédito na sociedade, pela alienação das participações originariamente detidas em nome próprio (acima do seu valor nominal no caso da Y... Lda), operação esta que gerou, em IRS dos requerentes, apuramento de mais-valias, com sujeição a tributação somente em 50%, por se tratar de micro ou pequena empresa.

Quanto às 10.724 acções do Facebook, que os Requerentes dizem ter sido adquiridas por D... Lda, em 31/12/2018, «Em relação (extracto de títulos do Banco K...), pelo valor de €1.261.123,67, o RIT refere um contrato assinado entre A... e a D... Lda, na mesma data, de compra e venda de ações do Facebook, em que essas 10.724 ações teriam preço de compra e venda de €1.241.554,94», o RIT diz que apesar desse contrato prever que o preço seria pago em 31/12/2018, através de instrução irrevogável de transferência bancária da sua totalidade, emitida pela compradora, o fluxo financeiro não está refletido no extrato bancário apresentado, nem na contabilidade, nem está refletido qualquer empréstimo subjacente (RIT pp. 51 e 52).

A alienação das ações do Facebook terá sido reflectida na modelo 3 do exercício de 2018, apesar de não ser relevada essa entidade em concreto, foi reportado à data do contrato de 31/12/2018, declarado um conjunto de alienações cujo valor perfaz €1.241.554,94, com valor de realização inferior ao da aquisição efetuada meses antes (em maio e agosto de 2018), portanto com apuramento de menos-valia, não sujeita a tributação.

A IT acentua ainda que da análise do balancete analítico de 31/12/2018, os meios financeiros líquidos à data eram de €10.239,34 (com remissão para um anexo 2), portanto insuficientes para efetuar tal aquisição na data e nos termos indicados.

Em relação aos investimentos efetuados em 2019, o RIT considerou que esse exercício não está compreendido no âmbito da análise em causa, pelo que não foi aferida a situação patrimonial e financeira da empresa para efetuar os mesmos e a forma como foram realizados, nem a mensuração e valorização na contabilidade, designadamente, das ações do Facebook. Mas refere-se que, tendo sido indicado pelo sujeito passivo que fora, ainda em 2018, por “Subscription Form” de 15/10/2018, efetuada a subscrição de 14.336 unidades de participação no Fundo P... ..., constando nesse documento o valor destas de €14.336.000,00 (cita documento 6 do exercício do direito de audição do SP, apresentado no anexo 11), o mesmo não consta da contabilidade, nem em divulgação no anexo A da IES, do exercício de 2018 (RIT, p. 54)

O RIT final concluiu confirmando que o interesse principal na constituição e uso da D... foi a operação tratada no PRIT e relacionada com a E..., e, por outro lado, que a transferência passiva de outras participações para a D... não traduz que esta tenha uma efetiva atividade económica relacionada com a gestão dessas participações.

Ou seja, a Inspecção Tributária teve em conta a fundamentação invocada pelos Reclamantes mas manteve a posição de que, dada a estrutura da sociedade D..., e ausência de reflexos na actividade económica desenvolvida, os negócios apontados até 2018 ou eram aparentemente inúteis ou mesmo quando apresentando um valor considerável, para além de insuficientemente documentados e/ou contabilizados, e havia casos de comportamento semelhante ao materializado na alienação de acções da E... SGPS.

 

Considero que os factos e indícios descritos no RIT, e também os resultantes de documentação e informação a que o tribunal teve acesso confirmam a tese da inspecção tributária, na medida em que:

- As aquisições invocadas pelo Sujeito Passivo A não demonstram que a D... tenha sido criada e fosse vocacionada para o desenvolvimento de concentração de investimentos pessoais com intuito principal de desenvolver uma actividade, própria e separada, de investimentos;

- Os investimentos que o Sujeito Passivo A almejava poderiam ter ocorrido sem que a DD... adquirisse a titularidade das acções da E... (já a tinha) mas, a ter considerado fundamental separar a sua actividade “mais pessoal” da E..., iniciando a nova sociedade com a detenção de acções antes detidas por ele na E..., a compra deveria ter sido feito com recursos efectivamente a ela afectos e não virtuais;

- A mobilização de grande capacidade de investimento costuma ser realizada através de instrumentos suscetíveis de concentrar grande volume de capitais e não uma sociedade por quotas, neste caso substancialmente semelhante a sociedade unipessoal, e com capital social de 1000 euros.

- Existe visível desproporção entre o montante distribuído ao Sujeito Passivo A pela D... e decorrente de lucros distribuídos pela E... e a concretização genuína da intenção desta se afirmar como uma “holding” pessoal, visando uma concentração de diversificados e vultuosos investimentos;

- Antes os investimentos invocados – pelo menos os realizados pela D... até 2018, e a esses nos atemos – indiciam tratar-se de uma repetição do mecanismo imputado à alienação das acções da E... .

Ainda que os investimentos da D... tenham aumentado a partir de 2019 e esta tivesse adquirido outras características, não pode ser desconhecido, que nessa altura os Recorrentes sabiam já estar na mira da AT que começou por inspecionar a D... logo a partir de 2018 (RIT II 3.3 e doc. 27 junto pelos requerentes) retirando credibilidade ao afã investidor invocado a partir dessa data por esta sociedade.

A explicação dos Requerentes (cf. PPA, art. 120) de que «(…) estas participações acima referidas, adquiridas em 2017 e 2018, acabaram por apenas ser refletidas nas contas de 2019 da D..., sendo que, à semelhança do sucedido aquando da aquisição da participação na E..., o respetivo preço acordado não foi pago de imediato, tendo o consequente crédito, também com referência a estas operações, sido reconhecido como suprimento do Sujeito Passivo A à sua holding pessoal», é, precisamente, na minha interpretação da situação, confirmativa da tese da AT.

Por outro lado, o que o RIT acentua, em vários passos, e se confirma pela articulação com documentos acedidos pelo tribunal, é o contexto de actuação do Sujeito Passivo A –administrador da E..., SGPS, de que detém capital  agora indirectamente, e também da C..., SA, -  e o facto de a única liquidez existente na D... resultar da distribuição de dividendos da E..., SGPS cujas acções a sociedade por quotas adquiriu sem possuir recursos próprios.

Ou seja, apesar dos investimentos invocados, o acento tónico no RIT foi posto no facto de a D... não apresentar meios para actividade própria, confirmando-se a interpretação de que a sua criação foi fundamentalmente um expediente para alcançar uma vantagem fiscal, substituindo tributação de rendimentos de capitais por tributação incidente sobre rendimentos de mais-valias e que as circunstâncias comprovavam que o objectivo dominante fora a poupança fiscal alcançada com a sucessão de operações já descrita supra em 7.1.

