Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 520/2022-T
Data da decisão: 2023-02-09  IRC  
Valor do pedido: € 342.554,08
Tema: IRC – artigo 23.º - dedutibilidade de custos IVA – artigo 21.º
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SUMÁRIO

I - O princípio geral previsto no artigo 23.º do CIRC determina que sejam dedutíveis os gastos relacionados com actividade do sujeito passivo por este incorridos ou suportados, bastando a conexão com a actividade empresarial, independentemente da efectiva contribuição para os rendimentos sujeitos a imposto.

II - Em face dos factos dados como provados, gastos com recursos humanos realizados são essenciais à atividade empresarial da Requerente uma vez que esta tem a função ou obrigação de reunir os meios essenciais à prossecução eficiente dos fins das entidades do Grupo, garantindo, de forma continuada e profissional, que a própria Requerente e essas outras entidades têm sempre os recursos necessários à prossecução dos seus fins.

 

DECISÃO ARBITRAL

Os árbitros Professor Nuno Cunha Rodrigues (árbitro-presidente), Dra. Filipa Barros e Dr. Jesuíno Alcântara Martins (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 15-11-2022, acordam no seguinte:

  1. RELATÓRIO

A..., S.A. pessoa coletiva n.º..., com sede no ..., n.º ..., ...-... Lisboa, apresentou pedido de pronuncia arbitral e de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade e consequente anulação dos seguintes atos tributários,

  1. Do ato de liquidação de IRC n.º 2022 ... e da correspondente demonstração de acerto de contas de IRC n.º 2022 ..., nos quais a Administração Tributária corrigiu a matéria tributável da REQUERENTE no montante de € 265.055,19 (duzentos e sessenta e cinco mil e cinquenta e cinco euros e dezanove cêntimos);
  2. Dos atos de liquidação de IVA n.º 2022 ... (2018/03-T), n.º 2022 ... (2018/06-T), n.º 2022 ... (2018/09-T), n.º 2022 ... (2018/12-T); n.º 2022 ... (2020/09-T) e das correspondentes demonstrações de acerto de contas n.º 2022 ... (2018/03-T), n.º 2022 ... (2018/06-T), n.º 2022, ... (2018/09-T), n.º 2022 ... (2018) e n.º 2022 ... (2020/09-T), através dos quais a Administração Tributária liquidou adicionalmente IVA no valor total de € 56.892,17 (cinquenta e seus mil oitocentos e noventa e dois euros e dezassete cêntimos) e anulou mais € 13 569,49 (treze mil quinhentos e sessenta e nove euros e quarenta e nove cêntimos) de crédito de imposto;
  3. Da liquidação de juros compensatórios de IVA n.º 2022 ... (2018/12-T) e da correspondente demonstração de acerto de contas n.º 2022 ... (2018/12-T), nas quais a Administração Tributária apurou o valor a pagar de € 6.688,75 (seis mil seiscentos e oitenta e oito euros e setenta e cinco cêntimos); e
  4. Da liquidação de juros de mora de IVA n.º 2022 ... (2020/09-T) e da correspondente demonstração de acerto de contas n.º 2022 ... (2020/09-T), através das quais a Administração Tributária apurou um valor a pagar de € 384,44 (trezentos e oitenta e quatro euros e quarenta e quatro cêntimos)

sendo Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”).

 

  1. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD a 05-09-2022 e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira a 12-09-2022.
  2. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitros do Tribunal Arbitral coletivo o Professor Nuno Cunha Rodrigues; Dra. Filipa Barros e Dr. Jesuíno Alcântara Martins, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
  3. Em 26-10-2022 foram as Partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
  4. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 15-11-2022.
  5. Em 19-12-2022, a Requerida juntou aos autos a sua resposta, na qual se defende por impugnação e pugna pela improcedência e consequente absolvição do pedido, que se dá por integralmente reproduzida. Juntou também processo administrativo (PA).
  6. Por despacho de 20-12-2022, foi definido o dia 12 de janeiro de 2022, para a reunião a que se refere o artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, nomeadamente com vista à audição da testemunha indicada pela Requerente.
  7. A 12 de janeiro de 2022, teve lugar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, na qual foi ouvida a testemunha arrolada pela Requerente.
  8. O Tribunal notificou a Requerente e a Requerida para, por esta ordem e sucessivamente, apresentarem alegações escritas facultativas no prazo de 10 dias. Determinou ainda que o prazo para a Requerida começaria a contar com a notificação da junção das alegações do Requerente ou do termo do prazo a este concedido. Por último, advertiu o Requerente da necessidade de, até essa data, proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente e comunicar o mesmo pagamento ao CAAD.
  9. A 24-01-2023, a Requerente apresentou as suas alegações, mantendo o já por si alegado no pedido de pronúncia arbitral.
  10. Em 02-02-2023, a Requerida contra-alegou e reiterou o que disse em sede de Resposta, mantendo o pedido de improcedência.

