|
|
Versão em PDF |
Sumário:
I – Em face do artigo 38.º, n.º 2 da Lei Geral Tributária, ao referir que, para aplicação da cláusula geral anti abuso, os negócios devem ser dirigidos à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos, não basta que sejam obtidas vantagens fiscais, sendo antes indispensável que a obtenção destas tenha sido um objetivo essencial ou principal visado pelos sujeitos passivos.
II – A fundamentação do ato que decidiu a aplicação da cláusula geral anti abuso que se tem de apreciar é apenas a que consta do próprio ato e elementos para que remete, pois o processo arbitral tributário, como meio alternativo ao processo de impugnação judicial (n.º 2 do artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril), é, como este, um meio processual de mera legalidade, em que se visa eliminar os efeitos produzidos por atos ilegais, anulando-os ou declarando a sua nulidade ou inexistência [artigos 2.º do RJAT e 99.º e 124.º do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a), daquele].
III - Por isso, os atos que são objeto do processo têm de ser apreciados tal como foram praticados, não podendo o tribunal, perante a constatação da invocação de um fundamento ilegal como suporte da decisão administrativa, apreciar se a sua atuação poderia basear-se noutros fundamentos.
Os Árbitros Guilherme W. d’Oliveira Martins, Maria da Graça Martins e Sérgio Santos Pereira, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral Coletivo, decidem o seguinte:
DECISÃO ARBITRAL
I. RELATÓRIO
-
Os Requerentes A..., com o número de identificação fiscal ..., e B..., com o número de identificação fiscal ..., ambos com domicílio fiscal em ..., ...-... ... ARC, notificados do despacho proferido pelo Diretor da Direção de Finanças de Aveiro, através do qual foi indeferida a reclamação graciosa (Processo n.º ...2021...), vêm, ao abrigo do disposto nos artigos 2º, nº 1, al. a) e 10º, nº 1, al. a) do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, e dos artigos 1º e 2º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, formular PEDIDO DE PRONÚNCIA ARBITRAL o que fazem nos termos e com os fundamentos seguintes:
-
Suportada na Ordem de Serviço n.º OI2019..., foi desencadeada uma ação inspetiva externa ao ano de 2016.
-
O procedimento de inspeção teve início a 11/10/2019 e foi concluído a 21/8/2020.
-
Na sequência da ação inspetiva, foi elaborado o Relatório de Inspeção Tributária (RIT), no âmbito do qual a AT efetuou uma correção em sede de IRS, no valor de € 2.020.210,22, relativos a mais-valias derivadas de uma operação de alienação de partes sociais.
-
Aquela correção teve por base a aplicação da norma legal anti abuso prevista no n.º 2 do art.º 38.º da LGT (Cláusula Geral Anti Abuso).
-
Das correções resultantes da ação inspetiva, foi efetuada a liquidação adicional de IRS n.º 2020..., referente ao ano de 2016, da qual resultou um valor a pagar ao Estado no montante de € 831 400,21 (Doc. 2).
-
Em tempo, os ora requerentes deduziram reclamação graciosa contra aquela liquidação, tendo a AT proferido despacho de indeferimento (Doc. 3).
-
Assim, este pedido de pronúncia arbitral tem por objeto imediato a declaração de ilegalidade da decisão de indeferimento da reclamação graciosa e por objeto mediato a declaração de ilegalidade do ato tributário de liquidação adicional de IRS n.º 2020..., referente ao ano de 2016.
-
Antes de mais, importa começar por referir que os aqui requerentes, juntamente com os seus 3 filhos, foram sócios fundadores da sociedade por quotas denominada C..., LDA.
-
Esta sociedade foi constituída em 1993, com um capital social de € 49 879,79, distribuído da seguinte forma:
-
Por duas vezes (27/12/2006 e 30/6/2015), foram efetuados aumentos de capital social por incorporação de reservas.
-
Na sequência desses aumentos, o capital da sociedade ficou distribuído da seguinte forma:
-
Na sequência do aparecimento de graves problemas de saúde do sócio A..., foi tomada uma decisão familiar de se proceder à partilha, em vida, das quotas dos pais pelos três filhos.
-
Todavia, os filhos entenderam por bem doar o usufruto das quotas, com vista a permitir que os pais continuassem a usufruir dos lucros da empresa enquanto fossem vivos.
-
Assim, no dia 30/10/2015, por escritura pública lavrada no Cartório Notarial de D... foram efetuados os seguintes fatos:
-
A... divide a sua quota de € 450 000,00 em quatro quotas:
-
Uma com o valor nominal de € 30 000,00, que reservou para si;
-
Três com o valor nominal de € 140 000,00 cada, que doou a cada um dos seus três filhos (E..., F... e G...).
-
B... divide a sua quota de € 60 000,00 em três quotas com o valor nominal de € 20 000,00 cada, que doou a cada um dos seus três filhos (E..., F... e G...).
-
E..., F... e G... doaram aos pais –A... e B... – o usufruto das quotas que destes receberam em doação.
-
Na sequência das doações, o capital da sociedade ficou estruturado da seguinte forma:
-
Além disso, e com a doação dos usufrutos, a titularidade do usufruto das quotas passou a ser a seguinte:
-
Em 5/12/2016, através de contrato de compra e venda, a totalidade do capital social da C..., LDA., foi alienada à sociedade H... B V, pelo montante total de € 4 710 000,00.
-
A alienação das participações sociais foi efetuada do seguinte modo:
-
A...
Recebeu a quantia de € 235 500,00 pela venda da quota com o valor nominal de € 30 000,00;
Recebeu a quantia de € 824 250,00 pela transmissão do usufruto das quotas correspondentes a 70% do capital social (€ 450 000,00).
-
B... Recebeu a quantia de €164 850,00 pela transmissão do usufruto das quotas correspondentes a 10% do capital social (€ 60 000,00).
-
E... Recebeu a quantia de € 1 161 800,00 pela venda das três quotas com o valor nominal total de € 190 000,00.
-
F... Recebeu a quantia de € 1 161 800,00 pela venda das três quotas com o valor nominal total de € 190 000,00.
-
H... Recebeu a quantia de € 1 161 800,00 pela venda das três quotas com o valor nominal total de € 190 000,00.
-
Uma vez que estas alienações constituem rendimentos da Categoria G, os aqui requerentes declararam este rendimento na declaração de IRS do ano de 2016.
-
No apuramento das mais-valias, os requerentes procederam de acordo com a legislação aplicável, nomeadamente no que toca ao valor de aquisição das participações sociais.
-
Assim, e dando cumprimento ao disposto no n.º 1 do artigo 45º do Código do IRS, o valor de aquisição declarado foi o que serviu de base ao valor considerado para efeitos da liquidação de Imposto do Selo nas transmissões gratuitas efetuadas através da escritura de doação a que já nos reportamos anteriormente.
-
Não obstante, a AT, através de procedimento de inspeção aqui em causa, concluiu que a escritura de doação fez parte de um esquema artificial com vista a reduzir a tributação das mais-valias obtidas com a alienação das participações sociais.
-
Com efeito, no RIT a até considerou que “Tratou-se de um negócio artificioso, supérfluo, destituído de substância económica a não ser por razões de pura economia fiscal, que não pode legitimar a redução da tributação das mais-valias obtidas na posterior alienação das participações sociais, pondo em causa os princípios do sistema fiscal, mormente a relação que se encontra legalmente estabelecida entre capacidade contributiva e imposto suportado”.
-
Face a estas conclusões, a AT desconsiderou o valor de aquisição apurado nos termos do n.º 1 do artigo 45º do Código do IRS.
-
Tendo sido, portanto, estas correções que estiveram na origem da liquidação adicional de IRS objeto do presente pedido de pronúncia arbitral.
-
Antes de mais e para que não restem dúvidas sobre o comportamento dos sujeitos passivos aqui requerentes, importa referir que, em devido tempo, foram solicitados esclarecimentos à Direção de Finanças de Aveiro sobre a correta forma de preenchimento da sua declaração modelo 3 de IRS.
-
Tal como referido no RIT, a Direção de Finanças reconhece a existência desse contacto, o qual foi complementado com um email onde foram solicitados esclarecimentos sobre o preenchimento da declaração modelo 3 de IRS.
-
Não houve assim, por parte dos requerentes, a intenção de “esconder” o que quer que fosse em relação a esta operação.
-
Tal como foi afirmado e esclarecido no decurso do processo inspetivo, o requerente A... teve vários problemas de saúde e em 2015 o médico apresentou um cenário muito grave, pelo que foi intenção proceder à partilha, em vida, das suas quotas pelos três herdeiros, os filhos.
-
O motivo da doação prende-se, assim, inteiramente com os problemas de saúde do requerente e com a idade avançada de ambos os sujeitos passivos, a qual já não lhe permitia conduzir os negócios e os destinos da empresa.
-
Com a doação não era intenção inicial dos filhos reservar o direito de usufruto aos pais.
-
No entanto, no ato da escritura, os filhos entenderam por bem doar o usufruto, com vista a permitir que os pais continuassem a usufruir dos lucros da empresa enquanto fossem vivos.
-
Portanto, a operação de doação não tinha subjacente qualquer benefício específico, equiparando-se a uma mera partilha em vida pelos herdeiros.
-
Estas decisões foram tomadas apenas porque se verificou um agravamento do estado de saúde do requerente A... .
-
Porém, a AT entendeu que o negócio jurídico em discussão resultou de um esquema artificioso, supérfluo, destituído de substância económica a não ser por razões de pura economia fiscal.
-
Considerando ainda que “A escritura de doação outorgada em 30 de Outubro de 2015, foi o meio selecionado para substituir o título aquisitivo a título oneroso (entradas efetivas dos sócios para realização do capital social inicial, em 1993, no valor global de € 49.878,79) por um título aquisitivo a título gratuito (a doação), incrementando, por essa via, o valor de aquisição para € 2.097.224,19, apurado por avaliação fiscal de acordo com as regras do Imposto do Selo, ou seja, com base no último balanço”.
-
Para sustentar a sua decisão, a AT alega que “A verdadeira motivação [da escritura de doação] prende-se efetivamente com os contactos que já tinham sido encetados atinentes à venda da empresa a que respeitam as participações sociais – a C...”.