E, em última instância, o facto determinante para a aplicação da cláusula geral antiabuso aos exercícios de 2016 a 2018, residiu na configuração do negócio de compra e venda de acções da E..., que visou escamotear a tributação, na esfera do sócio, dos dividendos distribuídos por esta sociedade, por via da transformação artificial em reembolsos da dívida imputada à D... . 

 

7.4. Quanto ao elemento normativo

O elemento normativo verifica-se quando se identifica utilização de actos ou negócios jurídicos com abuso de formas jurídicas, ou seja, quando ocorre desconformidade entre o resultado obtido através do acto abusivo e a ratio legis que disciplina a matéria.

No caso dos autos, tratar-se-ia da criação expressa de uma sociedade por quotas, com capital social muito reduzido, titulado pelo Sujeito Passivo A, cuja finalidade predominante, essencial, foi servir de receptáculo de dividendos distribuídos por uma outra sociedade, por acções, SGPS, para isso recorrendo à alienação de 60,5 % do capital da SGPS à nova sociedade, por quotas, detidas exclusivamente por si, e que em vez de pagar o preço das acções (seria difícil, com 1000 euros de capital e sem outros recursos financeiros) passou a ser devedora de “suprimentos” ao seu único titular e gestor.

Na verdade o artifício resulta de todo o circunstancialismo, globalmente encarado:

Trata-se de actos e negócios realizados quase simultaneamente, e à pressa, em Dezembro de 2015 - decisão de distribuição de montante elevado de lucros da sociedade por acções; criação de uma sociedade por quotas; alienação, por soma também elevada, das participações na sociedade por acções; distribuição imediata de parte dos dividendos à nova entidade - seguidos não de pagamento do preço das acções ao sujeito passivo A mas de reembolsos, em exercícios posteriores, de forma faseada mas frequente, a título de suprimentos (não registados em contabilidade com essa natureza mas como dívida ao sócio, como se reconhece artigos 219 a 221 do PPA).

Acresce que o Sujeito Passivo A manteve, através da D..., a detenção indirecta das acções que alienou, e o cargo anterior de administrador na E...[40], e que os reembolsos não apresentam qualquer relação com negócios efectuados fruto de rentabilização dos supostos suprimentos (que, por natureza, deveriam ter carácter duradouro, visivelmente destinados ao desenvolvimento da empresa). 

Assim, considero legítima porque lógica a conclusão da Requerida na Resposta: «concluiu-se no RIT que, no caso em apreciação, a D..., que não dispõe de património, meios humanos e estruturais próprios, serviu apenas para receber os lucros pagos pela E... SGPS e permitir a sua retirada pelos accionistas, agora transformados na figura de recebimento de dívida». 

Verifica-se a mera alteração de uma titularidade jurídica directa por uma titularidade indirecta, que permitiu um artifício, a realização de uma finalidade essencialmente fiscal, evitando a tributação dos dividendos, objectivo visado na lei fiscal (alínea h) do n°2 do artigo 5° do Código do IRS) e que seriam pagos ao Sujeito passivo A, conforme deliberação de distribuição aos sócios de 14/12/2015, mas que vieram a ser pagos, a partir de 28/12/2015, à sociedade criada em 16/12/2015, e que veio a dirigir esses fluxos financeiros ao Sujeito Passivo A, sob a forma de reembolso de crédito criado com a aquisição de acções à sociedade distribuidora dos lucros, com isso se concretizando o esquema elisivo (RIT, p. 58).

 

7.5. Quanto ao elemento sancionatório

Resulta este da verificação cumulativa de todos os outros elementos, produzindo-se a ineficácia, no âmbito tributário, dos actos ou negócios considerados abusivos e “efectuando- se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas” (parte final do n.º 2 do artigo 38.º da LGT).

O RIT concluiu (p. 44): «De um total de €11.855.766,08 de lucros ilíquidos distribuídos pela E...  à D..., entre 2015 e 2018, A... recebeu €11.852.503,71, entre 2016 e 2018, sem a tributação inerente visto que estes fluxos financeiros, com a interposição da referida sociedade, chegam ao acionista A... (que passou de accionista direto da E..., para indireto), não como dividendos sujeitos a tributação em IRS nesses exercícios, mas unicamente sob a forma de reembolso de créditos, recorrendo ao referido esquema elisivo».

Pelo que, face à verificação dos factos de depende a aplicação da cláusula geral antiabuso prevista no artigo 38.°, n. º 2, da Lei Geral Tributária (LGT), com intencional transformação de dividendos no pagamento de um crédito, considerou–se que o pagamento do preço de aquisição das ações deveria assumir a natureza de dividendos, sujeitos a IRS nos termos da alínea h) do n.º 2 do art.º 5º do CIRS, conforme referido em III.1.1 2), a tributar com essa natureza, nos  exercícios de 2016, 2017 e 2018.

Esta conclusão configura-se justificada, consiste na desconsideração da interposição da sociedade D... e é idêntica à que se verificou, por exemplo, no caso decidido no CAAD, no proc. 173/2015-T, onde, perante situação análoga embora com contornos distintos[41], se concluiu que a ineficácia estatuída como sanção no art.º 38.º da LGT implicava a reconstituição da situação que, para efeitos tributários, se verificaria, caso a entidade requerente não tivesse praticado a operação desconstruída pela aplicação da cláusula anti-abuso e, como consequência desta, considerada ope iuris ineficaz, recusando a obtenção das vantagens fiscais auferidas e considerando a aplicação aos dividendos da tributação em IRS.

Os Requerentes contestam esta aplicação do elemento sanção, designadamente, invocando que a AT não demonstrou quais seriam as formas típicas e normais alternativas às praticadas, até porque - como invocam também repetidamente – os Requerentes pagaram mais-valias pelos ganhos obtidos com a venda das acções à D..., apesar de não terem recebido o preço.

 

Mas a resposta da IT está em vários pontos do RIT, apesar de os Requerentes não concordarem com ela.

A “forma normal” de actuação teria sido os Requerentes receberem os seus lucros da sociedade E..., SGPS, e aplicarem-nos, eventualmente, em investimentos feitos através de uma outra sociedade. Ou então, alienarem as acções a uma nova sociedade ou uma já existente, dotando a sociedade de meios financeiros e recebendo o preço das mesmas, que utilizariam como lhes aprouvesse, eventualmente através dessa nova sociedade.

