Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 343/2022-T
Data da decisão: 2023-01-30  ISV  
Valor do pedido: € 2.114,48
Tema: ISV - Artigo 11º do CISV na redação conferida pela Lei n.º 75-B/2020, de 31/12– Conformidade com o artigo 110º do TFUE – Veículos usados provenientes de outros Estados-Membros.
Versão em PDF

SUMÁRIO:

 

1. Na medida em que sujeita os veículos usados importados de outros Estados-Membros a uma carga tributária superior ao do imposto residual contido nos veículos usados similares transacionados no mercado nacional, a norma do artigo 11.º do CISV, na redação conferida pela Lei n.º 75-B/2020, de 31/12, continua a mostrar-se incompatível com o Direito da União Europeia, por violação do artigo 110.º do TFUE.

2. Do princípio do primado do Direito da União Europeia resulta que a Requerida tem o dever de recusar a aplicação de normas nacionais contrários ao Direito da União Europeia, pelo que  se  encontra ferido de ilegalidade um ato tributário praticado ao abrigo da citada norma do CISV, na medida da sua incompatibilidade com o artigo 110.º do TFUE.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – Relatório

 

1. No dia 30.05.2022, o Requerente, A... UNIPESSOAL, LDA, contribuinte fiscal n.º..., com sede na ..., ..., ...,  requereu ao CAAD a constituição de tribunal arbitral, nos termos do artigo 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro do RJAT para apreciação da legalidade  do indeferimento do pedido de revisão oficiosa referente aos atos tributários de liquidação de ISV[1] incidentes sobre às DAV[2] n.ºs 2021/..., 2021/..., 2021/..., 2021/..., 2021/... e 2021/... e, bem assim, dos atos tributários de liquidação de ISV, resultantes da apresentação das DAV n.ºs 2022/..., 2022/... e 2022/..., peticionando a anulação parcial das liquidações de imposto em causa, bem como a devolução do imposto que alega ter sido  indevidamente pago, no montante total de 2.114,48 €, acrescido de juros indemnizatórios.

 

 

2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira.

Nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1, do artigo 6.º, do RJAT, por decisão do Senhor Presidente do Conselho Deontológico, devidamente comunicada às partes nos prazos legalmente aplicáveis, foi designado árbitro o signatário, que comunicou ao Conselho Deontológico e ao Centro de Arbitragem Administrativa a aceitação do encargo no prazo regularmente aplicável.

O Tribunal Arbitral foi constituído em 9.08.2022.

 

3. Para sustentar a sua pretensão anulatória, alegou a impugnante, em síntese, o seguinte:

 

  1. A impugnante introduziu em Portugal, no período compreendido entre 4.05.2021 e 16.09.2021, os veículos automóveis usados, identificados no mapa que se junta como doc. nº 1,  provenientes da Alemanha e França e com primeiras matrículas registadas nestes países.
  2. Para além destes veículos, introduziu ainda em 30.03.2022, 20.04.2022 e 6.05.2022, respetivamente, os seguintes três veículos:

-..., proveniente de França, com a matrícula ...;

-..., proveniente de França, com a matrícula ...;

..., proveniente de Espanha, com a matrícula ...;

  1. A impugnante procedeu às declarações aduaneiras dos referidos veículos, tendo a Requerida efetuado as correspondentes liquidações de imposto de ISV que ascenderam ao  valor total de 12.752,25 €, que foi pago pelo sujeito passivo.
  2. Do referido montante  de 12.752,25 €, 7.713,72, corresponde à componente cilindrada e 5.038,79 € corresponde à componente ambiental, valores que tiveram em conta as reduções referentes ao número de anos de uso dos veículos.
  3. As percentagens de redução aplicadas relativamente à componente ambiental foram inferiores às aplicadas à componente cilindrada, em conformidade com o disposto na Lei.
  4. caso a percentagem de redução da componente ambiental tivesse sido igual à aplicada à componente cilindrada, o ISV das liquidações objeto do processo sofreria uma redução global de 2.114,48.
  5. A impugnante requereu em 21.01.2022 junto da Alfândega de Braga, a revisão de  atos tributários com fundamento no disposto da 2ª parte do nº 1 do artigo 78º da Lei Geral Tributária, tendo por objeto as liquidações referidas em a).
  6. Tal pedido de revisão foi indeferido, por despacho proferido pelo Diretor da Alfândega de Figueira da Foz, notificado à impugnante em 8.03.2022.
  7. As liquidações objeto do processo estão feridas de vício de ilegalidade, no que diz respeito ao cálculo da componente ambiental ou CO2, porque a norma jurídica que esteve na base das liquidações viola o art. 110º do Tratado de Funcionamento da União Europeia.
  8. Tendo em 2.09.2021 sido proferido acórdão do TJUE que declarou, no âmbito do processo nº C-169/20,  que “Ao não desvalorizar a componente ambiental no cálculo  do valor aplicável aos veículos usados postos em circulação no território português e adquiridos noutro Estado-Membro, no âmbito do cálculo  do imposto sobre veículos previsto no Código de Imposto sobre Veículos, na redação que lhe foi dada  pela Lei nº 71/2018, a Republica Portuguesa não cumpriu com as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110º, TFUE”.
  9. Na pendência do mencionado  processo, mas antes de ser proferido o referido acórdão, o legislador português, através da Lei de Orçamento de Estado para 2021  – Lei 75-B/2020 de 31 de Dezembro – aprovou uma nova alteração ao art. 11º do CISV, mediante a qual foi introduzida uma tabela de desvalorização da componente ambiental em função do número de anos de anos de uso do veículo, com indicação das respetivas percentagens.
  10. Todavia,  as percentagens  aplicadas à componente ambiental são inferiores às que são aplicadas à componente cilindrada, mantendo-se assim um tratamento desigual  entre as duas componentes do imposto.
  11. O montante do imposto foi calculado sem tomar em consideração a depreciação real do veículo, excedendo o montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados em território nacional.
  12. Pelo que, a norma atualmente em vigor e que esteve na base da liquidação continua a violar  frontalmente o art. 110º do TFUE, tendo ido neste sentido as decisões arbitrais proferidas nos processos 372/2021-T e 607/2021-T.
  13. Os fundamentos invocados no referido acórdão do TJUE e  demais jurisprudência europeia aplicam-se integralmente às liquidações impugnadas nos autos, apesar da alteração entretanto efetuada ao nº 1 do art. 11º do CISV, pelo que as mesmas estão feridas de ilegalidade, devendo por isso ser corrigidas e devolvido à impugnante o valor de 2.114,48 € pago a mais acrescido de juros indemnizatórios nos termos do art. 43º da LGT.