 

  1. SANEAMENTO
  1. O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, atenta a conformação do objeto do processo (cf. alínea a) do nº 1 dos artigos 2.º e 5.º do RJAT).
  2. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT, contado a partir dos factos previstos na alínea a) do n.º 1 do artigo 102.º do CPPT.
  3. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias e mostram-se legítimas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
  4. Não há nulidades ou matéria de exceção para conhecer passando-se para a análise do mérito da causa.
  1. DO PEDIDO DA REQUERENTE
  1. A Requerente solicita a anulação dos seguintes atos de liquidação:
  1. Do ato de liquidação de IRC n.º 2022 ... e da correspondente demonstração de acerto de contas de IRC n.º 2022 ..., nos quais a Administração Tributária corrigiu a matéria tributável da Requerente no montante de € 265.055,19 (duzentos e sessenta e cinco mil e cinquenta e cinco euros e dezanove cêntimos);
  2. Dos atos de liquidação de IVA n.º 2022 ... (2018/03-T), n.º 2022 ... (2018/06-T), n.º 2022 ... (2018/09-T), n.º 2022 ... (2018/12-T); n.º 2022 ... (2020/09-T) e das correspondentes demonstrações de acerto de contas n.º 2022 ... (2018/03-T), n.º 2022 ... (2018/06-T), n.º 2022, ... (2018/09-T), n.º 2022 ... (2018) e n.º 2022 ... (2020/09-T), através dos quais a Administração Tributária liquidou adicionalmente IVA no valor total de € 56.892,17 (cinquenta e seus mil oitocentos e noventa e dois euros e dezassete cêntimos) e anulou mais € 13 569,49 (treze mil quinhentos e sessenta e nove euros e quarenta e nove cêntimos) de crédito de imposto;
  3. Da liquidação de juros compensatórios de IVA n.º 2022 ... (2018/12-T) e da correspondente demonstração de acerto de contas n.º 2022 ... (2018/12-T), nas quais a Administração Tributária apurou o valor a pagar de € 6.688,75 (seis mil seiscentos e oitenta e oito euros e setenta e cinco cêntimos); e
  4. Da liquidação de juros de mora de IVA n.º 2022 ... (2020/09-T) e da correspondente demonstração de acerto de contas n.º 2022 ... (2020/09-T), através das quais a Administração Tributária apurou um valor a pagar de € 384,44 (trezentos e oitenta e quatro euros e quarenta e quatro cêntimos)
  1. Em síntese, a Requerente entende que as correções e os atos de liquidação emitidos pela Administração Tributária são ilegais porque:

a) No que respeita ao IRC:

i. Não é certo que os gastos que a Administração Tributária desconsiderou não sejam dedutíveis, estando verificados todos os requisitos da sua relevância em sede de IRC;

ii. Tendo concretizado a correção aos gastos da Requerente em sede de IRC, a Administração Tributária teria que fazer as devidas correções correlativas na esfera das demais entidades do Grupo;

iii. Não tendo reconhecido a qualificação de despesas de representação aos gastos relativos à correção que acabou por não concretizar, a Administração Tributária teria que anular as tributações autónomas liquidadas pela Requerente, devolvendo o imposto pago a mais;

b) No que respeita ao IVA:

i. As deduções feitas pela Requerente não podem ser anuladas porque estão verificados todos os requisitos de dedutibilidade previstos no regime deste imposto (substancialmente diferente do sistema do IRC) e

ii. Mesmo que assim não fosse, a Administração Tributária nunca poderia anular as deduções sem assegurar a neutralidade do imposto, tratando a Requerente como o sujeito passivo que é e não como um consumidor final.