-
Efetivamente, e tal como foi dito pelos sócios, antes da doação, a empresa foi contactada por uma empresa de consultadoria para uma possível operação de venda.
-
No entanto, os sócios também referiram que a empresa investidora não prosseguiu com a intenção de compra e que o contato apenas foi retomado em Outubro de 2016.
-
Perante esta afirmação, a AT considerou que “…embora tenham acrescentado que a empresa investidora, que não identificam, não prosseguiu com a intenção de compra e que o contacto apenas foi retomado em Outubro de 2016, sabe-se que não foi nem poderia ser assim. Com efeito, o processo de seleção, que incluiu uma auditoria exaustiva às contas da C..., abrangendo vários anos, efetuada ou não em simultâneo com as auditorias a outras empresas com vista à seleção final da empresa alvo do investimento (…) jamais poderia ser iniciado e concluído em pouco mais de um mês (contacto retomado supostamente em outubro de 2016, e negócio deliberado em Assembleia Geral da C... no dia 2 e fechado no dia 6 de dezembro de 2016)”.
-
Estas considerações, por parte da AT, não poderiam estar mais longe da realidade.
-
Refira-se que, através de carta de 28/7/2016, a H... comunicou à C... que não estava interessada na sua aquisição.
-
Esse interesse só viria a ser retomado em Outubro de 2016, conforme foi dito pelos sócios durante a ação inspetiva.
-
Quanto à afirmação da AT que considera impossível efetuar uma auditoria exaustiva às contas da C... em pouco mais de um mês, remetemos para o Relatório da Auditoria efetuada pela I... .
-
Na parte relativa à introdução desse Relatório (segundo parágrafo da pág. 1), consta a data de início dos trabalhos de auditoria: 7 de Novembro de 2016.
-
Tratou-se, com efeito, de uma auditoria “relâmpago” e bastante intensa com muitas horas de trabalho, efetuada em cerca de um mês.
-
Conclui-se assim que as afirmações da AT, colocando em causa o fato da empresa investidora não ter prosseguido com a intenção de compra e que o contato apenas foi retomado em Outubro de 2016, e da impossibilidade de realização de uma auditoria em pouco mais de um mês, são meramente especulativas e destituídas de qualquer fundamento.
-
Além disso, a AT para tentar justificar a decisão de recorrer à CGAA, acrescenta que a decisão de distribuir aos sócios os resultados de 2014 e restituir as prestações suplementares, constituíram um “ato preparatório da futura alienação que já se perspetivava”.
-
De facto, no contrato de compra e venda (folha 28), existe uma imposição aos sócios de C... quanto à não distribuição de dividendos ou qualquer outra remuneração.
-
No entanto, fazendo uma leitura atenta daquela imposição, facilmente se conclui que foi imposto aos sócios da C... a não distribuição de dividendos ou qualquer outra remuneração no período compreendido entre o dia 18 de Outubro de 2016 (data em que a H... manifestou um real e efetivo interesse em adquirir a C...) e 5 de Dezembro de 2016 (data do contrato).
-
Ou seja, à data em que foi decido distribuir resultados e restituir prestações suplementares não existia qualquer imposição que levassem os sócios a tomar as decisões que tomaram.
-
Conclui ainda pela:
I – Falta de verificação dos pressupostos legais de aplicação da CGAA
E pela
II – Violação do princípio da verdade material e do inquisitório
-
Neste último ponto alega que a par de qualquer procedimento administrativo, o procedimento tributário de inspeção visa a descoberta da verdade material.
-
A atividade probatória constitui um ponto de partida essencial através da qual se há-de identificar os fatos e elementos reais que servirão de base para quantificar a prestação tributária real e efetivamente devida.
-
Assim, o procedimento de inspeção tem que ser considerado como um instrumento que garanta e assegure o efetivo respeito pelos direitos fundamentais e garantias dos contribuintes por parte da Administração Tributária.
-
Tal significa que, em qualquer procedimento inspetivo, a AT encontra-se obrigada a desenvolver oficiosamente todas as diligências e iniciativas que se considerem e afigurem adequadas e necessárias à descoberta da verdade material, resultante da obrigação de prossecução do interesse público e que a Administração se encontra vinculada, imposta pelo n.º 1 do artigo 266º da Constituição da República Portuguesa e n.º 1 do artigo 55º da Lei Geral Tributária.
-
Este princípio impõe que, na atividade inspetiva, deva prevalecer a substância sobre a forma.
-
Ou seja, a AT não pode nem deve limitar-se a questões meramente formais, devendo sim apurar todos os fatos, independentemente de os mesmos serem ou não favoráveis ao sujeito passivo.
-
No caso em apreço, entendem os requerentes que a AT não procedeu à verificação de todos os fatos necessários à quantificação da prestação tributária real e efetivamente devida. Vejamos então:
-
O procedimento inspetivo de que os requerentes foram alvo, incidiu sobre as mais-valias obtidas com a alienação de participações sociais no ano de 2016.
-
Na sequência da ação inspetiva foi emitida uma liquidação adicional de IRS, através da qual, ao saldo positivo entre as mais-valias e as menos-valias referidas na al. b) do n.º 1 do artigo 10º do Código do IRS, foi aplicada a taxa autónoma de 28%, prevista na al. c) do n.º 1 do artigo 72º do Código do IRS.
-
Acontece que, à data em que se verificou a alienação das quotas, a C... era considerada uma PME. 100º Com efeito, e de acordo com os critérios definidos no n.º 1 do artigo 2.º do Anexo ao Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de Novembro, “a categoria das micro, pequenas e médias empresas (PME) é constituída por empresas que empregam menos de 250 pessoas e cujo volume de negócios anual não excede 50 milhões de euros ou cujo balanço total anual não excede 43 milhões de euros”.
-
Em consequência disso, a tributação das mais-valias deveria ter sido efetuada nos termos do n.º 3 do artigo 43º do Código do IRS que determina que “o saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias respeitante às operações previstas na al. b) do n.º 1 do artigo 10º do Código do IRS, relativo a micro e pequenas empresas não cotadas nos mercados regulamentado ou não regulamentado da bolsa de valores, quando positivos, é igualmente considerado em 50% do seu valor. 18 104º Ora, tendo em conta que, nos termos do artigo 58º da LGT, a AT se encontra vinculada à obrigação de realizar todas as diligências necessárias à descoberta da verdade material, entendem os requerentes que, no âmbito da ação inspetiva aqui em causa, a AT deveria ter averiguado todos os fatos, carreando para o procedimento todos os elementos relativos à situação facto-material em análise.
-
O que equivale a dizer que a AT deveria ter averiguado se as mais-valias deveriam ser, ou não, tributadas de acordo com o disposto no n.º 3 do artigo 43º do Código do IRS.
-
Com efeito, o princípio da verdade material a que já fizemos referência, fixa aquele que deve ser o objetivo do procedimento: descoberta da verdade material. 107º Este princípio manifesta-se, sobretudo, através do princípio do inquisitório, de acordo com o qual, a AT está obrigada a realizar todas as diligências que se afigurem necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material.
-
Quer isto dizer que todas as diligências devem ser efetuadas ainda que as mesmas não tenham sido requeridas, não dependendo, por isso, de um qualquer impulso procedimental do sujeito passivo.
-
No caso concreto, a AT não trouxe para o procedimento inspetivo os elementos que permitiriam o correto apuramento da situação tributária dos sujeitos passivos aqui requerentes, e que determinariam a tributação efetivamente devida.
-
No entanto, estava obrigada a fazê-lo, em nome da descoberta da verdade material e com observância do princípio do inquisitório.
-
A Autoridade Tributária apresentou a seguinte resposta, juntamente com processo administrativo:
-
O presente pedido de pronúncia arbitral tem como objeto a decisão de indeferimento, de 29/12/2021, proferida pela Chefe de Divisão da Direção de Finanças de Aveiro (subdelegação de competências) que recaiu sobre a reclamação graciosa (RG) nº ...2021... que visou a liquidação adicional de IRS n.º 2020..., referente ao ano de 2016. (cfr. Doc. nº 2 junto ao PPA)
-
Tal liquidação adicional resultou das correções apuradas em sede inspetiva, no âmbito da OI OI2019..., fundadas na aplicação da cláusula geral anti-abuso (CGAA), prevista no nº 2 do artº 38º da LGT, à doação plena de participações sociais efetuada pelos Rs. aos seus filhos seguida, no mesmo ato notarial de 30/10/2015, da doação, por estes últimos, do usufruto dessas mesmas quotas a favor dos seus pais.
-
Com efeito, e como se irá demonstrar, e está bem evidenciado no relatório de inspeção tributária (RIT) e na decisão de indeferimento da RG, tal doação, nos moldes em que foi realizada, insere-se, e tem a sua única ou principal razão de ser, numa estratégia de alienação das participações sociais representativas da totalidade do capital social da sociedade C..., Ld., da qual os Rs. são sócios fundadores, desde 1993, à sociedade H... B V, planeada e organizada de modo a obter uma vantagem ou poupança fiscal na tributação das mais-valias realizadas, desiderato alcançado através da interposição, no decurso do respetivo processo negocial, de um negócio familiar juridicamente supérfluo e sem substância económica – a dita doação da propriedade plenas das quotas de pais para filhos sucedida da doação do usufruto a favor dos pais.
-
Os Rs. vêm peticionar a anulação da decisão que indeferiu a RG e, igualmente, da liquidação adicional subjacente, imputando a tais atos o vício de violação de lei por falta de fundamento para a aplicação da CGAA, e também por violação do princípio da verdade material e do inquisitório, alegadamente, por não ter sido respeitado o disposto no nº 3 do art. 43º do CIRS.
-
Não assiste, pois, qualquer razão aos Rs. porquanto, como de forma clara e congruente consta das fundamentações, de facto e de direito, da decisão que indeferiu a RG e do relatório de inspeção tributária (RIT), a liquidação em crise assentou no rigoroso preenchimento do disposto no nº 2 do art. 38º da LGT e nas alíneas a) e b) do art. 63º do CPPT, não sendo também aplicável, ao caso concreto, o disposto no nº 3 do art. 43º do CIRS.
