Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 411/2022-T
Data da decisão: 2023-01-09  IRS  
Valor do pedido: € 24.131,32
Tema: IRS – Divergência entre o valor declarado e o valor real de venda de ações – Artigo 52.º do Código do IRS.
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SUMÁRIO:

I.      Resulta do n.º 1 do artigo 52.º do CIRS que basta a fundada possibilidade de existência de uma divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão de participações sociais para que a AT se possa valer das presunções previstas nos números subsequentes do mesmo artigo, não sendo exigível que a AT prove o valor real da transmissão.

II.    A lei não tipifica os factos com base nos quais a AT pode fundar a sua convicção de que pode existir uma divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão.

III.  Uma divergência substancial entre o valor declarado e o valor de mercado das ações à data da respetiva transmissão, apurado com base em diversos indicadores técnicos, constitui um indício factual apto a sustentar a convicção da AT de que pode existir uma divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão.

IV. Verificados os pressupostos do n.º 1 do artigo 52.º do CIRS, impendia sobre os Requerentes o ónus de provar que o valor declarado (constante do contrato de compra e venda das ações) correspondia ao valor real da transmissão, de modo a ilidirem a presunção estatuída na alínea b) do n.º 2 do mesmo artigo.

 

 

 

 

 

 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – RELATÓRIO

 

1.   A..., titular do NIF..., e B..., titular do NIF..., doravante designados por “Requerentes”, vieram, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e do artigo 10.º, ambos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), apresentar pedido de pronúncia arbitral tendo em vista a declaração da nulidade do ato de liquidação adicional de IRS n.º 2022..., relativo ao IRS de 2018, no valor de € 21.442,87, e respetivos juros compensatórios, num montante total de € 24.131,32.

2.   Os Requerentes pretendem, ainda, a condenação da Requerida no reembolso da quantia de € 24.131,32, acrescida de juros indemnizatórios, e no pagamento das custas processuais, de parte e de procuradoria condignas.

3.   É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante designada somente por “Requerida” ou “AT”).

4.   O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 11-07-2022.

5.   A Requerida foi notificada da apresentação do pedido de constituição do tribunal arbitral em 18-07-2022.

6.   Dado que os Requerentes não procederam à nomeação de árbitro, foi o signatário designado como árbitro, pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 1, do RJAT, tendo a nomeação sido aceite, no prazo e termos legalmente previstos.

7.   Em 31-08-2022 foram as Partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos do disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, conjugado com os artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

8.   Em conformidade com o preceituado na alínea c), do n.º 1, do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 20-09-2022.

9.   Os Requerentes sustentam, em síntese, que a liquidação adicional impugnada é nula, por vício de violação da lei, com fundamento nos seguintes vícios: 

a)     Erro na interpretação e aplicação do artigo 52.º do CIRS pela AT;

b)    Erro na quantificação realizada pela AT;

c)     Inobservância dos princípios da igualdade, da generalidade, da capacidade contributiva e da justiça material, previstos no n.º 2 do artigo 5.º da LGT e no artigo 2.º da CRP.

10.          Em sede de Resposta, a Requerida apresentou defesa por impugnação, na qual pugna pela manutenção na ordem jurídica da liquidação controvertida, nos termos expostos no procedimento de inspeção.

11.          Por despacho arbitral de 08/11/2022, os Requerentes foram convidados a dizer se mantinham o interesse na realização da diligência de prova, dada a sua aparente desnecessidade, e, em caso afirmativo, identificassem a testemunha em conformidade com o disposto no n.º 1 do artigo 498.º do CPC, ex vi alínea e) do n.º 1 do art.º 26.º do RJAT, e indicassem os pontos de facto sobre os quais incidiria a inquirição.