 

  1. DA RESPOSTA DA REQUERIDA AT:
  1. Em resposta, a Requerida impugnou toda a matéria de facto aduzida pela Requerente que esteja em desconformidade com as conclusões constantes do relatório final da inspecção tributária.
  2. Considera a Requerida que, dos elementos apresentados pela Requerente, resultou apenas o conhecimento de que estavam em causa despesas acessórias relacionadas com recursos humanos, como seguros, contribuições para planos de pensões e pagamentos de deslocações, comunicadas pelo sujeito passivo de forma genérica para a totalidade das faturas em análise, não sendo disponibilizado qualquer detalhe e prova da informação prestada.
  3. Assim, entende a Requerida que a Requerente não justifica nem comprova cabalmente a assunção dos gastos, uma vez que não remete quaisquer elementos adicionais no sentido do seu total esclarecimento.
  4. Considera ainda a Requerida que, verificando-se que parte das despesas são despesas de representação, encontram-se reunidos os requisitos para de acordo com o disposto no nº 7 do artigo 88º do CIRC, na redação aplicável à data dos factos, as tributar autonomamente.
  5. Quanto às deduções de IVA objecto de correcção pela AT, entende a Requerida que continua a desconhecer a que natureza respeitam os gastos constantes das referidas faturas.
  6. Acresce que, para a Requerida, a situação em análise não se coloca ao nível da figura da “regularização” do imposto, mas antes da análise da dedução devida/indevida à luz do artigo 20º do CIVA.
  7. Por fim, a Requerida entende que, relativamente à dedução do IVA, o que está em causa é a prova pela Requerente de que estão preenchidos os requisitos da elegibilidade de um encargo para efeitos de dedução, sendo que no caso dos autos a Requerente não prova que o encargo suportado tem relação direta com a atividade exercida.

 

  1. MATÉRIA DE FACTO
  1. Factos provados
  1. Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos que se julgam provados:
    1. A Requerente tem como atividade fundamental desde há vários anos (incluindo o ano de 2018) a prestação de serviços de consultoria para os negócios e a gestão de diversas entidades de um Grupo de Empresas.
    2. A atividade de gestão da Requerente consiste, no essencial: (a) na análise de possíveis alterações ao negócio decorrentes de modificações no mercado, nas tecnologias disponíveis ou em quaisquer outros fatores; (b) na análise de eventuais reorganizações da sua estrutura interna; (c) na análise de planos de negócio e de investimento a médio e longo prazo; (d) no apoio à definição da estratégia; e (e) na análise de contratos relevantes (cf. informações constantes do processo administrativo).
    3. Para assegurar esta atividade, a Requerente tem a função/obrigação de reunir os meios essenciais à prossecução eficiente dos fins das entidades do Grupo, garantindo, de forma continuada e profissional, que a própria Requerente e essas outras entidades têm sempre os recursos necessários à prossecução dos seus fins.
    4. A Requerente disponibiliza recursos humanos a outras entidades do Grupo ou recorre a meios humanos dessas outras entidades refletindo na sua contabilidade todos os proveitos e todos os gastos decorrentes destas relações, sejam as remunerações dos colaboradores, sejam os gastos acessórios (e absolutamente normais) decorrentes da relação com esses colaboradores, como os seguros, as contribuições para planos de pensões e os custos com deslocações.
    5. No projeto de correções notificado à Requerente em março de 2022, a Administração Tributária propunha-se fazer duas correções aos gastos deduzidos em sede de IRC e uma correção às deduções de IVA realizadas em 2018.
    6. Em sede de IRC, a Administração Tributária tencionava corrigir o prejuízo fiscal da Requerente no valor global de € 492.258,65 em função:
      1. Da não aceitação de uma parte dos gastos registados na conta 6221005 – Recursos Humanos, no valor total de € 265.055,19, com o argumento de que a relação desses gastos com a atividade da Requerente não se encontrava demonstrada; e
      2. Da desconsideração de gastos com deslocações/estadas e representação (contas 62512 e 62662), no valor € 227.203,46 com o argumento de que estes gastos não corresponderiam a despesas de representação da Requerente.
    7. A correção projetada em sede de IVA resultou da transposição da primeira correção de IRC. Assim, para além de desconsiderar os gastos acessórios relativos aos colaboradores, a Administração Tributária projetava, com os mesmos fundamentos, eliminar a dedução do IVA correspondente, no montante de € 70.461,70.
    8. Em 18 abril de 2022, a Requerente exerceu o seu direito de audição prévia pedindo que a Administração Tributária se abstivesse de convolar em definitivo o projeto de correções supra referido e promovesse o arquivamento sem correções do procedimento de inspeção em curso.
    9. Posteriormente, no dia 19 de maio de 2022, a Requerente foi notificada do relatório final da inspeção tributária, no qual a Administração Tributária abandonou a segunda correção projetada relativa ao IRC.
    10. Em contrapartida, a Administração Tributária confirmou as duas outras correções, insistindo que os elementos documentais analisados não lhe permitem aceitar como gastos em sede de IRC parte dos valores suportados com recursos humanos, no valor de € 265.055,19 e considerar dedutível o IVA associado a esses gastos, no montante de € 70.461,70 (correspondente a imposto a entregar no montante total de € 56.892,17).
    11. A Administração Tributária desconsiderou, para efeitos de IRC e de IVA, os custos acessórios (seguros, contribuições, deslocações) registados naquela mesma conta como “outros gastos com recursos humanos”, por entender que os esclarecimentos e elementos prestados sobre os referidos gastos são insuficientes para justificar a sua dedutibilidade nos termos previstos no artigo 23.º, n.º 1, do Código do IRC.
    12. Na sequência das correções feitas em sede de inspeção tributária, a Requerente foi notificada dos atos tributários acima identificados, nos quais a Administração Tributária:
      1. anulou parte dos prejuízos fiscais da Empresa no valor de € 265.055,19;
      2. liquidou adicionalmente IVA no valor total de € 56.892,17 e anulou mais € 13 569,49 de crédito de imposto (o que perfaz o valor de € 70.461,70);
      3. liquidou juros compensatórios de IVA no montante de € 6.688,75; e
      4. liquidou juros moratórios de IVA na quantia de € 384,44.

