Sumário:
I - A idoneidade e controlo de um preço estabelecido internamente merece grandes cautelas, mais ainda quando não são explicitados os critérios que presidiram a estabelecimento daqueles preços em concreto e não de quaisquer outros.
II - Para que um preço corrente de mercado possa ser considerado idóneo e de controlo inequívoco, este deverá, inevitavelmente, ter como principal requisito a sua independência face ao sujeito passivo, ou seja, um preço existente no mercado (no final do período de tributação) sem qualquer relação com a concreta situação do sujeito passivo e das suas imparidades, situação que, para além de ser explicitada, teria de ser de modo a que pudesse ser validada.
III - À semelhança do que é exigido para as demais perdas por imparidade fiscalmente dedutíveis, nomeadamente, as que se referem a créditos (artigos 28.º-A e 28.º-B do Código do IRC), são necessárias evidências objectivas das imparidades, pois que se pretende impedir comportamentos arbitrários na definição do momento considerar gastos e, em consequência, eventualmente transferir resultados de uns exercícios para outros e assim derrogar a regra da anualidade prevista no artigo 18.º do Código do IRC.
DECISÃO ARBITRAL
O árbitro Hélder Faustino, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral, constituído em 26 de Julho de 2022, acorda no seguinte:
I. Relatório
A..., Lda., doravante designada por “Requerente”, pessoa colectiva n.º..., com sede na ..., Paços de Ferreira, veio requerer a constituição de Tribunal Arbitral e deduzir pedido de pronúncia arbitral (“PPA”), ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, n.º 1, alínea a), ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), tendo por objecto a impugnação da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (“IRC”) n.º 2021 ..., relativa ao IRC de 2019, no montante de € 13.174,55, ao qual acrescem os juros compensatórios devidos, no montante de € 707,45.
É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por “AT” ou “Requerida”.
Em 18 de Maio de 2022, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação com a notificação da AT.
De acordo com o preceituado nos artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Exmo. Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o árbitro do Tribunal Arbitral, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável. As Partes, notificadas dessa designação, não manifestaram vontade de a recusar.
O Tribunal Arbitral ficou constituído em 26 de Julho de 2022.
Em 30 de Novembro de 2022, a Requerida apresentou Resposta, com defesa por impugnação e juntou o processo administrativo (“PA”).
Em 20 de Dezembro de 2022, teve lugar a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, com inquirição de três testemunhas indicadas pela Requerente. As Partes foram notificadas para apresentarem alegações escritas, o Tribunal designou a data de prolação da decisão arbitral e a Requerente foi advertida da necessidade de pagamento da taxa subsequente (cf. acta que se dá por reproduzida e gravação áudio disponível no SGP do CAAD).
Em 13 de Janeiro de 2023, a Requerida apresentou alegações, reafirmando a posição expressa na Resposta. A Requerente optou por não alegar.
Posição da Requerente
Defende a Requerente que, como era apanágio da actividade exercida, desde há largos anos, a comercialização de mobiliário sempre esteve alicerçada em estabelecimentos de grandes dimensões que permitiam exibir, perante os potenciais clientes, a globalidade da oferta colocada ao seu dispor.
Sustenta, ainda, que é pacífica e de conhecimento generalizado a constatação de que esta forma de abordagem comercial se apresenta desajustada nos últimos anos em virtude, designadamente, ao facto dos clientes não estarem disponíveis para adquirir mobiliário pré-existente que está exposto, sobretudo em virtude de terem tendência para, ou optarem por mobiliário barato, ou, neste segmento mais alto de mercado em que labora a Requerente, os clientes quererem personalizar as características dos móveis, seja em termos de dimensões, seja dos acabamentos e de algum “design” particular, o que obriga a produzir um móvel novo e consequentemente a que o móvel exposto continue em exposição.
Alega que o mercado do mobiliário sofre os efeitos das tendências da moda, constatando-se que, ao fim de 3 ou 4 anos, há que orientar a produção e tentar acompanhar as novidades que vão surgindo, o que remete a produção anterior para a classe dos designados “monos” e consequente perda de valor.