A invocação pelos Requerentes, no PPA, de que os objectivos que pretendiam apenas seriam alcançáveis com a criação da D... esquece que o que seria uma operação considerada típica e normal, em casos em que se pretende apenas alterar a titularidade directa de elementos do património individual, com transferência para uma sociedade criada pelo detentor desses elementos, seria a transferência das acções da E..., para a D... como entradas em espécie para a realização do capital social.

 

Quanto à também invocada liberdade de iniciativa económica para criar formas de negócios, o que está em causa na aplicação da CGAA, é, precisamente, «a procura de uma regra de concorrência para as relações existentes entre o Direito Fiscal·- cujas consequências não podem depender da vontade do sujeito passivo – e o princípio da liberdade jurídica de conformação negocial – a autonomia privada, que constitui uma regra básica no Direito Civil e tem de ser respeitada pelo Direito Fiscal » (J.L. Saldanha Sanches, Manuel de Direito Fiscal, 3.ª Edição, 2007, Coimbra Editora, págs. 155 e 156).

Como disse o TCAS no proc. 04255/10, em 15/02/2011: «(…), não estando, nem podendo estar em causa a liberdade de escolha do contribuinte na conformação dos seus negócios, ou, dito de outro modo, não estando em causa o exercício da sua autonomia privada, o que se limita é a possibilidade de a vontade do contribuinte ser relevante no que respeita ao grau da sua oneração fiscal (…).

E, como recordado pelo STA, no acórdão de 16/02/2022, proc. 299/13.2BEPNF 0460/17: «(…) a administração tributária ao corrigir os efeitos fiscais do negócio declarado pela impugnante e ao conformar o negócio declarado, com a realidade material e jurídica subjacente, fazendo-o coincidir com o negócio corrigido que respeita a realidade material e económica subjacente ao negócio declarado não faz qualquer interpretação limitativa do princípio constitucional da liberdade económica da impugnante.»

Os raciocínios dos Requerentes sobre as alternativas economicamente equivalentes para obtenção de recursos para financiamento da invocada holding pessoal (invocando normalidade de utilização de empréstimo dos sócios em vez de financiamento bancário, apesar de admissão da dificuldade de obtenção de tal montante por essa via -PPA, arts.58, 81, 21, 183.º) [42], não escondem as vantagens fiscais retiradas da opção que foi realmente seguida, nem quanto artificiosa se revela a criação de uma holding pessoal, ambiciosa, sob forma de sociedade por quotas, empresa criada “na hora”, com capital de 1000 euros, com uma enorme dívida inicial, para além de todo o contexto já descrito.   

E questão fundamental para a avaliação do caso, é que o sistema fiscal distingue rendimentos derivados da alienação onerosa de valores mobiliários e rendimentos derivados de lucros disponibilizados a sócios, dando-lhes qualificação e tratamento diversos, de acordo com o regime legal previsto no CIRS para rendimentos de mais-valias (categoria G) e rendimentos de capitais (categoria E), respectivamente.

Os Requerentes insistem em que pagaram IRS pelas mais-valias declaradas mas a AT calculou a diferença de encargos demonstrando a importância da vantagem fiscal que resultou da opção construída.

É normal que os sujeitos económicos venham a usar os rendimentos auferidos, incluindo os obtidos com mais-valias, na prossecução de uma qualquer actividade, podendo, no exercício de livre iniciativa económica, recorrer a sociedades já existentes ou criadas de novo, lançando novas acções, ou desenvolvendo e diversificando actividades já prosseguidas. 

O que já configurará artifício é a montagem de um esquema negocial consistente em iniciar a actividade de uma nova empresa, sem capital adequado e, através da alienação da titularidade de acções numa outra sociedade que distribui dividendos para a nova sociedade, que não tem recursos para pagar as acções, criando uma dívida que será reembolsada com os dividendos recebidos, e assim permitindo alterar a qualificação de rendimentos, que teriam sido auferidos como dividendos, em reembolso de empréstimos, e decorrendo de todo o contexto global que a finalidade primordial foi a de poupança fiscal.

Os factos descritos no RIT e em todo o processo criam a convicção de que foi isto que aconteceu.

Apesar da reivindicação de grandes investimentos (contemporâneos ou posteriores às inspecções) efectuados pela sociedade D..., é patente, (para além das dúvidas sobre a respectiva contabilização), que os recursos aplicados nesses investimentos seriam então os dividendos distribuídos pela E... SGPS a uma sociedade, por detenção de acções que foram adquiridas segundo as operações que permitiram alterar o fluxo de pagamento de dividendos em circunstâncias que indiciam que a razão principal e predominante foi a poupança fiscal.

Também não se mostra convincente a argumentação de que o Sujeito Passivo A não poderia adivinhar o risco que corria - saber se a sociedade cujas acções alienou iriam ser rentáveis - e que não tinha poder efectivo para decidir sobre a distribuição futura de dividendos quando se tratou da aquisição de acções, por um preço tão elevado, [43] de uma sociedade que conhecia bem e de que era, e se manteria, administrador.

Nem merece credibilidade a tentativa de normalização da solução de concessão de suprimentos pelos sócios como resposta à subcapitalização da nova sociedade (art. 107.º do PPA). Antes se dirá que a transformação em suprimentos de um crédito ao pagamento do preço de € 13.287.076,14, devido pela aquisição de acções por uma sociedade por quotas, criada com 1000 euros de capital (e expressamente criada para aquela aquisição), é, em si, demonstrativa da ficção da situação.

O que resulta dos autos - RIT, PPA, Resposta, Processo administrativo, documentos juntos pelos próprios Requerentes, peças diversas – e é evidenciado por toda a factualidade referente à relação entre um pequeno número de sócios e sociedades criadas, visível na composição de capital e evolução da própria E..., que a sociedade por acções tinha, directa ou indirectamente, um núcleo de participantes, com forte relação entre si, que se mantiveram administradores ao longo do tempo, para além das ocorrências... (cf quadros do RIT sobre evolução de capital e sócios, assim como certificados das sociedades envolvidas).

Como em vários casos já apreciados no CAAD, trata-se, embora com cambiantes diversos[44], de situação também análoga à descrita e decidida em 14/11/2017, no processo n.º 162/2017-T, em que se considerou que a AT fez um uso legítimo da margem de apreciação que lhe é reconhecida pela CGAA do artigo 38º nº 2, «lançando mão de uma abordagem holística e multifatorial da transação, que lhe permitiu ver através das formas (look trough”)» concluindo que a dívida constituída a favor de acionistas visava na realidade, “consumir” os resultados que, evidenciando capacidade contributiva e rendimento real, deveriam ter sido distribuídos e não o foram, desse modo diferindo a respetiva tributação.