 

  1. Factos não provados
  1. Não há factos relevantes para esta Decisão Arbitral que não se tenham provado.
  1. Fundamentação da decisão da matéria de facto
  1. Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. n.º 2 do artigo 123.º do CPPT e n.º 3 do artigo 607.ºdo CPC, aplicáveis ex vi alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT).
  2. Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e de conhecimento das pessoas (cfr. artigo 607.º, n.º 5 do Código do Processo Civil).
  3. Somente quando a força probatória de certos meios se encontra pré-estabelecida na lei (v.g. força probatória plena dos documentos autênticos - cfr. artigo 371.º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.
  4. Tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do n.º 7 do artigo 110.º do CPPT, a prova documental, o processo administrativo juntos aos autos, bem como o testemunho prestado por Sofia Dores, no âmbito da reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT, que foi considerado credível e consistente e durante o qual foram confirmados os factos alegados pela Requerente, analisados de forma crítica, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

 

  1. DO DIREITO
  1. A questão a decidir prende-se com a apreciação da legalidade dos actos de liquidação de IRC e de IVA supra descritos, uma vez que, entende a Requerida AT, (i) a Requerente não justificou nem comprovou cabalmente a assunção dos gastos, uma vez que não remeteu quaisquer elementos adicionais no sentido do seu total esclarecimento; (ii) parte das despesas sub judice são despesas de representação, encontrando-se reunidos os requisitos para, de acordo com o disposto no n.º 7 do artigo 88,º do CIRC, na redação aplicável à data dos factos, as tributar autonomamente e, (iii) quanto às deduções de IVA objecto de correcção pela AT, entende a Requerida desconhecer a que natureza respeitam os gastos constantes das referidas faturas.

Vejamos.

  1. A Requerida AT considera que o pedido arbitral deve ser indeferido uma vez que, no caso dos gastos com recursos humanos (265.055,19 €) e a consequente dedução em sede de IRC, os SIT não conseguiram concluir “sobre a natureza dos gastos em questão, nem sobre a sua relação com os rendimentos obtidos pelo sujeito passivo.”
  2. Entende ainda a Requerida AT estar em causa saber se tais gastos contribuíram para a obtenção dos rendimentos da Requerente para assim poderem ser dedutíveis ao abrigo do artigo 23.º do CIRC, uma vez que, para a Requerida AT, inexiste qualquer correlação entre a elegibilidade de um gasto na esfera de quem o suporta com o facto de o mesmo constituir um proveito na esfera da entidade prestadora.
  3. A propósito do artigo 23.º do CIRC e do respetivo enquadramento teórico, recorde-se o afirmado no processo n.º 305/2021-T, que aqui acompanhamos e seguimos:

Na redação resultante da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, com efeitos desde 1 de Janeiro de 2014, e aplicável aos períodos de tributação em análise, o n.º 1 desse preceito passou a dispor que “para a determinação do lucro tributável, são dedutíveis todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC”, especificando o n.º 2, a título exemplificativo, os gastos e perdas que se encontram abrangidos por essa cláusula geral, e entre os quais se contam os “gastos de natureza financeira, tais como juros de capitais alheio aplicados na exploração”, a que se refere agora à alínea c) do n.º 2.

