Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 200/2022-T
Data da decisão: 2023-01-28  IRC  
Valor do pedido: € 16.172,49
Tema: IRC - Preços de transferência;§s 3.57 e 3.62 das Guidelines da OCDE.
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SUMÁRIO:

 

a)     Se Requerida aponta à amostra que lhe é apresentada pelo sujeito passivo, para cumprimento do disposto no art.º 63º do CIRC e na Portaria 1446-C/2001, grandes disparidades, indutoras de defeitos de similaridade ou comparabilidade, que colocam em causa a semelhança das  operações e/ou  entidades que constituem a dita amostra, de modo a que tais falhas ou disparidades de comparabilidade se estendam, ou inquinem, no entender da AT, todas as operações, de toda a amostra, não pode um elemento de tal amostra (mediana, média, ou outro) ser usado como comparável;

b)    Com efeito, se toda a amostra sofre de defeitos ou disparidades de comparabilidade que a tornam imprestável como referência comparativa da operação sob escrutínio, a mediana de uma tal amostra está, obviamente, também ela, contaminada por defeitos de comparabilidade e não pode servir como “métrica quantitativa” adequada de ajustamento; 

c)     Neste caso, como se refere no §3.61 das Guidelines, a Requerida deve determinar o que entende ser, na sua perspetiva, o intervalo de plena concorrência, procurando uma amostra que possua níveis de comparabilidade aceitáveis, seguindo o processo ou caminho sequencial (passando pelos §§ 3.56, 3.59 e 3.61) e que poderá a final desembocar na aplicação dos §§ 3.57 e 3.62.

d)    O § 3.62 das Guidelines não é um ponto de chegada, que permita, sem mais justificação, aplicar a mediana a uma amostra previamente qualificada como tendo, toda ela, defeitos notórios de comparabilidade. Se assim for, então torna-se manifesto que um dos elementos (a mediana) dessa amostra que padece, toda ela, de tais defeitos, não pode ser erigido em métrica referencial de uma operação comparável.

e)     Em suma, os § 3.57 e 3.62 não constituem, em si mesmos e isoladamente, fundamentação para ajustamentos de PT, de aplicação automática, mas sim requisitos e trâmites a usar em processos de ajustamentos; mas estão, na lógica interna da doutrina constante das Guidelines, inseridos num processo, que obriga ao cumprimento de fases ou procedimentos intermédios. 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I.RELATÓRIO

 

1. A..., S.A., com sede na Rua ..., n.º ..., ..., ...–... ...-..., pessoa coletiva n.º..., doravante denominada por Requerente, tendo sido notificada, do Despacho da Chefe de Divisão de Administração da Direção de Direção de Serviços do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, ao abrigo de subdelegação de competências, proferido no dia 20 de dezembro de 2021, mediante o qual é indeferido o Recurso Hierárquico, apresentado contra as liquidações melhor identificadas infra, o qual mantém a Decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa, também, apresentada contra a Liquidação Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) n.º 2019..., correspondente ato de liquidação de juros compensatórios por recebimento indevido n.º 2019... e ato de Liquidação de Juros Compensatórios por retardamento da liquidação n.º 2019..., relativos ao ano de 2014, os quais resultaram na Demonstração de Acerto de Contas n.º 2019..., da qual consta o valor total a pagar de € 16.172,49 (dezasseis mil, cento e setenta e dois euros e quarenta e nove cêntimos), vem, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos artigos 10.º e seguintes, todos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), em conjugação com o disposto no artigo 99.º e na alínea a) do n.º 1 do artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT, apresentar Pedido de Pronúncia Arbitral com intervenção de tribunal coletivo, nos termos do artigo alínea b) do n.º 3 do artigo 5.º do RJAT.

2. O Pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) e automaticamente notificado à Requerida.

A Requerente procedeu à nomeação de árbitro, na pessoa do Prof. Doutor António Martins e a Requerida nomeou o Dr. Jorge Carita, ambos árbitros vogais, que aceitaram a nomeação. 

Nos termos do artigo 6.º n.º 2 do RJAT foi designada como Presidente do Tribunal, por acordo entre os árbitros vogais, a Conselheira Maria Fernanda Santos Maçãs que aceitou.

Em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral coletivo ficou constituído em 28 de junho de 2022.

3. A Requerente sustenta o pedido com a argumentação que sumariamente se indica.

 

A)   Da falta de fundamentação do ato de liquidação

 

a)     A Requerente alega que, analisada a Demonstração de Liquidação de IRC notificada à Requerente pelo Serviço de Finanças de Oeiras 2, não resulta da mesma a suficiente e necessária fundamentação, nem de facto, nem de direito, conforme é exigido pelo disposto no artigo 77.º da LGT. Tal situação causa incerteza à Requerente em relação à fundamentação da liquidação oficiosa objeto de contestação, o que, naturalmente, impossibilita a preparação da defesa do Contribuinte, enquanto princípio constitucionalmente previsto, conforme melhor resulta do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa (“CRP”).

b)    Nem tão pouco se pode admitir verificada a fundamentação por adesão ou concordância, por a mesma ter de ser expressa, nos termos do disposto no artigo 63.º do RCPITA, no n.º 1 do artigo 77.º e no n.º 1 do artigo 152.º, do CPA, o que não se verifica no caso.  

 

B)   DA ILEGALIDADE DO DESPACHO DE INDEFERIMENTO DA RECLAMAÇÃO GRACIOSA

 

c)     Para a Requerente o Despacho proferido, em 28 de setembro de 2020, pelo Exmo. Sr. Diretor de Finanças Adjunto, que indeferiu a supra referida Reclamação Graciosa apresentada pela ora Requerente, ofende normas e princípios jurídicos aplicáveis, devendo ser anulado em conformidade, nos termos do artigo 163.º do CPA.

d)    O referido Despacho apenas remete para o Projeto de Decisão, que o antecedeu, o qual, por sua vez, se limitou a acolher, infundada e acriticamente, o entendimento dos Serviços de Inspeção, o que configura uma evidente violação do dever de pronúncia a que a Administração tributária se encontra adstrita, consagrado no artigo 56.º da LGT.

e)     Não são adiantadas as razões de facto e de direito que levaram a desconsiderar os elementos apresentados pela Requerente, nomeadamente (i) os Relatórios de Preços de Transferência referentes a todos os anos em que foram prestados suprimentos cujos juros foram suportados e deduzidos pela Requerente no exercício de 2014, (ii) os contratos de suprimentos que suportam as prestação dos mesmos e (iii) as condições de mercado temporalmente vigentes nas datas em que os suprimentos – dos exercícios 2008, 2009, 2010, 2011 e 2012 – foram prestados e que não haviam, já, sido tidos em consideração pelos SIT.

f)     Para a Requerente encontra-se violado o n.º 1 do artigo 266.º da CRP, o artigo 77.º da LGT, o artigo 58.º e o artigo 72.º, ambos da LGT, sendo violado o princípio da descoberta da verdade material podendo (e devendo), para esse efeito, utilizar todos os meios de prova admitidos em direito.

 

Subsidiariamente, quanto à ilegalidade da liquidação   

 

I.              DO ERRO PELA DESCONSIDERAÇÃO DA REALIDADE MATERIAL SUBJACENTE AOS SUPRIMENTOS PRESTADOS NOS ANOS ANTERIORES A 2014. 

 

g)    Relativamente aos suprimentos prestados pela Sociedade B..., desde 2008, ao contrário do consignado no Relatório de Inspeção Tributária, no sentido de que teria sido violado o Princípio da Plena Concorrência, previsto no n.º 1 do artigo 63.º do Código do IRC, relativamente à taxa de juro acordada para a remuneração dos suprimentos, a Requerente defende que este princípio foi respeitado.

h)    O Princípio da Plena Concorrência para ser respeitado não atende a uma ciência exata e exige, por isso, uma apreciação casuística, temporal e factual, pretendendo que situações iguais sejam tratadas de forma igual. 

i)      O n.º 1 do artigo 63.º do Código do IRC, tem presente uma obrigação genérica, ou seja, a lei não proíbe a fixação de preços diferentes dos preços de mercado, nem considera ilícita a divergência, apenas regula as consequências fiscais decorrentes dessas divergências, ou seja, não proíbe as condições que não se encaixem no intervalo do preço do mercado, respeitando o princípio da liberdade da gestão fiscal que decorre do direito do contribuinte que assenta no princípio constitucional da liberdade de iniciativa económica. 

j)      Os serviços de inspeção aplicaram a conclusão, putativa, de que a taxa de juro de 15% aplicada aos suprimentos prestados pela B... não corresponde àquela que normalmente seria contratada, aceite e praticada entre entidades independentes em operações comparáveis, a todos os suprimentos prestados pela acionista única da Requerentenos referidos exercícios de 2008, 2009, 2010, 2011, 2012 e 2014, mas tal análise teve, apenas, em consideração o Relatório de Preços de Transferência da Requerente referente ao ano de 2014 e os contratos de suprimentos celebrados, também, no ano de 2014.

k)    Ou seja, os serviços de inspeção partiram de uma análise exclusivamente circunstanciada ao exercício de 2014 para avaliar a conformidade da taxa de juro aplicada aos suprimentos prestados pela B... noutros exercícios e, concretamente, nos exercícios de 2008, 2009, 2010, 2011 e 2012.

l)      Facilmente se compreende, assim, que os fundamentos que estão subjacentes às conclusões alcançadas pelos serviços de inspeção relativamente à taxa de juro aplicada aos suprimentos prestados no exercício de 2014 não são válidos, nem aplicáveis aos suprimentos prestados nos referidos exercícios de 2008, 2009, 2010, 2011 e 2012, sendo, portanto, incontestável que a fundamentação invocada pelos serviços de inspeção não é aplicável, nem pode de servir de fundamentação para as correções aos juros praticados para os suprimentos prestados nestes anos.

m)   Consequentemente, mesmo a tese sufragada pelos serviços de inspeção – que não se consente e só por necessidade de exposição se admite – apenas seria aplicável à taxa de juro (e aos juros) aplicados aos suprimentos concretamente prestados à Requerente no exercício de 2014.

 

II.     Da errónea valoração do Relatório de Preços de transferência e a violação do ónus da prova e do princípio de tributação pelo rendimento real

 

n)    A conclusão alcançada pela entidade responsável pela elaboração do Relatório de Preços de Transferência, relativamente aos suprimentos prestados pela sociedade B..., à Requerente, é absolutamente clara no sentido de que a taxa de juro utilizada de 15% se enquadra no intervalo de plena concorrência apurado relativamente a operações selecionadas como comparáveis.

o)    (…), conforme acima referido, o Relatório de Preços de Transferência em causa concluiu que o intervalo de plena concorrência identificado varia entre um valor mínimo de 1,8% e um valor máximo de 21,1%, pelo que a taxa de 15% utilizada pela Requerente se situa bem abaixo do valor máximo assim apurado.

p)    Alega a Requerente que os serviços de inspeção falharam, totalmente, em analisar e ponderar as concretas e as específicas condições e circunstâncias económicas, temporalmente, relevantes da operação vinculada, com a violação do ónus da prova, em matéria de preços de transferência.

q)    Conforme o disposto no artigo do 63.º do Código do IRC, à Administração tributária cabe provar:

i)              a existência de relações especiais; e

ii)             que devido às condições especiais o resultado fiscal apurado foi diferente do que seria na ausência dessas condições especiais — cfr. Pires, Joaquim António, Os Preços de Transferência, Ed. Vida Económica, 2006, pp. 29 e ss. 

 

r)     Por sua vez, o contribuinte está obrigado, nos termos do n.º 7 do artigo 63.º do Código do IRC, a indicar na declaração anual de informação contabilística e fiscal a existência, ou não, no período de tributação a que aquela respeita, de operações com entidades com as quais está em situação de relações especiais, juntamente com as restantes indicações adicionais aí constantes.

s)     O contribuinte está, ainda, obrigado ao disposto no n.º 6 do artigo 63.º do Código do IRC e no n.º 1 e n.º 2 do artigo 13.º da Portaria 1446-C/2001, de 21 de dezembro, ou seja, a manter organizada a documentação respeitante à política adotada em matérias de preços de transferência, conforme previsto nas referidas disposições legais.

t)      Alega a Requerente que cumpre integralmente as exigências legais, ao contrário da Requerida, termos em que as correções em apreço e as liquidações delas consequentes são manifestamente ilegais, por violação do artigo 63.º do IRC.   Para a Requerente as correções efetuadas no Relatório de Inspeção Tributária em análise são ainda indevidas e ilegais, por violação, entre outros, do n.º 3 do artigo 268.º da CRP, artigo 63.º do Código do IRC, artigo 77.º da LGT e artigo 152.º do CPA.