 

4. A ATA – Administração Tributária e Aduaneira, chamada a pronunciar-se, contestou a pretensão da Requerente, defendendo-se por exceção e por  impugnação.

 

Por exceção, invocou a caducidade do direito de ação referente ao pedido respeitante  aos atos de liquidação de ISV incidentes sobre as DAV n.ºs 2021/..., 2021/..., 2021/..., 2021/..., 2021/... e 2021/..., por entender, no pressuposto de que  o pedido de revisão foi apresentado depois de expirado o prazo previsto na lei, que se encontra-se igualmente ultrapassado o prazo de 90 dias, contados após o termo do prazo de pagamento do imposto, para apresentação do pedido arbitral, referente a estes atos tributários.

 

 

Por impugnação, alegou, em síntese, o seguinte:

 

 

  1. À introdução no consumo de veículos usados que sejam objeto de admissão no território nacional aplica-se, no âmbito do regime geral de tributação, o artigo 7.º (Taxas normais – automóveis) do mesmo código, que, quanto às taxas do imposto, consagra, nas alíneas a) e b) do n.º 1, a aplicação das taxas previstas na Tabela A, tendo em conta as componentes cilindrada e ambiental, aos veículos automóveis de passageiros, aos automóveis ligeiros de utilização mista e aos automóveis ligeiros de mercadorias, que não sejam tributados pelas taxas reduzidas ou pela taxa intermédia.
  2. Além do artigo 7.º, o artigo 11.º do CISV (Taxas - veículos usados) estabelece as taxas aplicáveis aos veículos usados.
  3. A liquidação e o cálculo do montante de imposto foram efetuados de acordo com os artigos 7.º e 11.º, n.º 1, do CISV, tendo sido aplicadas, conforme resulta do Quadro R da DAV, as reduções previstas nas tabelas A e D para os veículos ligeiros de passageiros, com referência à componente cilindrada e à componente ambiental, de acordo com as características do veículo, nos termos dos referidos artigos do CISV.
  4. Não pode a AT deixar de aplicar normas com base num “julgamento” de alegada desconformidade com o direito comunitário à luz do princípio constitucional da legalidade, em conformidade com o n.º 2 do artigo 103.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
  5. Acresce que, não tendo sido proferida qualquer decisão que declare com força obrigatória geral o vício de violação de lei comunitária, relativamente à nova redação do mencionado artigo 11.º, a AT terá de proceder à tributação dos veículos usados de acordo com a legislação atualmente em vigor, que se encontra vertida no CISV.
  6. Não obstante, mais se dirá que o Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, proferido no Processo C-169/20, não entendeu que a percentagem de redução de imposto a aplicar às componentes cilindrada e ambiental teria de ser a mesma, mas sim que a componente ambiental deveria ser desvalorizada, como já o foi mediante a alteração ao n.º 1 do artigo 11.º do CISV, na nova redação dada pelo artigo 391.º da Lei nº 75-B/2020, de 31 de dezembro.
  7. Assim, ao ser estabelecida legalmente a tabela de desvalorização relativamente ao imposto resultante da componente ambiental, ficou afastada a ilegalidade e a desconformidade da legislação nacional face ao primado do direito comunitário.
  8. Conclui-se, assim, que a liquidação de ISV, ao aplicar o artigo 11.º do CISV, foi efetuada em conformidade com a lei nacional em vigor e com o direito comunitário, cumprindo, designadamente, o disposto nos artigos 110.º e 191.º do TFUE e nos artigos 66.º e 103.º da Constituição, não existindo, conforme o exposto, a invocada discriminação da tributação dos veículos usados nacionais relativamente aos admitidos de outros Estados-membros, não se verificando, consequentemente, a alegada violação do artigo 110.º do TFUE.
  9. Não pode, por conseguinte, ser imputado ao ato de liquidação, ora impugnado, qualquer vício de violação do direito da União Europeia, mormente do artigo 110.º do TFUE, por não ter sido aplicada a mesma redução de anos de uso à componente ambiental, atendendo a que, além de a nova/atual redação do n.º 1 do artigo 11.º consagrar na Tabela D percentagens de redução para a componente ambiental.
  10. No que concerne ao pedido de pagamento de juros indemnizatórios, importa referir que, caso venha a considerar-se que o pedido arbitral deva proceder e que o ato de liquidação venha a ser parcialmente anulado, não poderá, todavia, proceder o pedido de pagamento de juros.
  11. Efetivamente, o direito a juros indemnizatórios, consagrado no artigo 43.º da Lei Geral Tributária, pressupõe que se apure a existência de erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida em montante superior ao legalmente devido mas  no caso concreto, conforme supra explanado, não se verifica a existência de qualquer erro que possa ser imputável à administração tributária pois  a liquidação em causa nos presentes autos decorreu exclusivamente da aplicação da lei em vigor, tendo sido efetuada nos termos das normas aplicáveis, previstas no CISV, que determinam a exigibilidade e consequente liquidação do imposto.
  12. Pelo que, face ao invocado, tendo a AT agido no cumprimento estrito da lei, não se verifica qualquer erro de que possa resultar o pagamento indevido do imposto, não devendo assistir, por conseguinte, à Requerente, o direito ao pagamento de juros indemnizatórios.

 

 

5. Por despacho arbitral de 30.07.2021, foi julgada improcedente a  exceção de caducidade do direito de ação, suscitada pela Requerida.

 

6.Verificando-se a inexistência de  qualquer situação prevista no art. 18º, nº 1, do RJAT, que tornasse necessária a reunião arbitral aí prevista, foi dispensada  a realização da mesma, com fundamento na proibição da prática de atos inúteis.

Foi ainda dispensada a realização de alegações, nos termos do art. 18º, nº 2, do RJAT, “a contrario”.

 

7. O tribunal é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído nos termos do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas.