Perante a acumulação, em 2019, de um “stock” valorizado a preço de custo de € 1.081.394,93, conclui a Requerente que, caso os artigos em armazém fossem susceptíveis de comercialização em condições normais, seria possível à Requerente, socorrendo-se dos “stocks”, assegurar todas as vendas do ano de 2020 sem necessidade de efectuar qualquer produção ou aquisição e, ainda, sobraria mercadoria para vender em 2021.
À Requerente não se apresentou alternativa para solucionar de vez o problema dos elevados “stocks”, que representam uma forte imobilização financeira, restando-lhe minimizar o mesmo através de campanhas promocionais para atrair alguns clientes.
Foi, no âmbito dessa estratégia que a Requerente, em 2019, entendeu seleccionar alguns artigos que se encontravam em armazém, seguramente, há mais de 7 anos e que, pela sua experiência, não teriam qualquer possibilidade de serem transaccionados com base nos preços de venda pelos quais estavam inicialmente marcados, nem, tão pouco, pelo valor correspondente ao seu custo de fabrico.
A Requerente procedeu à marcação dos novos preços a praticar com referência aos artigos seleccionados, assumindo perante os potenciais clientes, para esses artigos expostos nos estabelecimentos, a prática dos correspondentes preços de venda (correspondente ao valor que esteve na base da imparidade contabilizada).
Defende a Requerente que afastada a possibilidade de recorrer a elementos oficiais e a preços anteriormente praticados com respeito a vendas dos artigos seleccionados, tudo se reconduz a avaliar se os preços de venda estimados pela Requerente no decurso normal da actividade, correspondem a preços correntes de mercado e se apresentam idóneos ou de controlo inequívoco.
Conclui que os preços de venda dos artigos seleccionados, atribuídos pela Requerente como de mercado, correspondem aos que, ponderadas as características dos mesmos e o comportamento do mercado, se estimou poder obter dos potenciais clientes, o que levou a empresa a prescindir da expectativa de obtenção de preço superior ao então estimado.
Ou seja, mais do que recorrer a elementos externos de avaliação sempre subjectiva, a Requerente definiu os preços de venda que em concreto esperava obter, afastando a possibilidade de obtenção de valores superiores na realização de eventuais vendas, pelo que sustenta que tais preços se apresentam idóneos e, neste caso cumulativamente, de controlo inequívoco.
Defende, ainda, que a contabilização e aceitação fiscal de imparidades em inventários, mais não representa do que a mera transferência do resultado de um exercício (aquele em que ocorrerá a futura venda) para outro (aquele em que a imparidade é contabilizada).
Conclui que a liquidação em apreço padece, igualmente, dos vícios de falta de fundamentação, de violação do princípio do inquisitório e da verdade material e do princípio da colaboração, vícios pelos quais deverá ser anulada.
Posição da Requerida
Segundo a Requerida, os Serviços de Inspecção Tributária (“SIT”) verificaram que não foi apresentado nenhum dos elementos tipificados na norma legal – elementos oficiais, últimos preços praticados pelo sujeito passivo ou preços correntes de mercado no termo do período de tributação – pelo que, desde logo, ficou prejudicada qualquer outra apreciação dos elementos apresentados como comprovativos.
Entende a Requerida que o Requerente não demonstrou, de forma cabal, que os valores das perdas por imparidade são aqueles e não outros e que, consequentemente, os ajustamentos efectuados não têm cabimento no disposto nos artigos 28.º, n.º 2, e 26.º, n.º 4 do Código do IRC.
Sublinha que não foram apresentados quaisquer esclarecimentos que fundamentassem as concretas percentagens de desvalorização praticadas, nem qualquer justificação para que uns bens fossem desvalorizados 70% e outros 50%, situação que impossibilita qualquer tentativa de controlo e/ou validação objectiva das imparidades constituídas.
Com efeito, os elementos de prova remetidos não explicam o(s) motivo(s) que justificam que os valores das imparidades sejam aqueles e não quaisquer outros, sequer é apresentada qualquer razão para que uns bens sejam desvalorizados em 50% e outros em 70% dos respectivos preços de custo.