Tem-se como assente e constitui entendimento jurisprudencial firme que da noção legal de custo fornecida pelo artigo 23.º do Código de IRC não resulta que a Administração Tributária possa pôr em causa o princípio da liberdade de gestão, sindicando a bondade e oportunidade das decisões económicas da gestão da empresa e considerando que apenas podem ser assumidos fiscalmente aqueles de que decorram diretamente proveitos para a empresa ou que se revelem convenientes para a empresa (cfr. acórdão do TCA Sul de 6 de outubro de 2009, Processo 03022/09 e, em idêntico sentido, acórdão do TCA Norte, de 12 de janeiro de 2012, Processo 00624/05).

Em síntese conclusiva, deve entender-se que a actividade empresarial que gere custos dedutíveis há de ser aquela que se traduza em operações que tenham um propósito (e não um obrigatório nexo de causalidade imediata) de obtenção de rendimento ou a finalidade de manter o potencial de uma fonte produtora de rendimento. Nesse sentido, a actividade produtiva não deverá ser entendida em sentido restritivo, mas sim em sentido amplo, significando actividade relacionada com uma fonte produtora de rendimento da entidade que suporta os gastos. Ao buscar-se o sentido do conceito de actividade das empresas, ele não pode circunscrever-se a meras ou simples operações de produção de bens ou serviços, mas pressupõe uma relação com as operações económicas globais de exploração ou com as operações ou actos de gestão que se insiram no interesse próprio da entidade que assume os custos (cfr. neste sentido, o acórdão arbitral proferido no Processo n.º 480/2016).

É nesse âmbito compreensivo que se enquadra a nova redação introduzida pela Lei n.º 2/2014, que, visando implementar um maior grau de certeza na aplicação concreta dos critérios de dedutibilidade, passou a consagrar como princípio geral que são dedutíveis os gastos relacionados com actividade do sujeito passivo por este incorridos ou suportados, reforçando a ideia de que basta a conexão com a actividade empresarial, independentemente da efectiva contribuição para os rendimentos sujeitos a imposto (cfr. Relatório Final da Comissão para a Reforma do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, 30 de junho de 2013).”