Nesse processo explicou-se ainda: «Ao abrigo dos poderes de requalificação ou recaracterização que lhe são delegados pela CGAA do artigo 38º nº 2 da LGT, a AT considerou que se tratava aí, objetivamente, de dividendos construtivos (constructive dividends), devendo ser tributados como tais. Note-se que os chamados dividendos construtivos ou disfarçados ocorrem com maior frequência nas situações em que, em virtude da estrutura do capital das sociedades em presença, as negociações entre estas e os seus acionistas assumem uma maior informalidade. Deste modo, a AT procurou adequar a realidade fiscal à substância económica da transação. Um dos múltiplos exemplos de escola da doutrina da transação-farsa (sham transaction doctrine) é precisamente o da uma distribuição de dividendos através da constituição de um empréstimo junto dos acionistas, operação que é designada, nos meios dedicados ao estudo do planeamento fiscal agressivo, como transação de descolamento de dividendos (dividendstripping transaction). A mesma é uma de muitas modalidades estudadas de dividendos construtivos ou disfarçados».

 

Também na decisão de 05/08/2018, proc. 324/2017-T, em situação similar, se observou, quanto ao elemento meio: «estamos, no presente caso, perante a utilização de um esquema há muito identificado como PFA e que goza de considerável difusão (…) uma sucessão de atos, contratos ou negócios válidos em si mesmos (perante o direito privado, o direito penal tributário e o direito da União Europeia) praticados pelas empresas ou entidades do grupo que, vistos de forma global (e não de modo autónomo) se encontram coordenados entre si, constituindo esquemas ou montagens pré-planificadas para a obtenção, de modo exclusivo ou predominante, de uma vantagem fiscal», considerando que «a via "clássica" adotada implicou pois a interposição de uma holding (a H...), criada para o efeito, entre a pretendida distribuição de lucros e os seus beneficiários, de modo a descaracterizar esta distribuição, fazendo-a surgir como amortização de mútuo, com ausência de juros, sendo tudo sempre decidido pelos mesmos interessados». E quanto ao elemento resultado: «Torna-se patente que, com o esquema de PFA montado que "transformou" lucros em amortizações de mútuo, foi afastada a tributação sobre os lucros que ocorreria com a respetiva disponibilização, uma vantagem de natureza fiscal que não seria obtida sem tal esquema».

 

Concluindo, eu teria, apreciando o Pedido quanto à legalidade da liquidação, decidido que a Inspecção Tributária, no RIT final, apresentou suficiente fundamentação sobre a reunião dos pressupostos exigidos no artigo 38.º, n.º 2, da LGT, na redacção vigente ao tempo dos factos objecto das inspecções, ou seja a anterior à Lei nº32/2019, de 03/05.

Fundamentação essa que foi expressamente aprovada pela dirigente máxima da AT e em que se baseou a liquidação.

 

8. Outras questões suscitadas no Pedido

8.1. Sobre a obrigação tributária - entidade a quem deve ser dirigida a liquidação

Os Requerentes defendem que as liquidações de IRS não deveriam em qualquer caso ser-lhes exigidas porque, incidindo sobre rendimentos qualificados como de capitais, o seu pagamento deveria ter sido efetuado pela entidade devedora dos rendimentos, no momento da sua colocação à disposição, nos termos da alínea a) do n.º 1 dos artigos 71.º, n.º1, alínea a), e 101.º, n.º 2, al. a) do CIRS e artigo 20.º e ss. da LGT), razão que por si conduziria à anulação da liquidação.

Com efeito, antes da previsão expressa desta matéria no artigo 38.º pela Lei n.º 32/2019, de 03/05, uma controvérsia frequente nos processos de aplicação da CGAA era a questão da responsabilidade tributária em casos em que “da construção ou série de construções tenha resultado a não aplicação de retenção na fonte com caráter definitivo, ou uma redução do montante do imposto retido a título definitivo”.

A nova redacção do artigo 38.º da LGT, com aditamento dos n.ºs 4 e 5, é susceptível de levantar ainda dúvidas, como evidenciado no comentário de Tomás Cantista Tavares em Cadernos de Justiça Tributária, n.º 29, pp. 33 a 36.

Este Autor vê na nova redacção a consagração de uma responsabilidade solidária, qualificando substituído e substituto como responsáveis originários e imediatos.

Contudo, ao acentuar que a responsabilidade do substituto depende do conhecimento da construção artificiosa, parece considerar que a regra geral que derivaria do n.º 4 do artigo 38.º é a responsabilidade do substituído[45]

 

Diversa jurisprudência defendia, que, na aplicação da parte final do artigo 38.º, n.º 2, da LGT (redacção da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro) - «efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas» -, a eliminação das vantagens fiscais deveria visar o destinatário da aplicação desta cláusula, aquele em cujo património se viriam a produzir os efeitos da aplicação, que não podia deixar de ser quem usufruiu das vantagens fiscais, afastando a possibilidade de entidade terceira ser responsabilizada pelo pagamento das quantias correspondentes às vantagens fiscais indevidas invocadas pela AT (por todas, cf. decisão CAAD no proc. n.º 379/2014-T).

Em outros casos, defendia-se a interpretação de que os efeitos fiscais decorrentes da aplicação da cláusula anti-abuso se estendiam não só aos beneficiários da vantagem fiscal – os accionistas cujas vantagens patrimoniais obtidas foram qualificadas para efeitos fiscais como dividendos – mas também a um terceiro na qualidade de substituto tributário, a entidade que procedeu ao pagamento daquelas vantagens. Isso não constituiria inconstitucionalidade material por violação do princípio da capacidade contributiva inferido nos termos dos artigos 13.º e 104.º, da CRP, estando aquela extensão de efeitos prevista no próprio artigo 38.º, n.º 2, da LGT e não traduzindo uma medida excessiva para alcançar a tributação dos acréscimos patrimoniais indevidamente recebidos pelos respectivos beneficiários (neste sentido, proc. n.º 441/2018-T).

E também se encontram divergências no caso de criação pelos sócios de sociedade veículo que funcionasse como intermediária na transformação da qualificação de rendimentos distribuídos por outra sociedade, resultando em tratamento fiscal mais favorável, sobre qual dessas sociedades seria a entidade substituta a que se deveria exigir a obrigação tributária (cf. por todos, proc. n.º 258/2013-T).