 

III.          DA VIOLAÇÃO DO DEVER ESPECIAL DE FUNDAMENTAÇÃO DAS CORREÇÕES EM APLICAÇÃO DO REGIME DE PREÇOS DE TRANSFERÊNCIA

 

u)    Em Relação ao Dossier apresentado, alega a Requerente que a Administração tributária queda-se por enunciações genéricas para colocar em causa a comparabilidade realizada no Relatório de Preços de Transferência referente ao exercício de 2014 — cfr. cit Documento n.º 6 —, ou seja, põe em causa que exista a "comparabilidade razoável" que se expressa no n.º 5 do artigo 4º da Portaria 1446-C/2001, mas não efetua uma análise rigorosa, objetiva e individualizada de fatores de comparabilidade conforme estabelecidos no artigo 5º da Portaria 1446-C/2001.

v)    Adicionalmente, a Administração tributária não demonstra, nem muito menos prova, quais as entidades da amostra que sofreriam de tal “lacuna”, referindo-se, somente, de modo genérico, às empresas que se encontram entre o 3.º quartil e o máximo, afirmando de um modo vago que existe disparidade de atividade, mercado e montante de dívida emitida, sem fundamentar especificada e individualizadamente com base em que critério(s) lhe confere aquele atributo de elevada dispersão e desadequação para a análise de comparabilidade — cfr. citDocumento n.º 9 p. 33.

w)   Assim, a Administração tributária não demonstra, nem quantifica, os valores de potencial demarcação de comparáveis, nem avança critérios numéricos que permitam aferir se, como refere o n.º 5 do artigo 4.º da Portaria 1446-C/2001, se existe “comparabilidade razoável”, ficando, assim, sem se saber que atividade, mercado, dimensão e montantes de dívida teria que apresentar qualquer das empresas integrante dos intervalos relativos ao exercício em causa para que estivesse cumprido o requisito de comparabilidade razoável. 

x)    Se a Administração tributária entendia que existiriam neste intervalo empresas não comparáveis, em todo o espectro das 70 empresas identificadas e não somente quanto a um quartil específico, tinha a obrigação legal de demonstrar, expressamente, que critérios de exclusão foram utilizados e que métricas ou filtros aplicou na seleção de entidades a excluir, o que não sucede de modo algum.

y)    Para a Requerente as meras generalidades e raciocínios conclusivos apresentados pela Administração tributária,quanto a uma suposta fragilidade de comparabilidades, ficam muitíssimo aquém do exigido pelo n.º 3 do artigo 77.º da LGT, bem como, o exigido pelo artigo 5.º da Portaria 1446-C/2001, pois desconhece-se que regras delimitadoras foram aplicadas pela Administração tributária, quantas entidades se expurgaram, e como esse procedimento afeta a diferente distribuição dos pontos estatísticos (mínimo, 1º quartil, mediana, etc.) da nova amostra potencial resultante da exclusão de determinados valores, amostra esta que nunca chega, sequer, a ser apresentada pela Administração tributária.

z)     A Requerida viola desta forma o especial de dever de fundamentação que a lei impõe nesta matéria, em conformidade com a orientação jurisprudencial (cfr. o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, proferido a 13 de dezembro de 2019, no âmbito do Processo n.º 18/18.7BCLSB, o qual vem aderir totalmente ao decidido no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, proferido a 14 de novembro de 2019, no âmbito do Processo 10/17.9BCLSB, sendo que este já vem numa longa esteira jurisprudencial — cfr. deste mesmo Tribunal, Acórdão proferido a 16 de janeiro de 2017, no âmbito do Processo n.º 1114/03; Acórdão proferido a 4 de outubro de 2005, no âmbito do Processo n.º 0278/04; Acórdão proferido a 19 de novembro de 2002, no âmbito do Recurso n.º 5499/001; Acórdão proferido a 4 de julho de 2000, no âmbito do Recurso n.º 1036/98, ou ainda, Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, proferido a 29 de novembro de 2006, no âmbito do Processo nº 401/06.

aa)  Adicionalmente, quando se ancora uma correção nas Guidelines, há que analisar as suas recomendações em toda a sua amplitude confrontando os parágrafos 3.1, 3.43 e 1.38 até 1.63 das Guidelines da OCDE — cfr. OECD (2010), OECD Transfer Pricing Guidelines for Multinational Enterprises and Tax Administrations 2010, OECD Publishing, Paris — fica ainda mais patente a superficialidade da fundamentação da Administração tributária, o que não poderá ser considerado aceitável num caso desta natureza.

bb) Em síntese, no caso é exigível uma fundamentação adequada, na qual se identificassem os critérios de exclusão das entidades que teriam uma comparabilidade fragilizada, e se apontassem individualmente que entidades seriam excluídas a partir dessa concreta fundamentação. A não se efetuar tal prova, peca a sustentação da correção por sérias lacunas.

cc)  Adicionalmente, pelo exposto resulta que se fora para afastar as conclusões do Relatório de Preços de transferência apresentado pela Requerente — cfr. cit Documento n.º 6 —, impunha-se que a Administração tributária apresentasse os seus próprios comparáveis, numa análise minuciosa e individualizada ou, caso aproveite parte dos comparáveis apresentados pela Requerente, demonstrasse e fundamentasse quais os que toma em consideração como válidos e os que não aceite, refazendo, obrigatoriamente, o recálculo dos intervalos de comparabilidade, o que, in casu , não sucedeu de todo!

dd) Para além do dever especial de fundamentação alega a Requerente absoluta incongruência no raciocínio e na fundamentação da Administração tributária, porque apesar de invocar fragilidades do exercício de comparabilidade que consta do Relatório de Preços de transferência apresentado pela Requerente,  aceita, implicitamente, a amostragem e os cálculos que deste resultam, posto que aplica a mediana calculada no Relatório de Preços de transferência apresentado pela Requerente , a qual tem, justamente, por base todas as empresas na amostragem de 70 empresas que consta do referido relatório, incluindo as supostas dispersões que a Administração tributária refere genericamente como não devendo ser admitidas.

ee)  As liquidações padecem, desta forma do vício de violação de lei por falta de fundamentação, incorrendo a Administração tributária em erro na interpretação e aplicação do direito decorrente da violação do n.º 3 do artigo 268.º da CRP, n.º 3 do artigo 77.º da LGT e artigo 152.º do CPA, ilegalidade essa que inquina as liquidações sub judice, tornando-as anuláveis nos termos do artigo 163.º do CPA, aplicável ex vi alínea d) do artigo 2.º do CPPT.

 

IV. Dos erros metodológicos de análise de preços de transferência e na aplicação da mediana

 

ff)   Finalmente a Requerente alega que a Administração tributária se encontra em manifesto erro na interpretação e na aplicação do regime de preços de transferência, em violação das Guidelines da OCDE — cfr. OECD (2010), OECD Transfer Pricing Guidelines for Multinational Enterprises and Tax Administrations 2010, OECD Publishing, Paris —, bem como, em violação das disposições da Portaria 1446- C/2001, de 21 de dezembro, conforme se irá demonstrar.

gg) Alega a Requerente que a Administração tributária (i) não eliminou as entidades que considerou como tendo defeitos de comparabilidade e (ii) não refez a amostra, obtendo novos valores para os diversos percentis, tal como o deveria ter feito nos termos do parágrafo § 3.56 das Guidelines da OCDE — cfr. OECD (2010), OECD Transfer Pricing Guidelines for Multinational Enterprises and Tax Administrations 2010, OECD Publishing, Paris. 

Adicionalmente, a Administração tributária não expressou os defeitos de comparabilidade, os quais não podem, por isso, ser identificados e / ou quantificados e, portanto, não são ajustados a permitir qualquer correção, e, também, a Administração tributária não ponderou e não demonstrou se o intervalo, após realizada tal tarefa, inclui um número considerável de observações que permitam, ainda, a sua utilização para efeitos de cálculo de percentis tal como o deveria ter feito nos termos do parágrafo § 3.57 das Guidelines da OCDE — cfr. OECD (2010), OECD Transfer Pricing Guidelines for Multinational Enterprises and Tax Administrations 2010, OECD Publishing, Paris.

hh) Em suma, a Administração tributária não deu cumprimento às regras estabelecidas nas Guidelines da OCDE, que aplicou, e em especial, não deu cumprimento ao parágrafo § 3.61 das Guidelines da OCDE, no qual se refere que deveria ter sido dada oportunidade ao contribuinte de apresentar elementos adicionais, que fossem então analisados, em contradição com a metodologia exigida pela aplicação das referidas regras.

ii)    Em conclusão, analisado o procedimento seguido pela Administração tributária, verifica-se que a mesma incorre em intoleráveis erros na aplicação do regime dos Preços de Transferência, já que, além do mais:

i)              Não eliminou as entidades que considerou como tendo defeitos de comparabilidade;

ii)             Não refez a amostra, obtendo novos valores para os diversos percentis;

iii)           Não indicou os defeitos de comparabilidade que teria identificado;

iv)           Não ponderou e não demonstrou se o intervalo inclui um número considerável de observações que permitam, ainda, a sua utilização para efeitos de cálculo de percentis;

v)             Não indicou, especificada e aprofundadamente, os desvios substanciais que teria identificado entre os pontos do intervalo apresentado pela Requerente, para avaliar a sua adequação para inclusão num hipotético intervalo final de plena concorrência;

vi)           Não deu oportunidade à Requerente para apresentar elementos adicionais, que fossem, então, analisados;

vii)          Não adotou nem determinou um intervalo de plena concorrência, ajustando o número de pontos daqueles que a Requerente propõe, ou construindo um intervalo alternativo;

viii)        Não indicou, fundamentadamente, qual o critério que utilizou para definir o ajustamento para um certo ponto, quer este seja a média, a mediana ou outro.

jj)    O que, na ótica da Requerente, a Administração tributária incumpre, em toda a linha, com o procedimento de aplicação do regime de preços de transferência, em claro erro de interpretação e de aplicação dos procedimentos previstos nas Guidelines da OCDE — cfr. OECD (2010), OECD Transfer Pricing Guidelines for Multinational Enterprises and Tax Administrations 2010, OECD Publishing, Paris, bem como, em violação do disposto nos artigos 1.º e 4.º a 6.º da Portaria 1446- C/2001, de 21 de dezembro.

 

V.  Da ilegalidade da liquidação de Juros Compensatórios

 

kk) Na sequência da anulação, por ilegalidade, da liquidação de IRC, atinente ao ano de 2014, serão, evidentemente, de anular, também, as liquidações de Juros Compensatórios que a integram, por não demonstrado pela Administração Tributária o pressuposto essencial, previsto na lei, de que o recebimento indevido e retardamento da liquidação do imposto se deve a facto imputável ao contribuinte (cfr. n.º 1 do artigo 35.º da LGT).

ll)    Ao contrário do exigido pela lei, a Administração tributária limitou-se a exigir, de forma automática, Juros Compensatórios, ultrapassando as formalidades legais estabelecidas para a respetiva liquidação e inquinando, assim, as respetivas liquidações ora contestadas de vício de forma, por falta de fundamentação, e violação do disposto no n.º 1 do artigo 35.º e no n.º 1 e n.º 2 do artigo 77.º da LGT, bem como, o disposto no n.º 3 do artigo 268.º da CRP.

 

VI. Da restituição do imposto e dos juros Compensatórios indevidamente pagos e do direito a Juros Indemnizatórios

 

Finalmente, a Requerente peticiona a devolução do imposto e juros compensatórios indevidamente pagos acrescidos de juros indemnizatórios nos termos do disposto no artigo 43.º, da LGT.

 

4.A Requerida não apresentou contestação.

 

5. Por despacho do Tribunal, de 7 de outubro de 2022, foi dispensada a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e notificadas as partes para produzirem alegações. Mais foi designado o dia 28 de dezembro de 2022 para emissão da Decisão Arbitral, data alterada para o dia 28 de fevereiro de 2023, por despacho de 18 de dezembro de 2022.    

 

6.As partes apresentaram alegações.

6.1.A Requerente reiterou os argumentos apresentados no pedido.