  1. Feito este breve excurso teórico, recorde-se que, no caso sub judice procura saber-se se os gastos com recursos humanos realizados pela Requerente e registados na conta 6221005 – Recursos Humanos, no valor total de € 265.055,19, conforme dado como provado, configuram, ou não, gastos fiscais para os efeitos do disposto no artigo 23.º do CIRC.
  2. Aqui, cumpre destacar, prima facie, ter sido dado como provado que a Requerente disponibiliza recursos humanos a outras entidades do Grupo ou recorre a meios humanos dessas outras entidades, refletindo na sua contabilidade todos os proveitos e todos os gastos decorrentes destas relações, sejam as remunerações dos colaboradores, sejam os gastos acessórios (e absolutamente normais) decorrentes da relação com esses colaboradores, como os seguros, as contribuições para planos de pensões e os custos com deslocações.
  3. Ao contrário do afirmado pela Requerida AT foi assim possível provar a existência e a natureza dos gastos em questão.
  4. Por outro lado, como vimos, o princípio geral previsto no artigo 23.º do CIRC determina que sejam dedutíveis os gastos relacionados com actividade do sujeito passivo por este incorridos ou suportados, bastando a conexão com a actividade empresarial, independentemente da efectiva contribuição para os rendimentos sujeitos a imposto.
  5. Ora ficou claro, em face dos factos dados como provados, que gastos com recursos humanos realizados são essenciais à atividade empresarial da Requerente uma vez que esta tem a função ou obrigação de reunir os meios essenciais à prossecução eficiente dos fins das entidades do Grupo, garantindo, de forma continuada e profissional, que a própria Requerente e essas outras entidades têm sempre os recursos necessários à prossecução dos seus fins.
  6. Como tal, considera-se que os gastos com recursos humanos realizados, no valor de 265.055,19€, podem ser deduzidos em sede de IRC, assistindo, neste ponto, razão à Requerente.
  7. A Requerida AT entende ainda que o gasto com despesas de representação (€ 227.203,46) deve ser desconsiderado como custos do exercício de 2018 uma vez que terão sido parcialmente incorridos por pessoas não diretamente vinculadas à sociedade.
  8. Porém, também aqui não assiste razão à Requerida AT uma vez ter sido dado como provado que a Requerente recorre a meios humanos de outras entidades do grupo refletindo, na sua contabilidade, todos os proveitos e todos os gastos decorrentes destas relações, sejam as remunerações dos colaboradores, sejam os gastos acessórios decorrentes da relação com esses colaboradores, como os seguros, as contribuições para planos de pensões e os custos com deslocações.
  9. Por fim, foram objecto de correção por parte da AT as deduções de IVA respeitantes à desconsideração do imposto associado aos gastos acessórios com colaboradores, no montante de € 70.461,70.
  10. A AT justifica esta última correção com (i) a ilegalidade das correções quanto aos gastos com Recursos Humanos em sede de IRC e (ii) o facto de o sujeito passivo não justificar devidamente em comprovar a natureza dos gastos com recursos humanos a que designou “gastos acessórios” em contraponto de gastos com “Remunerações/salários”.
  11. A este propósito a Requerida AT assinala não por em causa a relação dos gastos com a atividade, mas tão só a prova quanto à identificação/quantificação dos mesmos uma vez que, entende a Requerida AT, a Requerente não terá provado que o encargo suportado tem relação direta com a atividade exercida.
  12. A correção operada pela AT relativamente às deduções de IVA não pode ser dissociada da apreciação anteriormente feita no âmbito da dedução dos gastos com recursos humanos em sede de IRC, anteriormente analisada.
  13. Aqui, reitera-se ter sido dado como provado que a Requerente disponibiliza recursos humanos a outras entidades do Grupo ou recorre a meios humanos dessas outras entidades refletindo na sua contabilidade todos os proveitos e todos os gastos decorrentes destas relações, sejam as remunerações dos colaboradores, sejam os gastos acessórios decorrentes da relação com esses colaboradores, como os seguros, as contribuições para planos de pensões e os custos com deslocações.
  14. Tal significa, por outras palavras, que os gastos acessórios com colaboradores tem relação direta com a atividade exercida pela Requerente podendo, neste contexto, o montante de IVA referente a essas despesas ser deduzido.
  15. Assim, e uma vez que as liquidações de IRC e de IVA sub judice são inválidas por vício substantivo de erro nos pressupostos de direito e de facto, assiste razão à Requerente, devendo o pedido arbitral ser considerado totalmente procedente.

 

Da ilegalidade dos atos de liquidação de juros compensatórios e de mora

  1. Quanto aos juros compensatórios liquidados, a Requerente alega a sua ilegalidade uma vez que a liquidação carece do seu pressuposto objetivo (o dever de liquidar o imposto) e também deve, por isso, ser removida da ordem jurídica, por violação do disposto no artigo 96.º, n.º 1, do Código do IVA e no artigo 35.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária, não estando igualmente demonstrada a verificação do pressuposto subjetivo que a lei exige para a liquidação dos juros compensatórios.
  2. A AT defende a legalidade da mesma uma vez que houve atraso imputável à Requerente na liquidação do imposto, devendo-se esse retardamento ao facto de a Requerente não ter cumprido com o seu dever de esclarecimento da inspecção tributária e de documentação dos registos contabilísticos de molde a identificar concretamente, quantificando, a natureza das operações em causa nos moldes legalmente exigíveis, conforme sobejamente explicitado no Relatório Final.
  3. No tocante aos juros compensatórios, previstos no artigo 35.º da LGT, sendo as liquidações de IRC e de IVA inválidas por vício substantivo de erro nos pressupostos de direito e de facto, de acordo com o exposto, não se verifica o requisito constitutivo desses juros, que consiste no retardamento da liquidação de imposto devido, pelo que devem, de igual modo, ser anulados.
  4. No que se refere aos juros de mora, estes são devidos, nos termos do disposto no artigo 96.º, n.º 2, do Código do IVA e 44.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária, quando os sujeitos passivos não paguem dentro do prazo o imposto liquidado pela Administração Tributária ou autoliquidado.
  5. No caso sub judice, tendo os impostos sobre os quais recaíram os juros de mora liquidados pela Administração Tributária origem na eliminação das deduções feitas em 2018 não se verifica qualquer atraso no pagamento do imposto liquidado pelo que, estando em falta o seu pressuposto objetivo (o atraso no pagamento do imposto liquidado), deve ser anulada, com todas as consequências legais, designadamente o reembolso do valor indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios a favor da Requerente.
  6.  