 

8. Cumpre solucionar as seguintes  questões:

a) Ilegalidade das liquidações de ISV objeto do processo e anulação parcial das mesmas.

b) Direito da Requerente à restituição parcial do imposto pago.

c) Direito da Requerente a juros indemnizatórios.

 

II – A matéria de facto relevante

 

9. Consideram-se provados os seguintes factos:

 

9.1. A impugnante introduziu em Portugal, no período compreendido entre 4.05.2021 e 16.09.2021, os seguintes veículos automóveis usados:

-Em 04.05.2021, o veículo marca ..., proveniente de França, matricula ... .

-Em 15.06.2021, o veículo marca..., proveniente de Alemanha, matricula ... .

-Em 21.06.2021, o veículo marca ..., proveniente de Alemanha, matricula ... .

-Em 21.06.2021, o veículo marca ..., proveniente de Alemanha, matricula ... .

-Em 19.08.2021, o veículo marca ..., proveniente de França, matricula ... .

-Em 16.09.2021, o veículo marca ..., proveniente de Alemanha,  matricula ... .

9.2. Para além destes veículos, introduziu, ainda, em 30.03.2022, 20.04.2022 e 6.05.2022, respetivamente, os seguintes três veículos:

 -..., proveniente de França, com a matrícula ...;

-..., proveniente de França, com a matrícula ...;

-..., proveniente de Espanha, com a matrícula ...;

9.3. A impugnante procedeu às declarações aduaneiras dos referidos veículos, tendo a Requerida efetuado as correspondentes liquidações de imposto de ISV, que ascenderam ao valor total de 12.752,25 €, que foi pago pelo sujeito passivo.

9.4. Do referido montante de 12.752,25 €, 7.713,72€, corresponde à componente cilindrada e 5.038,79 € corresponde à componente ambiental, valores que tiveram em conta as reduções previstas na lei referentes ao número de anos de uso dos veículos.

9.5. As percentagens de redução aplicadas relativamente à componente ambiental foram inferiores às aplicadas à componente cilindrada, em conformidade com o disposto na Lei.

9.6. caso a percentagem de redução da componente ambiental tivesse sido igual à aplicada à componente cilindrada, o ISV das liquidações objeto do processo sofreria uma redução global de 2.114,48€.

9.7.A impugnante requereu em 21.01.2022 junto da Alfândega de Braga, a revisão de atos tributários com fundamento no disposto da 2ª parte do nº 1 do artigo 78º da Lei Geral Tributária, tendo por objeto as liquidações incidentes sobre os veículos  identificadas no número 9.1. do probatório.

9.8.Tal pedido de  revisão foi indeferido, por despacho proferido pelo  Diretor da Alfândega de Figueira da Foz, notificado à impugnante em 8.03.2022.

 

Com interesse para a decisão da causa inexistem factos não provados.

 

10. A convicção do Tribunal quanto à decisão da matéria de facto alicerçou-se nos documentos constantes do processo, que não foram objeto de impugnação por nenhuma das partes, bem como da posição da Requerida relativamente aos factos alegados pela Requerente que, nem em sede de procedimento de revisão, nem em sede de resposta apresentada no presente processo, foram contestados, antes emergindo total concordância das partes relativamente à matéria de facto alegada pela Requerente, restringindo-se o desacordo, em exclusivo, a matéria de direito.

 

-III- O Direito aplicável

 

 

11. Da ilegalidade das liquidações de ISV.

 

Escreveu-se na decisão arbitral proferida no processo 572/2018-T, além do mais, o seguinte:

 

“6.47. Em sede de ISV, existe um longo percurso no que diz respeito às questões que a Comissão Europeia tem levantado ao Estado Português em matéria de legalidade das normas nacionais, nomeadamente, quanto à carga fiscal incidente sobre os veículos usados.

6.48. Com efeito, essa legalidade foi muito cedo questionada pela Comissão Europeia, ainda no âmbito do Imposto Automóvel, porquanto esta entendia que as normas portuguesas então vigentes não observavam o disposto no artigo 95º do Tratado de Roma e, sendo necessário que Portugal perdesse o seu carácter protecionista, era imprescindível que o montante de imposto fosse idêntico ao remanescente do imposto incorporado no preço dos veículos usados similares, comercializados no mercado português, remanescente esse a calcular a partir da percentagem da depreciação do valor desses veículos.

(…).

6.66. Não obstante as disposições internas, e como já vimos, o artigo 110º do TFUE (na esteira do artigo 90º do Tratado de Roma), preceitua que “nenhum EM fará incidir, direta ou indiretamente, sobre os produtos dos outros Estados Membros imposições internas, qualquer que seja a sua natureza, superiores às que incidam, direta ou indiretamente sobre produtos nacionais similares”.

6.67. Sobre a interpretação deste artigo face aos direitos nacionais já o TJUE se pronunciou por diversas vezes precisando o seu alcance dado que a admissão nos mercados nacionais de veículos automóveis portadores de placa de matrícula definitiva de outros Estados membros, isto é de veículos usados, rege-se exclusivamente pelo direito nacional, não podendo, todavia, tal direito contrariar os princípios em que se alicerça o funcionamento da UE.

6.68. Por isso, dentro da liberdade conformadora que o legislador nacional dispõe para modelar o imposto de forma a proceder à sua cobrança de forma exequível e eficaz, é necessário ter em conta, para além da opinião da Comissão Europeia, enquanto entidade a quem cabe zelar pelo respeito pelo Tratado, a jurisprudência comunitária que se vai produzindo.