Em vez de apresentar elementos que permitam comprovar e/ou sustentar o valor realizável líquido atribuído aos bens, parte dos elementos apresentados apenas servem para comprovar o valor pelo qual os bens constavam da contabilidade.
Segundo a AT, quando se constata que o custo de um inventário não seja recuperável (i.e. seja inferior ao seu valor realizável líquido), as regras da contabilidade preveem a possibilidade de ser efectuado um ajustamento ao valor do inventário (perda por imparidade em inventários), o que poderá suceder quando “(...) esses inventários estiverem danificados, se se tornarem total ou parcialmente obsoletos ou se os seus preços de venda tiverem diminuído.(...)”conforme consta do parágrafo 28 da NCRF 18, devendo o sujeito passivo munir-se de provas o mais fiáveis possíveis que demonstrem que as quantias a recuperar com a venda dos bens são inferiores aos respectivos custos (cf. parágrafo 30 da NCRF 18).
As limitações impostas pelo Código do IRC visam impedir que os inventários sejam utilizados para o reconhecimento de qualquer gasto com base em meras apreciações e/ou estimativas, exigindo elementos que sejam idóneos e controláveis, enumerando as situações admissíveis para o efeito (cf. n.º 4 do artigo 26.º do Código do IRC), onde se verifica que se trata de elementos tendencialmente objectivos e de fonte externa à própria Requerente (elementos oficiais ou preços de mercado).
Ora, no caso em apreço, conforme assumido pela Requerente, a decisão de desvalorizar os artigos em causa foi de natureza comercial, trata-se de preços promocionais com vista à liquidação de certos bens considerados “monos”, não tendo qualquer fundamento técnico, como seja uma qualquer deterioração / danificação dos mesmos, pelo que, em rigor, se desconhece se aqueles bens teriam aquele valor no mercado, ou qualquer outro, ou se, no limite, se teriam valor algum.
Mais, contrariamente ao alegado, a subjectividade encontra-se limitada (senão afastada) para efeitos fiscais, pois que os preços a considerar deverão ser perfeitamente objectivos e comprováveis, devendo constar de elementos oficiais ou serem correntes de mercado, sendo que muitas vezes a melhor estimativa do preço do bem é precisamente o valor do último negócio do próprio bem, não bastando para o efeito afirmações e estimativas de carácter genérico.
Nota a Requerida que a referência feita no Código do IRC, a preços correntes de mercado implica a demonstração da existência de bens idênticos à venda no mercado, sendo por isso um elemento de informação externa, contrariamente ao que é assumido pela Requerente ao longo do PPA, onde assume ser o preço pelo qual decidiu colocar os bens à venda, situação que não corresponde a um preço corrente de mercado, mas sim a um preço interno.
Defende, ainda, que para que um preço corrente de mercado possa ser considerado idóneo e de controlo inequívoco, este deverá, inevitavelmente, ter como principal requisito a sua independência face ao sujeito passivo, ou seja, um preço existente no mercado (no final do período de tributação) sem qualquer relação com a concreta situação do sujeito passivo e das suas imparidades, situação que, para além de ser explicitada, teria de ser de modo a que pudesse ser validada.
Como é evidente, a idoneidade e controlo de um preço estabelecido internamente merece grandes cautelas, mais ainda quando não são explicitados os critérios que presidiram ao estabelecimento daqueles preços em concreto e não de quaisquer outros.
Nos termos expostos pela Requerente constata-se que, em vez da perda por imparidade encontrar justificação num preço existente no mercado, preço necessariamente independente do sujeito passivo (e por isso considerado idóneo ou controlável), temos que o preço que é indicado como sendo preço de mercado (é um preço definido internamente) encontra a sua justificação na imparidade que foi constituída, ou seja, a perda por imparidade justifica o preço de mercado e, por essa razão, indirectamente, autojustifica-se.
Ora, à semelhança do que é exigido para as demais perdas por imparidade fiscalmente dedutíveis, nomeadamente, as que se referem a créditos (cf. artigos 28.º-A e 28.º-B do Código do IRC), são necessárias evidências objectivas das imparidades, pois que se pretende impedir comportamentos arbitrários na definição do momento considerar gastos e, em consequência, eventualmente transferir resultados de uns exercícios para outros e assim derrogar a regra da anualidade prevista no artigo 18.º do Código do IRC.