Dos juros indemnizatórios

  1. Quanto ao pedido acessório de condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, formulado pela Requerente cabe dizer o seguinte.
  2. Nos termos do n.º 1 do artigo 43.º da LGT, são devidos juros indemnizatórios "quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.” Conforme decorre do artigo 24.º, n.º 5, do RJAT, o direito aos mencionados juros pode também ser reconhecido no processo arbitral.
  3. A condição necessária para a atribuição dos juros indemnizatórios consiste na demonstração da existência de erro sobre os pressupostos de facto ou de direito imputável aos serviços da Administração Fiscal.
  4. Tendo este Tribunal concluído que os atos tributários contestados enfermam do vício substantivo de erro nos pressupostos de direito e de facto, consequentemente, nos termos do disposto no artigo 43.º da LGT, tem a Requerente direito a juros indemnizatórios.
  5. Assim o pedido de condenação da Requerida ao pagamento de juros indemnizatórios é considerado procedente por este Tribunal Arbitral.
  6. Nestes termos, a Requerente tem direito a ser reembolsada das quantias que pagou, nos termos do disposto nos artigos 100.º da LGT e 24.º, n.º 1, do RJAT, por força dos atos anulados e, ainda, a ser indemnizada pelo pagamento indevido através do pagamento de juros indemnizatórios, desde a data daquele pagamento, até ao seu reembolso.

 

  1. DECISÃO

De harmonia com o exposto, este Tribunal Arbitral decide:

  1. Julgar totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral, sendo consequentemente anulados os seguintes atos tributários:
    1. Ato de liquidação de IRC n.º 2022 ... e correspondente demonstração de acerto de contas de IRC n.º 2022 ..., nos quais a AT corrigiu a matéria tributável no montante de € 265.055,19 (duzentos e sessenta e cinco mil e cinquenta e cinco euros e dezanove cêntimos);
    2. Atos de liquidação de IVA n.º 2022... (2018/03-T), n.º 2022 ... (2018/06-T), n.º 2022 ... (2018/09-T), n.º 2022 ... (2018/12-T); n.º 2022 ... (2020/09-T) e correspondentes demonstrações de acerto de contas n.º 2022 ... (2018/03-T), n.º 2022 ... (2018/06-T), n.º 2022 ... (2018/09-T), n.º 2022 ... (2018) e n.º 2022 ... (2020/09-T), através dos quais a AT liquidou adicionalmente IVA no valor total de € 56.892,17 (cinquenta e seus mil oitocentos e noventa e dois euros e dezassete cêntimos) e anulou mais € 13 569,49 (treze mil quinhentos e sessenta e nove euros e quarenta e nove cêntimos) de crédito de imposto;
    3. Liquidação de juros compensatórios de IVA n.º 2022 ... (2018/12-T) e correspondente demonstração de acerto de contas n.º 2022 ... (2018/12-T), nas quais a AT apurou o valor a pagar de € 6.688,75 (seis mil seiscentos e oitenta e oito euros e setenta e cinco cêntimos); e
    4. Liquidação de juros de mora de IVA n.º 2022 ... (2020/09-T) e da correspondente demonstração de acerto de contas n.º 2022 ... (2020/09-T), através das quais a AT apurou um valor a pagar de € 384,44 (trezentos e oitenta e quatro euros e quarenta e quatro cêntimos)
  2. Condenar a Requerida AT no pagamento de juros indemnizatórios;
  3. Condenar a Requerida AT no pagamento das custas do processo;

 

  1. VALOR DO PROCESSO

Fixa-se o valor do processo em 342.554,08 €, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

  1. CUSTAS

Nos termos do n.º 4 do artigo 22.º do RJAT, fixa-se o valor das custas em 5.814,00 €, nos termos da Tabela I anexa do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida AT.

Registe-se e notifique-se.

Lisboa, 9 de fevereiro de 2023

 

Os Árbitros

 

(Nuno Cunha Rodrigues (Presidente e relator))

 

(Filipa Barros)

 

 

(Jesuíno Alcântara Martins)