6.69. E tanto assim é que em conformidade com o documento anexado pela Requerida com as suas alegações escritas se percebe que o Estado Português, interpelado pela Comissão Europeia em 2009/2010, quanto à forma como eram tributados os veículos usados admitidos em Portugal provenientes da UE (porque contrária ao previsto no referido e citado artigo 110º do TFUE), se viu forçado a alterar a legislação em vigor em matéria de ISV, em concreto o artigo 11º, nº 1 do Código do ISV (naquela data vigente), através da Lei nº 55-A/2010, de 31 de Dezembro (Lei do OE para 2011), no sentido de:

O imposto incidente sobre veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros Estados membros da União Europeia é objecto de liquidação provisória, com base na aplicação das percentagens de redução previstas na tabela D ao imposto resultante da tabela respectiva, as quais estão associadas à desvalorização social média dos veículos no mercado nacional, calculada com referência à desvalorização comercial média corrigida do respectivo custo de impacte ambiental:

6.70. Contudo, como não foi comtemplada, com a referida alteração legislativa, a questão da desvalorização dos veículos usados, oriundos de outro EM, com menos de um anos e mais de cinco, surge então o já citado Acórdão do TJUE nº C–200/15, de 16 de Junho de 2016 (referido e citado pelo Requerente), visando directamente a legislação nacional, consubstanciada no artigo 11º do Código do ISV (na redacção em vigor até 2016), nos termos do qual se veio considerar que “a República Portuguesa ao aplicar, para efeitos da determinação do valor tributável dos veículos usados provenientes de outro EM, introduzidos no território nacional, um sistema relativo ao cálculo da desvalorização dos veículos que não tem em conta a sua desvalorização antes de atingirem um ano, nem a desvalorização que seja superior a 52% no caso de veículos com mais de cinco anos, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110º do TFUE” (sublinhado nosso).

6.71. E assim, o legislador nacional foi forçado a alterar o referido artigo 11º do Código do ISV, no sentido de nele incluir a desvalorização referida no ponto anterior, através da Lei nº 42/2016, de 28 de Dezembro, mas excluindo de novo da redação do artigo a questão da desvalorização incidente sobre a componente ambiental do ISV.

6.72. Assim, os actuais contornos da legislação nacional ignoram, no artigo 11º, nº 1 Tabela D, o previsto no artigo 110º do TFUE e a posição que o TJUE tem assumido (e que já assumia face ao disposto no artigo 90 do Tratado de Roma) de que este artigo visa garantir a perfeita neutralidade das imposições internas no que se refere à concorrência entre produtos que já se encontrem no mercado nacional e produtos importados, de modo que não pode, em caso algum, ter efeitos discriminatórios.

6.73. A situação descrita levou (de novo) a Comissão Europeia, na sua busca de justiça comunitária, a dar início a um procedimento contra Portugal por este EM não ter em conta a componente ambiental no cálculo do ISV aplicável aos veículos usados “importados” de outros EM, gerando efeitos discriminatórios nestas viaturas face às viaturas usadas adquiridas em território nacional.

6.74. Com efeito, a Comissão volta a entender que a legislação nacional não é compatível com o disposto no artigo 110º do TFUE, na medida em que os veículos usados “importados” de outros EM são sujeitos a uma carga tributária superior em comparação com os veículos usados adquiridos no mercado nacional. “

(…)

 

6.85. Não obstante a Requerida referir que “(…) o conteúdo do artigo 110º deste tratado proveio do artigo 90º do tratado CE, ao qual ainda não estavam subjacentes as preocupações ambientais, com a acuidade que hoje se colocam”, tal afirmação não será de todo correcta porquanto o artigo 191º do TFUE teve origem no artigo 174º daquele Tratado e também a jurisprudência do TJUE se referiu em diversos momentos às questões ambientais na interpretação do referido artigo 90º, nomeadamente, no já citado processo C-290/05.

6.86. E, recorde-se, em conformidade com o que é defendido pelo Requerente, o Acórdão do TJUE (C-200/15), de 16-06-2016, refere que “este artigo (110º do TFUE) é violado sempre que a imposição que incide sobre o artigo importado e a que incide sobre o produto nacional similar são calculados de forma diferente e segundo modalidades diferentes que conduzam (…) a uma imposição superior do produto importado (…)”, sendo que “(…) um Estado-Membro não pode cobrar um imposto sobre os veículos usados importados, calculado com base num valor superior ao valor real do veículo, tendo como efeito uma tributação mais onerosa destes relativamente à dos veículos usados similares, disponíveis no mercado nacional (…)”.[3]

 

(…)

6.87. Nestes termos, entende este Tribunal Arbitral que, o que deverá aqui relevar é que o artigo 11º do Código do ISV está em desconformidade com o disposto no artigo 110º do TFUE porquanto aquele artigo não pode, em conformidade com o que este artigo dispõe, calcular o imposto sobre veículos usados oriundos de outro EM sem ter em conta a depreciação dos mesmos, de tal forma que, neste caso, o imposto calculado ultrapasse o montante de ISV contido no valor residual de veículos usados similares que já foram registados no EM de importação, ou seja, dos veículos usados nacionais.”

 

 

Entendimento idêntico foi perfilhado em sucessivas decisões arbitrais proferidas, designadamente, nos processos n.º 346/2019-T, 348/2019-T, 350/2019-T, 459/2019-T, 498/2019-T e 660/2019-T, 13/2020-T, 293/2020-T, 474/2020-T, entre outras.

 

12. A controvérsia em questão foi objeto de apreciação do TJUE no acórdão de 2.09.2021, proferido no processo C‑169/20 (Comissão Europeia contra República Portuguesa), e decidido no sentido perfilhado pela jurisprudência nacional acima referida, podendo ler-se no mesmo, designadamente,  o seguinte:

“39      No caso em apreço, resulta dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça que, na sequência do Acórdão de 16 de junho de 2016, Comissão/Portugal (C‑200/15, não publicado, EU:C:2016:453), a República Portuguesa reformou o seu regime de tributação dos veículos objeto de uma primeira colocação em circulação em Portugal. Segundo o regime resultante da referida reforma, o imposto em causa, cobrado nessa ocasião, inclui duas componentes, uma calculada em função da cilindrada do veículo em questão e a outra, denominada «componente ambiental», em função do nível de emissão de dióxido de carbono desse veículo.

40      Diferentemente da componente do imposto em causa calculada em função da cilindrada do veículo, para a qual o artigo 11.º do Código do Imposto sobre Veículos prevê uma percentagem de redução em função da idade do veículo, não está prevista nenhuma redução da componente ambiental do referido imposto que reflita a desvalorização do valor comercial do veículo a esse título.

41      Daqui resulta que a legislação nacional que institui o imposto em causa tem por consequência que o montante do imposto de registo para os veículos usados importados em Portugal de outros Estados-Membros é calculado sem tomar em consideração a desvalorização real desses veículos. Por conseguinte, a referida legislação não garante que os veículos usados importados de outro Estado‑Membro sejam sujeitos a um imposto de montante igual ao do imposto que incide sobre os veículos usados similares já presentes no mercado nacional, o que é contrário ao artigo 110.º TFUE.