-
Acrescenta-se ainda que os Rs., pela primeira vez, no art. 66º do PPA, vêm afirmar que se tratou de uma doação com reserva de usufruto. Não obstante não ter sido, de facto, este o negócio efetuado através da escritura pública de 30/10/2015, a doação com reserva de usufruto é, também, no caso, um negócio meramente elisivo, sem qualquer justificação económica, gerador de mais-valias a que corresponde IRS no montante de 143.792,73€.
-
Quanto aos factos em que assentou a liquidação adicional impugnada e a decisão em crise, por economia, dá-se, para todos os efeitos legais, por integralmente reproduzida toda a factualidade apurada no RIT, bem como aquela que fundamentou a decisão de 29/2/2021.
-
Atenta essa factualidade, desde já se impugna, nos precisos termos dos nºs 2 e 3 do art. 574º do CPC, toda a matéria plasmada no PPA que sustenta a pretensão dos Rs., que se mostrar em oposição com a defesa no seu conjunto.
-
Dependendo o valor de aquisição do título aquisitivo, o RIT apurou o valor de aquisição com e sem doação:
-
É esta a vantagem fiscal apresentada no RIT:
-
As correções sancionadas suportaram a liquidação adicional de IRS nº 2020 ..., da qual resultou um imposto a pagar de 753.416,79 € e a liquidação nº 2020..., relativa a juros compensatórios, no valor de 77.983,42.
-
O estorno da liquidação nº 2017..., no valor de 187.757,94, perfez o valor de € 643.642,27, constante da Nota de Cobrança nº 2020..., com data limite de pagamento de 4/1/20121, regularizada voluntariamente em 18/12/2020.
-
Da referida liquidação adicional foi apresentada RG, a qual mereceu decisão de indeferimento por despacho do Chefe de Divisão da DF de Aveiro de 29/12/2021.
-
Por ofício nº ... de 29/12/21, os Rs., através do seu mandatário, foram notificados na decisão de indeferimento que recaiu sobre a RG, tendo esse ofício sido rececionado no dia 31/12/2021 (expedição por correio registado RH ...PT).
-
Em 11/4/2022 deu entrada o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.
POR EXCEÇÃO – A caducidade do direito de ação
-
O presente PPA tem como objeto imediato a decisão de indeferimento da reclamação graciosa nº ...2021... e como objeto mediato a liquidação de IRS reclamada, nº 2020... .
-
Pelo ofício nº ..., de 29/12/2021, os Rs. foram notificados da decisão de indeferimento da reclamação graciosa através do seu mandatário, nos termos do nº 1 do art. 40º do CPPT (cfr. Doc. nº 1)
-
O referido ofício nº..., de 29/12/2021, foi rececionado no dia 31/12/2021. (cfr. Doc. nº 2) 21º Nos termos da al. a), do n.º 1 do art. 10.º do RJAT o pedido de constituição de tribunal arbitral é apresentado no prazo de 90 dias, contado a partir dos factos previstos nos nºs 1 e 2 do artigo 102.º do CPPT, quanto aos atos suscetíveis de impugnação, i.e., in casu, no prazo de 90 dias a contar da notificação da decisão que indeferiu a reclamação graciosa.
-
O prazo de propositura do pedido de constituição do tribunal arbitral é um prazo substantivo e, portanto, não lhe é aplicável o disposto no art. 17º-A do RJAT.
-
Assim, tendo os Rs. sido notificados da decisão de indeferimento no dia 31/12/2021, o termo do prazo para a apresentação do PPA seria o dia 1/4/2022.
-
Sucede que os Rs. apresentaram o PPA no dia 11/4/2022, portanto, em data em que tinha já caducado o direito de ação.
-
A caducidade do direito de ação é uma exceção dilatória que obsta ao prosseguimento do processo, nos termos do nº 2 e nº 4, al. k) artigo 89.º do CPTA, aplicável ex vi art. 29º do RJAT, e implica a absolvição da Requerida da instância, o que, desde já, se requer.
POR IMPUGNAÇÃO
-
Está em causa a apreciação da aplicação da CGAA à operação de doação, pelos Rs., de 80% das participações sociais da C... aos seus filhos através de escritura pública de 30/10/2015 que, de seguida, no mesmo ato notarial, doaram aos seus pais o usufruto dessas mesmas participações.
-
Os Rs. assentam a impugnação arbitral em dois segmentos: por um lado, o não preenchimento dos pressupostos para a aplicação da CGAA, porquanto, alegadamente, a AT não demonstrou que o motivo único ou principal da doação das quotas com reserva de usufruto tivesse sido a obtenção de vantagens fiscais, por outro, a não aplicação do disposto no nº 3 do art. 43º do CIRS já que, sustentam os Rs., ao contrário do entendimento da AT, a C... era uma PME e, portanto, o saldo apurado das mais-valias deveria ter sido considerado apenas em 50% do seu valor.
-
Mas não assiste qualquer razão aos Rs. devendo, em consequência, ser mantidos na ordem jurídica os atos em crise.
Quanto à aplicação da CGAA
-
A aplicação da CGAAA visa, principalmente, desconsiderar os efeitos fiscais resultantes de operações sem fundamento económico, artificialmente construídas com propósitos essenciais de elisão fiscal.
-
Dispõe o nº 2 do art. 38º da LGT, na redação à data dos factos, que: “São ineficazes no âmbito tributário os atos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efetuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas.”
-
A aplicação de cláusulas gerais anti-abuso depende, portanto, da verificação de duas premissas intimamente relacionadas: a intenção fiscal e a utilização de formas jurídicas desadequadas para a alcançar. 32º Ora, está bem evidenciado no RIT e na decisão em crise nestes autos que a operação de doação das participações sociais da C..., escriturada em 30/10/2015, mais não é do que um meio artificioso construído com o principal objetivo de elisão fiscal, em sede de tributação das mais-valias apuradas com a venda da sociedade, o que foi alcançado através das figuras jurídicas da doação e usufruto.
-
Com a aludida doação sucessiva, primeiro das quotas plenas dos Rs. nos seus filhos e, depois, do usufruto daquelas participações pelos filhos a favor dos seus pais, sem qualquer razão económica ou outra, válida, que justifique a operação, os Rs. incrementaram o custo de aquisição (que deveria ser o referente ao ano de 1993 para passar a ser o referente a 2015) em mais de 2.000.000,00€, assim obtendo, aquando do apuramento das mais-valias por alienação da C... à H..., uma (injustificada) vantagem fiscal de 565.685,75€.
-
Na verdade, e como se lê na fundamentação da decisão sobre a RG: “Conforme ficou largamente demonstrado ao longo do RIT, os efeitos económicos e mesmo jurídicos decorrentes da realização da escritura daquela doação, são perfeitamente equivalentes, ou mesmo iguais, aos existentes sem a sua celebração.
-
Na verdade, a doação em causa não envolveu a atribuição do que quer que seja, ou, dito de outro modo, no preciso momento em que os doadores pais deram, voltaram a tirar, retendo todos os benefícios associados às quotas, quer os proventos económicos (usufruto), quer o poder de administração e de decisão na sociedade a que respeitam, tratando-se, assim, de uma operação sem substância económica, sem alcance jurídico distinto do que já se encontrava assegurado pela sucessão legal, já que os filhos são os legítimos herdeiros, e cuja justificação no contexto familiar, baseada na idade e saúde dos pais, contende com a manutenção, por parte destes, de todos os poderes de gestão e administração que a referida escritura de doação amplamente procurou assegurar. Restou a motivação fiscal, constituindo a poupança fiscal em sede de IRS alcançada com o negócio de doação, o único resultado económico que se lhe reconheceu”
-
Diga-se, aliás, que os argumentos apresentados pelos Rs. para justificar a escritura de doação de 30/10/2016 não têm, qualquer deles, qualquer razoabilidade, nem suporte viável, não merecendo, por isso, credibilidade.
-
Por um lado, o argumento da saúde e idade dos pais que não lhes permitia conduzir os negócios e os destinos da empresa, como fundamento para a doação de 80% das participações sociais aos filhos, não encontra o mínimo de apoio nos factos, já que A... manteve os mais amplos poderes de gerência, administração dos negócios e representação da sociedade, bem como todos os direitos em relação aos proventos associados à detenção do capital, conforme resulta, inclusive, das alterações introduzidas ao pacto social da C..., constantes da escritura, que até excedem os direitos atribuídos por lei ao usufrutuário - cfr. pag. 25, 26 e 27 do RIT.
-
Nos termos das disposições conjugadas do nº 2 do art. 23º do CSC e do nº 1 do art. 1467º do C.Civil, o usufrutuário de partes sociais tem os mesmos direitos do detentor da plena propriedade, com exceção para o direito de voto nas assembleias gerais quando estão em causa deliberações que importem alteração dos estatutos ou dissolução da sociedade, casos em que o voto pertence conjuntamente ao usufrutuário e ao titular da raiz.
-
Ainda assim, os sócios da “C...” fizeram constar do pacto social da sociedade aqueles direitos, concretamente no seu artigo 12º, ato que se mostra completamente dispensável, porquanto tais direitos decorrem da lei e, adicionalmente, fizeram constar do artigo 11º que, para a dissolução da sociedade, ou para qualquer alteração ao contrato de sociedade (com todas as implicações que daí advêm), mesmo com o voto da maioria dos sócios, será “… sempre necessário o voto favorável do sócio A..., enquanto este se mantiver na sociedade”.
-
Por outro lado, o argumento de que os filhos, no decurso do ato notarial decidiram doar aos pais o usufruto das participações sociais porque queriam que os pais continuassem a usufruir dos lucros da empresa enquanto fossem vivos, não só é inverosímil pela aparente espontaneidade da decisão, como colide por um lado, com a alegada intenção que terá justificado a doação das quotas plenas e que terá sido a de diminuir o peso da responsabilidade do pai, enquanto administrador e gestor da sociedade, dada a sua idade e saúde e por outro, com a própria vontade dos Rs. que tinham acabado de manifestar a vontade de doar as quotas sem qualquer ónus associado.
-
Na realidade, com a escritura de 30/10/2015, nada mudou na estrutura societária da C..., nada mudou no modus operandi e na titularidade da gestão e administração da mesma.