12.          Os Requerentes não se pronunciaram.

13.          Por despacho arbitral de 17/11/2022, o Tribunal, ao abrigo dos princípios da autonomia na condução do processo, da celeridade e da simplificação e informalidade processuais (artigos 19.º, n.º 2, e 29.º, n.º 2, do RJAT), decidiu dispensar a produção de prova testemunhal, dispensar a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e conceder às Partes o prazo simultâneo de 10 dias para a produção de alegações escritas facultativas, conforme previsto no artigo 91.º, n.º 5, do CPTA, aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT.

14.          A Requerida apresentou alegações em 05/12/2022, nas quais manteve integralmente o teor da sua Resposta.

15.          Os Requerentes não apresentaram alegações.

 

II – SANEADOR

 

16.   A apresentação do pedido de pronúncia arbitral foi tempestiva.

17.   As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas quanto ao pedido de pronúncia arbitral e estão devidamente representadas, nos termos do disposto nos artigos 4.º e 10.º do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

18.   Não foram alegadas exceções que obstem ao conhecimento do mérito da causa.

19.   Não se verificam nulidades, pelo que se impõe conhecer do mérito.

 

III. MÉRITO

 

III. 1. MATÉRIA DE FACTO

§1.       Factos provados

20.  Consideram-se provados os seguintes factos:

a)     Os Requerentes alienaram, em 26/12/2018, 4.463 ações da sociedade C..., SA, com o NIPC..., à sociedade D..., LDA., com o NIPC ..., pelo preço de € 5.000,00, as quais correspondiam a 1,7852% do respetivo capital social, que no total era de € 250.000,00, representado por 250.000 ações;

b)    O Requerente marido era, à data da alienação das ações da sociedade C..., um dos Gerentes da sociedade adquirente – D...;

c)     De acordo com o Balanço da sociedade C..., em 2017, esta tinha um total de Capital Próprio de € 4.654.640,22;

d)    Os Requerentes, na declaração modelo 3 de IRS referente a 2018, entregaram o anexo G, relativo a rendimentos da Categoria G, tendo, no respetivo quadro 9, sido declarada a alienação de valores mobiliários, com os seguintes dados:

e)     Tendo por base os valores declarados, foram apuradas perdas na categoria G, no montante de € 489,67:

f)     Com base na Ordem de Serviço nº OI2020..., a AT realizou um procedimento inspetivo ao IRS dos Requerentes referente ao ano de 2018;

g)    Em 04/03/2022, foram os Requerentes notificados do projeto de relatório de inspeção tributária, o qual se dá por integralmente reproduzido, no qual era proposta uma correção ao Rendimento Líquido da Categoria G do IRS, do ano de 2018, no montante de € 77.611,39, de onde resultaria um IRS a pagar no montante de 21.731,19, nos seguintes termos:

 

h)    Considerou a AT existir divergência, fundamentada, entre o valor declarado e o valor real da transmissão das ações, nos seguintes termos, constantes do projeto de relatório de inspeção tributária: 

 

 

i)      Tendo por base as “fundadas dúvidas de que o valor real da transmissão seja o valor declarado no contrato”, foi proposta a correção ao IRS de 2018, por aplicação do disposto no artigo 52.º do CIRS, nos seguintes termos:

 

 

 

 

j)      Deste modo, a AT apurou os seguintes valores referentes à Categoria G do IRS de 2018:    

k)  Em 10/03/2022, os Requerentes exerceram, por escrito, o direito de audição prévia, que aqui se dá por integralmente reproduzido, no qual sustentaram, em síntese, que “[a] AT limita-se a tecer considerações infundadas e não demonstra documentalmente que o valor declarado não é o real, designadamente através de extratos bancários, comprovativos de transferência ou qualquer outro documento que seja susceptível de realizar essa prova …”, e que a AT, para a mesma situação jurídica, teve  entendimento distinto para o caso sub judice, relativamente àquele que adotou quanto à alienação de ações da mesma sociedade por um antigo acionista da mesma, tendo neste caso concluído que não havia lugar a quaisquer correções, o que, no entender dos Requerentes, configura uma violação dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança dos cidadãos, e dos princípios da igualdade, generalidade, capacidade contributiva e justiça material, donde, em seu entender, resultaria a nulidade do projeto de relatório de inspeção, pelo que requereram o arquivamento dos autos, sem qualquer correção ao IRS de 2018 dos Requerentes;