42      A este respeito, não contestando que o Código do Imposto sobre Veículos não prevê nenhuma redução da componente ambiental do imposto em causa relativamente aos veículos usados importados no seu território, a República Portuguesa considera, antes de mais, que esta circunstância se justifica por um objetivo de proteção do ambiente. Com efeito, o pagamento integral da componente ambiental não tem por objetivo restringir a entrada de veículos usados em Portugal, mas subordinar essa entrada a um critério seletivo aplicando exclusivamente critérios ambientais.

43      Ora, importa recordar que, embora os Estados‑Membros sejam, na verdade, livres de estabelecer um sistema de tributação diferenciada para certos produtos e, portanto, de definir as modalidades de cálculo do imposto de registo de modo a ter em conta considerações relacionadas com a proteção do ambiente, não é menos verdade que essas modalidades devem, nomeadamente, ser suscetíveis de evitar qualquer forma de discriminação, direta ou indireta, relativamente às importações provenientes de outros Estados‑Membros, ou de proteção em favor de produções nacionais concorrentes, em conformidade com o artigo 110.º TFUE (v., neste sentido, Acórdãos de 2 de abril de 1998, Outokumpu, C‑213/96, EU:C:1998:155, n.º 30, e de 7 de abril de 2011, Tatu, C‑402/09, EU:C:2011:219, n.º 59).

44      A este respeito, o Tribunal de Justiça já teve oportunidade de sublinhar que o artigo 110.º TFUE se opõe a um imposto relativo ao registo dos veículos cujo montante, determinado, nomeadamente, em função da «classificação ambiental» dos veículos, seja calculado sem ter em conta a depreciação dos mesmos, de tal forma que, quando se aplique a veículos usados importados de outros Estados‑Membros, ultrapasse o montante do referido imposto contido no valor residual de veículos usados similares que já foram registados no Estado‑Membro de importação (Acórdão de 5 de outubro de 2006, Nádashi e Németh, C‑290/05 e C‑333/05, EU:C:2006:652, n.os 56 e 57).

45      Por outro lado, o Tribunal de Justiça declarou igualmente que o objetivo de proteção do ambiente poderia ser realizado de forma mais completa e coerente fazendo incidir um imposto anual sobre qualquer veículo que entrasse em circulação num Estado‑Membro, o qual não beneficiaria o mercado nacional dos veículos usados em detrimento da colocação em circulação de veículos usados importados de outros Estados‑Membros e seria, além disso, conforme com o princípio do poluidor‑pagador (v., neste sentido, Acórdão de 7 de abril de 2011, Tatu, C‑402/09, EU:C:2011:219, n.º 60).”

(…)

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Nona Secção) decide:

1)      Ao não desvalorizar a componente ambiental no cálculo do valor aplicável aos veículos usados postos em circulação no território português e adquiridos noutro Estado‑Membro, no âmbito do cálculo do imposto sobre veículos previsto no Código do Imposto sobre Veículos, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 71/2018, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.º TFUE.[4] [5]

         (…)”

 

13. O  artigo 391.º da Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro, (Lei do Orçamento para 2021), veio estabelecer nova redação para o nº 1, do artigo 11º, do CISV, que passou a ter  o seguinte teor:

 

1 -O imposto incidente sobre veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros Estados -Membros da União Europeia é objeto de liquidação provisória nos termos das regras do presente Código, ao qual são aplicadas as percentagens de redução previstas na tabela D ao imposto resultante da tabela respetiva, tendo em conta a componente cilindrada e ambiental, incluindo-se o agravamento previsto no n.º 3 do artigo 7.º, as quais estão associadas à desvalorização comercial média dos veículos no mercado nacional e à vida útil média remanescente dos veículos, respetivamente:

 

TABELA D

Componente cilindrada

 

Tempo de uso

Percentagem de redução

Até 1 ano..............................

10

Mais de 1 a 2 anos ............. .

20

Mais de 2 a 3 anos ...............

28

Mais de 3 a 4 anos ...............

35

Mais de 4 a 5 anos ...............

43

Mais de 5 a 6 anos ...............

52

Mais de 6 a 7 anos ...............

60

Mais de 7 a 8 anos ...............

65

Mais de 8 a 9 anos ...............

70

Mais de 9 a 10 anos..............

75

Mais de 10 anos ...................

80

 

Componente ambiental

 

Tempo de uso

Percentagem de redução

Até 2 anos.............................

10

Mais de 2 a 4 anos ............... .

20

Mais de 4 a 6 anos ...............

28

Mais de 6 a 7 anos ...............

35

Mais de 7 a 9 anos ...............

43

Mais de 9 a 10 anos .............

52

Mais de 10 a 12 anos ...........

60

Mais de 12 a 13 anos ...........

65

Mais de 13 a 14 anos............

70

Mais de 14 a 15 anos ...........

75

Mais de 15 anos……………

80

 

 

 

Porém, tendo em consideração o supra  exposto e à luz do acórdão citado é apodítico que o artigo 11.º do CISV, na redação  conferida pela Lei n.º 75-B/2020, de 31/12, continua a ser incompatível com o Direito da União Europeia, por violação do artigo 110.º do TFUE porquanto  no cálculo do imposto considera  apenas parcialmente a redução inerente à  desvalorização respeitante à  componente ambiental e, nessa medida, não eliminou integralmente  a discriminação inerente à solução legal anterior.

Deste modo, continuou  a legislação nacional a não  “ter em conta a depreciação dos mesmos, de tal forma que, quando se aplique a veículos usados importados de outros Estados‑Membros, ultrapasse o montante do referido imposto contido no valor residual de veículos usados similares que já foram registados no Estado‑Membro de importação”  e continuando a não ser idónea a  “evitar qualquer forma de discriminação, direta ou indireta, relativamente às importações provenientes de outros Estados‑Membros, ou de proteção em favor de produções nacionais concorrentes, em conformidade com o artigo 110.º TFUE”.

 

Neste sentido foi a decisão arbitral proferida no processo 372/2021-T 28 de março de 2022[6], que se acompanha e  onde se pode ler:

 

(…) é, pois, entendimento deste tribunal arbitral que a atual redação não tem em consideração a depreciação real do veículo, quando aplica distintas taxas de redução, conforme se está na componente de cilindrada ou na competente ambiental. Sendo a viatura a mesma, não se justifica a existência de diferentes depreciações, por efeito da imposição de objetivos ambientais, porque dessa forma se gera, uma vez mais, um fator discriminativo, ainda que de menor dimensão, por continuar a exceder o montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados no território nacional.