-
Os Rs. nunca ficaram privados do usufruto, nunca o entregaram efetivamente aos filhos, razão pela qual, os donatários, nunca estiverem em posição de dispor, na sua esfera patrimonial individual, do usufruto das quotas para, por espírito de liberalidade, o poderem doar aos pais.
-
A escritura de doação não teria sido realizada não fosse a existência de uma estratégia de alienação da C..., dada a neutralidade económica da operação, na medida em que não se verifica um interesse económico com impacto patrimonial na esfera dos contraentes para alem da vantagem fiscal e até pela sua inutilidade no contexto familiar em que foi efectuada.
-
A escolha da forma jurídica adotada e do conteúdo fixado pelos sócios da “C...”, teve subjacente a intenção preponderante ou exclusiva de contornar as normas tributárias para assim alcançar uma notória e expressiva erosão das receitas fiscais.
-
A escritura de doação outorgada em 30/10/2015 apresenta-se assim como um negócio meramente elisivo, por ter sido realizado exclusivamente para obter uma vantagem fiscal indevida. Da sua utilização não resultaram efeitos jurídicos ou económicos relevantes, distintos da vantagem fiscal, conforme expressamente admitem os intervenientes, Rs. e seus filhos, na resposta às notificações de 14/05/2020 - cfr. ponto III.1.5 do RIT. 46º No art. 66º do PPA os Rs. vêm afirmar, pela primeira vez, que se tratou de uma doação com reserva de usufruto, mas ainda que, em si mesma, essa doação não deixasse de ser um negócio familiar supérfluo e sem substância económica, que sempre legitimaria a aplicação da CGAA, não foi esse o negócio escriturado no dia 30/10/2015.
-
A manifestação de vontades expressa na escritura realizada e que os Rs. continuaram a defender no âmbito do direito de audição (RIT) e na reclamação graciosa, “conseguiu” exceder essa figura jurídica, e essa circunstância teve consequências fiscais.
-
Com efeito, os Rs. ao dividirem o negócio em duas operações (a doação da propriedade plena das quotas de pais para filhos, os quais, por sua vez, no mesmo momento e no mesmo documento, constituíram o usufruto das quotas em benefício dos pais), interromperam “artificialmente” também a detenção do usufruto, para assim poderem considerar que apenas o adquiriram através de doação dos filhos em 30/10/2015.
-
Desse modo, a otimização fiscal plena foi conseguida mediante a substituição do custo de aquisição, também do usufruto, efetivamente suportado em 1993, pelo valor resultante de uma avaliação fiscal reportada a 2015 e efetuada com base no último balanço: O impacto deste artifício foi sempre “autonomizado” no RIT (IRS em falta/usufruto = 143.792,73€), para melhor se percecionar que o intuito de reduzir ao mínimo o imposto a pagar, por via de uma alienação que se perspetivava, foi levado ao limite e constituiu a única justificação da escritura de doação.
-
É dito no RIT, os Rs. “(…) não se bastaram com a figura da doação com reserva de usufruto, a qual só “legitimaria” o incremento do custo de aquisição da nua propriedade objeto de doação de pais para filhos, mantendo o usufruto sob reserva, o custo de aquisição reportado a 1993. Para contornar esta questão, fizeram constar da declaração negocial que o usufruto acompanhou a nua propriedade na doação de pais para filhos, regressando seguidamente aos pais através de doação dos filhos” assim justificando que “… os direitos alienados foram adquiridos pelos titulares através de escritura de doação, de 2015-10-30” - cfr. resposta ao pedido de informação efetuado em 11/10/2019, que integra o PA/Proc. Inspetivo.
-
Na realidade, e como já se referiu, através de uma utilização abusiva das figuras jurídicas da doação e do usufruto, os Rs. construíram um negócio jurídico artificioso, com o objetivo de uma elisão fiscal em sede de tributação das mais-valias obtidas por ocasião da alienação das participações sociais da C... que, à data de 30/10/2015, já se perspetivava.
-
E a utilização abusiva das figuras jurídicas de doação e usufruto, que se verificou, nada têm a ver, como, alegadamente, pretendem os Rs., com a autenticidade da escritura, sendo certo, porém, que a qualificação do negócio jurídico efetuada pelas partes, mesmo em documento autêntico, não vincula a administração tributária.
-
Não está em causa o direito que assiste aos doadores de livremente disporem dos seus bens a favor dos seus filhos, mas tão somente, no caso dos autos, a forma artificiosa e com objetivo iminentemente fiscal como a operação de doação foi gizada e concretizada.
-
Termos em que se impugna o alegado nos artºs 29º e segs. e, bem assim, o art. 72º do PPA.
-
Alias, sobre a validade e legalidade da doação da propriedade plena seguida da doação, pelos adquirentes da transmissão gratuita, do usufruto a favor dos doadores originários, já se pronunciou a doutrina, no sentido de considerar que estamos perante negócios jurídicos artificiosos.
-
Conforme descrito no ponto III.1.1. do RIT (pág. 18), e como decorre do Contrato de Compra e Venda da C..., celebrado em 5/12/2016, este negócio foi precedido de um processo de seleção que exigiu um escrutínio rigoroso por parte da H..., no qual foram identificados e detalhadamente analisados todos os compromissos financeiros assumidos pela C..., pelo menos desde 2013, o contrato de concessão de incentivos financeiros celebrado entre o IAPMEI e a C... em 2013 e ainda todas as obrigações fiscais e parafiscais da sociedade, quer contributivas, quer declarativas desde, pelo menos, o ano de 2011.
-
E esse enquadramento temporal do início do processo que levaria à venda da C... e que é antecedente à data da escritura de doação, não fica abalado com a junção do Doc. nº 5 ao PPA.
-
Com efeito, com esse documento, apenas agora apresentado, os Rs. pretendem demonstrar que as negociações com a H... apenas ocorreram aquando da auditoria, alegadamente iniciada em 7/11/2016, e, portanto, alegadamente, a celebração da escritura de doação nada teve a ver com a venda da C... .
-
Mas não é assim. O relatório da I..., ora apresentado, e que constitui o mencionado Doc.nº 5, junto ao PPA, reporta-se a um relatório de auditoria que versa exclusivamente sobre o ano de 2016 (até 31/08/2016), lendo-se no mesmo que “tem como objetivo auxiliar a H... sobre as negociações em curso”, correspondendo, portanto, a uma 2ª auditoria, ou auditoria complementar, e não à auditoria inicial, efetuada no âmbito de um antecedente processo rigoroso de seleção que ocorreu em 2015.
-
E a corroborar essa factualidade está a carta da H... de 28/07/2016, Doc. nº 4 junto ao PPA, que também nunca antes foi apresentada ou sequer indiciada a sua existência, que menciona no seu 2º parágrafo: “Como sabem, a H... procura ter uma presença no Norte de Portugal para fornecer PSA na região de Vigo-Mangualde. É uma das iniciativas estratégicas da Companhia, razão pela qual dedicamos muitos recursos nos últimos doze meses.”, daqui se inferindo que as negociações (abrangendo o processo de selecção) decorriam, pelo menos, desde Julho de 2015, portanto, muito antes da celebração da escritura de doação.
-
Aliás, a escritura de doação foi realizada antes de recebida a dita carta da H... a manifestar “desinteresse” no negócio, pelo que, quando foi outorgada a escritura de doação, existia, pelo menos a expetativa de venda.
-
E os próprios Rs. reconhecem, no art. 38º do PPA que “antes da doação, a empresa foi contactada por uma empresa de consultadoria para uma possível operação de venda” (destaque nosso).
-
Mas o que é um facto é que a venda da C... acabou por se realizar e a escritura de doação permitiu uma enorme poupança fiscal.
-
Certo que, mesmo que a transmissão de quotas não se concretizasse, a escritura de doação em causa nenhum outro efeito prático teria, pelo que, só se compreende quando inserida na estratégia de venda das participações sociais, ainda que numa ótica de mera precaução da sua efetivação.
-
Durante o ano de 2015, são várias as evidências de que os sócios se encontravam já a planear a venda da C..., constituindo a dita escritura de doação, de 30/10/2015, o meio artificioso que encontraram para fugirem ao cumprimento das inerentes obrigações fiscais decorrentes dessa alienação, designadamente no que se refere ao pagamento do devido IRS sobre as mais-valias obtidas com a alienação.
-
Com efeito, em 29/5/2015, a C... procedeu, pela primeira vez desde a sua constituição, em 1993, à distribuição dos dividendos reportados a 2014 - cfr. pag. 18 do RIT; Anexo 11 do RIT.
-
E na mesma data de 29/5/2015, restituiu, oportunamente, aos sócios as prestações suplementares que haviam sido efetuadas em 2005 e que, portanto, poderiam já ter sido restituídas em qualquer outro exercício a partir dessa data, assim expurgando do capital próprio da C... os montantes que os Rs. não pretendiam que fossem contabilizados no negócio de venda da sociedade - cfr. pag. 18 do RIT, anexo 12 do RIT.
-
Essas operações, inéditas na vida e funcionamento da C..., são explicadas pelas habituais diretrizes de “no leakage” impostas pelos adquirentes, e que acabaram por ser impostas pela H... na proposta de venda, a que se alude no contrato de compra e venda da sociedade.
-
Impugna-se igualmente a alegação dos Rs., nos artºs 26º e segs. do PPA, de que, em devido tempo, solicitaram à DF de Aveiro esclarecimentos acerca do preenchimento da declaração Modelo 3 de IRS.
-
Com efeito, as informações então disponibilizadas pela administração tributária cingiram-se à verificação da conformidade dos valores das mais-valias apresentados pelos Rs. com a documentação de suporte ao negócio (contrato de compra e venda, escritura de doação e avaliações promovidas para efeitos de liquidação de imposto de selo a que estão sujeitas as transmissões gratuitas), sendo certo, porém, que, no mínimo, é incomum um gabinete de contabilidade (que foi quem interpelou, para o efeito, a AT) desconhecesse a forma de inscrição/declaração desses valores na Modelo 3 de IRS – cfr. ponto II.3.3. do RIT.
-
A valoração de situações ou negócios concretos tem de ser requerida através de um pedido de informação vinculativa de enquadramento jurídico-tributário, ao abrigo do art. 68º da LGT – pedido que os Rs. não efectuaram, apesar de lhes ter sido dada essa informação verbal.