Conclui a Requerida que, contrariamente ao alegado, não resulta necessariamente indiferente para a receita fiscal a consideração de gastos num período ou noutro, pois que tal depende de circunstâncias adicionais como sejam a existência (ou não) de prejuízos fiscais, de benefícios fiscais, entre outas situações.
Relativamente ao vício de falta de fundamentação, entende a Requerida que a exigência constitucional de fundamentação dos actos tributária visa, primacialmente, permitir aos interessados conhecer o itinerário cognoscitivo e valorativo do acto, permitindo-lhe ficar a saber quais os motivos que levaram a AT à sua prática e a razão pela qual decidiu nesse sentido e não noutro, por forma a possibilitar-lhes uma opção consciente entre a aceitação da legalidade do acto e reacção contra o mesmo.
Analisado o conteúdo do relatório inspectivo e efectuada a sua articulação com a liquidação, devidamente notificada à Requerente, entende a Requerida que o acto tributário de liquidação se encontra devidamente fundamentado, sem ambiguidades nem obscuridades, nem qualquer contradição.
Com efeito, o que releva não é a extensão ou pormenor da exposição, mas sim a clareza da mesma e sua aptidão à respetiva compreensão por parte do destinatário, para assim dotá-lo das ferramentas necessárias a uma tomada de posição fundamentada sobre o acto ficando desta forma em condições de contra ele reagir, se o entender.
Ora, a Requerente claramente demonstra, ao longo da sua exposição conhecer as razões na base da correcção, ainda que com elas não concorde.
Pelo que a Requerente demonstra ter compreendido cabalmente as razões de facto e de direito na base da decisão da Requerida de proceder às liquidações adicionais em crise.
Relativamente às demais dúvidas suscitadas no âmbito do procedimento inspetcivo, e em respeito pelos princípios do inquisitório e colaboração, tendentes à descoberta da verdade material, entende a Requerida que os SIT solicitaram os elementos necessários à averiguação do valor relativo às imparidades.
Para além disso, ainda em sede de inspecção, e em cumprimento do princípio da colaboração, foi dada à Requerente oportunidade de se pronunciar sobre as correcções propostas, tendo a Requerente optado por não se pronunciar.
II. Saneamento
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, atenta a conformação do objecto do processo dirigido à anulação do acto de liquidação de IRC e correspondentes juros compensatórios (v. artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 5.º do RJAT).
O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (v. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
Não foram identificadas nulidades ou questões que obstem ao conhecimento do mérito.
III. Fundamentação de Facto
1. Factos Provados
Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos que se julgam provados:
A. A Requerente é uma sociedade por quotas, sujeito passivo de IRC, enquadrada no regime geral de tributação.
B. A Requerente encontra-se inscrita no cadastro, com a CAE 47591 – Comércio a Retalho de Mobiliário e Artigos de Iluminação, em Estabelecimentos Especializados.
C. A contabilidade da Requerente foi objecto de uma acção inspectiva, credenciada pela ordem de serviço n.º OI2021..., incidente sobre o período tributário de 2019, emitida com vista à verificação da conformidade fiscal das perdas por imparidade em inventário, constantes das contas referentes a 2019, no montante de € 58.553,55.
D. A Requerente foi notificada para apresentar os elementos tidos como necessários:
a) Mapa, de modelo oficial, de provisões, perdas por imparidade em créditos e ajustamentos em inventários;
b) Anexo ao Balanço e Demonstração de Resultados;
c) Balancetes analíticos e sintéticos, antes e após apuramento de resultados;
d) Remessa de todos os elementos contabilísticos e extra-contabilísticos que comprovem / justifiquem os valores declarados como perdas por imparidade em inventários no montante global de € 58.553,55;
e) Justificação da dedutibilidade fiscal das imparidades, provisões e respetivas reversões nos termos previstos nos artigos 28.º, 28.º-A, 28.º-B, 31.º-B, 39.º e 40.º do Código do IRC;
f) Extractos detalhados das contas do SNC onde foram registadas as imparidades, provisões e respetivas reversões, bem como, documentos de suporte dos respetivos lançamentos contabilísticos, com identificação das contas de contrapartida.