l)      Em 05/04/2022, foram os Requerentes notificados do conteúdo do Relatório Final de Inspeção, que aqui se dá por integralmente reproduzido, no qual são analisados os argumentos e pretensões apresentados pelos Requerentes em sede de direito de audição, não tendo os mesmos sido atendidos, e tendo-se convolado em definitiva a correção proposta ao rendimento líquido da Categoria G do IRS do ano de 2018, indicada supra;

m)   Em consequência da referida correção foi emitida a liquidação de IRS n.º 2022 ..., de 30/04/2022, bem como a demonstração de acerto de contas n.º 2022 ..., de 03/05/2022;

n)    Em 07/07/2022, deu entrada no CAAD o pedido de constituição de Tribunal Arbitral, que deu origem ao presente processo.

 

§2. Factos não provados

21.  Os Requerentes não provaram que o valor declarado no contrato de compra e venda das ações corresponde ao valor real da transmissão.

 

§3. Motivação quanto à matéria de facto

22.   Cabe ao Tribunal selecionar os factos relevantes para a decisão e discriminar a matéria provada e não provada [artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT]. 

23.   Os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito (cfr. artigo 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT].

24.   Consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo por base a prova documental junta aos autos, e considerando as posições assumidas pelas partes, e não contestadas, à luz do artigo 110.º, n.º 7, do CPPT.

 

 

 

 

 

III.2. MATÉRIA DE DIREITO 

§1. Questões decidendas

25.   Os Requerentes imputam à liquidação contestada os seguintes vícios:

a)  Erro na interpretação e aplicação do artigo 52.º do CIRS pela AT;

b)  Erro na quantificação realizada pela AT;

c)  Inobservância dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança dos cidadãos, da igualdade, da generalidade, da capacidade contributiva e da justiça material, previstos no n.º 2 do artigo 5.º da LGT e no artigo 2.º da CRP.

26.   Apesar de os Requerentes começarem por indicar que através do pedido de pronúncia arbitral apresentado, nos termos e para os efeitos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, pretendem “anular integralmente o referido acto tributário de liquidação”, acabam por pedir ao Tribunal que reconheça que “a liquidação adicional impugnada é nula, por vício de violação de lei”.

27.   Considerando os vícios invocados, não se afigura, todavia, que estejamos perante alguma situação que, à luz do disposto no artigo 161.º do CPA, tenha como consequência a nulidade do ato, aplicando-se assim, caso se conclua pela existência de algum dos vícios invocados, o disposto no artigo 163.º, n.º 1, do CPA, que determina a anulabilidade do ato.

28.   Tendo por base o disposto no artigo 124.º do CPPT, considerando que no caso sub judice não foi alegado qualquer vício que determine a nulidade do ato impugnado, nem se estabelece entre os vícios uma relação de subsidiariedade, a apreciação dos vícios alegados será feita pela ordem indicada pelos Requerentes.

 

§2. Quanto ao alegado erro na interpretação e aplicação do artigo 52.º do CIRS

29.       No caso ora em apreciação verifica-se uma divergência entre os Requerentes e a AT quanto à interpretação e aplicação das normas contidas no artigo 52.º do CIRS, cuja redação, na versão que resultou da entrada em vigor da Lei n.º 82-E/2014, de 31 de dezembro, é a seguinte:

Artigo 52.º

Divergência de valores

1 - Quando a Autoridade Tributária e Aduaneira considere fundadamente que possa existir divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão, tem a faculdade de proceder à respetiva determinação.