-
Como exaustivamente evidenciado no RIT e na decisão impugnada, e já explanado nestes autos, a aplicação da CGAA foi acompanhada do cumprimento integral das disposições procedimentais previstas nas alíneas a) e b) do nº 3 do art. 63º do CPPT.
-
Em síntese, a AT fundamentou, de forma clara, congruente e suficiente,
-
a descrição da operação de doação das participações sociais da C..., o contexto factual e legal em que se inseriu e o fim económico obtido – cfr. ponto III.2.I, p. 39 e 40 do RIT
-
a descrição dos negócios ou atos de idêntico fim económico - cfr. III.2.II, p. 40 e 41 do RIT
-
a indicação das normas de incidência que se lhes aplicam - cfr. III.2.III, p. 41 a 45 do RIT
-
a demonstração de que a celebração da escritura de doação teve como razão única, ou, pelo menos, como principal motivo a redução de impostos que seriam devidos em caso de negócio com idêntico fim económico – cfr. do III.2.IV, p. 45 e 46 do RIT.
-
Recorrendo à caracterização dos pressupostos em que deve assentar a aplicação da CGAA, segundo entendimento jurisprudencial a que os Rs. aludem no art. 84º do PPA, estão, portanto, no caso em apreço, os mesmos integralmente preenchidos:
- Elemento meio: a utilização da escritura de doação, da propriedade plena e do usufruto, nos termos em que foi efetuada;
- Elemento intelectual: o intuito único de obter uma vantagem fiscal, não se vislumbrando sequer a existência de qualquer outro;
- Elemento resultado: a concreta vantagem fiscal (elisão fiscal);
- Elemento normativo: a atuação, em manifesto abuso das formas jurídicas, produziu um resultado ostensivamente contrário à lei e aos princípios subjacentes à tributação em sede de IRS (a tributação do rendimento efetivamente obtido, em função da capacidade contributiva), não podendo a vontade do contribuinte ser relevante no que respeita ao grau da sua oneração fiscal.
Quanto à violação do princípio da verdade material e do inquisitório e a aplicação do nº 3 do art. 43º do CIRS
-
Como de forma exaustiva consta do RI e da decisão que recaiu sobre a RG, foram observados os princípios da verdade material e do inquisitório (cfr. artºs 6º do RCPITA e 58º da LGT), tendo os Rs. participado na formação da decisão da administração tributária, tanto em sede do procedimento inspectivo, como da reclamação graciosa (art.ºs 59º 4 da LGT; 9º e 48º do RCPITA).
-
Sustentam os Rs. que a administração tributária violou tais princípios porquanto não procedeu à verificação de todos os fatos necessários à quantificação da prestação tributária e efetivamente devida, especificamente no que se refere à verificação do enquadramento da C... como PME para efeitos de aplicação do disposto no nº 3 do art. 43º do CIRS. 83º Mais uma vez, não assiste razão aos Rs.
-
Dispõe o nº 3 do art.º 43º do CIRS que, “O saldo referido no n.º 1, respeitante às operações previstas na alínea b) do n.º 1 do artigo 10.º, relativo a micro e pequenas empresas não cotadas nos mercados regulamentado ou não regulamentado da bolsa de valores, quando positivo, é igualmente considerado em 50 % do seu valor.”
-
Acrescentando o nº 4 que “Para efeitos do número anterior entende-se por micro e pequenas empresas as entidades definidas, nos termos do anexo ao Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de novembro.” Por outro lado, rege o art.º 2º do anexo ao Decreto-Lei nº 372/2007 de 06/11 que
“1 — A categoria das micro, pequenas e médias empresas (PME) é constituída por empresas que empregam menos de 250 pessoas e cujo volume de negócios anual não excede 50 milhões de euros ou cujo balanço total anual não excede 43 milhões de euros.
2 — Na categoria das PME, uma pequena empresa é definida como uma empresa que emprega menos de 50 pessoas e cujo volume de negócios anual ou balanço total anual não excede 10 milhões de euros.
3 — Na categoria das PME, uma micro empresa é definida como uma empresa que emprega menos de 10 pessoas e cujo volume de negócios anual ou balanço total anual não excede 2 milhões de euros.”
-
Sucede que, de acordo com a documentação que integra o processo administrativo, ora junto, e da factualidade que os próprios Rs. invocam no art. 101º do PPA, a C... não se enquadra, para os efeitos em causa, na categoria de micro ou pequena empresa.
-
Extrai-se dessa documentação – e, em particular do número de trabalhadores - que a C... é uma média empresa (PME), o que, implicitamente, também é reconhecido pelos Rs., os quais, aliás, não assinalaram o campo Q9A do Anexo G
-
E sendo uma média empresa, nos termos do nº 1 do art.º 2º do anexo ao Decreto-Lei nº 372/2007 de 06/11, alterado pelo Decreto-Lei nº 143/2009 de 16/06, a tributação das maisvalias das ações alienadas não beneficia do disposto nos nºs 3 e 4 do art.º 43º do CIRS, preceito legal apenas aplicável às micro e pequenas empresas (nºs 2 e 3 do art.º 2º do anexo ao Decreto-Lei nº 372/2007 de 06/11).
-
Atenta a matéria de facto e a prova documental junta aos autos, não se vê qualquer utilidade para a descoberta da verdade material na produção de prova testemunhal, requerendo-se, assim, a sua dispensa.
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi apresentado em 11 de abril de 2022, foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 13 de abril de 2022. Em 3 de junho de 2022, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou os árbitros, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
As Partes foram devidamente notificadas dessa designação, em 3 de junho de 2022, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados das alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
O Tribunal Arbitral Coletivo ficou, assim, constituído em 23 de junho de 2022, tendo sido proferido despacho arbitral na mesma data em cumprimento do disposto no artigo 17.º do RJAT, notificado à AT para, querendo, apresentar resposta.
Tendo sido junto processo administrativo e resposta, o Tribunal proferiu o seguinte despacho em 5 de agosto de 2022:
«1. Pretende este Tribunal Arbitral, ao abrigo do princípio da autonomia na condução do processo, previsto no artigo 16.º, alínea c) do RJAT, dispensar a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, por desnecessária, atendendo a que a questão em discussão é apenas de direito e não foram apresentadas exceções.
2. Notificam-se ambas as partes para produzirem Alegações facultativas no prazo de 10 dias sucessivos, iniciando-se com a notificação do presente despacho o prazo para alegações da Requerente e com a notificação da apresentação das alegações da Requerente ou com o termo do prazo para a apresentação das mesmas sem que hajam sido apresentadas o prazo, para efeitos de apresentação de alegações pela AT.
3. Informa-se que a Requerente deverá proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente, até a data limite da prolação da decisão final.
4. Em nome do princípio da colaboração das partes solicita-se o envio das peças processuais em versão word.
Notifiquem-se as partes do presente despacho.»
E em 8 de agosto 2022 aditou o seguinte despacho:
«Atendendo que em 5/8/2022 foi entregue Resposta pela Requerida e sem prejuízo do despacho proferido por este Tribunal, notifique-se a Requerente, caso assim o entenda, para responder às exceções no âmbito das Alegacões para as quais foi notificada para proferir.
Em 26 de agosto de 2022 foi apresentada resposta às exceções pela Requerente, não tendo as partes apresentado alegações.
POSTO ISTO:
O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
O processo não enferma de nulidades.
Tudo visto, cumpre decidir.
II. DECISÃO
-
MATÉRIA DE FACTO
A.1. Factos dados como provados
-
Os requerentes, juntamente com os seus 3 filhos, foram sócios fundadores da sociedade por quotas denominada C..., LDA.
-
Esta sociedade foi constituída em 1993, com um capital social de € 49 879,79, distribuído da seguinte forma:
-
Por duas vezes (27/12/2006 e 30/6/2015), foram efetuados aumentos de capital social por incorporação de reservas.
-
Na sequência desses aumentos, o capital da sociedade ficou distribuído da seguinte forma:
-
Na sequência do aparecimento de graves problemas de saúde do sócio A..., foi tomada uma decisão familiar de se proceder à partilha, em vida, das quotas dos pais pelos três filhos.
-
Todavia, os filhos entenderam por bem doar o usufruto das quotas, com vista a permitir que os pais continuassem a usufruir dos lucros da empresa enquanto fossem vivos.
-
Assim, no dia 30/10/2015, por escritura pública lavrada no Cartório Notarial de D... foram efetuados os seguintes fatos:
-
A... divide a sua quota de € 450 000,00 em quatro quotas:
-
Uma com o valor nominal de € 30 000,00, que reservou para si;
-
Três com o valor nominal de € 140 000,00 cada, que doou a cada um dos seus três filhos (E..., F... e G...).
-
B...divide a sua quota de € 60 000,00 em três quotas com o valor nominal de € 20 000,00 cada, que doou a cada um dos seus três filhos (E..., F... e G...).
-
E..., F... e G... doaram aos pais –A... e B...– o usufruto das quotas que destes receberam em doação.
-
Na sequência das doações, o capital da sociedade ficou estruturado da seguinte forma:
-
Além disso, e com a doação dos usufrutos, a titularidade do usufruto das quotas passou a ser a seguinte:
-
Em 5/12/2016, através de contrato de compra e venda, a totalidade do capital social da C..., LDA., foi alienada à sociedade H... B V, pelo montante total de € 4 710 000,00.
-
A alienação das participações sociais foi efetuada do seguinte modo:
-
A... Recebeu a quantia de € 235 500,00 pela venda da quota com o valor nominal de € 30 000,00;
-
Recebeu a quantia de € 824 250,00 pela transmissão do usufruto das quotas correspondentes a 70% do capital social (€ 450 000,00).
-
B... Recebeu a quantia de €164 850,00 pela transmissão do usufruto das quotas correspondentes a 10% do capital social (€ 60 000,00).
-
E... Recebeu a quantia de € 1 161 800,00 pela venda das três quotas com o valor nominal total de € 190 000,00.
-
F... Recebeu a quantia de € 1 161 800,00 pela venda das três quotas com o valor nominal total de € 190 000,00.
-
G... Recebeu a quantia de € 1 161 800,00 pela venda das três quotas com o valor nominal total de € 190 000,00.
-
Uma vez que estas alienações constituem rendimentos da Categoria G, os aqui requerentes declararam este rendimento na declaração de IRS do ano de 2016.