 

(…)

 

E a situação analisada pelo referido acórdão, ainda à luz da anterior redação do artigo 11.º, n.º 1, do CISV, não se alterou integralmente com a nova redação, uma vez que não se pode deixar de considerar que não é tomada em consideração em toda a sua amplitude a desvalorização real destes veículos, pelo que não estando garantido que os veículos usados importados de outro Estado-Membro sejam sujeitos a um imposto de montante igual ao do imposto que incide sobre os veículos usados similares já presentes no mercado nacional, tal implica a violação do artigo 110.º TFUE.”[7]

 

Assim,  face ao princípio do primado do Direito da União Europeia, os atos de liquidação em causa, não considerando  a redução na vertente relativa à componente ambiental de ISV de modo a que não  ultrapasse “o montante do referido imposto contido no valor residual de veículos usados similares que já foram registados no Estado‑Membro de importação”  encontram-se feridos de ilegalidade, não podendo deixar de ser  parcialmente anulados, no que respeita  ao excesso de tributação decorrente daquela ausência de redução, nos termos peticionados pelo Requerente.

 

14. Veio, ainda, a Requerente pedir a condenação da Requerida a reembolso das quantias indevidamente arrecadadas, bem como o pagamento de juros indemnizatórios que se mostrarem devidos, nos termos do artigo 43.º da Lei Geral Tributária.

 

No caso em apreço, é manifesto que, na sequência da ilegalidade dos atos de liquidação, é procedente a pretensão do Requerente à restituição  por força  dos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal é essencial para restabelecer a situação que existiria se a ilegalidade em causa não tivesse sido praticada.

 

15. No que concerne aos juros indemnizatórios, cabe ainda apreciar esta pretensão à luz do artigo 43º da Lei Geral Tributária, havendo que distinguir, face ao disposto no nº 3, al. c), da Lei Geral Tributária, as liquidações que foram objeto de impugnação direta para o tribunal arbitral das que foram previamente   objeto de pedido de revisão oficiosa.

 

No que respeita  aos juros indemnizatórios referentes  às liquidações objeto de impugnação direta para o Tribunal Arbitral,  cabe apreciar esta pretensão à luz do citado nº 1, do  artigo 43.º, nº 1,  da Lei Geral Tributária que dispõe o seguinte:

 

 “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.

 

Considerou-se no acórdão do STA de 8 de Março de 2017, proferido no proc. 01019/14, em sintonia  com jurisprudência constante do mesmo Tribunal, o seguinte:

Sobre o denominado “erro imputável aos serviços” tem a jurisprudência desta secção uniforme e reiteradamente afirmado que o respectivo conceito compreende não só o lapso, o erro material ou o erro de facto, como também o erro de direito, e que essa imputabilidade é independente da demonstração da culpa dos funcionários envolvidos na liquidação afectada pelo erro (Vide, entre outros, os seguintes Acórdãos da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo: de 12.02.2001, recurso nº 26.233, de 11.05.2005, recurso 0319/05, de 26.04.2007, recurso 39/07, de 14.03.2012, recurso 01007/11 e de 18.11.2015, recurso 1509/13, todos in www.dgsi.pt.).”[8]

 

Por outro lado, consta do acórdão TJUE de  4 de dezembro de 2018,no processo C‑378/17, em linha com a jurisprudência do mesmo Tribunal aí referida:

“38      Como diversas vezes afirmou o Tribunal de Justiça, a referida obrigação de não aplicar uma legislação nacional contrária ao direito da União incumbe não só aos órgãos jurisdicionais nacionais mas também a todos os órgãos do Estado, incluindo as autoridades administrativas, encarregados de aplicar, no âmbito das respetivas competências, o direito da União (v., neste sentido, Acórdãos de 22 de junho de 1989, Costanzo, 103/88, EU:C:1989:256, n.o 31; de 9 de setembro de 2003, CIF, C‑198/01, EU:C:2003:430, n.o 49; de 12 de janeiro de 2010, Petersen, C‑341/08, EU:C:2010:4, n.o 80; e de 14 de setembro de 2017, The Trustees of the BT Pension Scheme, C‑628/15, EU:C:2017:687, n.o 54).”

39      Daqui resulta que o princípio do primado do direito da União impõe não só aos órgãos jurisdicionais mas a todas as instâncias do Estado‑Membro que confiram plena eficácia às normas da União.”

Na decisão do processo The Trustees of the BT Pension Scheme, C‑628/15, pode também   ler-se que:

 “há que recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, tanto as autoridades administrativas como os órgãos jurisdicionais nacionais encarregados de aplicar, no âmbito das respetivas competências, as disposições do direito da União têm a obrigação de garantir a plena eficácia dessas disposições e de não aplicar, se necessário pela sua própria autoridade, qualquer disposição nacional contrária, sem pedir nem aguardar pela eliminação prévia dessa disposição nacional por via legislativa ou por qualquer outro procedimento constitucional (v., neste sentido, relativamente às autoridades administrativas, acórdãos de 22 de junho de 1989, Costanzo, 103/88, EU:C:1989:256, n.o 31, e de 29 de abril de 1999, Ciola, C‑224/97, EU:C:1999:212, n.os 26 e 30, e, relativamente aos órgãos jurisdicionais, acórdãos de 9 de março de 1978, Simmenthal, 106/77, EU:C:1978:49, n.o 24, e de 5 de julho de 2016, Ognyanov, C‑614/14, EU:C:2016:514, n.o 34).[9]

 

Na doutrina nacional, refere Fausto de Quadros:

“(…) temos a obrigação para a Administração Pública de recusar a aplicação de normas ou actos nacionais contrários ao Direito Comunitário, e de aplicar este mesmo contra Direito nacional de sentido contrário, conforme doutrina acolhida, de forma modelar no caso Factortame, já referido neste livro por diversas vezes. A Administração Pública vai ter, ainda mais do que o legislador, a necessidade de levar essa doutrina em conta no desempenho da sua missão de aplicar o Direito.[10]

No mesmo sentido, vai Miguel Gorjão-Henriques, que sobre o princípio do primado do direito comunitário escreve:

”(…) indubitavelmente, a dimensão clássica do princípio é aquela que, com clareza, nos enuncia Rostane MEHDII, ao salientar que o juiz e a administração têm a obrigação de «excluir as regras internas adoptadas em violação da legalidade comunitária[11]

Nesta conformidade, estando a Requerida obrigada a desaplicar o direito nacional contrário ao direito da União, a não observância de tal dever consubstancia de erro de direito  imputável aos serviços.