2 - Se a divergência referida no número anterior recair sobre o valor de alienação de ações ou outros valores mobiliários, presume-se que:

a) Estando cotados em bolsa de valores, o valor de alienação é o da respetiva cotação à data da transmissão ou, em caso de desconhecimento desta, o da maior cotação no ano a que a mesma se reporta;

b) Não estando cotados em bolsa de valores, o valor de alienação é o que lhe corresponder, apurado com base no último balanço.

3 - Quando se trate de quotas, presume-se que o valor de alienação é o que àquelas corresponda, apurado com base no último balanço.

 

30.        Entendem os Requerentes que para efeitos de interpretação e análise ao artigo 52.º do CIRS, cumpre dividi-lo em duas partes, só sendo possível aplicar a segunda parte se se verificarem os requisitos da primeira, o que significa que a AT teria de fazer prova da existência de uma divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão – conforme previsto no n.º 1 do artigo 52.º do CIRS – o que, segundo os Requerentes, não foi feito, no caso sub judice.

31.       Segundo os Requerentes, a AT “limita-se a tecer considerações infundadas e não demonstra documentalmente que o valor declarado não é o real, designadamente através de extractos bancários, comprovativos de transferência ou qualquer outro documento que seja susceptível de realizar essa prova”.

32.       Para os Requerentes, “[o] método da avaliação pela Óptica Patrimonial (último balanço de 2017), salvo melhor opinião, não é o método apropriado para a AT determinar o valor real da transmissão e assim verificar-se a presunção prevista no n.º 2 do artigo 52.º do CIRC”.

33.       Alegam os Requerentes que “[n]ão é lícito à AT adoptar, isoladamente, o último balanço para determinar o valor real da transmissão, cuja divergência com o valor declarado entende existir, porque não é susceptível de demonstrar que o valor declarado não é o valor real”, cabendo à AT “confirmar a divergência apontada, nomeadamente através de documentos complementares de prova, designadamente junção de documentos comprovativos dos fluxos financeiros associados à transmissão das participações sociais, mesmo que a AT tivesse que requerer o levantamento do sigilo bancário, analisar a audição prévia escrita dos Impugnantes onde explicava a realização do referido negócio, a análise das contas da sociedade cujo capital as acções representavam por forma a visar a existência de créditos ou de débitos do SP sobre a sociedade e, que por via dessa alienação, estivessem a ser transferidos para os adquirentes das participações sociais e sem que o respectivo valor se reflectisse no preço de alienações das acções”.

34.       Acrescentam os Requerentes que “[a] AT não junta qualquer elemento de prova que seja susceptível de demonstrar que o valor declarado não foi o valor real, limitando a tecer teses infundadas e desprovidas de qualquer elemento de prova, logo não é lícito à AT usar apenas o balanço, o EBITDA ou o artigo 15.º do CIS para demonstrar a divergência entre o valor real e o valor declarado, e, por conseguinte não se verifica a presunção prevista no n.º 2 do artigo 52.º do CIRC”.

35.       Segundo os Requerentes, “a AT não procedeu à correcção das declarações financeiras elaboradas pela contabilidade a fim de obter o valor de mercado actual”, “não identificou os activos e os passivos não registados no balanço de 2017”, “não procedeu à avaliação de cada item do activo e do passivo segundo os critérios de mensuração adequado”, “não recorreu a elementos de natureza extra-contabilística” e, portanto, não pode a AT valer-se da presunção prevista no n.º 2 do artigo 52.º do CIRS. 

36.       Alegam, ainda, os Requerentes que os vários métodos de avaliação utilizados pela AT são bastantes díspares entre si, e que a AT não fundamenta por que razão escolheu “um método de avaliação em detrimento dos outros dois”.

37.       Para os Requerentes, a AT coloca em causa o princípio da segurança jurídica, na medida em que o cidadão fica sujeito a um critério puramente arbitrário da AT.