6.2.A Requerida, nas alegações, argumenta em suma que:

a)     A Requerente não tem razão quanto ao alegado vício de falta de fundamentação, porquanto, no caso em apreço, as liquidações controvertidas tiveram origem num procedimento de inspeção no âmbito do qual a Requerente foi notificada para exercer o seu direito de audição prévia sobre o projeto de correções, o que veio efetivamente a fazer. A Requerente foi também validamente notificada do relatório final, constando dessa notificação que os fundamentos da liquidação constam do referido relatório. A Requerida aponta jurisprudência do STA nesse sentido.

b)    A Requerida refuta igualmente qualquer alegado erro pela desconsideração da realidade material subjacente aos suprimentos prestados nos anos anteriores a 2014.  

c)     O que importa para efeitos de aplicação do disposto art.º 63.º e da Portaria n.º 1446- C/2001, de 21 de dezembro (a designar doravante por “Portaria”) é que estamos diante de uma operação financeira que reflete existência de Preços de Transferência (a designar doravante por PTs) – resultante de contratos de suprimento, acordado entre as partes em períodos anteriores e em 2014.

d)    Sendo que, cabe indagar se à data dos factos, em 2014, se encontravam ou não a decorrer de acordo com os termos e condições em Plena concorrência com o mercado.

e)     Não há nenhuma necessidade de a IT socorrer-se do RPT de anos anteriores, já que o âmbito da sua análise é o apuramento do resultado tributável de 2014. 

f)     Apenas o RPT referente ao ano de 2014 é que pode justificar a Requerente não ter procedido a qualquer ajustamento fiscal ao seu resultado tributável, nos termos previstos no disposto art.º 63.º do CIRC e da Portaria n.º 1446-C/2001, de forma a garantir verifique que tenha sido respeitado pelo Princípio de Plena Concorrência (a designar por “PPC”).   

g)    Reproduzindo a argumentação constante do RIT sublinhando que a ora Requerente considerou bastar que a taxa de juros praticada nos contratos de suprimento (15%) estivesse contida naquele que considera ser “o intervalo de plena concorrência” (que varia entre um valor mínimo de 1,8% e um valor máximo de 21,1%), para concluir que o preço praticado pela Requerente respeitava os requisitos exigidos no n.º 1 do art.º 63.º CIRC, e como tal, não procedeu a qualquer ajustamento fiscal ao resultado tributável.

h)    Em sentido diverso, a IT demonstrou e fundamentou (pág. 32 a 34 do RIT) como as diferenças existentes, entre as operações contidas no intervalo que a Requerente considera ser de Plena Concorrência (apresentado no RPT) e a operação vinculada são suscetíveis de afetar de forma significativa os termos e condições que se praticariam numa situação normal de mercado;

i)      Para o efeito, evidenciou a disparidade de atividades, de mercado e do montante de dívida emitida, que em nada se assemelham à atividade, mercado e montante da operação vinculada. Nesse sentido conclui a IT: “Tal facto altera de forma muito significativa as condições de acesso ao crédito uma vez que a estrutura, risco inerente e oportunidades de negócio divergem das aplicáveis à operação vinculada em análise” (pág. 34 do RIT).

j)      Contudo, diante daquele intervalo de comparáveis apresentado no RPT, a IT agiu em conformidade com o disposto na parte final do n.º 3 do art.º 4 da Portaria n.º 1446- C/2001, tentou proceder aos “necessários ajustamentos que eliminem os efeitos relevantes provocados pelas diferenças verificadas”, tornando-os passíveis de serem considerados como operações comparáveis. 

k)    No que diz respeito aos alegados erros metodológicos de análise de preços de transferência e na aplicação da mediana, argumenta a Requerida que nunca pôs em causa a comparabilidade das empresas, apenas pôs em causa o grau de comparabilidade das operações de diversas empresas que integraram a amostra. 

l)      A AT pôs em causa a “disparidade de atividades, mercado e montante de dívida emitida, que em nada se assemelham à atividade, mercado e montante da operação vinculada”, conforme resulta da fundamentação apresentada no RIT. 

m)   A utilização da mediana, como já demonstrado anteriormente, é uma medida estatística adotada e referida nas orientações da OCDE sobre matéria de Preços de Transferência, a utilizar justamente em caso de numa amostra com um número considerável de observações (como é o caso em apreço) subsistirem “defeitos de comparabilidade que não podem ser identificados ou quantificados e por isso não são ajustáveis” (nesse sentido §3.57 das orientações da OCDE)

n)    A Requerente foi notificada do projeto de relatório e exerceu o seu direito de audição, tendo tido oportunidade de trazer ao processo informação que permitisse apurar um intervalo ajustado evitando que os serviços de inspeção recorressem a uma mediana estatística.

o)    Assim sendo, a Requerente não pode agora, depois de ter optado por não trazer elementos adicionais enquanto decorria o procedimento inspetivo, vir invocar que “deveria ter sido dada oportunidade ao contribuinte de apresentar elementos adicionais, que fossem então analisados” (§271.º do PPA) em respeito ao disposto no §3.61 das

 

 

II. SANEADOR

O Tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2º e dos artigos 5º e 6º, todos do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas.

O processo não enferma de nulidades.

Cumpre apreciar e decidir.

 

III. FUNDAMENTAÇÃO

III.I. DA MATÉRIA DE FACTO

 

§1.º D factos dados como provados

a)     A Requerente tem a natureza jurídica de Sociedade Anónima, com um capital social de € 50.000, composto por 50.000 ações com o valor nominal de 1 euro, encontrando-se totalmente subscrito e realizado pela única detentora, a B... SGPS, S.A. (de ora em diante designada abreviadamente por B...).

b)    A Requerente dedica-se ao comércio de sandes, sopas e outros produtos alimentares, atividades hoteleiras e similares, exploração de restaurantes em sistema de franchising, compra e venda, cedência de licenças de utilização de marcas, franquias, consultadoria e apoio de gestão de marketing aos franchisados, bem como compra e venda de equipamentos e produtos no âmbito da exploração de franchising.

c)     No exercício de 2011, a Requerente apresentou resultados operacionais muito baixos, de cerca de € 500.000.

d)    No exercício de 2014, a sociedade B..., acionista única da Requerente, foi obrigada a realizar suprimentos no montante global de € 839.384. 

e)     Simultaneamente, a Requerente havia, já, anteriormente, recorrido a outros financiamentos, nomeadamente a empréstimos bancários no valor de € 13.837.500 e a suprimentos no valor de € 19.925.530, realizados pela B..., na qualidade de única acionista da Requerente.

f)     Tais suprimentos foram prestados pela B..., ao longo dos anos, desde 2008, pelos valores seguintes (em euros):

2008

2009

2010

2011

2012

2013

2014

 11.156.930

268.600

6.500.000

580.000

 1.420.000

0

839.384

 

 

g)    Os suprimentos prestados pela B... à Requerente nos anos de 2008, 2009, 2010, 2011 e 2012 foram efetuados ao abrigo de contratos individualizados e sempre celebrados em data anterior à realização dos suprimentos.

h)    Decorrentes dos suprimentos referidos acima, realizados em 2014 e em anos anteriores, a Requerente suportou, no exercício de 2014, juros de suprimentos no valor global de € 733.746.

i)      A Requerente mantém um Relatório de Preços de Transferência referente ao exercício de 2014, elaborado nos termos e para os efeitos do artigo 63.º do Código do IRC — cfr. Documento n.º 6.

j)      Este Relatório de Preços de Transferência foi elaborado pela C..., que é uma entidade totalmente independente da Requerente.

k)    A C... é uma sociedade internacional, presente em mais de 145 países, e que opera, também, em Portugal, já, há mais de 10 anos.

l)      O Relatório de Preços de Transferência procede a uma análise da taxa de juro praticada que assenta, designadamente, numa amostra com setenta (70) observações recolhidas pela entidade responsável pela elaboração do Relatório de Preços de Transferência junto de uma terceira entidade, também ela, independente (a Bloomberg),

m)   A conclusão alcançada pela entidade responsável pela elaboração do Relatório de Preços de Transferência relativamente aos suprimentos prestados pela sociedade B... à Requerente conclui que a taxa de juro utilizada se enquadra no intervalo de plena concorrência, podendo ler-se no relatório que “[a] remuneração praticada no âmbito dos suprimentos concedidos pela B..., consubstancia-se numa taxa de juro fixa de 15%, a qual se enquadra no intervalo de plena concorrência apurado relativamente a operações selecionadas como comparáveis.”

n)    Naquele Relatório de Preços de Transferência concluiu-se que o intervalo de plena concorrência identificado varia entre um valor mínimo de 1,8% e um valor máximo de 21,1%, pelo que a taxa de 15% utilizada pela Requerentese situa bem abaixo do valor máximo assim apurado. Podendo ler-se no relatório que “[o]s resultados finais da pesquisa de informação financeira comparável indicam que o intervalo de plena concorrência identificado de yield to maturity varia entre um valor mínimo de 1,8% e um valor máximo de 21,1%, sendo a respetiva mediana de 5,5%. O intervalo interquartil varia entre 4,7% e 7,0%.”.

o)    Em cumprimento das Ordens de Serviço n.º OI 2018..., a Requerente, foi objeto de Procedimento de Inspeção externa, relativamente ao exercício de 2014. Neste âmbito, foi a Requerente, primeiramente, notificada, por Ofício n.º ..., datado de 3 de abril de 2019, do Projeto de Relatório de Inspeção Tributária e, bem assim, para, querendo, exercer Direito de Audição Prévia, nos termos previstos no artigo 60.º da LGT e no artigo 60.º do RCPITA — cfr. Documento n.º 7.

p)    De acordo com o Projeto de Relatório de Inspeção Tributária notificado à Requerente (e que, para efeitos de exposição, se presume, também, mas sem conceder, que possa estar na base das liquidações em crise), os serviços de inspeção entenderam que as operações analisadas, e que ocorreram no período tributário em causa, eram suscetíveis de determinar as seguintes correções em sede de IVA e em sede de IRC:

a.       Em sede de IRC:

                             i.           Amortização de projetos de desenvolvimento não aceites fiscalmente no montante de € 2.429,55;

                           ii.           Encargos financeiros não aceites fiscalmente no montante de € 468.390,80;

b.       Em sede de IVA:

                             i.           Regularização decorrente da insolvência do cliente D..., Lda. no montante de € 1.570,03.

 

q)    Discordando das correções propostas, a Requerente exerceu o seu Direito de Audição prévia, pugnando pela não manutenção das correções propostas — cfr. Documento n.º 8.

r)     O único Relatório de Preços de Transferência solicitado à Requerente, e por esta disponibilizado, foi o referente ao ano fiscal de 2014. A Requerente exerceu direito de audiência e foi notificada do Relatório Final de Inspeção, através do Ofício n.º ..., de 3 de abril de 2019 — cfr. Documento n.º 9.

s)     No que se refere aos encargos financeiros não aceites fiscalmente no montante de € 468.390,80, relacionados com os suprimentos prestados pela sociedade B..., foi entendido pelos serviços de inspeção que foi violado o Princípio da Plena Concorrência previsto no n.º 1 do artigo 63.º do Código do IRC, relativamente à taxa de juro acordada para a remuneração dos suprimentos.

t)      Após aferir quanto às relações especiais entre a Requerente e a B..., entende a Administração tributária, introdutoriamente quanto à escolha do método mais apropriado “(,,,) o sujeito passivo deve, nos termos do n.º 2, do art.º 63.º do CIRC, adotar para a determinação dos termos e condições que seriam normalmente aceites ou praticados entre entidade independentes, o método ou métodos suscetíveis de assegurar o mais elevado grau de comparabilidade entre as operações. No mesmo sentido, dispõe o n.º 2 do artigo 4.º da Portaria 1446- C/2001, de 21 de dezembro, nos termos do qual, se considera como método mais apropriado "aquele que é suscetível de fornecer a melhor e mais fiável estimativa dos termos e condições que seriam normalmente acordados, aceites ou praticados numa situação de plena concorrência, ou seja, o método mais apto a proporcionar o mais elevado grau de comparabilidade entre as operações vinculadas e (...) não vinculadas e entre as entidades selecionadas para a comparação.” — cfr. cit Documento n.º 9 p. 24.

u)    Acrescenta a Administração tributária que “[a] lei impõe ao sujeito passivo, que adote o método, que permita demonstrar, que o preço praticado é similar ao que seria praticado entre pessoas independentes, a forma de dar cumprimento ao principio da plena concorrência é identificar um de transação similar, efetuada entre entidades independentes, que servirá como padrão, para se poder comparar com outra transação nos mesmos termos e condições entre entidades relacionadas.” — cfr. cit Documento n.º 9 p. 24.

v)    Concretiza a Administração tributária que “[d]e acordo com o Relatório da OCDE de 1995, atualizado em 2010, desde que seja possível a identificação das operações comparáveis em mercado aberto. o método do preço comparável de mercado, constitui "o meio mais direto e mais fiável de aplicação do princípio de plena concorrência", pelo que deve ser dada preferência a este, sobre os demais.

w)   grau de comparabilidade entre uma operação vinculada e uma operação não vinculada deve ser avaliado, tendo em conta os fatores de comparabilidade, que se encontram definidos no artigo 5.da Portaria 1446-C/2001, de 21/12: características especificas dos bens, direitos ou serviços, funções desempenhadas pelas entidades intervenientes, termos e condições contratuais praticados, circunstâncias económicas dos mercados, estratégia das empresas, outras caraterísticas relevantes.” — cfr. cit Documento n.º 9 p. 24.

x)    Prossegue a Administração tributária, introdutoriamente quanto ao Dossier de preços de transferência da Requerente, reconhecendo que “[a] A... procedeu em cumprimento do disposto no n.º 6 do art. 63.º do CIRC e do n.º 13 da Portaria 1446-C/2001i elaborando o dossier de preços de transferência. O enquadramento das operações de financiamento anteriormente descritas, à luz do art. 63.º do CIRC, consta do capítulo VII, do relatório de preços de transferência. Conforme ponto VIII,2 do relatório de preços de transferência, foi selecionado, como método mais adequado para efetuar a análise económica da operação, o método do preço comparável de mercado.” — cfr. cit Documento n.º 9 p. 25.

y)    Adicionalmente, a Administração tributária afere que no Dossier de preços de transferência da Requerente, esta [c]onsiderou, no entanto, que as operações financeiras praticadas pela A... com entidades independentes, nomeadamente os empréstimos obtidos junto de entidades financeiras, não são similares às operações de suprimentos sob análise, pelo que esta comparação tomar-se-ia inviável, não justificando o motivo dessa falta de similaridade.