Assim tem concluído, pacificamente, a jurisprudência nacional, pois, como se pode ler  no acórdão do STA proferido em 19.11.2014, no processo 0886/14:

desde há muito entendido este Supremo Tribunal de forma pacífica que existindo um erro de direito numa liquidação efectuada pelos serviços da administração tributária, e não decorrendo essa errada aplicação da lei de qualquer informação ou declaração do contribuinte, o erro em questão é imputável aos serviços, pois tanto o n.º 2 do artigo 266° da Constituição como o artigo 55° da Lei Geral Tributária estabelecem a obrigação genérica de a administração tributária actuar em plena conformidade com a lei, razão por que qualquer ilegalidade não resultante de uma actuação do sujeito passivo será imputável à própria Administração, sendo que esta imputabilidade aos serviços é independente da demonstração da culpa de qualquer um dos funcionários envolvidos na emissão do acto afectado pelo erro, conforme se deixou explicado, entre outros, no acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo em 12/12/2001, no recurso n.º 026233, pois «havendo erro de direito na liquidação, por aplicação de normas nacionais que violem o direito comunitário e sendo ela efectuada pelos serviços, é à administração tributária que é imputável esse erro, sempre que a errada aplicação da lei não tenha por base qualquer informação do contribuinte. Por outro lado, esta imputabilidade aos serviços é independente da culpa de qualquer dos seus funcionários ao efectuar liquidação afectada por erro» já que «a administração tributária está genericamente obrigada a actuar em conformidade com a lei (arts. 266°, n.° 1 da CRP e 55° da LGT), pelo que, independentemente da prova da culpa de qualquer das pessoas ou entidades que a integram, qualquer ilegalidade não resultante de uma actuação do sujeito passivo será imputável a culpa dos próprios serviços. - cfr., por todos, o Acórdão deste STA de 14 de Março de 2012, rec. n.º 1007/11, e numerosa jurisprudência aí citada.

 

Assim, no caso sub judice, à luz da jurisprudência e doutrina referidas, não estando a Requerida exonerada do dever de aplicação do primado do direito europeu, não poderá deixar de proceder o pedido de condenação quanto aos juros indemnizatórios, com fundamento em erro imputável aos serviços[12], contados desde a data da retenção até à do processamento da nota de crédito, em que são incluídos (artigo 61.º, n.º 5, do CPPT).

 

16. Quanto às liquidações que foram previamente   objeto de pedido de revisão oficiosa, há, porém, que ter em conta  o nº 3, al. c)  do referido art. 43º da LGT  que dispõe o seguinte:

“3 - São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias:

(…)

c) Quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.”

 

 

Pode ler-se no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 23-05-2018, processo 1201/17:

“3.8. Importa, por isso, afrontar a questão de saber se os juros indemnizatórios são devidos desde a data em que o pagamento do tributo foi efetuado ou a partir de um ano após o pedido de revisão formulado pelo contribuinte.


Já vimos que o acórdão fundamento entendeu que os juros indemnizatórios a que as impugnantes têm direito neste processo são apenas devidos a partir de um ano após o pedido de revisão por elas formulado.


O acórdão de 15-02-2007, processo 01041/06, deste STA tem o seguinte sumário:
“I - A revisão oficiosa dos actos de liquidação é susceptível de ser provocada pelo interessado, dentro do respectivo prazo, com fundamento em qualquer erro, de facto ou de direito, imputável à Administração.


II - Pedida a revisão oficiosa do acto de liquidação e vindo o acto a ser anulado, mesmo que só na impugnação judicial do indeferimento daquela revisão, os juros indemnizatórios são devidos depois de decorrido um ano após a iniciativa do contribuinte, e não desde a data do desembolso da quantia liquidada.”.


Neste acórdão são referidos os diversos acórdãos que neste mesmo sentido se pronunciaram.
E o acórdão fundamento acompanhou esta corrente jurisprudencial afirmando no seu sumário o seguinte:


“I - O art.º 43.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária estabelece que são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, sem definir o momento a partir do qual são os mesmos devidos.
II - O nº 3, c) do mesmo preceito consagra que também são devidos juros indemnizatórios, «quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à Administração Tributária».
III - O legislador considera que o prazo de um ano é o prazo razoável para a Administração decidir o pedido de revisão e executar a respectiva decisão, quando favorável ao contribuinte, afastando-se da indemnização total dos danos a partir do momento em que surgiram na esfera patrimonial do contribuinte.”


Do artigo 43.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária resulta que são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.


Não resulta desta norma qual o momento a partir do qual são os juros indemnizatórios devidos.
O n.º 3, c) do mesmo preceito estabelece, contudo, que são devidos juros indemnizatórios, “quando a revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte se efetuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à Administração Tributária”.
À situação em apreciação é aplicável o nº 3, al. c) do artigo 43º da Lei Geral Tributária pois que podendo a recorrida ter questionado a liquidação optou por nada fazer até ao momento em que apresentou um pedido de revisão oficiosa do ato tributário.


Como se escreveu no acórdão fundamento entre a data da liquidação e a data do pedido de revisão decorreu um extenso período em que a reposição da legalidade poderia ter sido provocada por iniciativa do contribuinte que a não impulsionou, o que justifica que o direito a juros indemnizatórios haja de ter uma extensão mais reduzida por contraposição à situação em que o contribuinte, suscita a questão da ilegalidade do ato de liquidação imediatamente após o pagamento da quantia em questão pois que entendeu o legislador que o prazo de um ano é o prazo razoável para a Administração decidir o pedido de revisão e executar a respetiva decisão, quando favorável ao contribuinte, afastando-se da indemnização total dos danos a partir do momento em que surgiram na esfera patrimonial do contribuinte.
Daí que se possa concluir que esta norma do artigo 43.º, n.º 3 c) da LGT consagra um regime especial, quanto aos juros indemnizatórios, aplicável apenas em situações de revisão, como é o caso dos presentes autos e não perante a situação normal típica em que a impugnação da liquidação se inicia após o pagamento.” [13]

 

 

Em conformidade com este aresto, que se acompanha, no que respeita às liquidações que foram objeto de pedido de revisão oficiosa a Requerente apenas terá direito a juros indemnizatórios a partir do fim do prazo de um ano após a apresentação do pedido de revisão formulado, ou seja, a partir de 21.01.2023.