38.       Em sentido divergente, a Requerida, reiterando o teor do Relatório de Inspeção Tributária, refere que a fundamentação da possibilidade de existir divergência entre o valor declarado e o valor real de transmissão não se limitou à utilização do último balanço, tendo sido analisado um “conjunto de indicadores e factos para suportar a referida fundamentação”.

39.       Segundo a Requerida, “a análise da IES e do balanço da sociedade foi tão só um ponto de partida para a Inspeção elencar os indícios de que o valor declarado não corresponde ao valor real”, tendo sido utilizados a Avaliação pela Ótica Patrimonial da empresa, a Avaliação pela Ótica do Mercado – EBITDA, a Avaliação pelo art.º 15.º do Código do Imposto do Selo (“a título meramente exemplificativo”) e a “operação com entidade relacionada”.

40.       Entende a Requerida que não tem de apurar o valor real de transmissão para que fundamente as referidas dúvidas, uma vez que a letra da lei se basta com a fundamentação da mera possibilidade da existência de divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão, e que os factos constantes do Relatório de Inspeção Tributária permitem-lhe “concluir que o valor real de transmissão não terá sido o declarado”.

41.       Sustenta, ainda, a Requerida, que a lei, ao consagrar presunções para a determinação do valor real (quando verificados os pressupostos do n.º 1), transfere o ónus da prova, do valor real, para o contribuinte.

42.   Resulta claro, para o Tribunal, que, de acordo com o teor literal do n.º 1 do artigo 52.º do CIRS, basta a fundada possibilidade de existência de uma divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão para que a AT se possa valer das presunções previstas nos números subsequentes do mesmo artigo.

43.   Neste sentido, pode ler-se no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 21.5.2020, no processo 357/18.7BEVIS, que:

(...) a norma do n.º 1 do artigo 52.º do CIRS, se basta com a demonstração de que “pode existir” divergência entre os valores declarado e real, o que não se confunde com a efetiva existência dessa divergência. Assim, a AT apenas tem o ónus de demonstrar factos que evidenciem a possibilidade de existir divergência e, já não, factos demonstrativos de que a divergência efetivamente existe.

Como é fácil de perceber, a “possibilidade de existir” e a “efetiva existência” são coisas bem distintas, tal como também é o peso do encargo probatório necessário à demonstração de uma e de outra.

44.   Cumpre sublinhar que o artigo 52.º, n.º 1, do CIRS não impõe à AT o ónus de provar que existe uma divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão, o que implicaria exigir à AT que fizesse prova do valor real da transmissão.

45.    Na verdade, se a AT detivesse informação relativa ao valor real da transmissão, seria esse o valor de realização para efeitos de apuramento da mais-valia (i.e., o valor da contraprestação referido no artigo 44.º, nº 1, al. f), do CIRS) e o sujeito passivo não seria tributado pelo valor de transmissão presumido nos termos dos n.ºs 2 e 3 artigo 52.º do CIRS.

46.   O artigo 52.º do CIRS foi introduzido precisamente para dar resposta a situações em que a AT não detém elementos que lhe permitam determinar o valor real da transmissão, e em que exigir que a AT provasse o valor real da transmissãoseria impor-lhe o ónus de fazer uma prova impossível ou excessivamente difícil de ser produzida. 

47.   Assim, o entendimento segundo o qual a AT teria de fazer prova do valor real da transmissão e de que este não corresponde ao valor declarado pelo sujeito passivo subverteria não só o teor literal do artigo 52.º, n.º 1, do CIRS, mas também a sua ratio legis.

48.   Todavia, cumpre salientar que o facto de não ser exigível à AT que prove o valor real da transmissão não significa que a AT esteja dispensada de apresentar factos indiciadores de que o valor declarado não corresponde ao valor real de transmissão.