-
Suportada na Ordem de Serviço n.º OI2019..., foi desencadeada uma ação inspetiva externa ao ano de 2016.
-
O procedimento de inspeção teve início a 11/10/2019 e foi concluído a 21/8/2020.
-
Na sequência da ação inspetiva, foi elaborado o Relatório de Inspeção Tributária (RIT), no âmbito do qual a AT efetuou uma correção em sede de IRS, no valor de € 2.020.210,22, relativos a mais-valias derivadas de uma operação de alienação de partes sociais.
-
Aquela correção teve por base a aplicação da norma legal anti abuso prevista no n.º 2 do art.º 38.º da LGT (Cláusula Geral Anti Abuso).
-
Das correções resultantes da ação inspetiva, foi efetuada a liquidação adicional de IRS n.º 2020..., referente ao ano de 2016, da qual resultou um valor a pagar ao Estado no montante de € 831 400,21 (Doc. 2).
A.2. Factos dados como não provados
Os factos dados como provados são aqueles que o Tribunal Arbitral considera relevantes, não se considerando factualidade dada como não provada que tenha interesse para a decisão.
A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
A matéria de facto foi fixada por este Tribunal Arbitral Coletivo e a convicção ficou formada com base nas peças processuais e requerimentos apresentados pelas Partes, bem como nos documentos juntos aos autos.
Relativamente à matéria de facto o Tribunal Arbitral não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor, conforme n.º 1 do artigo 596.º e n.ºs 2 a 4 do artigo 607.º, ambos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi das alíneas a) e e) do n.º do artigo 29.º do RJAT e consignar se a mesma se considera provada ou não, conforme n.º 2 do artigo 123.º Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT). Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do n.º 7 do artigo 110.º do CPPT, a prova documental, a prova testemunhal e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Ac. do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo 07148/13[1], “o valor probatório do relatório da inspeção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.
Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal Arbitral baseia a decisão, em relação às provas produzidas, na íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme n.º 5 do artigo 607.º do CPC.
Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g. força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371.º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.
B. DO DIREITO
B.1. DA EXCEÇÃO DE CADUCIDADE DO DIREITO DE AÇÃO
Nos termos da al. a), do n.º 1 do art. 10.º do RJAT o pedido de constituição de tribunal arbitral é apresentado no prazo de 90 dias, contado a partir dos factos previstos nos n.os 1 e 2 do artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, quanto aos atos suscetíveis de impugnação, i.e., in casu, no prazo de 90 dias a contar do termo do prazo para pagamento voluntário das prestações tributárias legalmente notificadas ao contribuinte.
No caso concreto, pelo ofício nº ..., de 29/12/2021, os Requerentes foram notificados da decisão de indeferimento da reclamação graciosa através do seu mandatário, nos termos do nº 1 do art. 40º do CPPT (cfr. Doc. nº 1).
O referido ofício nº ..., de 29/12/2021, foi rececionado no dia 31/12/2021. (cfr. Doc. nº 2).
No entender da Requerida, tendo os Requerentes sido notificados da decisão de indeferimento no dia 31/12/2021, o termo do prazo para a apresentação do PPA seria o dia 1/4/2022.
No entender da Requerente, contudo:
-
Sucede que a AT, no envio da notificação aqui em causa, não colocou corretamente o Código Postal do escritório do mandatário. 6º Com efeito, e conforme se pode ver no talão de aceitação, constata-se que o Código Postal ali inserido é o “1150-003” e não o “1150-006”.
-
Ora, a morada correspondente ao Código Postal “...-...” é a Rua... ... Em consequência da incorreta inscrição do Código Postal, esta correspondência terá sido entregue em 31.12.2021 num outro domicílio que não o do aqui mandatário.
-
Tal pode ser aferido através do carimbo dos CTT colocado no verso do envelope, no qual é referido que “Depois de devidamente entregue voltou ao correio sem nova franquia”.
-
Ou seja, a correspondência terá sido colocada numa morada errada, tendo, posteriormente sido devolvida aos CTT.
-
Na sequência dessa devolução, os correios procederam a nova entrega da correspondência, desta feita, para o escritório do mandatário, tendo tal sucedido no dia 11.01.2022.
-
Assim é, uma vez que, naquele mesmo dia 11.01.2022, às 11H56, a funcionária do escritório do mandatário, através de mail, deu-lhe conhecimento da receção desta correspondência (Doc. 2).
-
Conforme se pode ler naquele mail, a funcionária informa o mandatário que “Junto envio em anexo, cópia da correspondência rececionada hoje”.
-
Temos, portanto, que a correspondência aqui em causa foi entregue no escritório do mandatário no dia 11.01.2022 e não no dia 31.12.2021 como erradamente refere a AT.
-
Assim, e tendo em conta que foi feita por carta registada, deverá considerar-se que o mandatário foi notificado da decisão de indeferimento da reclamação graciosa no dia 14.01.2022, atento o que a esse propósito dispõe o n.º 1 do artigo 39º do CPPT.
-
Como tal, o termo do prazo para apresentação do pedido de pronúncia arbitral seria o dia 15.04.2022.
-
Uma vez que foi apresentado no dia 11.04.2022, afigura-se que o mesmo é tempestivo.
Nos termos do disposto no artigo 20.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (ex vi art. 29.º do RJAT), para a contagem dos prazos é aplicável o disposto no artigo 279.º do Código Civil, contando-se de forma contínua com termo inicial no dia seguinte ao termo do prazo para pagamento e não se suspendendo em férias judiciais. Nos termos do artigo 17.º-A do RJAT não se está, neste âmbito, perante um prazo processual e, só a esses, se refere esta norma, mas antes perante um prazo para requerer a pronúncia arbitral pelo que, e conforme já vem sendo decidido – conforme, por exemplo, na decisão proferida no âmbito do processo n.º 9/2014-T do CAAD – as férias não prorrogam o prazo para requerer a pronúncia arbitral.
Desta forma, é forçoso concluir que o pedido de pronúncia arbitral deveria ter sido apresentado até 15 de abril de 2022. Uma vez que foi apresentado no dia 11 de abril de 2022, afigura-se que o mesmo é tempestivo, entendendo este Tribunal que os argumentos do Requerente devem ser considerados, pelo que o PPA foi deduzido atempadamente, não se verificando a exceção invocada pela Requerida.
B. 2. DO MÉRITO
Resulta do que acima se deixou dito que a questão a apreciar são duas:
-
Verificação da legalidade da aplicação da cláusula geral anti abuso prevista no art.º 38.º, n.º 2 da LGT, que esteve na base da Liquidação Adicional ora posta em crise.
-
Violação do princípio da verdade material e do inquisitório e a aplicação do nº 3 do artigo 43º do CIRS.
B.2.A. A cláusula geral anti abuso[2]
Refere a Requerida no Relatório de Inspeção o seguinte:
-
Dando cumprimento ao disposto no n.º 1 do artigo 45º do Código do IRS, o valor de aquisição declarado foi o que serviu de base ao valor considerado para efeitos da liquidação de Imposto do Selo nas transmissões gratuitas efetuadas através da escritura de doação a que já nos reportamos anteriormente.
-
Não obstante, a AT, através de procedimento de inspeção aqui em causa, concluiu que a escritura de doação fez parte de um esquema artificial com vista a reduzir a tributação das mais-valias obtidas com a alienação das participações sociais.
-
Com efeito, no RIT a AT considerou que “Tratou-se de um negócio artificioso, supérfluo, destituído de substância económica a não ser por razões de pura economia fiscal, que não pode legitimar a redução da tributação das mais-valias obtidas na posterior alienação das participações sociais, pondo em causa os princípios do sistema fiscal, mormente a relação que se encontra legalmente estabelecida entre capacidade contributiva e imposto suportado”.
-
Face a estas conclusões, a AT desconsiderou o valor de aquisição apurado nos termos do n.º 1 do artigo 45º do Código do IRS.
Assim, no entender da Requerida, considera-se estarem reunidos os pressupostos de que depende a aplicação da cláusula geral anti abuso, prevista no art.º 38.º, n.º 2 da LGT.
Esta norma à data de 2016 dispunha o seguinte:
«2 - São ineficazes no âmbito tributário os atos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efetuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas.»
Do ponto de vista procedimental, a liquidação de tributos com base na mencionada cláusula geral anti abuso tem de obedecer ao disposto no art.º 63.º do CPPT, que impõe, para o que nos interessa, o seguinte:
«1 - A liquidação de tributos com base na disposição anti abuso constante do n.º 2 do artigo 38.º da lei geral tributária segue os termos previstos neste artigo.
2 – (revogado)
3 - A fundamentação do projeto e da decisão de aplicação da disposição anti abuso referida no n.º 1 contém necessariamente:
-
A descrição do negócio jurídico celebrado ou do ato jurídico realizado e dos negócios ou atos de idêntico fim económico, bem como a indicação das normas de incidência que se lhes aplicam;
-
A demonstração de que a celebração do negócio jurídico ou prática do ato jurídico foi essencial ou principalmente dirigida à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em caso de negócio ou ato com idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais.»
A cláusula geral anti abuso, entre nós, surge como arma de combate ao chamado planeamento fiscal agressivo, tanto mais necessária quanto é certo terem fracassado outras ferramentas, ainda que de abrangência mais comedida ou menos ambiciosa, assumindo-se, nessa medida, como uma resposta dinâmica e constantemente atual aos eternamente inovadores contornos do planeamento fiscal abusivo.
Como é dito na decisão arbitral proferida no processo n.º 162/2017-T que correu termos no CAAD «as normas anti abuso encontram a sua “raison d´être”, no comportamento evasivo e fraudatório dos sujeitos passivos em matéria fiscal e na necessidade de estabelecer meios de reação adequados por forma a garantir o cumprimento do princípio da igualdade na repartição da carga tributária e na prossecução da satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas». Neste sentido, as CGAA’s [cláusulas gerais anti abuso] exprimem a ponderação harmonizadora e proporcional do princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança – com as suas exigências de tipicidade e legalidade – com outros bens constitucionalmente protegidos, como sejam a preservação da base tributária, a equidade tributária e a efetivação dos direitos fundamentais e da justiça social».