(…) Contudo considera ter obtido informação comparável externa em bases de dados do domínio publico, nomeadamente na Bloomberg, sobre operações com um nível de comparabilidade adequado às operações financeiras intragrupo.” (…) Neste pressuposto foi selecionado um modelo previsional Z-score. que consiste numa combinação linear de cinco rácios financeiros comuns ponderados com recurso a coeficientes, que permite prever a probabilidade de insolvência num horizonte de um a dois anos.” — cfr. cit Documento n.º 9 p. 26.

z)     A Administração tributária entende, ainda, que “[t]endo em conta que a operação vinculada consubstancia um empréstimo à sociedade, torna-se importante a análise funcional da mesma uma vez que, diferentemente do que acontece numa prestação de serviços ou num fornecimento de bens, a concessão de crédito está intimamente relacionada com a entidade devedora e a perceção do risco que a entidade que concede o crédito tem daquela e de toda a operação subjacente

Com efeito, já no Relatório do Comité dos Assuntos Fiscais da OCDE de 1979 (S 199) era referido que numa situação ideal, a taxa de juro para efeitos de impostos, deveria ser fixada em cada caso de acordo com as condições praticadas no mercado em relação a empréstimos similares. "

Refere ainda que "Quando se quer determinar o que se entende por empréstimo comparável ou similar, é necessário ter em conta os seguintes fatores: o montante e a duração do empréstimo, a sua natureza ou o seu objetivo (...), a moeda em que é especificado a garantia que acompanha o empréstimo e a situação financeira do mutuário.' (sublinhado nosso).” — cfr. cit Documento n.º 9 p. 30.

aa)  Especificamente quanto ao enquadramento da operação da Requerente, a Administração tributária atende, apenas, aos seguintes critérios:

“O seu enquadramento no mercado Português, cuja crise de divida soberana iniciada em 2009 levou à deterioração dos mercados financeiros nacionais;

O seu enquadramento no setor da restauração, em geral;

O seu enquadramento no segmento de comida rápida, em particular, dado que da débil situação económica do país resultou uma maior procura de restaurantes de baixo preço, conforme indicado no dossier de preços de transferência;

O seu enquadramento no conceito de franchisador, área com características e condicionantes especificas;

A sua "posição" no setor em que se insere, dado ser uma das 10 principais entidades a operar no setor de restauração de comida rápida em Portugal (de acordo com o dossier de preços de transferência).

As características da própria empresa, verificados através da análise económica e financeira da mesma, como sendo a sua estrutura, os seus ativos e passivos e os rácios financeiros.” — cfr. cit Documento n.º 9 pp. 31 e 32.

bb) Relativamente ao Dossier de preços de transferência, em especial quanto Relatório de Preços de Transferência referente ao exercício de 2014 — cfr. cit Documento n.º 6 — considera a Administração tributária o seguinte:

·            Quanto ao mercado em que se inserem: “(…) a amostra limitou-se à seleção de operações da Zona Euro (…) de entidades de várias áreas geográficas (…) Não há inclusivamente uma única entidade com sede em Portugal, com a mesma atividade da A... ou com o regime de franchising, apesar de no relatório de preços transferência (pág. 1 8), ser referido que 63% das marcas a atuar em Portugal neste regime, serem portuguesas.”

·            Quanto ao setor de atividade: “(…) não se verifica qualquer comparabilidade na área de negócio uma vez que as entidades que constituem a amostra exercem atividades muito diversificadas: indústria de embalagem, produção de aço construção, produção de equipamentos industriais, indústria química, joalheira, mobiliário, TV por satélite entre outras, sendo que nenhuma tem a atividade de prestação de serviços de restauração.”.

·            Quanto à dimensão das entidades: “(…) [o] sujeito passivo não efetuou qualquer referente à dimensão das entidades da amostra, apresentando assim empresas com número de empregados, volume de negócios e dispersão geografia muito dispares.”.

·            Quanto ao montante da divida: “[s]abendo que o montante da dívida influencia o valor da taxa de juro, o sujeito passivo não refinou a amostra de modo a obter valores de divida aproximados aos valores dos suprimentos em causa. Apesar dos suprimentos terem variado (por contrato) entre os € 75.000 (2009) e € 10.5M (2008), as operações consideradas comparáveis pelo sujeito passivo apresentam valores de dívida entre €150M e €1.250M, valores bastante superiores aos valores da operação vinculada e bastante dispares entre eles.”. os comparáveis externos utilizados pelo sujeito passivo são entidades emitentes dos títulos bastante diversificadas, quer ao nível dos mercados em que operam, quer ao nível da atividade que desenvolvem. 

Para melhor visualização do referido, dos comparáveis aceites pelo sujeito passivo (70), selecionámos aqueles que se encontram no intervalo entre o 3.º quartil e o máximo, ou seja, o intervalo entre 7% e 21%, intervalo onde se insere a taxa aplicada pelo sujeito passivo (15%) (…) [d]a observação do quadro anterior pode concluir-se pela disparidade de atividades, mercado e montante de divida emitida, que em nada se assemelham à atividade, mercado e montante da operação vinculada. Tal facto altera de forma muito significativa as condições de acesso ao crédito uma vez que a estrutura, risco inerente e oportunidades de negócio divergem das aplicáveis à operação vinculada em análise.” 

— cfr. cit Documento n.º 9 pp. 32 e 33.

cc)  Assim, entende a Administração tributária que “(…) existe uma grande disparidade da amostra quanto a todas as características de todas as entidades envolvidas. Tal disparidade levou a uma grande dispersão dos intervalos obtidos, que vão de um mínimo de 1,8% a 21,1%.” — cfr. cit Documento n.º 9 p. 34.

dd) (…) “[a] situação de elevada dispersão dos limites aceites é aliás abordada nas orientações da OCDE (vide S 359) quando refere que esta dispersão poderá indicar que os dados usados para estabelecer os pontos do intervalo podem não ser fiáveis ou que algumas características das observações comparáveis podem carecer de ajustamentos.

(…) "Pode acontecer que apesar de todos os esforços para excluir as observações com menor grau de comparabilidade, obtemos mesmo assim um intervalo no qual subsistem defeitos de comparabilidade que não podem ser identificados ou quantificados e por isso não são ajustáveis. Nestes casos, se a amostra incluir um número considerável de observações, as ferramentas estatísticas que utilizam medidas de tendência central para estreitar o intervalo (e.g. intervalo interquartil mediana, etc.), permitem aumentar a fiabilidade da anáfise e a sua relevância estatística.” — cfr. cit Documento n.º 9 p. 35.

ee)  Refere ainda o Processo instrutor que “[n]este sentido vai também o § 3,62 das mesmas orientações, que refere que quando persistam algumas falhas de comparabilidade da amostra devem utilizar-se medidas de tendência central, como a mediana, a média ou a média ponderada a fim de minimizar os riscos de erro provocado por defeitos de comparabilidade,

A mediana é uma medida estatística que divide a amostra ao meio e permite expurgar os enviesamentos, decorrentes de valores muito baixos ou muito altos.” — cfr. cit Documento n.º 9 p. 35.

ff)   (…) “[p]elo referido, e seguindo o disposto no paragrafo 3.57 das orientações da OCDE, parece-nos ser de utilizar como comparável a taxa de juro correspondente à mediana ou seja 5,5%. Uma vez que a taxa praticada pelo sujeito passivo foi de 15%, conclui-se que não foi cumprido o disposto no n.º 1 do artigo 632 do CIRC.” — cfr. cit Documento n.º 9 p. 35.

A Administração Tributária conclui que “[p]or tudo o que foi exposto anteriormente, ficou demonstrada a existência de relações especiais entre as entidades intervenientes na operação, nos termos do n.º 4 do art. 63.º do CIRC, e a violação do princípio de plena concorrência previsto no n.º 1 do art. 63.º do CIRC, relativamente à taxa de juro acordada para a remuneração dos suprimentos.

O sujeito passivo deve adotar o método suscetível de assegurar o mais elevado grau de comparabilidade entre as operações que efetua e outras substancialmente idênticas, em situações normais de mercado (n.º 2 do art. 63.º do CIRC).

Para aferir o cumprimento do princípio da plena concorrência, foi selecionado o método do preço comparável de mercado, e como preço comparável de mercado, a taxa de juro correspondente á mediana do intervalo de plena concorrência, construído no ponto anterior (5,5%),

Tendo-se concluído pelo não cumprimento do disposto no n o 1 do artigo 63.º do CIRC deverão ser efetuados os respetivos ajustamentos ao lucro tributável nos termos do n.º 8 da mesma disposição legal.

Procedemos de seguida ao apuramento de juros vencidos a 31/12/2014, considerando a taxa de 5,5%.” — cfr. cit Documento n.º 9 pp. 35 e 36.

gg) Nesta sequência, foi efetuada a correção do lucro tributável da Requerente, considerando, apenas, uma taxa de juro de 5,5%, de onde resulta um acréscimo à matéria coletável de 2014 no montante de € 468.390,80.

hh) A Requerente foi notificada das liquidações, de IRC e de Juros, objeto do presente Pedido de Pronúncia Arbitral.

ii)    Contra as mesmas deduziu, em 16 de julho de 2019, a competente Reclamação Graciosa, a qual correu os seus termos sob o número de procedimento ...2019... — cfr. cit Documento n.º 4.

jj)    Por Ofício da Direção de Finanças de Lisboa n.º..., datado de 22 de junho de 2020, foi a Requerente notificada do Projeto de Decisão de indeferimento da referida Reclamação Graciosa— cfr. Documento n.º 11,

kk) A Requerente procedeu ao exercício do seu Direito de Audição Prévia em 8 de julho de 2020 — cfr. Documento n.º 12.

ll)    Por Ofício da Direção de Finanças de Lisboa n.º ..., datado de 20 de outubro de 2020, foi a ora Requerentenotificada do conteúdo do Despacho proferido, em 28 de Setembro de 2020, pelo Exmo. Sr. Diretor de Finanças Adjunto, ao abrigo de delegação de competências, nos termos do qual se indeferiu a Reclamação Graciosa anteriormente apresentada — cfr. cit Documento n.º 3.

mm)               Por não se conformar com a Decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa, a Requerente apresentou, a 29 de outubro de 2020, o Recurso Hierárquico, o qual, constitui, também, objeto do presente Pedido de Pronúncia Arbitral — cfr. cit Documento n.º 1.

nn) A Requerente procedeu ao pagamento do imposto, no passado dia 19 de junho de 2019, no valor de € 16.172,49 (dezasseis mil, cento e setenta e dois euros e quarenta e nove cêntimos) — cfr. Documento n.º 10.

 

§ 2.º Factos dados como não provados 

Com relevo para a decisão não existem factos alegados que devam considerar-se não provados. 