49.   Na Decisão Arbitral proferida no âmbito do processo n.º 812/2019-T, de 19 de janeiro de 2021, no qual ficou provado que a AT fundamentou a possibilidade de divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissãoexclusivamente na diferença entre o valor nominal das participações sociais (valor declarado) e o valor das participações sociais tendo em vista os capitais próprios da sociedade inscritos no “último balanço”, veio o Tribunal Arbitral dizer:

No entendimento deste Tribunal, considera-se que a AT não tem base jurídica para fundamentar a existência de divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão ao ter tomado como critério, além do mais único, aquele que, nos termos dos n.ºs 2 e 3 do artigo 52.º do Código do IRS, serve de base à presunção do valor de realização, ou seja, ao adotar como critério ‘o último balanço’.”

50.   Quanto aos factos e indícios objetivos aptos a sustentar a convicção da AT de que “pode existir” uma divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão para efeitos do n.º 1 do artigo 52.º do CIRS, interessa sublinhar que a lei não tipifica os mesmos, tal como referido no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte supra mencionado:

Importa referir que nada na lei obsta a que a possibilidade de divergência entre o valor declarado e o valor real da operação seja indiciada pela existência de relações especiais e / ou de uma operação por valor inferior ao real ou de mercado. Na verdade, a lei não define nem limita os factos em que a AT se pode basear para considerar “fundadamente que possa existir divergência entre o valor declarado e o valor real da operação”; nesta medida, não existia qualquer impedimento legal à correção da matéria tributável à luz do artigo 52.º do CIRS.”

51.  A este respeito, a AT recorreu corretamente à aplicação (não exclusiva) do método de Avaliação pela Ótica Patrimonial da empresa.

52.  A aplicação do método de Avaliação pela Ótica Patrimonial da empresa (sem ajustamentos) evidenciou uma manifesta discrepância entre o valor declarado de alienação das ações (€5.000,00 por 4.463 ações, representativas de 1,7852% do capital social, correspondendo a cada ação o valor declarado de € 1,12, sendo o valor nominal de cada ação € 1,00) e o que resultaria da consideração do valor do balanço da C..., em 31/12/2017, (€ 18,62 por ação, resultante da divisão do valor do capital próprio – € 4.654.640,22 – pelo número de ações – 250.000).

53.  A AT recorreu também à Avaliação pela Ótica do Mercado, através do indicador financeiro EBITDA (Earnings Before Interest, Taxes, Depreciation and Amortization).

54.  No caso sub judice, o EBITDA da sociedade C..., referente a 2017, é de € 1.857.969,60, e a margem operacional (EBITDA/vendas) de 12,56%, em linha, aliás, com os resultados dos anos 2013 a 2016, o que aponta para um valor de mercado superior ao valor nominal do Capital Social, confirmando os indícios já resultantes da análise do balanço de 2017.

55.  Por outro lado, não se compreende a invocação pela AT, “a título meramente exemplificativo”, no Relatório de Inspeção Tributária, da “avaliação pelo art.º 15.º do Código do Imposto do Selo”, uma vez que este preceito não é aplicável aos factos em apreciação nem poderá ser aplicado por analogia.

56.  Aos elementos referidos, acresce o facto de existirem relações especiais entre a sociedade adquirente das ações e o Requerente marido, uma vez que, à data da transmissão das ações, ele era gerente da sociedade adquirente.

57.  Estes factos, analisados em conjunto, permitem, portanto, fundamentar a possível existência de divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão, para efeito do n.º 1 do artigo 52.º do CIRS.

58.  Com efeito, à luz dos vários elementos apurados pela AT, que apontam no sentido de que o valor de mercado das ações alienadas pelos Requerentes era superior ao valor declarado, entende este Tribunal que a AT apresentou, como lhe competia, factos indiciadores plausíveis aptos a fundamentar a sua convicção de que poderia existir uma divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão para efeitos de aplicação do artigo 52.º do CIRS.

59.  Contrariamente ao que é alegado pelos Requerentes, não estamos perante uma atuação arbitrária por parte da AT que ofenda o princípio da segurança jurídcia, mas antes perante uma interpretação e aplicação correta da lei, mais precisamente do preceito contido no n.º 1 do artigo 52.º do CIRS, do qual resulta a legítima determinação do rendimento através da presunção prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo 52.º do CIRS.