A elisão fiscal, no seu mais fundo sentido etimológico, significa enganar, através da criação astuciosa de condições para que outros, no caso a administração fiscal, à primeira vista, possam ver coisa diversa do que lobrigariam se de mais atenção (ou informação) dispusessem. O que está em causa é, assim, evitar a aplicação da norma fiscal, impedir o nascimento da relação jurídico-tributária, com o objetivo de se obter uma vantagem patrimonial, independentemente da sua modalidade, que não seria auferida se não fossem praticados atos ou celebrados negócios jurídicos com o objetivo de contornar a voluntas legis. Vantagem patrimonial que, por isso, se deve ter por imerecida. Através da gestão criteriosa, e formalmente lícita, dos meios negociais disponíveis, podem os mais informados escapar às normas de incidência, eximindo-se, assim, ao facto tributário.
Neste sentido, a elisão fiscal, com os contornos que fomos descrevendo, em nada se confunde com a “economia fiscal”, ou seja, com a adoção do comportamento fiscalmente menos oneroso, mister irrenunciável de qualquer gestor minimamente diligente. A conduta elisiva não encontra em si mesma justificação outra que não seja a de permitir alcançar os efeitos previstos pela norma de incidência, calcorreando veredas que dela se apartam, et pour cause.
Tem a doutrina tradicional, contrapondo esta figura à da evasão fiscal, sublinhado que não pode merecer censura o exercício das prorrogativas próprias da autonomia da vontade, uma vez que os atos praticados ou os negócios jurídicos celebrados não colidem com nenhuma proibição legal, pelo menos especificamente a eles dirigida, pelo que deverão beneficiar de adequada tutela os seus efeitos. Assim, da essência da elisão fiscal parece ser a licitude formal dos meios escolhidos para contornar a norma tributária, fazendo com que o comportamento não seja, ao menos em termos de validade, atacável.
Contudo, têm sido abertas portas que vão permitindo, ainda que paulatinamente, considerar ineficazes, em termos fiscais, os atos praticados. Ainda que não questionando a perfeição constitutiva dos atos, não se permite que se alcancem os efeitos fiscais perseguidos por certo tipo de comportamentos. Este juízo, rejeitando as ideias de ilegalidade e de invalidade, ou a necessidade da sua demonstração, associadas à evasão, consente em todo o caso uma reparação do património do credor tributário, empobrecido pela conduta principalmente dirigida, não nas suas consequências, mas nos seus motivos determinantes, à economia fiscal. Assim, vai-se defendo que deve ao credor tributário ser entregue, a título de imposto, as quantias que deixaram de entrar nos seus cofres em virtude da conduta elisiva, operando-se esse ressarcimento, tanto quanto nos é dado ver, por via de expediente decalcado do instituto do enriquecimento sem causa, uma vez que, à luz da economia das relações tributárias, não se vislumbra título justificativo para a obtenção da vantagem patrimonial pretendida ou interesse público que a autorize.
Há quem veja com clareza, e bem, em nosso entender, a necessidade de se irem abrindo brechas “finalistas” ou “económicas” no até hoje sagrado edifício securitário, no sentido de protetor de todas as iniciativas dos contribuintes, da literal previsão normativa no Direito Fiscal. Não apenas porque se tem investido, num movimento progressivo, no sentido de se dotar a administração tributária de uma estrutura tecnicamente preparada e conhecedora dos seus deveres e limites, mas sobretudo porque se vai ganhando consciência de que existem tribunais em Portugal, não estando, por isso, os particulares numa situação de pura subjugação face ao poder administrativo. Contudo, há os que são ferozmente contrários a uma cláusula geral deste jaez, como é o caso de ALBERTO XAVIER, que apelava a todos os juristas para que unissem os seus esforços no sentido de que as disposições (...), de inspiração totalitária e autocrática, e incompatíveis com a medula de um Estado-de-Direito, fossem erradicadas pelo Poder Legislativo e pelo Poder Judiciário da ordem jurídica, onde em má hora se tentaram infiltrar pela via espúria e abusiva de medidas afrontosamente inconstitucionais.
O que precede pretende apenas sublinhar que a existência de uma cláusula anti abuso como a que é consagrada no n.º 2 do art.º 38.º da LGT é não apenas compreensível como um instrumento fundamental na prossecução do Estado Social, suportado financeiramente pelo Estado Fiscal, que tem de assentar na observância dos elementares princípios da igualdade fiscal e da capacidade contributiva. Contudo, a aceitação de um mecanismo como este não dispensa, antes exige, a sua criteriosa aplicação e a demonstração cabal, por parte da administração tributária, da verificação dos respetivos pressupostos.
B.2.B. Da legalidade dos pressupostos de que depende a aplicação da cláusula geral anti abuso prevista no art.º 38.º, n.º 2 da LGT[3]
A questão que é objeto do presente processo é a da legalidade da aplicação da cláusula geral anti abuso à situação fáctica descrita, a saber:
Recorde-se a sucessão de atos que levaram à liquidação em crise:
-
Partilha, em vida em 30/10/2015, das quotas dos pais pelos três filhos, com posterior doação do usufruto das quotas, com vista a permitir que os pais continuassem a usufruir dos lucros da empresa enquanto fossem vivos.
-
Venda, através de contrato de compra e venda, da totalidade do capital social da C..., LDA. à sociedade H... B V, pelo montante total de € 4 710 000,00.
Em temos fiscais, estes dois negócios jurídicos tiveram os seguintes impactos fiscais:
-
A partilha em vida feita ao Requerente beneficiou de uma isenção de Imposto do Selo, ao abrigo do disposto na alínea e) do artigo 6.º do CIS e de uma não sujeição a IRS nos termos do n.º 6 do artigo 12.º do Código do IRS;
-
A partilha em vida, ainda que isenta, implicou a obrigação de reporte à AT e a avaliação das ações, de acordo com a fórmula prevista na alínea a) do n.º 3 do artigo 15.º do CIS;
-
Os Requerentes venderam as quotas da seguinte forma:
-
A... recebeu a quantia de € 235 500,00 pela venda da quota com o valor nominal de € 30 000,00 e recebeu a quantia de € 824 250,00 pela transmissão do usufruto das quotas correspondentes a 70% do capital social (€ 450 000,00).
-
B... Recebeu a quantia de €164 850,00 pela transmissão do usufruto das quotas correspondentes a 10% do capital social (€ 60 000,00).
-
Uma vez que estas alienações constituem rendimentos da Categoria G, os aqui requerentes declararam este rendimento na declaração de IRS do ano de 2016.
Nas definições elaboradas por Saldanha Sanches[4]: o planeamento fiscal legítimo «consiste numa técnica de redução da carga fiscal pela qual o sujeito passivo renuncia a um certo comportamento por este estar ligado a uma obrigação tributária ou escolhe, entre as várias soluções que lhe são proporcionadas pelo ordenamento jurídico, aquela que, por acção intencional ou omissão do legislador fiscal, está acompanhada de menos encargos fiscais»; enquanto que o planeamento fiscal ilegítimo «consiste em qualquer comportamento de redução indevida, por contrariar princípios ou regras do ordenamento jurídico-tributário, das onerações fiscais de um determinado sujeito passivo».
Dentro do quadro do planeamento fiscal podemos, assim, distinguir as situações em que o sujeito passivo actua contra legem, extra legem e intra legem.
Quando este atua contra legem, a sua atuação é frontal e inequivocamente ilícita, pois infringe diretamente a lei fiscal, e configura uma fraude fiscal[5] passível, inclusive, de ser objeto de censura contraordenacional ou criminal.
A atuação extra legem ocorre quando o sujeito passivo aproveita de forma abusiva a lei para chegar a um resultado fiscal mais favorável, pese embora este não a violar diretamente. Este adota «um comportamento que tem como finalidade exclusiva ou principal contornar uma ou várias normas jurídico-fiscais, de modo a conseguir a redução ou a supressão do encargo fiscal»[6]. Sendo que dessa ou dessas normas jurídico-fiscais se deve detetar uma tentativa de contornar «uma clara intenção de tributar afirmada pelos princípios estruturantes do sistema»[7]. Este tipo de atuação é comummente designada de «fraude à lei fiscal» mas, conforme alerta Saldanha Sanches, pretendendo melhor ilustrar e distinguir estas situações das de fraude fiscal, também designada de «evitação abusiva de encargos fiscais», «evitação fiscal abusiva» ou ainda «elisão fiscal»[8].
Só se afigura legítima – e, assim, planeamento fiscal legítimo ou não abusivo – a atuação intra legem. Com efeito, a obtenção de uma poupança fiscal não constitui um comportamento proibido pela lei, desde que a atuação não se enquadre na supra referida atuação extra legem[9].
No caso em apreço, os Requerentes contestam que se configure planeamento fiscal abusivo por a intenção que presidiu às operações realizadas não ser a de obter qualquer vantagem fiscal. Na verdade, no caso dos autos, a Requerentes invocam que o motivo da doação se prende inteiramente com os problemas de saúde do requerente e com a idade avançada de ambos os sujeitos passivos, a qual já não lhe permitia conduzir os negócios e os destinos da empresa, sendo que com a doação não era intenção inicial dos filhos reservar o direito de usufruto aos pais.
Adicionalmente, a doutrina e a jurisprudência[10] têm vindo a desconstruir a letra da norma apontando cinco elementos nela patentes. Correspondendo um dos elementos à estatuição da norma, os restantes quatros afiguram-se requisitos cumulativos que permitem aferir – como se de um teste se tratasse – quanto à verificação de uma atividade caracterizável como um planeamento fiscal abusivo[11].