 

§3.º Fundamentação da matéria de facto provada e não provada  

Relativamente à matéria de facto, importa, antes de mais, salientar que o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, antes, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e distinguir a matéria provada da não provada, tudo conforme o disposto nos artigos 123.º, n.º 2, do CPPT e 607.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e Ex), do RJAT. 

 Os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cf. o artigo 596.º do CPC).

No que se refere aos factos provados e não provados, a convicção dos árbitros fundou-se na análise crítica da prova documental junta aos autos, incluindo o Processo Instrutor, e na posição assumida por ambas as Partes em relação aos factos essenciais, sendo as questões controvertidas estritamente de Direito.

 

III.II.DO DIREITO

 

A Requerente imputa aos atos tributários impugnados as seguintes ilegalidades:

a)     Da falta de fundamentação da liquidação objeto de notificação

b)    Da ilegalidade do despacho de indeferimento da reclamação graciosa

c)     Do erro pela desconsideração da realidade material subjacente aos suprimentos prestados nos anos anteriores a 2014

d)    Da errónea valoração do Relatório dos preços de transferência e a violação do ónus da prova e do princípio de tributação pelo rendimento real

e)     Da violação do dever especial de fundamentação das correções em aplicação do regime de preços de transferência

f)     Dos erros metodológicos de análise de preços de transferência e na aplicação da mediana    

 

§ 1.º Comecemos pela análise das ilegalidades mencionadas nas alíneas a) e b) 

 

a)             No essencial, a Requerente alega que, analisada a Demonstração de Liquidação de IRC notificada à Requerente pelo Serviço de Finanças de Oeiras ..., não resulta da mesma a suficiente e necessária fundamentação, nem de facto, nem de direito, conforme é exigido pelo disposto no artigo 77.º da LGT. Acrescenta a Requerente que tal omissão é causadora de incerteza em relação à fundamentação da liquidação oficiosa objeto de contestação, o que impossibilita a preparação da defesa, com a consequente violação do princípio do acesso ao direito constitucionalmente previsto no artigo 20.º da CRP.

Em primeiro lugar, assentando os atos de liquidação ora impugnados num procedimento de inspeção, no âmbito do qual a Requerente teve a oportunidade de exercer o direito de audiência prévia sobre o projeto de correções, não se pode falar em falta de fundamentação. Quando muito existiria falta de notificação dos respetivos fundamentos, omissão que se refletiria na eficácia dos atos tributários em apreciação e não na ilegalidade.

Acresce que a Requerente exerceu o direito de reclamação graciosa, na qual contestou as correções efetuadas pela Inspeção Tributária. Constitui, aliás, jurisprudência uniforme que “está suficientemente fundamentado o ato de liquidação adicional se as conclusões do relatório da fiscalização esclarecem, minimamente, o contribuinte, que dele foi notificado, das razões de facto e de direito que levaram a Administração Fiscal a liquidar o imposto em causa” (cf. Acórdão do TCAN, de 24/05/2012, processo n.º 00731/09.0BEPNF).

Finalmente, analisado pedido arbitral e atenta sua extensão e profundidade de argumentação facilmente se questiona de que forma a Requerente pudesse estar impossibilitada de preparar a sua defesa, pois da leitura do pedido e da causa de pedir do Pedido de Pronúncia Arbitral resulta que não demonstrou ter qualquer dificuldade em entender e apreender o itinerário cognoscitivo percorrido pelos serviços de inspeção.

Improcedem, pois, as ilegalidades suscitadas.

 

 b) Quanto à ilegalidade do despacho de indeferimento da reclamação graciosa

 

Como vimos, nesta sede, a Requerente alega, no essencial, que o Despacho proferido, em 28 de setembro de 2020, pelo Exmo. Sr. Diretor de Finanças Adjunto, que indeferiu a supra referida Reclamação Graciosa, apenas remete para o Projeto de Decisão, que o antecedeu, o qual, por sua vez, se limitou a acolher, infundada e acriticamente, o entendimento dos Serviços de Inspeção, o que configura uma evidente violação do dever de pronúncia a que a Administração tributária se encontra adstrita, consagrado no artigo 56.º da LGT. Além de que não são adiantadas as razões de facto e de direito que levaram a desconsiderar os argumentos apresentados pela Requerente que assim não foram valorados como deviam ter sido. 

Por conseguinte, a Requerente imputa ao despacho de indeferimento vícios autónomos solicitando a sua anulação.   

Como ficou dito na Decisão Arbitral proferida no processo n.º 808/2019-T:

“(….) o CPTT, no seu artigo 97.º, n.º 1, alínea p), na redacção introduzida pela Lei n.º 118/2019, de 17 de Setembro, veio admitir, no contencioso tributário, a ação administrativa para a condenação à prática de ato administrativo legalmente devido, designadamente em relação atos administrativos relativos a questões tributárias que não comportem apreciação da legalidade do ato de liquidação, acção essa que, segundo o n.º 2 desse artigo, é regulada pelas normas sobre processo nos tribunais administrativos.

A condenação à prática de ato administrativo encontra-se regulada nos artigos 66.º e segs. do CPTA, podendo ser pedida, além de outras situações, quando, tendo sido apresentado requerimento que constitua o órgão competente no dever de decidir, não tenha sido proferida decisão dentro do prazo legalmente estabelecido (artigo 67.º, n.º 1, alínea a)).

Resulta do artigo 13.º do CPA que, em regra, os requerimentos apresentados aos órgãos administrativos em matéria da sua competência têm o efeito de os constituir no dever de decidir, princípio que se encontra igualmente previsto no artigo 56.º da LGT. Se a Administração não der resposta, dentro do prazo legal, o interessado pode propor ação de condenação à prática do ato devido com fundamento no incumprimento do dever de decidir, nos termos gerais do citado artigo 67.º, n.º 1, alínea a), do CPTA e do artigo 129.º do CPA, que declara que a “falta, no prazo legal, de decisão final sobre pretensão dirigida ao órgão administrativo competente constitui incumprimento do dever de decisão, conferindo ao interessado a possibilidade de utilizar os meios de tutela administrativa e jurisdicional adequados”.

Sucede que, no caso, a Requerente não pretendeu interpor uma qualquer acção de condenação à prática de ato administrativo para assegurar que a Administração emita a decisão sobre requerimento que lhe tenha sido apresentado, alegando apenas, como fundamento da impugnação judicial, a violação do dever de decidir quanto a um dos argumentos que tinha sido invocado na reclamação graciosa.

 E, em todo o caso, o que está em causa, como resulta com evidência do pedido arbitral, é a declaração de ilegalidade dos actos tributários de liquidação adicional de IRC e das decisões de indeferimento da reclamação graciosa e do recurso hierárquico contra esses actos deduzidos, que integra a competência dos tribunais arbitrais, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, independentemente da viabilidade que possa ser atribuída à alegada violação do dever de decidir enquanto fundamento da impugnação judicial.

 

Esta jurisprudência tem pleno cabimento no caso dos autos. Também aqui o que a Requerente pretende e pede é a anulação das liquidações objeto de impugnação, com base em ilegalidades.

 

§ 2.º Quanto às demais ilegalidades 

 

As ilegalidades constantes das alíneas c) a f) prendem-se com as questões de mérito essenciais a dirimir nestes autos e que se reconduzem à verificação ou não dos pressupostos do artigo 63.º do CIRC, à alegada violação do princípio da concorrência, bem como a questões relacionadas com a comparabilidade da amostra, e eventual erro de facto e de direito da Requerida na interpretação e aplicação das Guidelines da OCDE usadas para efetuar a correção para a mediana do intervalo estatístico.

Vejamos.

 

A)   Quadro legal

 

Considera-se como relevante o seguinte quadro normativo, em vigor à data dos factos.

 

“Artigo 63.º do CIRC

Preços de transferência

1 — Nas operações comerciais, incluindo, designadamente, operações ou séries de operações sobre bens, direitos ou serviços, bem como nas operações financeiras, efectuadas entre um sujeito passivo e qualquer outra entidade, sujeita ou não a IRC, com a qual esteja em situação de relações especiais, devem ser contratados, aceites e praticados termos ou condições substancialmente idênticos aos que normalmente seriam contratados, aceites e praticados entre entidades independentes em operações comparáveis.”

 

 

“Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de dezembro

 

Artigo 4.º

Determinação do método mais apropriado

(…)

5 - Se, no âmbito de aplicação de um método, a utilização de duas ou mais operações não vinculadas comparáveis ou a aplicação de mais de um método considerado igualmente apropriado conduzir a um intervalo de valores que assegurem um grau de comparabilidade razoável, não se torna necessário proceder a qualquer correcção, caso as condições relevantes da operação vinculada, nomeadamente o preço ou a margem de lucro, se situarem dentro desse intervalo.

 

Artigo 6.º

Método do preço comparável de mercado

1 - A adopção do método do preço comparável de mercado requer o grau mais elevado de comparabilidade com incidência tanto no objecto e demais termos e condições da operação como na análise funcional das entidades intervenientes.”

 

B - O confronto entre os factos provados e o que recomendam as Guidelines da OCDE[1], e ainda o procedimento a observar na aplicação dos § 3.57 e 3.62 das Guidelines

 

A Requerida imputa à amostra apresentada pelo contribuinte os seguintes defeitos, quanto à comparabilidade das operações, que se transcrevem dos factos provados (ver supra):

 

Quanto ao mercado em que se inserem: “(…) a amostra limitou-se à seleção de operações da Zona Euro (…) de entidades de várias áreas geográficas (…) Não há inclusivamente uma única entidade com sede em Portugal, com a mesma atividade da A... ou com o regime de franchising, apesar de no relatório de preços transferência (pág. 1 8), ser referido que 63% das marcas a atuar em Portugal neste regime, serem portuguesas.”

 

Quanto ao setor de atividade: “(…) não se verifica qualquer comparabilidade na área de negócio uma vez que as entidades que constituem a amostra exercem atividades muito diversificadas: indústria de embalagem, produção de aço construção, produção de equipamentos industriais, indústria química, joalheira, mobiliário, TV por satélite entre outras, sendo que nenhuma tem a atividade de prestação de serviços de restauração.”

 

Quanto à dimensão das entidades: “(…) [o] sujeito passivo não efetuou qualquer referente à dimensão das entidades da amostra, apresentando assim empresas com número de empregados, volume de negócios e dispersão geografia muito dispares.”.

 

Quanto ao montante da dívida: “[s]abendo que o montante da dívida influencia o valor da taxa de juro, o sujeito passivo não refinou a amostra de modo a obter valores de divida aproximados aos valores dos suprimentos em causa. Apesar dos suprimentos terem variado (por contrato) entre os € 75.000 (2009) e € 10.5M (2008), as operações consideradas comparáveis pelo sujeito passivo apresentam valores de dívida entre €150M e €1.250M, valores bastante superiores aos valores da operação vinculada e bastante dispares entre eles.”. 

 

Sintetizando a AT: “os comparáveis externos utilizados pelo sujeito passivo são entidades emitentes dos títulos bastante diversificadas, quer ao nível dos mercados em que operam, quer ao nível da atividade que desenvolvem.”. 

 

Debruçando-se sobre o terceiro quartil, exprime -se no RIT a seguinte análise:

“…dos comparáveis aceites pelo sujeito passivo (70), selecionámos aqueles que se encontram no intervalo entre o 3.º quartil e o máximo, (…) [d]a observação do quadro anterior pode concluir-se pela disparidade de atividades, mercado e montante de divida emitida, que em nada se assemelham à atividade, mercado e montante da operação vinculada. Tal facto altera de forma muito significativa as condições de acesso ao crédito uma vez que a estrutura, risco inerente e oportunidades de negócio divergem das aplicáveis à operação vinculada em análise.” 

 

Concluindo com uma apreciação geral da amostra nos seguintes termos: 

(…) existe uma grande disparidade da amostra quanto a todas as características de todas as entidades envolvidas. Tal disparidade levou a uma grande dispersão dos intervalos…”

 

Vejamos de seguida o que recomendam as Guidelines quanto a dois aspetos centrais para o que aqui importa: como determinar o intervalo de plena concorrência, e qual o ponto a escolher, desse intervalo, quando são efetuados ajustamentos ou correções fiscais.

 

"A.7 O intervalo de plena concorrência

A.7.1 Em geral

3.55 Em alguns casos, será possível aplicar o princípio de plena concorrência para chegar a um único valor (por exemplo, preço ou margem) que seja o mais fiável para estabelecer se as condições de uma transação respeitam o princípio de plena concorrência. No entanto, porque os preços de transferência não são uma ciência exata, também haverá muitas situações em que a aplicação do método, ou métodos, mais adequado(s) produz uma gama de números, todos relativamente igualmente fiáveis. Nestes casos, as diferenças nos valores que compõem o intervalo podem ser causadas pelo facto de, em geral, a aplicação do princípio de plena concorrência produzir apenas uma aproximação das condições que teriam sido estabelecidas entre empresas independentes. Também é possível que os diferentes pontos representem o facto de que empresas independentes envolvidas em transações comparáveis em circunstâncias comparáveis podem não estabelecer exatamente o mesmo preço para a transação sob análise.