60.  Verificados os pressupostos de aplicação do n.º 1 do artigo 52.º do CIRS no caso sub judice, a AT presumiu, corretamente, que o valor de alienação das ações corresponde ao valor apurado com base no último balanço, conforme determina a alínea b) do n.º 2 do artigo 52.º do CIRS.

61.   Por último, cumpre referir que impendia sobre os Requerentes o ónus da prova relativamente ao valor real de transmissão das ações, de modo a ilidirem a presunção que operou por força da alínea b) do n.º 2 do artigo 52.º do CIRS.

62.   Sucede que os Requerentes não ilidiram a dita presunção.

63.  Do exposto supra, conclui-se pela improcedência do primeiro vício invocado pelos Requerentes.

 

§3. Quanto ao alegado erro na quantificação realizada pela AT e à alegada inobservância dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança dos cidadãos, da igualdade, da generalidade, da capacidade contributiva e da justiça material

64.   Os Requerentes alegam também a existência de erro na quantificação realizada pela AT e a inobservância dos princípios da igualdade, da generalidade, da capacidade contributiva e da justiça material.

65.   Na sua argumentação, os Requerentes ligam a existência do erro na quantificação à inobservância dos princípios enumerados supra, pelo que se procederá à análise de ambos os vícios no âmbito deste parágrafo (§3).

66.   Os Requerentes sustentam este argumento com o paralelismo que, em seu entender, existe entre o caso sub judice e um outro caso, em que um outro acionista da mesma sociedade (C...) transmitiu o mesmo número de ações a terceiros “nas mesmas circunstâncias temporais e de modo”, e que, apesar de ter sido objeto de Inspeção de âmbito parcial (IRS), referente ao ano de 2017, tendo por objetivo o controlo e análise de mais-valias de valores mobiliários, e tendo a alienação dessa ações sido feitas pelo valor unitário de € 4,00, a AT concluiu, neste caso, não haver lugar a quaisquer correções, diferentemente do que fez com os ora Requerentes.

67.    Concluem os Requerentes que, nesse outro caso, a AT considerou aceitável o valor de € 4,00 euros por ação, apesar de se situar abaixo dos valores resultantes da consideração do valor do balanço referente a 2027 (€ 18,62) e da avaliação pelo artigo 15.º do Código do Imposto do Selo (€ 67,16).

68.   Com esta argumentação, os Requerentes entendem ter feito prova “que permite ilidir as alegadas dúvidas da AT no que concerne à convergência entre o valor real e o valor declarado e, ao invés, a AT não cumpriu com o seu dever de fundadamente justificar a divergência nem justificou a razão pelas suas decisões divergentes sobre idêntica matéria e ao não o ter feito não cumpriu com o seu ónus probatório e, consequentemente, gera a nulidade da liquidação impugnada por vício de violação de lei”.

69.   Entendem, ainda, os Requerentes, que o facto de a AT ter evidenciado entendimentos distintos para a mesma situação jurídica se traduz numa violação dos princípios, constitucionais e legais, da segurança jurídica e da proteção da confiança dos cidadãos, da igualdade, da generalidade, da capacidade contributiva e da justiça material, donde resultaria “a nulidade da liquidação adicional impugnada”.

70.   A Requerida, por seu lado, sustenta que a quantificação feita resultou da presunção estabelecida na alínea b) do número 2 do artigo 52º do CIRS, encontrando-se devidamente fundamentada no Relatório de Inspeção Tributária.

71.   Ao Tribunal cabe apreciar os factos referentes ao caso concreto em apreciação, cujos Requerentes e objeto estão identificados supra, não lhe cabendo apreciar factos referentes a outros casos, respeitantes a outros sujeitos e procedimentos inspetivos.