 

Sendo várias as possíveis dúvidas, cabe porém ter em conta a decisão de 26 de Maio de 2022, do STA, em Pleno da Secção de Contencioso Tributário, no processo n.º 0138/20.8BALSB que, creio, as resolve aceitando a legitimidade de diferentes soluções, desde que, acrescente-se e é assim que interpretamos, tenha havido garantias de participação dos sujeitos envolvidos nos procedimentos administrativos em causa.

A referida decisão do Pleno, foi tomada em apreciação de oposição de decisões do CAAD, nos processos 788/2019-T e 363/2016-T.

Analisando a questão de direito, reconheceu-se que está em causa em ambos os casos o segmento da norma que prescreve sobre os efeitos da aplicação da CGAA - «…efetuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas») - e saber se deve ser interpretado no sentido de que o destinatário da aplicação da CGAA é quem estava obrigado a reter o imposto ou quem obteve a vantagem fiscal.

 

Face ao acórdão arbitral fundamento que entendera que aquele segmento normativo devia ser interpretado no sentido de que as consequências da aplicação da CGAA devem recair sobre quem aufere as vantagens fiscais, o STA, interrogou-se sobre se a referida disposição, ao estabelecer como consequência necessária da aplicação da CGAA que não sejam produzidas as vantagens fiscais, é incompatível com solução que não redunde na imposição da tributação omitida a quem obteve essas vantagens.

E concluiu que a «parte final do n.º 2 do artigo 38.º da Lei Geral Tributária deve ser interpretada no sentido de que da aplicação da CGAA também pode resultar a tributação do substituto legal, de acordo com as regras gerais em matéria de substituição tributária. Não obstando a tal que o substituto não seja o beneficiário das vantagens»[46]

Poderá dizer-se que o Acórdão, ao considerar que «A pergunta poderia ser assim formulada: a parte final do n.º 2 do artigo 38.º da Lei Geral Tributária, ao estabelecer como consequência necessária da aplicação da CGAA que não sejam produzidas as vantagens fiscais, é incompatível com solução que não redunde na imposição da tributação omitida a quem obteve essas vantagens?», decidiu pela legitimidade também dos substitutos como uma solução resultante da interpretação mais adequada da lei, observando: «A resposta é negativa. A expressão só se incompatibiliza mesmo com uma solução legislativa que não se traduza na eliminação da vantagem fiscal em si mesma. Que, no caso, se traduz na imposição da tributação omitida».

Ou seja, esta interpretação em Acórdão do Pleno do STA ao reconhecer também a legitimidade dos substitutos pressupõe que a outra solução, legitimidade dos substituídos, também decorria da lei, e seria até a mais evidente, embora não a única, atendendo à ratio legis.

Assim, entendo que no caso presente, em que os Requerentes, para além de terem sido os beneficiários das vantagens fiscais auferidas, intervieram no respectivo procedimento administrativo[47], a opção da AT em ter efectuado a liquidação relativamente aos substituídos não padece de ilegalidade.

 

9. Da declaração de mais-valias, pagamento de imposto e enriquecimento do Estado

Os Requerentes invocam que, tendo pago IRS referente a 2015 em que incluíram rendimento obtido com mais-valias derivadas de alienação de acções à D..., e referindo os serviços de IT que “A requalificação dos originários rendimentos de mais-valias/categoria G, provenientes das operações consideradas elisivas, em rendimentos de capitais/categoria E, considerados normais, determinará a anulação dos primeiros, declarados na modelo 3 do IRS, do período de tributação de 2015”, «foi com   surpresa que constataram que os actos tributários sob escrutínio não consideraram tal aspeto» e que as liquidações adicionais de IRS a serem emitidas na sequência da referida acção inspetiva teriam subjacente um acerto/compensação face ao montante de IRS, que havia sido pago por referência ao ano de 2015, a título de mais-valia, € 1.859.343,66, pela venda da sua participação social na E... à D... (arts. 306º e ss do PPA)

Em suma, os Requerentes defendem ter pago o imposto que consideram ser o devido, referente a 2015, mas contestam as liquidações referentes a 2016, 2017 e 2018 pedindo a simultânea anulação do primeiro.

Já a AT defendeu que não poderia desde já proceder a um acerto referente ao ano de 2015, porque a anulação de liquidação referente a esse exercício apenas poderá ser decidida se se concretizar o pagamento das liquidações referente aos anos de 2016, 2017 e 2018.

Com efeito, trata-se de questões distintas por se referirem a exercícios diferentes e por só haver lugar a revisão da liquidação referente ao exercício de 2015 no caso de os actos tributários impugnados, referentes a anos posteriores, serem considerados legais.  

 

Assim, concluo que teria considerado totalmente improcedente o Pedido de Pronúncia Arbitral.

Lisboa, 14 de Fevereiro de 2023

 

A Árbitro

 

Manuela Roseiro

(Texto redigido de acordo com as regras ortográficas em vigor antes do último Acordo Ortográfico, excepto no caso de transcrições).

 

 

 

 

 

 

 



[1] Que dispõe o seguinte: Artigo 40.º-A Dupla tributação económica - 1 - Os lucros devidos por pessoas coletivas sujeitas e não isentas do IRC são, no caso de opção pelo englobamento, considerados em apenas 50 % do seu valor

[2] Recorde-se que se considerava que as SGPS, enquanto sociedades vocacionadas para a detenção de participações sociais e com o seu regime jurídico consagrado pelo DL 495/88, de 30-12-1988, exerciam uma atividade económica indireta tal como se enunciava no seu preâmbulo: "Reduz-se também, de forma sensível, o montante relevante para efeitos de qualificação da participação como forma indireta de exercício de atividades económicas. Com esta redução pretende-se atribuir tal qualificação a participações que, não podendo ser consideradas «participações de controlo», uma vez que não conferem o domínio sobre a sociedade participada, não se traduzem, no entanto, numa mera aplicação de capitais, assumindo antes uma presença e intervenção ativas, como sócias da referida sociedade participada". Hoje, a detenção de participações sociais é permitida a qualquer sociedade, aplicando-se a todas, verificados os respetivos pressupostos, o denominado regime fiscal da "participation exemption", nos termos do disposto no artigo 51.º do CIRS, o que, de resto, levou à revogação do artigo 32.º do EBF que consagrava o regime mais favorável, nomeadamente pela suscetibilidade de eliminação da dupla tributação económica dos lucros distribuídos, mas exclusivamente para as sociedades que tivessem a natureza jurídica de SGPS.