 

3.56 Em alguns casos, nem todas as transações comparáveis examinadas terão um grau relativamente igual de comparabilidade. Quando é possível determinar que algumas transações não controladas têm um menor grau de comparabilidade do que outras, elas devem ser eliminadas.

 

3.57 Também pode ser o caso de que, embora todos os esforços tenham sido feitos para excluir pontos que têm um menor grau de comparabilidade, o que se obtém é um intervalo de valores para os quais é considerado, dado o processo usado para selecionar comparáveis e limitações nas informações disponíveis sobre comparáveis, que permanecem alguns defeitos de comparabilidade que não podem ser identificados e / ou quantificados e, portanto, não são ajustados. Em tais casos, se o intervalo inclui um número considerável de observações, ferramentas estatísticas que levam em consideração medidas de tendência central para estreitar o intervalo (por exemplo, o intervalo interquartil ou outros percentis) podem ajudar a aumentar a fiabilidade da análise.

 

3.59 Quando a aplicação do método mais adequado (…) produz uma gama de valores, então um desvio substancial entre os pontos naquele intervalo pode indicar que os dados usados no apuramento de alguns dos pontos podem não ser tão confiáveis quanto os dados usados para estabelecer os outros pontos no intervalo; ou que o desvio pode resultar de características dos dados comparáveis que requerem ajustamentos. Nesses casos, uma análise mais aprofundada desses pontos pode ser necessária para avaliar sua adequação para inclusão num intervalo de plena concorrência.”

 

"A.7.2 Selecionando o ponto mais apropriado no intervalo

 

3.60 Se a condição relevante da transação controlada (por exemplo, preço ou margem) estiver dentro do intervalo de plena concorrência, nenhum ajustamento deve ser feito.

 

3.61 Se a condição relevante da transação controlada (por exemplo, preço ou margem) ficar fora do intervalo de plena concorrência adotado pela administração tributária, o contribuinte deve ter a oportunidade de apresentar argumentos de que as condições da transação controlada satisfazem o princípio de plena concorrência, e que o resultado cai dentro do intervalo (ou seja, que o arm's length range é diferente daquele que é afirmado pela  administração fiscal).  Se o contribuinte não for capaz de estabelecer esse facto, a administração tributária deve determinar o ponto dentro do intervalo para o qual ajustará as condições da transação controlada.

 

3.62 Ao determinar este ponto, quando o intervalo compreende resultados de fiabilidade relativamente igual e alta, pode-se argumentar que qualquer ponto no intervalo satisfaz o princípio plena concorrência. Quando os defeitos de comparabilidade permanecem, conforme discutido no parágrafo 3.57, pode ser apropriado usar medidas de tendência central para determinar este ponto (por exemplo, a mediana, a média ou médias ponderadas, etc., dependendo das características específicas de o conjunto de dados), a fim de minimizar o risco de erro devido a defeitos de comparabilidade desconhecidos ou não quantificáveis."

 

 

Apreciando.

 

No caso sob análise, o contribuinte, em cumprimento do disposto no art.º 63º do CIRC e da Portaria 1446-C/2001, apresentou à Requerida uma amostra que incluía 70 observações ou pontos. Entende a Requerente que se cumpre o estabelecido no artigo 4º, nº 5, da dita Portaria. Tendo a sua análise conduzido a um intervalo de valores que asseguram um grau de comparabilidade aceitável, não se tornaria necessário proceder a qualquer correção, pois que as   condições relevantes da operação vinculada se situam dentro desse intervalo.

Em contrário, AT atribui sérios problemas de comparabilidade às caraterísticas das operações que o sujeito passivo apresenta na amostra (quanto a mercado, setor de atividade, dimensão e montante das operações). Refere mais que, no 3º quartil, as operações que nele se localizam em nada se assemelham à operação do contribuinte. E que existem nessa amostra grandes disparidades, que inquinam todas as observações dela constantes. 

Em seguida, usando a mediana dessa mesma amostra, efetua uma correção ao lucro tributável em matéria de preços de transferência (PT).  

 

O Tribunal começa por notar que a métrica, ou forma de quantificação, do ajustamento levado a cabo pela AT não está prevista na lei, e sim na “doutrina de referência” - Guidelines - da OCDE. Assim, deve tal doutrina ser seguida tal como está expressa, com um especial cuidado fundamentador na respetiva aplicação.

Se AT aponta à amostra que lhe é apresentada pelo sujeito passivo, para cumprimento do disposto no art.º 63º do CIRC e na Portaria 1446-C/2001, grandes disparidades, indutoras de defeitos de similaridade ou comparabilidade, que colocam em causa a semelhança das  operações e/ou  entidades que constituem a dita amostra – como sucede no caso dos autos -  deveria  seguir um de dois caminhos. 

Se esses defeitos ou fragilidades se circunscrevem a uma parte da amostra, deve, consequentemente, a AT, por aplicação dos § 3.56 e 3.59 das Guidelines, analisar mais aprofundadamente as operações ou entidades que se integram nessa parte dissemelhante da amostra e retirar aquelas que entende que não satisfazem padrões aceitáveis de comparabilidade. Eis o teor desses §§ das Guidelines (negrito e sublinhado do Tribunal):

 

“3.56 Em alguns casos, nem todas as transações comparáveis examinadas terão um grau relativamente igual de comparabilidade. Quando é possível determinar que algumas transações não controladas têm um menor grau de comparabilidade do que outras, elas devem ser eliminadas.

 

3.59 Quando a aplicação do método mais adequado (…) produz uma gama de valores, então um desvio substancial entre os pontos naquele intervalo pode indicar que os dados usados no apuramento de alguns dos pontos podem não ser tão confiáveis quanto os dados usados para estabelecer os outros pontos no intervalo; ou que o desvio pode resultar de características dos dados comparáveis que requerem ajustamentos. Nesses casos, uma análise mais aprofundada desses pontos pode ser necessária para avaliar sua adequação para inclusão num intervalo de plena concorrência.”

 

 

Em tal caso, seguindo depois a orientações dos §§ 3.57 e 3.62, e justificando as opções de ajustamento que tais parágrafos referem quanto ao intervalo (3.57),  e ainda quanto ao ponto do intervalo (3.62), deverá obter um intervalo ajustado e, dentro desse novo intervalo, um novo valor comparável.

Porém, se tais falhas ou disparidades de comparabilidade se estendem, ou inquinam, no entender da AT, todas as operações, de toda a amostra, não pode um elemento de tal amostra (mediana, média ou outro) ser usado como comparável. Tal decorre de um simples raciocínio lógico.  Com efeito, se toda a amostra sofre de defeitos ou disparidades de comparabilidade que a tornam imprestável como referência comparativa da operação sob escrutínio, a mediana de uma tal amostra está, obviamente também ela, contaminada por defeitos de comparabilidade e não pode servir como “métrica quantitativa” de ajustamento. 

Não compete à AT, como é óbvio, apresentar, ab initio, uma amostra de comparáveis e determinar um intervalo considerado de plena concorrência. Esta é uma obrigação que a lei atribui, em primeira linha, ao contribuinte, constituindo, aliás, um dos requisitos quanto ao cumprimento da lei fiscal. Todavia, caso tais defeitos ou divergências sejam vistos como minando, ou contaminando, de tal forma a comparabilidade que nenhum elemento da amostra cumpre os requisitos de comparabilidade, sendo por isso a operação do contribuinte  não comparável com qualquer outra da amostra, então tal como se refere no § 3.61[2] das Guidelines, a AT deverá determinar o que entende ser, na sua perspetiva,  o intervalo de plena concorrência.  

Nesse caso, podendo tomar como ponto de partida as bases de dados internas (derivadas da IES e da declaração Modelo 22 do IRC que recebe dos contribuintes) e/ou externas (v.g., SABI, ORBIS) que detenha, deverá a AT apresentar o apuramento alternativo de um intervalo da amostra que possua níveis de comparabilidade aceitáveis. 

Ou, alternativamente, selecionar, da amostra que lhe é apresentada pelo contribuinte, uma subamostra que respeite o nível de comparabilidade aceitável.  

E permitir ao contribuinte que se pronuncie acerca de tais procedimentos (§ 3.61). 

É este processo ou caminho sequencial (passando pelos §§ 3.56, 3.59 e 3.61) e que poderá a final desembocar na aplicação dos §§ 3.57 e 3.62, que a AT não faz. Realce-se o § 3.57 ao  expressar claramente que “embora todos os esforços tenham sido feitos para excluir pontos que têm um menor grau de comparabilidade”. A Requerida não fez qualquer esforço neste sentido.

Salienta-se no RIT que, in casu, todos os pontos da amostra evidenciam sérios defeitos ou disparidades de comparabilidade, mas não se retira daí qualquer obrigação técnico-legal de aperfeiçoamento ou substituição da amostra. 

Quanto ao § 3.62, central ao procedimento da AT, o seu teor não deixa margem para dúvida. Eis o texto:

Quando os defeitos de comparabilidade permanecem, conforme discutido no parágrafo 3.57, pode ser apropriado usar medidas de tendência central para determinar este ponto (por exemplo, a mediana, a média ou médias ponderadas, etc., dependendo das características específicas de o conjunto de dados), a fim de minimizar o risco de erro devido a defeitos de comparabilidade desconhecidos ou não quantificáveis."

 

Se os defeitos permanecem, hão de permanecer em face de uma prévia tentativa de expurgo desses defeitos de comparabilidade, que Requerida não efetuou. Esses defeitos não poderão deixar de ter por referência a metodologia recomendada no § 3.57 a qual requer que todos os esforços tenham sido feitos para excluir pontos que têm um menor grau de comparabilidade. O que também não se fez no caso dos autos.

Por fim, no § 3.62 expressa-se que se visa ainda minimizar o risco de erro devido a defeitos de comparabilidade desconhecidos. Ora, no RIT, a AT desenvolve o tipo específico de defeitos de comparabilidade, e enumera, entre outros: o setor, a dimensão, o mercado geográfico, o montante das operações de empréstimo. 

Em suma, como o Tribunal referiu, o § 3.62 das Guidelines não é um ponto de chegada, que permita, sem mais justificação, aplicar a mediana a uma amostra previamente qualificada como tendo, toda ela, defeitos notórios de comparabilidade. Se assim for, então torna-se manifesto que um dos elementos (a mediana) dessa amostra que padece, toda ela, de tais defeitos, não pode ser erigido em métrica referencial de uma operação comparável.[3]

Deve sublinhar-se que os § 3.57 e 3.62 não constituem, em si mesmos e isoladamente, fundamentação para ajustamentos de PT, de aplicação automática. Eles constituem requisitos e trâmites a usar em processos de ajustamentos; mas estão, na lógica interna da doutrina constante das Guidelines, inseridos num processo, que obriga à realização de fases ou procedimentos intermédios. 

Se se usam as Guidelines como instrumento fundamentador, então só quando cumpridos tais procedimentos se pode chegar à utilização do teor daqueles parágrafos. Mesmo usando-os, deve a AT ter que justificar porque é que, dentro das métricas quantitativas possíveis (e.g., 1º quartil, média, média ponderada, mediana, etc.) lança mão de uma em vez de outras. 

Permita-se ao Tribunal um exemplo de cariz ilustrativo da situação em presença. O sujeito passivo apresenta um produto (operação e taxa de juro) e compara-o com os produtos (operações/taxas de juro) que estão contidos num cabaz de outros 70 produtos, ordenados por dimensão (valores de taxas de juro). E sustenta que o seu produto se encontra dentro dos limites da dimensão dos elementos da amostra contidos no cabaz. 

A AT, apreciando os produtos do cabaz, recusa que exista um razoável grau de comparabilidade, nos termos que se deram como provados e se transcreveram supra. Refere, em suma, que todos os produtos do cabaz estão contaminados, ou são inválidos, por defeitos notórios de similitude setorial, de mercado, de dimensão, de montante. Quanto ao terceiro quantil, afirma que “…pode concluir-se pela disparidade de atividades, mercado e montante de divida emitida, que em nada se assemelham à atividade, mercado e montante da operação vinculada.”