Estes elementos, em torno dos quais ambas as partes aliás constroem a sua argumentação, consistem:
-
no elemento meio, que diz respeito à via livremente escolhida – ato ou negócio jurídico, isolado ou parte de uma estrutura de atos ou negócios jurídicos sequenciais, lógicos e planeados, organizados de modo unitário – pelo contribuinte para obter o desejado ganho ou vantagem fiscal[12];
-
no elemento resultado, que contende com a obtenção de uma vantagem fiscal, em virtude da escolha daquele meio, quando comparada com a carga tributária que resultaria da prática dos atos ou negócios jurídicos «normais» e de efeito económico equivalente[13];
-
no elemento intelectual, que exige que a escolha daquele meio seja «essencial ou principalmente dirigid[a] [...] à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos» (artigo 38.º, n.º 2 da LGT), ou seja, que exige não a mera verificação de uma vantagem fiscal, mas antes que se afira, objetivamente, se o contribuinte «pretende um ato, um negócio ou uma dada estrutura, apenas ou essencialmente, pelas prevalecentes vantagens fiscais que lhe proporcionam»[14];
-
no elemento normativo, que «tem por sua função primordial distinguir os casos de elisão fiscal dos casos de poupança fiscal legítima, em consideração dos princípios de Direito Fiscal, sendo que só nos casos em que se demonstre uma intenção legal contrária ou não legitimadora do resultado obtido se pode falar naquela»[15];
-
e, por fim, no elemento sancionatório, que, pressupondo a verificação cumulativa dos restantes elementos, conduz à sanção de ineficácia, no exclusivo âmbito tributário, dos atos ou negócios jurídicos tidos por abusivos, «efetuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas» (parte final do artigo 38.º, n.º 2, da LGT).
Apesar desta desconstrução, a análise dos elementos não pode ser estanque, pois, como realça Courinha, «a fixação de um elemento pode, na prática, depender de um outro», pelo que estes «não deixarão com frequência [...] de auxiliar-se mutuamente»[16].
Apreciemos, tendo este aspeto em consideração, os elementos da cláusula geral anti abuso tendo em atenção a fundamentação da decisão, os factos provados, e a argumentação jurídica das partes.
Nesta análise, tem de partir-se do pressuposto de que a fundamentação do ato que decidiu a aplicação da cláusula geral anti abuso que se tem de apreciar é apenas a que consta do próprio ato e elementos para que remete, pois o processo arbitral tributário, como meio alternativo ao processo de impugnação judicial (n.º 2 do artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril), é, como este, um meio processual de mera legalidade, em que se visa eliminar os efeitos produzidos por atos ilegais, anulando-os ou declarando a sua nulidade ou inexistência [artigos 2.º do RJAT e 99.º e 124.º do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a), daquele]. Por isso, os atos que são objeto do processo têm de ser apreciados tal como foram praticados, não podendo o tribunal, perante a constatação da invocação de um fundamento ilegal como suporte da decisão administrativa, apreciar se a sua atuação poderia basear-se noutros fundamentos.
B.2.C. Ausência do elemento intelectual
No caso em apreço, é patente, à face da prova produzida, que não se verifica o elemento intelectual.
Na verdade, como se referiu a propósito da fixação da matéria de facto, toda a prova produzida foi no sentido de que a motivação primacial da partilha em vida que afetou os Requerentes, no ato da escritura, foi uma decisão puramente familiar e que muito bem poderia ter surgido num outro momento (v.g. uma sucessão), com os mesmos efeitos – na verdade os filhos entenderam por bem doar o usufruto, com vista a permitir que os pais continuassem a usufruir dos lucros da empresa enquanto fossem vivos. Portanto, a operação de doação não tinha subjacente qualquer benefício específico, equiparando-se a uma mera partilha em vida pelos herdeiros, apenas com o mero respeito de uma situação familiar legitima e verdadeira – a de permitir a união na tomada das decisões no seio familiar – aspeto aliás que nunca foi posto em causa pela Requerida em algum momento.
Considera contudo a Requerida que «A escritura de doação outorgada em 30 de Outubro de 2015, foi o meio selecionado para substituir o título aquisitivo a título oneroso (entradas efetivas dos sócios para realização do capital social inicial, em 1993, no valor global de € 49.878,79) por um título aquisitivo a título gratuito (a doação), incrementando, por essa via, o valor de aquisição para € 2.097.224,19, apurado por avaliação fiscal de acordo com as regras do Imposto do Selo, ou seja, com base no último balanço”. Para sustentar a sua decisão, a AT alega que “A verdadeira motivação [da escritura de doação] prende-se efetivamente com os contactos que já tinham sido encetados atinentes à venda da empresa a que respeitam as participações sociais – a C...».
Não podemos concordar com a Requerida precisamente por estarmos num meio familiar. Na verdade, não se compreende como pode a Requerida ver nos negócios efetivamente praticados com o preenchimento do elemento meio, que diz respeito à via livremente escolhida, que possa resultar num esquema artificioso, supérfluo, destituído de substância económica a não ser por razões de pura economia fiscal: na verdade estas decisões foram tomadas apenas porque se verificou um agravamento do estado de saúde do requerente A... .
As cláusulas dos contratos que se referiram ao fundamentar a fixação da matéria de facto confirmam ser aquele o objetivo primacial visado pelos Requerentes e é manifesto que ele não podia ser atingido caso não houvesse motivos familiares prementes. Conclui-se, assim, que não se verifica um dos pressupostos de facto de que depende a aplicação da cláusula geral anti abuso, que é o ato ou negócio ter sido essencial ou principalmente dirigido à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, atos ou negócios de idêntico fim económico. E, à face do artigo 38.º, n.º 2 da LGT, ao referir que, para aplicação da cláusula geral anti abuso, os negócios devem ser dirigidos à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos, não basta que sejam obtidas vantagens fiscais, sendo antes indispensável que a obtenção destas tenha sido um objetivo essencial ou principal visado pelos sujeitos passivos – o que não foi de todo o que sucedeu no caso sub judice.
Uma vez que os requisitos previstos no artigo 38.º, n.º 2, da LGT são cumulativos, tem de se concluir, sem mais, que a aplicação da cláusula geral anti abuso e a subsequente correção da matéria tributável de IRS dos Requerentes efetuada com base naquela aplicação enferma de ilegalidade.
Por isso, tem de ser julgado procedente o pedido de anulação do ato de liquidação de IRS referente ao ano de 2016 bem como os subsequentes atos de compensação e demonstração de acerto de contas.
B.2.D. Questões prejudicadas
Fica prejudicada, por desnecessária, a análise dos demais argumentos usados pela Requerente para sustentar a ilegalidade do ato de liquidação adicional de IRS posta em crise.
C. DECISÃO
Nestes termos, decide o Tribunal Arbitral Coletivo:
-
Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral de declaração de ilegalidade do ato tributário de liquidação adicional de IRS n.º 2020..., referente ao ano de 2016, com as respetivas consequências legais.
D. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em € 643.642,27, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
E. Custas
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 9.486,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, uma vez que o pedido foi julgado procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT.
Registe-se e notifique-se.
Lisboa, 29 de dezembro de 2022
O Árbitro - Presidente,
(Guilherme W. d’Oliveira Martins)
A Árbitro-Vogal,
(Maria da Graça Martins)
O Árbitro-Vogal,
(Sérgio Santos Pereira)
[1] Disponível em www.dgsi.pt, tal como a restante jurisprudência citada sem menção de proveniência.
[4] Cfr. Saldanha Sanches, J.L., Os Limites do Planeamento Fiscal, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, p. 21.
[5] Cfr. AcTCAS de 12-02-2011, proc. n.º 04255/10.
[6] Cfr. Jónatas Machado e Nogueira da Costa, Curso de Direito Tributário, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pp. 340-341.
[7] Cfr. Saldanha Sanches, J.L., Os Limites..., p. 181.
[8] Cfr. Saldanha Sanches, J.L., Os Limites..., pp. 21-23; ainda Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 12-02-2011, processo n.º 04255/10.
[9] Cfr. Saldanha Sanches, J.L., Reestruturação de empresas e limites do planeamento fiscal, As duas constituições – nos dez anos da cláusula geral antiabuso, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pp. 49-50, que afirma, a este respeito: «a consagração da cláusula geral antiabuso implica [...] que a partir da sua introdução está claramente delimitado aquilo que o sujeito passivo pode e não pode fazer. As habilidades fiscais, a destreza fiscal deixam de ser possíveis (as operações artificiosas e fraudulentas que têm como fim principal ou exclusivo a obtenção de uma poupança fiscal mediante a fraude à lei) e o sujeito passivo passa a ter o seu comportamento julgado de acordo com este critério. [...] a evolução da lei é clara no sentido de proporcionar fundamento legal para o planeamento fiscal, desde que seja praticado sem o abuso de formas jurídicas, sem negócios jurídicos artificiosos e fraudulentos mas limitando-se a escolher a via que se encontra aberta e que lhe permite realizar economias fiscais». Cfr., também, Marques, Paulo, Elogio do Imposto, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pp. 360-364.
[10] E aqui seguindo de perto a decisão proferida no processo nº 666/2014-T, disponível em https://caad.org.pt/tributario/decisoes/decisao.php?listPage=106&id=1020.
[11] Ou seja, a uma «atuação planeada do contribuinte que se traduz num comportamento aparentemente lícito, geradora de uma vantagem fiscal não admitida pelo ordenamento tributário» (cfr. Courinha, Gustavo Lopes, Cláusula Geral Antiabuso no Direito Tributário: Contributos para a sua compreensão, Almedina, Coimbra, 2009, pp.15-17 e 163-165; bem como Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 15-02-2011, proc. n.º 04255/10, conclusões XIII e XIV).
[12] Como decorre da seguinte parte do artigo 38.º, n.º 2, da LGT: «actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos».
[13] Tal decorre do seguinte segmento do artigo 38.º, n.º 2, da LGT: «redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios». Decorre ainda do artigo 63.º, n.º 3, alíneas a) e b) do CPPT, na redacção dada pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, que exigem que a Administração Tributária inclua na sua fundamentação, respectivamente, «a descrição do negócio jurídico celebrado ou do acto jurídico realizado e dos negócios ou actos de idêntico fim económico, bem como a indicação das normas de incidência que se lhes aplicam» e «a demonstração de que a celebração do negócio jurídico ou prática do acto jurídico foi essencial ou principalmente dirigida à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em caso de negócio ou acto com idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais».
[14] Cfr. Courinha, Gustavo Lopes, Cláusula..., p. 180.
[15] Cfr. Courinha, Gustavo Lopes, Cláusula..., p. 211.
[16] Cfr. Courinha, Gustavo Lopes, Cláusula..., p. 165. Identicamente, Saldanha Sanches, J.L., Os Limites..., p. 170, que aponta uma «relação de conexão e interdependência em relação aos requisitos exigidos pela lei».
|
|