 

[3] Tal como se retira dos diversos despachos dos Diretores de Finanças em Diretores Adjuntos, dando-se como mero exemplo o Despacho 13609/2022, de 22 de novembro, da Diretora de Finanças do Porto, em substituição, que delega, de entre as competências próprias, "o sancionamento dos relatórios da inspeção tributária" no diretor adjunto que tutela a inspeção tributária (ponto 4.8).

[4] Isto é, quem sancionou as conclusões do Relatório foi o Diretor da Unidade dos Grandes Contribuintes e não a Diretora-Geral. Esta exerceu a sua competência legal e esgotou-a na autorização para a aplicação da cláusula geral anti-abuso, ainda que se admita que ela não o poderia fazer sem o RIT estar sancionado pelo órgão competente. Foi o que, a final, se verificou.

[5] Como antes se referiu, o RIT subiu à Diretora-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira exclusivamente para ela, nos termos do n.º 3 do artigo 63.º do CPPT, autorizar os órgãos competentes a aplicar a CGAA, não fazendo qualquer sentido o despacho do Diretor de Finanças de Lisboa naquele proferido na parte em que se refere: "Remeta-se à consideração superior da Exm.ª Senhora Diretora-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) para autorização da liquidação do(s) imposto(s)". Até porque entre a data do seu despacho e a data do despacho da Diretora-Geral, verifica-se o sancionamento das conclusões do RIT pelo Diretor da UGC, a entidade legalmente competente. Com efeito, verificado o facto tributário e constituída a relação jurídica tributária, ninguém tem de autorizar a liquidação do imposto. A liquidação do imposto é uma consequência ex lege da verificação do facto tributário. O que a lei determina é que um Relatório de Inspeção Tributária onde venha proposta a aplicação CGAA deve subir ao diretor-geral da Autoridade Tributária para este autorizar (ou não) a aplicação daquela - cfr. n.º 7 do artigo 63.º do CPPT. A autorização, pelo diretor-geral, da CGAA tem por efeito específico requalificar o facto tributário e, consequentemente, permitir que o imposto seja liquidado em conformidade com essa requalificação.

[6] Decisões arbitrais n.ºs 123/2012-T, de 09/05/2013 e 124/2012-T, de 06/06/2013.

[7] Aliás, se tivesse, efeitos suspensivos da caducidade, teria necessariamente de ser notificado ao contribuinte por razões de controlo e de segurança e certeza jurídicas, o que o artigo 63.º do CPPT não prevê, posição (a da não notificação do início do procedimento) que, de resto é criticada quase unanimemente pela doutrina.

[8] Dizemos "tendem" porque há vozes dissonantes e com motivação próxima de poder ser qualificada como concludente. Ver, Revista Eletrónica de Fiscalidade da AFP, (2021) Ano III, n.º 1, de Ana Isabel Maia, Das Questões Inerentes ao Procedimento de Aplicação da Cláusula Geral AntiAbuso, pp. 5/8.

[9] Neste sentido, A Aplicação da Cláusula Geral Anti-Abuso pela Jurisprudência Nacional, de Ana Cristina Teixeira Lopes, Dissertação de Mestrado em Direito Fiscal, Universidade Católica do Porto, Maio de 2016, pp. 8/11.

[10] Ver, em  Análise da cláusula geral antiabuso em Portugal, à luz da lei n.º 32/2019, de 3 de maio  de Paulo Sérgio de Sousa Magalhãe Patrícia Anjos Azevedo , in Cadernos de Direito Actual, n.º 15, "Neste contexto, e conforme ensina ANTÓNIO FERNANDES DE OLIVEIRA, a CGAA Portuguesa «não é umais do que uma norma de sobreposição sobre todo o ordenamento fiscal, que permite, verificadas as condições e requisitos que consagra, alargar a incidência tributária desse ordenamento, ou diminuir o recorte negativo ou exclusões de incidência operadas nesse ordenamento»".

 

[11] “Nova redação e novo contencioso da cláusula geral anti abuso no direito fiscal – art.º 38.º da LGT e art.º 63.º do CPPT”, in Cadernos de Justiça Tributária, n.º 29, Maio – Setembro 2020.

[12] Pode defender-se que a nova redacção descreve de forma mais ampla “quaisquer construções que sejam realizadas com abuso das formas jurídicas ou que não sejam consideradas genuínas”. Mas se abrange expressamente na sua letra “esquemas ou operações desprovidas de razões económicas que reflictam a sua substância económica”, permanecerá sempre alguma subjectividade em torno de conceitos como “razões económicas válidas. Inovação será a desnecessidade de identificação de uma vantagem fiscal como finalidade principal, bastando-se com que seja uma das finalidades. (cf. Jéssica Varela dos Santos, relatório estágio de Mestrado, U. Coimbra, Setembro 2019).

[13] Citando os Acórdãos proferido pelo STA em 2011.11.16, no proc. 0723/11, e no mesmo sentido os Acórdãos proferidos em 2013.09.11, no proc. 01138/12, em 2014.06.18, no proc. 01942/13, em 2015.05.20, no proc. 01021/14, em 2016.10.12, no proc. 0427/16, em 2020.01.08, no proc. 02546/08.3BEPRT 0192/18, em 2020.09.16, no proc. 01460/06.1BEPRT, em 2020.09.16, no proc. 01438/16.7BELRS 01386/17, em 2020.11.18, no proc. 0608/13.4BEALM 0245/18, e em 2021.01.13, no proc. 0129/18.9BEAVR).

[14] Como ressalta da utilização do advérbio nomeadamente, a alternativa que inclui a apreciação da liquidação não se restringe aos casos de vícios procedimentais, em que acrescem as razões invocadas.  

[15] Por todos, Jorge Lopes de Sousa, CPPT anotado, I vol. p 127, e Acórdão do STA (Pleno) de 3/06/2015, proc. 0793/14. Acerca de divergências existentes nos casos de reclamação necessária (em referência aos artigos 131º a 133º. do CPPT, cf. Serena Cabrita e Carla Tavares, Contencioso Tributário, I vol. pp 554 e 555).

[17] Alterada por Portaria n.º 337/2013, de 20/11, Portaria n.º 155/2018, de 29/05 e Portaria n.º 98/2020, de 20/04.  

[18] Com alterações introduzidas pela Lei n.º 100/2017, de 28/08 e pela Lei n.º 114/2017, de 20/12.

[19] Alterado por Lei n.º 50/2005,  Decreto-Lei n.º 6/2013, Lei n.º 75-A/2014 e Lei n.º 7/2021.