72.   Nem se percebe como é que a partir de um outro caso, invocado pelos Requerentes, se poderia chegar à conclusão de que no caso ora em apreciação houve um erro de quantificação.

73.   A quantificação que é feita no caso concreto tem por base um critério legal, contido na alínea b) do n.º 2 do artigo 52.º do CIRS, e das duas uma: ou a lei foi corretamente interpretada e aplicada aos factos ou não foi.

74.   Essa conformidade legal não está dependente do desfecho de um procedimento inspetivo num caso alegadamente semelhante.

75.   E, apesar de os Requerentes manifestarem o entendimento de que que existe erro na quantificação, não esclarecem qual seria, então, a correta quantificação, limitando-se a referir “analisado o relatório, este menciona a existência de fundadas dúvidas, mas não as concretiza, isto é, do relatório que deu origem à liquidação impugnada, a AT não se limita a uma forma de determinação da quantificação, mas sim a 3 (três) formas distintas e não coincidentes no seu resultado, ignorando injustificadamente, pelo menos, a única fórmula que considerou como adequada que foi o valor de € 4,00/acção no caso do Sr. E...”.

76.   Aparentemente, os Requerentes confundem os vários elementos que permitem fundamentar a possível existência de uma divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão (relevante para efeito de aplicação do n.º 1 do artigo 52.º do CIRS), com a presunção estabelecida na alínea b) do n.º 2 do artigo 52.º do CIRS, nos termos da qual o valor da alienação é apurado com base no último balanço.

77.   Ora, do Relatório de Inspeção não restam dúvidas de que o rendimento líquido da Categoria G foi determinado com base no valor do balanço de 2017, e que a correção feita resultou da consideração desse valor (€ 83.101,06), tendo assim sido apurada uma mais-valia de € 77.611,39, o que, mediante a aplicação da taxa especial de 28%, perfaz o montante de € 21.731,19.

78.   Não se trata de qualquer determinação arbitrária, discriminatória ou opaca do rendimento líquido, pelo que não existe qualquer violação dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança dos cidadãos, da igualdade, da generalidade, da capacidade contributiva ou da justiça material.

79.   O legislador, tendo em vista evitar situações de evasão fiscal, consagrou as normas do artigo 52.º do CIRS, já analisadas, de modo a assegurar, na medida do possível, e de acordo com uma formulação geral e abstrata, que o IRS a pagar pelos sujeitos passivos, que obtenham rendimentos abrangidos pelo âmbito normativo daquele preceito, assenta na sua verdadeira capacidade contributiva.

80.   Deste modo, na medida em que o artigo 52.º do CIRS contribua para prevenir a evasão fiscal, contribui também para assegurar a igualdade e a justiça material em matéria fiscal.

81.   Compete a este Tribunal apreciar e decidir se a lei foi corretamente aplicada no caso concreto, não lhe competindo fiscalizar e apreciar o grau de uniformidade de aplicação da lei pela AT no universo de casos mais ou menos semelhantes entre si.

82.   E entende este Tribunal, pelo exposto, que não existe, no caso sub judice, qualquer violação da Constituição ou da lei.

83.   Deste modo, improcedem os vícios de erro na quantificação e de inobservância dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança dos cidadãos, da igualdade, da generalidade, da capacidade contributiva e da justiça material, invocados pelos Requerentes.

84.   Conclui-se, assim, pela correta interpretação e aplicação pela Requerida dos n.ºs 1 e 2 do artigo 52.º do CIRS, o que determina a improcedência total do pedido de pronúncia arbitral.

 

IV – DECISÃO

Nestes termos, e com os fundamentos expostos, este Tribunal Arbitral decide julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral e absolver a Requerida de todos os pedidos, tudo com as devidas e legais consequências.

 

V- VALOR DO PROCESSO

De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 24.131,32.

 

VI – CUSTAS

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 1.530,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo dos Requerentes.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 09 de janeiro de 2023     

 

O Árbitro

 

(Paulo Nogueira da Costa)