E. Em resposta, a Requerente informou que, em 2019, face ao contexto do mercado, equacionou uma política de colocar alguns artigos em promoção, fixando preços abaixo do preço de custo, de modo a tentar esgotar artigos que possui em “stock” há muito tempo. Neste seguimento, considerando que a projectada venda é inferior ao preço de custo desses bens, registou a correspondente perda por imparidade, pela diferença entre o preço de custo e o preço de venda pelo qual os artigos se encontram à venda no seu estabelecimento, pois que este valor corresponderá ao valor realizável líquido que se espera obter dos mesmos.
F. Como prova remeteu os elementos:
a) Relação de bens desvalorizados, com indicação dos respetivos custos de aquisição e do custo ajustado;
b) Inventário final de 2012, de modo a demonstrar que os artigos desvalorizados já constavam dos “stocks” da Requerente, pelo menos desde essa data;
c) Facturas de compra de alguns dos bens, de modo a comprovar a respectiva data de aquisição e preço de custo;
d) Fotografias dos bens correspondentes às facturas remetidas, de modo a comprovar que se encontram à venda no estabelecimento pelos preços promocionais que serviram de base à imparidade.
G. Após análise da documentação disponibilizada, a Requerida verificou que os ajustamentos se deveram a bens, à data, sem mercado e que se encontram em “stock” há diversos anos, sendo que o valor contabilístico de algumas mercadorias foi reduzido entre 50% a 70%.
H. Em resultado das perdas por imparidade em causa, o inventário final de mercadorias com referência a 31 de Dezembro de 2019, cujo valor a preço de custo era de € 1.081.394,93, passou a estar valorizado por € 1.022.751,38.
I. A Requerida entendeu ser de desconsiderar o valor referente às perdas por imparidade, porquanto: as perdas por imparidade (ou ajustamentos) em inventários só têm acolhimento fiscal desde que devidamente comprovados (cfr. n.º 3 do artigo 23.º do Código do IRC), e, embora o Código do IRC adopte um conceito semelhante àquele que decorre do normativo contabilístico, é maís específico na determinação do preço a utilizar, pois que nos termos do n.º 2 do artigo 28.º do Código do IRC, o valor realizável líquido deverá ser determinado de acordo com o disposto no n.º 4 do artigo 26.º, ou seja, “consideram-se preços de venda os constantes de elementos oficiais ou os últimos que em condições normais tenham sido praticados pelo sujeito passivo ou ainda os que, no termo do período de tributação, forem correntes no mercado, desde que sejam considerados idóneos ou de controlo inequívoco”.
J. Inconformada, a Requerente apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral onde requer a anulação do acto de liquidação adicional do IRC de 2019.
2. Motivação da Decisão da Matéria de Facto e Factos não Provados
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT, não tendo o Tribunal Arbitral que se pronunciar sobre todas as alegações das Partes, mas apenas sobre as questões de facto necessárias para a decisão.
No que se refere aos factos provados, a convicção do árbitro fundou-se essencialmente na análise crítica da prova documental junta aos autos pelas Partes e nas posições por estas assumidas em relação aos factos.
Foram tidos em conta os depoimentos das três testemunhas inquiridas: B..., Director Comercial da Requerente; C..., organizador de feiras e eventos e D..., técnica de contas da Requerente, que responderam de forma objectiva e com conhecimento dos factos no âmbito das funções exercidas.
Em relação aos factos não provados, não se justificou, de forma fundamentada, os valores das perdas por imparidade registados.
Com relevo para a decisão não existem outros factos alegados que devam considerar-se não provados.
Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas Partes e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja validade terá de ser aferida em relação à concreta matéria de facto consolidada.
IV. Do Direito
A questão decidenda nos presentes autos resulta da desconsideração por parte da AT, na sequência da acção inspectiva realizada à Requerente, dos gastos registados a título de perdas em inventários, no montante de no montante de € 58.553,55.