[20] Invocando que os serviços de IT não aplicaram o princípio do inquisitório, não requerendo explicações, não demonstrando os actos artificiosos e nem dizendo quais seriam os negócios considerados válidos ou admissíveis para atingir os mesmos fins pretendidos pelos Reclamantes. Nesta matéria, apresentam razões que consideram destruir os raciocínios da AT sobre a conduta do Sujeito Passivo A na venda das acções na E..., criação da D..., actividade desta, etc.

[21] Os reclamantes defendiam que, a haver abuso nos termos expendidos pela AT - isto é, quanto à constituição da D... e à operação de compra e venda das ações da E... por parte do Sujeito Passivo A… -, tal natureza abusiva situar-se-ia no momento da constituição da sociedade e da aquisição das referidas acções, em 2015, momento em que a forma jurídica alegadamente abusiva se constituiu, pelo que no momento da notificação do RIT já estaria caducado o direito à liquidação.

[22] Os Reclamantes defendiam que as conclusões em sede da inspeção tributária efectuada aos Reclamantes não deveriam operar sobre o Sujeito Passivo A, com liquidações adicionais de IRS-, mas antes, sobre a entidade obrigada à retenção na fonte aquando do pagamento dos (alegados) dividendos ao seu beneficiário.

[23] Cf. Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, vol. I, p. 611, Almedina 1986.”.

[24] Terminologia usada por Marcelo Caetano, cf. Manual de Direito Administrativo, 10ª edição, tomo I, pp 225 e 500, Almedina, 1984, com revisão e actualização por Freitas do Amaral: “quando por razões de comodidade de gestão dos interesses da pessoa colectiva ou do desempenho dos serviços num território muito extenso, há divisão deste em fracções ou circunscrições territoriais para o efeito de se colocar um órgão auxiliar cuja competência seja exercida só nos limites dessa circunscrição, verificando-se incompetência em razão do lugar quando um órgão pratica um acto cujos pressupostos não se verificam na área da sua jurisdição ou na localidade prevista na lei

[25]«A questão da definição de atribuições e competências é uma questão que se resolve num primeiro momento lógico, apurando se determinado órgão tem, à partida e em abstrato, o poder de praticar certo tipo de ato administrativo. Uma vez resolvida essa questão, trata-se, depois, de averiguar se, no caso concreto da prática daquele ato administrativo, o órgão observou determinado requisito de que a lei fazia depender a sua capacidade parar exercer a competência: requisitos de legitimação do sujeito, factos jurídicos de cuja verificação na pessoa do sujeito do ato a lei faz depender a sua possibilidade de exercer o poder» (Mário Aroso de Almeida, Teoria Geral do Direito Administrativo, Almedina 2021, 8ª edição, p. 398). Com remissão para Rogério Ehrahardt Soares, Direto Administrativo, Coimbra, 1978, p. 243 e ss, sobre, designadamente, diferenciação entre incompetência e legitimação.

 

[26] Cf. Jorge Lopes de Sousa, CPTA anotado, I vol. P. 583.

[27] Que apenas permitia, sem impor, à entidade que dirigia o procedimento, que fizesse aplicação da norma antiabuso, não resultando a definição da posição definitiva da Administração perante o contribuinte (cf. Jorge Lopes de Sousa, idem, ibidem).   

[28] Cf. Acórdão do STA (Secção CA) de 06/12/2011, proc. 0924/10, citando Marcelo Caetano, Manual de Direito Administrativo, 10ª ed., 1º vol., p. 223; Sérvulo Correia, Noções de Direito Administrativo, vol. 1º, p.172; João Caupers, Direito Administrativo, pp. 70 e 71; Marcelo Rebelo de Sousa, Lições de Direito Administrativo, Vol. I, 1999, p. 180.

[29] Mesmo na sua originária redacção, quando havia duas fases procedimentais, isso parecia resultar da conjugação dos n.ºs 7 e 9 do art.º 63.º do CPPT.

[30] Cf. por exemplo, Marcelo Caetano, Manual de Direito Administrativo, 10ª edição, revista por Freitas do Amaral, pp. 547/548; Freitas do Amaral, “Conceito e Natureza do Recurso Hierárquico”, I, vol. 2ª edição, Almedina, 2005, pp. 67-78, 271; Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, Almedina, 2ª edição p. 634 e ss; Afonso Queiró, Competência, DJAP, II, p. 527.

[31] O n.º 1 do artigo 16.º do RCPITA dispõe que “1 - São competentes para a prática dos atos de inspeção tributária, nos termos da lei, os seguintes serviços da Administração Tributária e Aduaneira: a) A Unidade dos Grandes Contribuintes, relativamente aos sujeitos passivos que de acordo com os critérios definidos sejam considerados como grandes contribuintes; b) As direções de serviços de inspeção tributária que nos termos da orgânica da Autoridade Tributária e Aduaneira integram a área operativa da inspeção tributária, relativamente aos sujeitos passivos e demais obrigados tributários que devam ser inspecionados pelos serviços centrais; c) As unidades orgânicas desconcentradas, relativamente aos sujeitos passivos e demais obrigados tributários com domicílio ou sede fiscal na sua área territorial.

[32]«Sem prejuízo das competências da Unidade dos Grandes Contribuintes, são inspecionados diretamente pelos serviços centrais os sujeitos passivos designados pelo diretor-geral da Autoridade Tributária e Aduaneira» (n.º 2 do art.º 16 do RCPITA).

[33] A competência comum a vários órgãos habilitados para praticar um acto pode ser conjunta, em que todos eles têm que intervir no acto, ou simultânea, em que qualquer deles pode praticar o acto sozinho (cf. Freitas do Amaral, Conceito e Natureza do Recurso Hierárquico, ob. cit. p. 67).

[34] Por todos, cf. acórdãos do STA, de 27/06/2012, no proc. 087/12, e de 06/04/2016, no proc. 076/16.

[35] “A decisão de procedimento é sempre fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram, podendo a fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem o relatório da fiscalização tributária”.

[36] A fundamentação deve ser expressa, através de sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão, podendo consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, que constituem, neste caso, parte integrante do respetivo ato».

[37] Art.º 10.º CPPT; 62.º da LGT, 46.º do CPA.

 

[38] Nem parece que os Requerentes tenham defendido propriamente que a decisão da UGC fez uma interpretação autêntica da decisão que fundamentou a liquidação. Apontam, sim, contradição com o RIT (cf. art.º 47 do PPA), defendendo que o indeferimento da reclamação foi ilegal por aplicação do n.º 2 do artigo 38.º da LGT, na redação da Lei n.º 32/2019, de 3 de Maio. E pretendem que seja apreciada a legalidade do indeferimento da reclamação graciosa e” naturalmente” a das “liquidações de IRS” (art. 35.º do PPA). 