 

 

-IV- Decisão

 

Assim, nos termos e com os fundamentos supra expostos decide o Tribunal arbitral julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência:

  1. Decretar a ilegalidade e a anulação parcial  dos atos tributários impugnados, sendo esta anulação parcial  no valor de €2.114,48€, nos termos peticionados pela Requerente.
  2. Condenar a Requerida a restituir tal montante à Requerente.
  3. Condenar a Requerida a pagar juros indemnizatórios à Requerente, contados, no que respeita  aos montantes correspondentes às anulações parciais  referentes às liquidações objeto de impugnação direta para o Tribunal Arbitral,   desde a data do pagamento até à do processamento da nota de crédito, em que são incluídos (artigo 61.º, n.º 5, do CPPT) e, no que respeita às anulações parciais  referentes às liquidações objeto de pedido de revisão oficiosa prévia ao pedido de pronúncia arbitral, contados a partir de 21.01.2023.

 

Valor da ação:  2.114,48€ (Dois mil cento e catorze euros e quarenta e oito cêntimos) nos termos do disposto no art. 306º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.

 

Custas pela Requerida, no valor de 612.00 €, nos termos do nº 4 do artigo 22º do RJAT.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, CAAD, 30.01.2023

 

O Árbitro

 

 

Marcolino Pisão Pedreiro

 

 

 



[1] Imposto sobre Veículos.

[2] Declaração Aduaneira de Veículos.

[3] Nesta linha, pode ler-se na decisão arbitral proferida no processo 660/2019-T:

55. Nesta sede, importa referir que decorre da jurisprudência do TJUE e da própria sistemática do TFUE que, ao contrário do que indica a AT, a norma do artigo 110.º do TFUE é imperativa e sobrepõe-se às normas de cariz ambiental do artigo 191.º do TFUE. Assim, ainda que um EM utilize componente ambientais na determinação do cálculo do regime de tributação de veículos, nunca poderá, com base nessa componente, agravar a tributação de veículos usados provenientes de outros EM face aos veículos usados já matriculados em território nacional.

 

56. O que equivale a dizer que não decorre da legislação aplicável que as regras e princípios ambientais constantes do artigo 191.º do TFUE e artigo 66.º da CRP prevaleçam sobre a regra do artigo 110.º do TFUE que é imperativa para os EM.”

 

 

[4]https://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf;jsessionid=FE3112FADCA4F6774A618B09B6B2EF4B?text=&docid=245564&pageIndex=0&doclang=PT&mode=req&dir=&occ=first&part=1&cid=5196996

 

[5] Nossos sublinhados.

[6] Entendimento também acompanhado na decisão arbitral proferida no proc.   607/2021-T Lisboa, de 4 de maio de 2022.

[7] Sublinhado nosso.

[8] Os acórdãos do STA citados nesta decisão arbitral podem ser consultados em “www.dgsi.pt.”

[9] Nosso sublinhado.

[10] DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA, Almedina, 2004, p. 530.

[11] DIREITO DA UNIÃO, Almedina, 8ª edição, 2017, pag. 365. 

 

[12] Neste sentido, também, entre outras, a decisão arbitral  de 1 de Abril de 2021, proferida no proc. 457/2020-T, de 1 de Abril de 2021.

[13] Em sentido idêntico vd.  acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 24-10-2018, processo 099/18.3BALSB, onde também se pode ler:

“Acresce referir que este acórdão segue jurisprudência tirada há algum tempo, designadamente o acórdão de 22/06/2005 tirado no recurso nº 322/05 onde, com muita clarividência se expressou:
(…) O nº 3 refere, ainda, que “são também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias:

c) Quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária”.E entende-se que assim seja pois que se podia o contribuinte com fundamento em erro imputável aos serviços questionar a liquidação, nos termos do nº 1 do mencionado artº 43º, tendo, em tal situação, caso a sua pretensão procedesse direito aos juros indemnizatórios contados nos termos do nº 3 do artº 61º do CPPT (desde a data do pagamento do imposto indevido até à data da emissão da respectiva nota de crédito) se deixou, eventualmente passar o pedido de impugnação e se socorreu do mecanismo da revisão imediatamente ficou sujeito às consequências deste mecanismo legal.


É que ao solicitar tal revisão é razoável que a AT disponha de certo prazo para a apreciar.
Neste sentido pode consultar-se Jorge de Sousa, CPPT Anotado, 4ª edição, 2003, notas 2 e 10 quando afirma que no artº 61º se prevê que sejam pagos juros indemnizatórios quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectue mais de um ano após o pedido, se o atraso for imputável à Administração Tributária sendo o termo inicial de contagem de tais juros indemnizatórios, no caso de revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte (fora das situações de reclamação graciosa enquadráveis no nº 1 do mesmo artº 43º da LGT), devidos a partir de um ano após a apresentação do pedido de revisão, podendo até ser contados a partir de momento posterior se o atraso não for imputável à Administração Tributária.
E não se descortina qualquer inconstitucionalidade em tal preceito legal, na interpretação que se deixa exposta, pois que a opção pela via da revisão que tem este regime e não pelo regime do nº 1 do artº 43º apenas é imputável ao particular que escolheu aquele caminho e não este pelo que não ocorre a inconstitucionalidade defendida da alínea c) do nº 2 do mesmo artº 43º da LGT”. 


Pretender que a aplicação do preceito seria só para casos de procedência do pedido de revisão oficiosa constituiria limitação à extensão dos juros indemnizatórios que não tem na letra da lei correspondência verbal e funcionaria como “condicionadora do sentido decisório da Administração” causticando-a com juros mais extensos no caso de indeferimento do pedido de revisão apresentado muito para além dos prazos de impugnação ou reclamação normais.”