Além disso, para todos os produtos do cabaz (amostra) é para a AT evidente que (negrito e sublinhado do Tribunal: …” existe uma grande disparidade da amostra quanto a todas as características de todas as entidades envolvidas.”

Esta argumentação da Requerida conduz a uma desqualificação global da amostra.  Todo o cabaz está contaminado, em todas as caraterísticas, de todos os produtos.

 Por fim, a Requerida retira um dos produtos (a mediana) do cabaz, o qual em face da própria análise da AT está, inevitavelmente, também ele, contaminado, e usa-o como comparável. Isto é, trata-o como se pudesse constituir uma métrica de ajustamento fiscal que passe o teste da comparabilidade. 

Um tal procedimento não pode aceitar-se. Os parágrafos das Guidelines, ainda que conferindo margem de discricionariedade na sua interpretação e aplicação, não podem ser utilizados de forma arbitráriacom omissão do cumprimento, de forma fundamentada, dos requisitos e dos procedimentos mencionados, sob pena de invalidade, como acontece no caso dos autos.

Por tudo o quanto vai exposto, para além da violação do dever de fundamentação, que nesta matéria é reforçado, a Requerida incorre em erro de facto e de direito que conduz necessariamente à anulação das liquidações impugnadas. 

 

C- O que realça a AT na suas Alegações[4]

 

Das Alegações da AT (realçando o Tribunal as que constam dos pontos 91 a 98) extraem-se as seguintes linhas argumentativas para justificar o acerto do procedimento usando no RIT (negrito do tribunal):

 

“91. Também refere a IT (a pág.35 do RIT), que naquele sentido, “vai também o §3.62 das mesmas orientações, que refere que quando persistam algumas falhas de comparabilidade da amostra devem utilizar-se medidas de tendência central, como a mediana, a média ou a média ponderada, a fim de minimizar os riscos de erro provocado por defeitos de comparabilidade”. 

92. E nestes termos, a IT optou por utilizar a mediana, justamente por ser “uma medida estatística que divide a amostra ao meio e permite expurgar os enviesamentos, decorrentes de valores muito baixos ou muito altos”. 

93. O uso da mediana não obriga ao expurgo de observações (comparáveis) constantes dessa amostra. Antes pelo contrário, para se calcular a mediana é necessário considerar todas as observações (comparáveis) que fazem parte dessa amostra. 

94. O uso da mediana “permite expurgar os enviesamentos, decorrentes de valores muito baixos ou muito altos”. 

95. Ou seja, a IT não expurgou nenhuma das observações que constituem a amostra de comparáveis apresentada pela Requerente, somente aplicou uma medida estatística – a mediana – que permite expurgar os enviesamentos, obtendo-se um comparável a partir da amostra com maior grau de comparabilidade

97. Em suma, não foi efetuado pela IT qualquer expurgo de observações da amostra apresentada pela Requerente e muito menos foi elaborada uma “nova amostra potencial resultante da exclusão de determinados valores” 

98. Aliás, ainda que a AT discorde das conclusões apresentadas pela Requerente, não lhe cabe o ónus de procurar e apresentar novos comparáveis quando a Requerente lhe apresenta um intervalo de (possíveis) comparáveis…”

 

No juízo do Tribunal, não quadram tais alegações com o que se afirma no RIT. 

As alegações enfatizam (93) que se devem usar todas as operações comparáveis constantes da amostra. Contudo, a Requerida sustenta que todas as operações apresentam nítidos defeitos de comparabilidade. No RIT as operações têm claras disparidades de comparabilidade. Nas Alegações refere-se uma mediana de amostra de operações comparáveis. Não são posições conciliáveis.

Mais ainda (95) se refere que a mediana, permite, sem mais, expurgar os enviesamentos, obtendo-se uma amostra com maior grau de comparabilidade.  Tal afirmação peca por incongruente com a fundamentação constante do RIT. Se a amostra da qual se retira a mediana, que foi apresentada pelo contribuinte, é descrita como sofrendo de deficiências nítidas de comparabilidade quanto a todos os seus elementos, então sem qualquer procedimento de afinação ou aperfeiçoamento dessa amostra, como requerido nos §§ 3.56, 3.59, 3.61, não se pode afirmar que o uso da mediana serve, por si só, como expurgo desses defeitos de comparabilidade. 

Não pode servir, porque a amostra que a AT usa é precisamente a mesma que lhe foi apresentada pelo contribuinte, e relativamente à qual nenhum esforço de melhoria do nível de comparabilidade foi feito em relação a qualquer dos seus elementos constituintes (as 70 observações amostrais).

O argumento segundo o qual a mediana, sendo um valor que divide a amostra em duas partes com igual número de observações, reduz deficiências de comparabilidade não pode ser usado como a AT aqui procede, sem um (entre vários possíveis) prévio tratamento dos defeitos amostrais.

Num outro ponto (98) alega a AT que ainda que discorde das conclusões apresentadas pela Requerente, não lhe cabe o ónus de procurar e apresentar novos comparáveis quando a Requerente lhe apresenta um intervalo de (possíveis) comparáveis. 

É precisamente isso (essa possível comparabilidade) que se nega no RIT, quando se põe em causa toda a amostra, devido a sérias falhas de comparabilidade ou similaridade de todas as operações.

Em suma, ainda que as Alegações pudessem valer como argumentação válida, não seriam suficientes para dar sem efeito o juízo atrás formulado sobre o que, no entender do Tribunal, são as deficiências analíticas do RIT apontadas.

Acresce que a fundamentação mencionada não pode deixar de consubstanciar fundamentação a posteriori e, por conseguinte, ilegal.  Como ficou consignado na Decisão Arbitral proferida no processo 43/2021-T,reproduzindo o processos n.º 571/2020-T, “ O processo arbitral tributário, como meio alternativo ao processo de impugnação judicial (n.º 2 do artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril), é, como este, um meio processual de mera anulação em que se visa apreciar a legalidade e declarar a eventual ilegalidade dos atos impugnados, anulando-os ou declarando a sua nulidade ou inexistência [artigos 2.º, n.º 1, do RJAT e 99.º e 124.º do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a), daquele].

Por isso, os atos impugnados têm de ser apreciados tal como foram praticados, não podendo o tribunal, perante a constatação da invocação de um fundamento ilegal como suporte da decisão administrativa, apreciar se a sua atuação poderia basear-se noutros fundamentos.

Consequentemente, a fundamentação sucessiva ou a posteriori não é relevante para aferir da legalidade do ato impugnado, quando não acompanhada de revogação e prática de um novo ato (…) e também o tribunal, constatada a ilegalidade da fundamentação do ato impugnado, não pode substituir-se à Administração Tributária, mantendo na ordem jurídica esse ato com nova fundamentação. Isto é, «o tribunal não pode recorrer a outros filtros para aferir a legalidade do ato impugnado (já que os seus poderes de cognição não podem ir além dos fundamentos de que o ato explicitamente partiu), nem pode substituir-se à Administração na determinação de outra matéria tributável (sob pena de estar a invadir o núcleo essencial da função administrativa-tributária)». (…)

A eventual prática, na sequência da declaração pelo tribunal da ilegalidade do ato impugnado, do «ato tributário legalmente devido em substituição do ato objeto da decisão arbitral», é tarefa que cabe a Administração Tributária como resulta do teor expresso da alínea a) do n.º 1 do artigo 24.º do RJAT.

 

D- O procedimento da AT perante as exigências do método do preço comparável de mercado (PCM)

 

Resta sublinhar um ponto que incrementa substancialmente a desadequação da análise da Requerida à situação em apreço. Como antes se mostrou, no quadro legal, “A adopção do método do preço comparável de mercado requer o grau mais elevado de comparabilidade com incidência tanto no objecto e demais termos e condições da operação como na análise funcional das entidades intervenientes.”[5]

Bastaria confrontar esta exigência da lei (que não apenas das Guidelines) para que se conclua, porventura sem necessidade de recurso a outros fundamentos, que o procedimento da AT padece de vícios de ilegalidade notórios. 

Uma taxa de juro é um preço. Trata-se do preço (expresso usualmente em percentagem) pela utilização do capital.  Sendo assim, então a taxa (valor da mediana) de que a AT lançou mão para efetivar a correção ao lucro tributável tem de representar um preço de mercado (arm´s leght) que se verificaria em operações comparáveis. 

Ora, se a aplicação do PCM impõe o mais elevado grau de comparabilidade, então não se pode tomar como PCM (taxa de juro de mercado) a mediana de uma amostra que, previamente, a AT qualifica como padecendo, toda ela, de sérias lacunas ou disparidades no plano da comparabilidade.

O PCM determina que o comparável escolhido pela AT para efetuar o ajustamento exiba o mais elevado grau de comparabilidade. Mas é a própria Requerida que põe em causa que esse (mais elevado) grau tenha sido observado, ao caraterizar como defeituosa toda a amostra, e por isso também a mediana que ela contém e foi usada como preço comparável de mercado. Este procedimento da AT não respeita o disposto no art.º 6º, nº1, da Portaria 1446/C, que se transcreveu, supra, no “Quadro legal aplicável”.

Refira-se que tal exigência, quanto aos especiais cuidados na escolha de comparáveis ao aplicar-se o PCM, é também sublinhada nas Guidelines (v.g., §§ 2.14, 2.3).

Em suma, por todas as razões antes expressas não se pode validar – para mais, num contencioso de mera anulação - o procedimento da AT.

Termos em que deve proceder o pedido arbitral, com a consequente anulação das liquidações impugnadas, incluindo as relativas a juros compensatórios, com as legais consequências. 

 

III.III. PEDIDOS PREJUDICADOS

 

O Tribunal tem o dever de se pronunciar sobre todas as questões, abstendo-se de se pronunciar sobre as que não deva conhecer (segmento final do n.º 1 do artigo 125.º, do CPPT). Contudo as questões sobre que recaem os poderes de cognição do tribunal, são, de acordo com o n.º 2 do artigo 608.º, do CPC, aplicável subsidiariamente ao processo arbitral tributário, por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, “as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (…)”.

Em face da solução dada, fica prejudicado o conhecimento de qualquer outra questão incluída no pedido de pronúncia arbitral.

 

III.IV. JUROS INDEMNIZATÓRIOS

 

 

Como ficou dito, a Requerente solicita a restituição do imposto indevidamente pago acrescido de juros indemnizatórios.

São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, ter havido erro imputável aos serviços do qual resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido (vd. art. 43.º, n.º 1, da LGT). Como ficou dito na Decisão Arbitral, proferida no processo n.º296/2019-T, “É, por isso, condição necessária para a atribuição dos referidos juros a demonstração da existência de erro imputável aos serviços. Nesse sentido, vejam-se, por ex., os seguintes arestos: “O direito a juros indemnizatórios previsto no n.º 1 do art. 43.º da LGT [...] depende de ter ficado demonstrado no processo que esse ato está afetado por erro sobre os pressupostos de facto ou de direito imputável à AT.” (Acórdão do STA de 30 de maio de 2012, proc. 410/12); “O direito a juros indemnizatórios previsto no n.º 1 do artigo 43.º da Lei Geral Tributária pressupõe que no processo se determine que na liquidação «houve erro imputável aos serviços», entendido este como o «erro sobre os pressupostos de facto ou de direito imputável à Administração Fiscal»” (Acórdão do STA de 10 de abril de 2013, proc. 1215/12).”

No caso dos autos, tendo-se concluído, como decorre do que foi atrás dito, que houve erro imputável aos serviços – o qual conduz à anulação dos atos tributários em causa e à consequente devolução do montante pago pela Requerente, nos termos do disposto no artigo 173.º, n.º 1, do CPTA, ex vi art. 29.º, n.º 1, al. c), do RJAT –, conclui-se, sem necessidade de mais considerações, pela procedência do pedido de pagamento de juros indemnizatórios, no termos legais.

 

IV. DECISÃO

 

Termos em que, pelos fundamentos expostos, se decide neste Tribunal Coletivo:  

a)     Julgar procedente o pedido de indeferimento do recurso hierárquico e da reclamação graciosa, e, nesta sequência, anular os atos de liquidação de IRC e de juros compensatórios, relativos ao ano de 2014, no valor de €16.1723, 49;

b)    Julgar procedente o pagamento de juros indemnizatórios nos termos legais.

   

 

V.VALOR DA CAUSA

Fixa-se o valor do processo em € 16.172,49, de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, este último ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

Notifique-se.