 

 

 

[39] Rendimentos esses que não concorreram para a determinação do lucro tributável da sociedade nesses exercícios porque foi efetuada a eliminação da dupla tributação económica de lucros e reservas (campo 771), nas declarações de rendimentos (M22), nos termos do art.º 51º do CIRC, tendo sido o valor das retenções na fonte efetuadas nos exercícios de 2015 e 2016, referentes a esses lucros distribuídos, reembolsados na totalidade à sociedade. Em relação ao exercício de 2017 e 2018, a distribuição destes lucros à D... encontrava-se dispensada de retenção na fonte, nos termos da alínea c) do n.º 1 do art.º 97º do CIRC» (RIT, p.44).

 

[40] Resulta da factualidade constante do processo que o Sujeito Passivo A era administrador da E... SGPS, SA e da C... (todas com sede no mesmo local da D...), obtendo aliás da segunda rendimentos de trabalho dependente, conforme declarações de IRS- cf. factos provados, b) c) e d).

[41] O esquema elisivo na base de todo o encadeamento negocial aí identificado consistiu, em síntese, em que o preço não-pago no âmbito da aquisição de uma sociedade por outra, foi contabilizado como crédito de sócios da sociedade adquirente perante esta, convertido em prestações acessórias, realizadas pelos sócios para permitir configurar como “reembolsos”. Concluiu-se que ocorria: a) um encadeamento de negócios jurídicos de anómala e escusada complexidade, bem como de duvidosa eficácia relativamente aos fins enunciados pelos contratantes e às alternativas disponíveis (requisito meio de aplicação da CGA); b)   desenvolvido com o intuito, (se não exclusivo) pelo menos dominante,  de obtenção de um resultado fiscal diverso daquele que corresponderia à “normalidade” negocial, gerando o sobreendividamento artificial de uma empresa, sem qualquer explicação congruente e sólida,  que não seja a de gerar um crédito “empolado” a favor dos sócios, sob a veste de direito a reembolso de prestações acessórias (requisito intelectual de aplicação da CGA); c) assim conduzindo (mediante aparente conversão de “dividendos” tributáveis em “reembolsos” não-tributáveis) à consequência da elisão dos correspondentes deveres fiscais (requisito resultado de aplicação da CGA); d)mediante recurso a meios cujo carácter artificioso ou fraudulento resulta manifesto (requisito abusivo – dito normativo- de aplicação da CGA).

 

[42] Acerca da alternativa mencionada de poder ter recorrido a aumento de capital seguido de redução (PPA art. 63.º) parece prática também problemática (cf. Decisão proc. 357/2018-T).

[43] O RIT frisa que o preço das acções adquiridas à E... pela sociedade veículo representou uma valorização extraordinária face ao valor nominal (al. j) dos factos provados). Num caso factualmente semelhante ao presente, a decisão no proc. 324/2017-T considerou que o caso de um preço muito elevado não resultante de avaliação externa, constituía um indício a ter em conta. Embora apenas por maioria decidiu-se que não se tratava de matéria a tratar em sede de preços de transferência, observando, entre outros argumentos, que «a aplicação do instituto dos preços de transferência, em vez da CGAA, equivaleria a desconhecer a descaracterização da distribuição do lucro através de reembolso da dívida contraída. De facto, a venda das ações mais não é do que um mero passo para conseguir o resultado pretendido, perdendo, nessa dinâmica, relevância individual. O relevante é, sim, a criação de uma dívida de montante necessário à criação de um reembolso que ocultasse a distribuição de lucros.»

 

 

[44]Cf. p. ex, processos n.ºs 51/2014-T; 377/2014-T; 173/2015-T; 162/2017-T; 357/2018-T; 441/2018-T; 166/2019-T; 167/2019-T; 213/2019-T;317/2019-T; 142/2020-T; 788/2019-T; 142/2020-T; 257/2020-T.

[45] Tomás Cantista Tavares, texto citdado, p. 34.

Nas decisões do STA, processos 1869.13.4 e 02507/15, defendeu-se que a nova redacção consagra a «solução de responsabilizar de modo originário pela dívida tributária que resulta da aplicação da CGAA a sociedade que sabia da construção que vem a ser desconsiderada no plano tributário e estava obrigada à retenção na fonte, reservando para os accionistas o papel de responsáveis subsidiários pela dívida que resulte dessa obrigação tributária e que a novidade é a de que também o substituído, no caso, os accionistas, podem ser chamados a responder por este crédito tributário, a título subsidiário e, por isso, passa também a ser exigida a sua participação no âmbito do procedimento de aplicação da CGAA, previsto e regulado no artigo 63.º do CPPT».

Já na decisão de 16/02/2022, proc. 0299/13.2 BEPNF 0460/17, o STA, parece defender que até aí não visaria os substituídos mas apenas os substitutos, ao concluir pelo carácter inovador da Lei n.º 32/2019, reproduzindo este excerto do debate havido na AR «([…] Mas esta proposta de lei tem uma inovação muito importante, do ponto de vista do ordenamento jurídico interno: promovemos uma alteração à cláusula geral antiabuso, prevista na lei geral tributária. Isto é importante, porque nos permite criar mais certeza tanto para os contribuintes, como para a Autoridade Tributária. Trata-se de direcionar a cláusula antiabuso para aqueles que, efetivamente, são os beneficiários dos rendimentos e prever os casos estritos em que possa haver substituição tributária e, também, o processo inerente ao acionamento dessa cláusula antiabuso […]» , e defendendo que a alteração do artigo 63.º do CPPT ao passar a exigir que o procedimento de aplicação da CGAA– para os casos em que se apliquem as regras de responsabilidade em caso de substituição tributária (o n.º 5 do artigo 38.º da LGT) – seja também ao beneficiário do rendimento (artigo 63.º, n.º 4, al. b) do CPPT).

 

[46] O Acórdão teve o voto de vencido do Conselheiro Gustavo Courinha, por adoptar a interpretação de que não poderia ser assacada ao substituto a exigibilidade por retenção de uma dívida fiscal decorrente de uma obrigação fiscal que, pura e simplesmente, não existia à data em que ocorrem os pagamentos por si devidos, por tal preceder a aplicação da CGAA.

[47] Os Requerentes foram, após inspecção anteriormente ocorrida na sociedade D..., objecto das inspecções tributárias incidentes nas declarações de IRS do casal, e possibilitada a sua intervenção, designadamente em audição prévia).