Importa, antes de mais, estabelecer o enquadramento legal da matéria na perspectiva contabilística e na perspetiva fiscal.
Começando pela perspectiva contabilística, o lucro tributável é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do período e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não reflectidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos do Código do IRC (cf. artigo 17.º, n.º 1, do Código do IRC).
Por outro lado, conforme resulta do artigo 11.º, n.º 2, da LGT, sempre que nas normas fiscais se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, são os mesmos interpretados no mesmo sentido, excepto se decorrer diretamente da lei um sentido diferente. Ora, relativamente aos termos “inventários” e “perdas por imparidade”, os mesmos devem ser interpretados de acordo com o direito contabilístico e nos termos do disposto no Sistema de Normalização Contabilístico (“SNC”) vigente.
A Norma Contabilística e de Relato Financeiro (“NCRF”) 12 “Imparidade de activos”, constitui a norma geral do SNC sobre as imparidades e no § 1 determina:
“O objetivo desta Norma Contabilística e de Relato Financeiro é o de prescrever os procedimentos que uma entidade deve aplicar para assegurar que os seus ativos sejam escriturados por não mais do que a sua quantia recuperável. Um ativo é escriturado por mais do que a sua quantia recuperável se a sua quantia escriturada exceder a quantia a ser recuperada através do uso ou venda do ativo. Se este for o caso, o ativo é descrito como estando com imparidade e a Norma exige que a entidade reconheça uma perda por imparidade. A Norma também especifica as circunstâncias em que uma entidade deve reverter uma perda por imparidade.”
De acordo com o estabelecido na alínea a) do §2 esta Norma não se aplica às imparidades em inventários.
O tratamento das imparidades em inventários é estabelecido pela NCRF 18, §1, nos seguintes termos:
“O objetivo desta Norma Contabilística e de Relato Financeiro é o de prescrever o tratamento para os inventários. Um aspeto primordial na contabilização dos inventários é a quantia do custo a ser reconhecida como um ativo e a ser escriturada até que os réditos relacionados sejam reconhecidos. Esta Norma proporciona orientação prática na determinação do custo e no seu subsequente reconhecimento como gasto, incluindo qualquer ajustamento para o valor realizável líquido. Também proporciona orientação nas fórmulas de custeio que sejam usadas para atribuir custos aos inventários.”
No que toca às imparidades em inventários, prevê o §28 da norma em causa que, deve proceder-se ao ajustamento da mensuração dos inventários quando se verifique que o seu custo não pode ser recuperado, pela venda ou uso, por estarem danificados, total ou parcialmente obsoletos ou se os preços de venda tiverem diminuído, por redução do valor contabilístico – “write down” - para o valor realizável líquido estimado.
Segundo os §30 e §31 a estimativa do valor realizável líquido assente, nas provas (internas ou externas) mais fiáveis disponíveis no momento deve levar em consideração a finalidade para a qual o inventário é detido.
Nos termos do §34 a imparidade não implica o desreconhecimento do ativo devendo a sua diminuição ser relevada numa conta específica de inventários porquanto, se num período posterior ocorrer um evento que determine a diminuição da quantia de perda por imparidade, a mesma deve ser revertida.
Ora, na perspectiva fiscal é de notar que todos os lançamentos contabilísticos devem ser apoiados em documentos justificativos, datados e susceptíveis de apresentação sempre que necessário, de acordo com o disposto no artigo 123.º, n.º 2, alínea a), do Código do IRC.
O Código do IRC trata dos inventários no artigo 26.º, com a epígrafe “Inventários”, e no artigo 28.º, tendo por epígrafe “Perdas por imparidade em inventários”. Ambos os preceitos estão inseridos na subsecção II (Mensuração e perdas por imparidades em ativos correntes), da secção XII (Pessoas coletivas e outras entidades residentes que exerçam, a título principal, actividade comercial, industrial ou agrícola) do capítulo III (Determinação da matéria colectável).