Lisboa, 28 de janeiro de 2023 

 

O Tribunal Coletivo

 

 

Fernanda Maçãs (presidente),

 

 

Prof. Doutor António Martins (árbitro vogal)

 

 

Dr. Jorge Carita (árbitro vogal)

Junta declaração de voto:

 

 

 

 

 

 

DECLARAÇÃO DE VOTO

 

Admiti, com todo o respeito pelas opiniões contrárias, não votar favoravelmente a presente Decisão.

 

Não o farei pelas razões que abordarei de seguida.

 

Admiti para tal que a Autoridade Tributária (AT) ao longo do Relatório de Inspeção Tributária (RIT), bem tinha fundamentado a sua decisão de não aceitação dos juros pagos pela Requerente, calculados à taxa de 15%, como encargos dedutíveis para efeitos fiscais em sede de IRC, nas operações de financiamento (suprimentos) da sua casa-mãe, relativamente aos contratos com ela celebrados entre 2008 e 2014, sendo este último o ano em que no presente processo os referidos encargos, no montante de € 733.746,00, estão em causa.

 

Para tal analisarei o percurso efetuado pelo RIT relativamente à questão dos gastos de financiamento.

 

Os factos mais relevantes constantes do RIT, não foram postos em causa pelas partes e foram levados ao probatório na presente Decisão.

 

A primeira constatação relevante, na minha opinião, tem a ver com a análise das entidades de quem a Requerente se socorre pra garantir o financiamento que necessita para o desenvolvimento da sua atividade, maioritariamente deficitária.

 

 No exercício de 2014 os gastos com financiamento totalizavam quase 1 milhão de euros, dos quais € 203.463,43 de empréstimos bancários e € 733.746,00 de empréstimo da sua acionista única.

 

Ou seja, com os juros de suprimentos a Requerente gastou quase 4 vezes mais do que com os juros bancários.

 

É evidente que o montante do capital em dívida aos bancos é superior aos financiamentos da acionista, mas importará referir que tem que se admitir, que, mesmo com os spread’s que vêm referidos no RIT (3,3 % e 6%), indexados à Euribor a 3 e 6 meses, a taxa de juro efetiva da banca é inferior à taxa de juro praticada pela acionista única da Requerente.

 

Ora, acontece que no seu Relatório de Preços de Transferência (RPT) consta o seguinte:

“De acordo com a informação facultada pela A..., a empresa realizou operações financeiras junto de instituições financeiras independentes, no entanto, as mesmas não são consideradas similares às operações de suprimento sob análise, pelo que aplicação deste método com recurso a comparáveis internos torna-se inviável” (RPT, pág 44)

 

O que leva a AT a concluir no seu RIT que a Requerente não justifica “…o motivo dessa falta de similaridade” (Vd. RIT, pág.25):

 

Terá a Requerente afastado a comparabilidade com tais financiamentos pelo simples motivo de que os mesmos beneficiavam de uma taxa mais baixa do que aquela que era praticada pela sua própria casa – mãe?

 

Fica a pergunta sem resposta.

 

Socorreu-se a Requerente, com recurso aos auditores que elaboraram o RPT, para os dados da Bloomberg, quando até dispunha de informação relevante bem perto, ou seja dentro da própria empresa. Onde melhor poderiam ser encontradas operações no mercado, com uma empresa que desenvolve a mesma atividade (ela própria), com montantes e maturidades dos empréstimos semelhantes? Se estas duas realidades não são comparáveis, então importa perguntar quais seriam?

 

Damos por adquirido todo o percurso efetuado pelo RIT para relatar e enquadrar a análise que fez do RPT e do respetivo enquadramento legislativo (Vd. RIT, págs 25 a 34).

 

Referira-se apenas que com base nas operações selecionadas no RPT, foi assinalado um intervalo de plena concorrência que varia entre 1,8% e 21,1%. Estamos perante um intervalo de 19,3 pontos percentuais. 

 

Ou seja, tanto daria para justificar, no entender da Requerente, a aplicação de uma taxa de juro de 2% como de 21%, independentemente do modo como lá se chegou.

 

No ponto III.1.2.5 o RIT faz a sua análise crítica do modo como o RPT foi elaborado.

 

Apesar destas críticas ao modo de elaboração do RPT, da escolha das entidades incluídas na amostra, face nomeadamente à sua geografia, montante de empréstimos, atividade desenvolvida pelas empresas, etc, a AT não recusa a amostra apresentada, utilizando-a inclusive em novas abordagens, nomeadamente quando isola aquelas que se situam entre o 3º. quartil e o máximo, por ser esse o intervalo onde se insere a taxa aplicada pelo sujeito passivo. (Vd. RIT, págs 33 a 34).

 

Aqui chegados, o RIT passa à determinação do comparável a utilizar e fá-lo sempre de acordo com a amostragem que consta do RPT.

 

Primeira conclusão:

“… existe uma grande disparidade da amostra quanto a todas as características de todas as atividades envolvidas. Tal disparidade levou a uma grande dispersão dos intervalos obtidos, que vão de um mínimo de 1,8% a 21,1%.” (Vd. RIT, pág. 34).

 

Temos de concordar que assim é.

 

Aqui chegados, a tese propugnada pela presente Decisão, obrigaria a AT a encontrar outras dados para a amostra, que respeitassem os requisitos exigidos para tornar os elementos utilizados mais e melhor comparáveis.

 

E tal não foi feito.

 

Contudo, importa reter que a legislação e regulamentações que se aplicam dão resposta a problemas desta natureza.

 

Senão vejamos:

“A situação de elevada dispersão dos limites aceites é aliás abordada nas orientações da OCDE (vide § 3.59) quando refere que esta dispersão poderá indicar que os dados usados para estabelecer os pontos do intervalo podem ser fiáveis ou que algumas características das observações comparáveis podem carecer de ajustamentos” 

 

Para de seguida transcrever o § 3.57 das orientações das OCDE:

“Pode acontecer que apesar de todos os esforços para excluir as observações com menor grau de comparabilidade, obtemos mesmo assim um intervalo (…) no qual subsistem defeitos de comparabilidade que não podem ser identificados ou quantificados e por isso não são ajustáveis. Nestes casos, se a amostra incluir um número considerável de observações, as ferramentas estatísticas que utilizam medidas de tendência central para estreitar o intervalo (e.g. intervalo interquartil, mediana, etc.), permitem aumentar a fiabilidade da análise e a sua relevância estatística”. (sublinhado nosso).

 

Ou seja, nada impede que com base na mesma amostragem se encontrem melhores resultados por utilização das “medidas de tendência central”.

“Nesse sentido vai também o §3.62 das mesmas orientações, que refere que quando persistam algumas falhas de comparabilidade da amostra devem utilizar-se medidas de tendência central, como a mediana, a média ou a média ponderada, a fim de minimizar os riscos de erro provocado por defeitos de comparabilidade” (Vd, RIT pág. 35).

 

Considerando que a mediana “… é uma medida estatística que divide a amostra ao meio e permite expurgar os enviesamentos, decorrentes de valores muito baixos ou muito altos.”, como é o caso (1,8% a 21,1%) o RIT conclui do seguinte modo:

“Pelo referido, e seguindo o disposto no parágrafo 3.57 das Orientações OCDE parece-nos ser de utilizar como comparável a taxa de juro correspondente à mediana ou seja 5,5%. Uma vez que a taxa praticada pelo sujeito passivo foi de 15%, conclui-se que não foi cumprido o disposto no nº. 1 do artigo 63º. do CIRC.” (Vd, RIT pág. 35).

 

Ou seja, a argumentação relacionada com a aplicação de uma mediana dentro do conceito de “medidas de tendência central” constante das orientações da OCDE, não constitui, na minha opinião, fundamentação à posteriori, como entende a presente Decisão, razão pela qual, neste aspeto particular não a posso acompanhar.

 

Acrescente-se que de acordo com as regras aplicáveis neste tipo de cálculos, que corresponde a uma fórmula estatística, o RIT elaborou em Quadro, que consta na pág. 30 do RIT, onde se determina, relativamente a “Operações Financeiras Comparáveis”, as seguintes taxas:

Máximo – 21,1%

3º. Quartil – 7,0%

Mediana – 5,5%

1º. Quartil – 4,7%

Mínimo – 1,8%.

 

Esta objetiva conclusão não foi questionada pela Requerente, tendo o RIT, de acordo com as orientações da OCDE, aplicado a mediana, ou seja, 5,5%.

 

A Mediana é calculada ordenando os dados da amostra por ordem crescente. Se o número de elementos for par, a mediana é a média dos dois valores centrais. Se for ímpar a mediana é o valor do meio.

 

Recorde-se que as alegações da Requerida a partir do ponto 81 referem-se à aplicação das orientações da OCDE, contraditando as observações da Requerente quanto ao trabalho desenvolvido pela AT relativamente à amostragem (RPT) apresentada pela Requerente (82 a 84) para depois abordar a utilização da “mediana” (86) e parágrafos 3,57 e 3.62 das orientações da OCDE que referem: 

Nestes casos, se a amostra incluir um número considerável de observações, as ferramentas estatísticas que utilizam medidas de tendência central para estreitar o intervalo (e.g. intervalo interquartil, mediana, etc.), permitem aumentar a fiabilidade da análise e a sua relevância estatística”. (Orientações transcritas no ponto 90 das alegações).

 

“Também refere a IT (a pág.35 do RIT), que naquele sentido, “vai também o §3.62 das mesmas orientações, que refere que quando persistam algumas falhas de comparabilidade da amostra devem utilizar-se medidas de tendência central, como a mediana, a média ou a média ponderada, a fim de minimizar os riscos de erro provocado por defeitos de comparabilidade” (ponto 91 das alegações). Em itálico a transcrição do texto das orientações da OCDE.

“O uso da mediana não obriga ao expurgo de observações (comparáveis) constantes dessa amostra. Antes pelo contrário, para se calcular a mediana é necessário considerar todas as observações (comparáveis) que fazem parte dessa amostra.” (ponto 93 das alegações)

 

O uso da mediana “permite expurgar os enviesamentos, decorrentes de valores muito baixos ou muito altos” (ponto 94 das alegações).

 

Quanto ao ónus de ser a AT a ter que apresentar outra amostragem comparada diz a Requerida:

“Aliás, ainda que a AT discorde das conclusões apresentadas pela Requerente, não lhe cabe o ónus de procurar e apresentar novos comparáveis quando a Requerente lhe apresenta um intervalo de (possíveis) comparáveis, ao contrário do que afirma a Requerente no §144.º das alegações. (ponto 98 das alegações).

 

Assim, podemos constatar que não foi apenas nas suas alegações que a entidade Requerida utilizou esta argumentação (não foi apresentada Resposta), pois ela já constava da fundamentação da liquidação, bem expressa no Relatório de Inspeção Tributária não se verificando qualquer fundamentação à posterior.

 

O que existe sim é um dever da AT de desenvolver um procedimento, com base na amostragem apresentada pela Requerente para encontrar uma taxa vinculada e comparável à praticada pelo sujeito passivo.

 

Ou seja, há um trabalho prévio de interligação com o sujeito passivo, que não feito pelo AT, antes de se tornar legítimo o recurso, por exemplo, à mediana ou ao terceiro quartil da amostra. 

 

E este procedimento a AT não desenvolveu.

 

Razão pela qual voto favoravelmente a presente Decisão.

 

E apenas por isso.

 

 

Jorge Carita

 



[1] Dado que os factos se referem a 2014, consideram-se as Guidelines de 2010.

[2] 3.61 Se a condição relevante da transação controlada (por exemplo, preço ou margem) ficar fora do intervalo de plena concorrência adotado pela administração tributária, o contribuinte deve ter a oportunidade de apresentar argumentos de que as condições da transação controlada satisfazem o princípio de plena concorrência, e que o resultado cai dentro do intervalo (ou seja, que o arm's length range é diferente daquele que é afirmado pela  administração fiscal).  Se o contribuinte não for capaz de estabelecer esse facto, a administração tributária deve determinar o ponto dentro do intervalo para o  qual ajustará as condições da transação controlada.

 

[3] De notar que a mediana de uma amostra de dados pode coincidir com um ponto da amostra, ou pode estar entre pontos dessa amostra. Seja como for, tanto no primeiro caso, como no segundo, é evidente que são os valores dos  pontos da amostra que a determinam algebricamente. Pelo que a contaminação da amostra contamina a determinação da mediana.

No caso dos autos, consultando do dossier de PT, verifica-se que a mediana de 5,5% está muito próxima do valor de uma das operações, que apresenta uma taxa de juro de 5,52%.

[4] Dado que a Requerida não apresentou Resposta, usam-se aqui argumentos extraídos da suas Alegações.

[5] Art.º 6º, nº 1, da Portaria 1446-C.