As normas do Código do IRC acima referidas têm o seguinte teor:
“Artigo 26.º
Inventários
1 - Para efeitos da determinação do lucro tributável, os rendimentos e gastos dos inventários são os que resultam da aplicação dos critérios de mensuração previstos na normalização contabilística em vigor que utilizem:
a) Custos de aquisição ou de produção;
b) Custos padrões apurados de acordo com técnicas contabilísticas adequadas;
c) Preços de venda deduzidos da margem normal de lucro;
d) Preços de venda dos produtos colhidos de activos biológicos no momento da colheita, deduzidos dos custos estimados no ponto de venda, excluindo os de transporte e outros necessários para colocar os produtos no mercado;
e) (Revogada).
2 - Podem ser incluídos no custo de aquisição ou de produção os custos de empréstimos obtidos, bem como outros gastos que lhes sejam diretamente atribuíveis de acordo com a normalização contabilística especificamente aplicável.
3 - Sempre que a utilização de custos padrões conduza a desvios significativos, a Autoridade Tributária e Aduaneira pode efetuar as correções adequadas, tendo em conta o campo de aplicação dos mesmos, o montante das vendas e dos inventários finais e o grau de rotação dos inventários.
4 - Consideram-se preços de venda os constantes de elementos oficiais ou os últimos que em condições normais tenham sido praticados pelo sujeito passivo ou ainda os que, no termo do período de tributação, forem correntes no mercado, desde que sejam considerados idóneos ou de controlo inequívoco.
5 - O método referido na alínea c) do n.º 1 só é aceite nos sectores de actividade em que o cálculo do custo de aquisição ou de produção se torne excessivamente oneroso ou não possa ser apurado com razoável rigor, podendo a margem normal de lucro, nos casos de não ser facilmente determinável, ser substituída por uma dedução não superior a 20% do preço de venda.
6 - A utilização de critérios de mensuração diferentes dos previstos no n.º 1 depende de autorização da Autoridade Tributária e Aduaneira, a qual deve ser solicitada até ao termo do período de tributação, através de requerimento em que se indiquem os critérios a adotar e as razões que os justificam.”
“Artigo 28.º
Perdas por imparidade em inventários
1 - São dedutíveis no apuramento do lucro tributável as perdas por imparidade em inventários, reconhecidas no mesmo período de tributação ou em períodos de tributação anteriores, até ao limite da diferença entre o custo de aquisição ou de produção dos inventários e o respetivo valor realizável líquido referido à data do balanço, quando este for inferior àquele.
2 - Para efeitos do disposto no número anterior, entende-se por valor realizável líquido o preço de venda estimado no decurso normal da actividade do sujeito passivo nos termos do n.º 4 do artigo 26.º, deduzido dos custos necessários de acabamento e venda.
3 - A reversão, parcial ou total, das perdas por imparidade previstas no n.º 1 concorre para a formação do lucro tributável.
4 - Para os sujeitos passivos que exerçam a atividade editorial, o montante anual acumulado das perdas por imparidade corresponde à perda de valor dos fundos editoriais constituídos por obras e elementos complementares, desde que tenham decorrido dois anos após a data da respetiva publicação, que para este efeito se considera coincidente com a data do depósito legal de cada edição.
5 - A desvalorização dos fundos editoriais deve ser avaliada com base nos elementos constantes dos registos que evidenciem o movimento das obras incluídas nos fundos.”
Assim, do enquadramento legal descrito resulta o estabelecimento de condições legais restritivas para a aceitação fiscal das perdas por imparidade em inventários de modo a obstar que os inventários sejam utilizados para o reconhecimento de qualquer gasto contabilístico, transformando-se num instrumento de planeamento fiscal abusivo, se não mesmo fraudulento.
Tendo em conta o disposto nos artigos 28.º, n.º 2, e 26.º, n.º 4, do Código do IRC quando a definição do preço não é determinada por elementos oficiais ou pelos últimos preços praticados é necessário demonstrar a sua idoneidade ou que o seu controlo seja inequívoco. Assim, a análise de documentos internos que estabeleçam perdas por imparidade em inventários carece de grande ponderação.
Ora, do depoimento da primeira testemunha, B..., ficou patente que:
· Foi por opção da Requerente que se procedeu à desvalorização dos bens, que se encontravam na sociedade sem que se conseguisse proceder a sua venda;
· A Requerente vem acumulando “monos” há vários anos, sendo que as correcções aqui em causa, dizem respeito a uma pequena parte;
· No decurso da acção inspectiva não foi feita qualquer visita, mas foram disponibilizadas fotografias aos SIT;
· Não é possível fazer uma comparação com os preços das empresas concorrentes porquanto o “design” é diferente;
· O critério utilizado para desvalorização dos móveis foi o de “tentar perder menos dinheiro possível”;
· Os critérios de desvalorização foram levados a cabo pela testemunha.
A testemunha C... não acrescentou nada ao depoimento da primeira testemunha.
Já a testemunha D..., não esteve directamente envolvida no processo, apenas validou, mediante o inventário, se os bens existiam e a sua antiguidade.
Decorre, portanto, que a prova testemunhal gravitou à volta da dificuldade de venda dos bens, sem sequer ficar devidamente justificado o seu critério de desvalorização.
Atendendo ao enquadramento referido anteriormente e, bem assim, à factualidade provada verifica-se que, apesar de não estar em causa a idoneidade das testemunhas indicadas pela Requerente, faltam elementos que justifiquem, de forma fundamentada, os valores das perdas por imparidade.
Com efeito, a idoneidade e controlo de um preço estabelecido internamente merece grandes cautelas, mais ainda quando não são explicitados os critérios que presidiram a estabelecimento daqueles preços em concreto e não de quaisquer outros.
Para que um preço corrente de mercado possa ser considerado idóneo e de controlo inequívoco, este deverá, inevitavelmente, ter como principal requisito a sua independência face ao sujeito passivo, ou seja, um preço existente no mercado (no final do período de tributação) sem qualquer relação com a concreta situação do sujeito passivo e das suas imparidades, situação que, para além de ser explicitada, teria de ser de modo a que pudesse ser validada.
À semelhança do que é exigido para as demais perdas por imparidade fiscalmente dedutíveis, nomeadamente, as que se referem a créditos (artigos 28.º-A e 28.º-B do Código do IRC), são necessárias evidências objectivas das imparidades, pois que se pretende impedir comportamentos arbitrários na definição do momento considerar gastos e, em consequência, eventualmente transferir resultados de uns exercícios para outros e assim derrogar a regra da anualidade prevista no artigo 18.º do Código do IRC.
Por todo o exposto, o Tribunal Arbitral entende que os documentos de suporte apresentados pela Requerente são insuficientes para comprovar as imparidades registadas. Assim, a desconsideração para efeitos fiscais dos gastos incorridos pela Requerente com o ajustamento em inventários, no montante de € 58.553,55, realizada pela AT, foi legal e encontra-se justificada.
Resultando do exposto que o acto de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (“IRC”) n.º 2021 ..., relativa ao IRC de 2019, no montante de € 13.174,55, ao qual acrescem os juros compensatórios devidos, no montante de € 707,45, não padece de ilegalidade, pelo que fica prejudicado, por ser inútil (artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do Código do Processo Civil), o conhecimento dos restantes vícios suscitados.
Conclui-se, assim, que o acto de liquidação em causa não enferma da ilegalidade que a Requerente lhe imputa.
Improcede, assim, o pedido de pronúncia arbitral.
V. Decisão
Em face do exposto, acorda deste Tribunal Arbitral em:
a) Julgar totalmente improcedente o pedido de anulação do actos tributário de liquidação de IRC e respectivos juros compensatórios, relativo ao período de tributação de 2019;
b) Condenar a Requerente no pagamento das custas do presente processo.
VI. Valor do Processo
Fixa-se ao processo o valor de € 13.882,00, respeitante ao montante da liquidação de IRC e respectivos juros compensatórios cuja anulação pretende, de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 306.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, este último ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
VII. Custas
Custas no montante de € 918,00 (novecentos e dezoito euros euros), a cargo da Requerente, em conformidade com a Tabela I anexa ao RCPAT e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT e 4.º do RCPAT.
Notifique-se.
Lisboa, 26 de Janeiro de 2023
O árbitro,
Hélder Faustino
Texto elaborado em computador, nos termos do disposto no n.º 5 do artigo 131.º, do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.
A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.