Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 782/2021-T
Data da decisão: 2023-01-09  IRS  
Valor do pedido: € 44.271,20
Tema: IRS - Residente não habitual e isenção de IRS.
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SUMÁRIO:

  1. O Requerente solicitou o estatuto de residente não habitual (RNH) e na pendência do processo, sem que haja tido resposta definitiva ao pedido, viu-se confrontado com uma liquidação da AT que desconsiderou o benefício fiscal solicitado.
  2. Nessa medida, impugnou o único ato tributário praticado, até então, pela AT, ou seja, a liquidação e fê-lo para o tribunal arbitral.
  3. É entendimento deste Tribunal que deve ser dada razão ao contribuinte, porquanto o único ato tributário, até então, praticado pela AT foi a liquidação e o tribunal arbitral é competente para a apreciar, assim como aos factos que estiveram na origem e foram fundamento para a dita liquidação.
  4. Além disso, do ponto de vista do Tribunal, embora haja diversos vícios formais da responsabilidade do Requerente, a verdade é que este fez prova de que, nos últimos cinco anteriores ao pedido do estatuto de RNH, demonstrou que não tinha sido residente em território português e o pedido de tal estatuto tem efeito meramente declarativo e não vinculativo.

DECISÃO ARBITRAL

I-RELATÓRIO

  1. Marcha do processo

 

1- A..., contribuinte n.º..., com domicílio fiscal registado na ... ..., ...-..., Faro, (doravante “Requerente”) tendo sido notificado da liquidação de IRS de 2020 n.º 2021..., da qual resulta um valor total a pagar de € 44 271,70 (cf. documento n.º 1) nos termos e para os efeitos previstos no n.º 1, do artigo 140.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (doravante, “CIRS”), na alínea a), do n.º 1, do artigo 10.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (doravante, “RJAT”) e no artigo 99.º do Código do Procedimento e Processo Tributário (doravante, “CPPT”), apresentou pedido de pronúncia arbitral.

2- Em 2021-11-29, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente comunicado à AT.

3- O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que ao abrigo do disposto no nº 2 a) do artigo 6º do artigo 11º, nº 1 a) do RJAT foi designado pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD árbitro singular, que foi aceite pelas partes, após notificação feita 2022-11-29, tendo o Tribunal Arbitral singular sido constituído em 2022-02-01.

4- O árbitro nomeado apresentou pedido de resignação ao Senhor Presidente do Conselho Deontológico, o qual, atentos os motivos invocados, aceitou tal pedido e, nessa sequência, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico nomeou outro árbitro em 2022-02-23.

5- Por motivos atendíveis, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD aceitou um novo pedido de escusa do árbitro entretanto designado, que já havia prorrogado por 2 meses a data para prolação da decisão, sendo que, em 2022-11-10, foi o atual árbitro designado para concluir o processo, tendo sido forçado a solicitar nova prorrogação do prazo para a prolação da sentença (2023-02-01), atendendo a que as partes ainda não tinham ainda proferido alegações.

6- As partes, entretanto, apresentaram as suas diversas peças processuais, as quais terminaram nas alegações do Requerente em 2022-12-05 e da Requerida em 2022-12-09.

7- O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2º, nº 1 alínea a), 5º e 6º, nº 2 alínea a) do RJAT. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4º e 10º do RJAT e artigo 1º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de março. O processo não enferma de nulidades, pelo que não há qualquer obstáculo à sua apreciação.

 

 

  1. OS ARGUMENTOS DAS PARTES:

 

Para tanto alega o Requerente:

 

8-O Requerente foi notificado para proceder ao pagamento da liquidação de IRS n.º 2021..., relativa ao ano de 2020, no valor de € 44 271,70.

9-Resulta, porém, do conteúdo daquela liquidação e das circunstâncias que a enformam, que a mesma se encontra ferida de ilicitude, por não aplicar aos rendimentos percebidos pelo Requerente o regime previsto no art. 72.º, n.º 10 do CIRS, solicitando a anulação da mesma.

10-No dia 16 de abril de 2020, por entender satisfazer todos os requisitos legalmente previstos para tal, em particular os estatuídos no art. 16.º, n.º 8 do CIRS, o Requerente solicitou a sua inscrição como residente não habitual (“RNH”), por via eletrónica, no Portal das Finanças, com efeitos a partir ano de 2020.

11-Apesar da idoneidade do seu pedido, a 24 de junho de 2020, o Requerente foi notificado do projeto de decisão de indeferimento daquele pedido de inscrição como RNH (cf. documento n.º 2), por alegadamente não reunir as condições previstas no artigo 16.º do CIRS para a inscrição em tal estatuto.

12-De acordo com o teor da referida notificação, a Autoridade Tributária (“AT”) fundamentou o projeto de indeferimento, sucintamente, nos seguintes pontos:

  1. O Requerente encontra-se registado no cadastro da AT como residente em território português nos anos de 2015, 2016, 2017, 2018 e 2019; e,
  2. O Requerente consta como residente fiscal, na declaração de rendimentos de IRS, relativamente ao ano de 2015.

13-O Requerente exerceu o seu direito de audição face àquele projeto de indeferimento forneceu abundante prova no sentido de demonstrar que não residiu em Portugal nos anos em causa (2015 a 2019, inclusive).

14-De facto, em julho de 2013, o Requerente emigrou de Portugal para as Bahamas, para trabalhar como diretor do resort “...”, passando a residir nesse território (cf. documentos n.ºs 3 e 4), tendo lá trabalhado até 2016, residindo nas instalações do referido resort.

15-O Requerente, a 1 de julho de 2016, emigrou das Bahamas para o México, para assumir, a partir daquela data, a função de Diretor de Operações do resort “... Beach Club”, sito em ..., México (cf. documento n.º 6).

16-O Requerente exerceu aquela função, de Diretor de Operações do resort “... Beach Club”, e habitou naquele resort, de 1 de julho de 2016 a 31 de janeiro de 2020,

17-Naquele período (2016, 2017, 2018 e 2019), como não poderia deixar de ser, apresentou as suas declarações de rendimentos, como residente, no México, onde suportou o respetivo imposto (cf. documento n.º 7).

18-A residência fiscal do Requerente, no México, nos anos de 2016, 2017, 2018 e 2019, era conhecida, aceite e foi inclusivamente certificada pela Autoridade Fiscal do México, a “Hacienda Y Crédito Público” (cf. documento n.º 8).

19-Ou seja, entre 1 de julho de 2016 e 2 de fevereiro de 2020, o Requerente residiu e trabalhou no resort “... Residences”, em ..., México.

20-Em fevereiro de 2020, o Requerente regressou a Portugal, com o intuito de se estabelecer quer pessoal, quer profissionalmente, devido a um novo projeto profissional que abraçou neste País.

21-Entendendo o Requerente que (i) não tinha sido residente fiscal em Portugal nos anos descritos (2013 a 2019) e que, (ii) com o seu retorno, preenchia os requisitos necessários à aplicação do estatuto do RNH, o Requerente solicitou, como acima já se referiu, em abril de 2020, a sua inscrição naquela qualidade, por referência ao ano de 2020.

22-Pelo que o facto de o Requerente se encontrar (ainda) registado no cadastro da AT como residente fiscal em território português, nos anos de 2015, 2016, 2017, 2018 e 2019, não tem qualquer adesão à realidade de facto, e mesmo de Direito: o Requerente não permaneceu mais de 183 dias, em qualquer período de 12 meses, em território português, nem aqui manteve uma residência em condições tais que fizessem supor uma intenção de se tratar da sua residência habitual.

23- Quanto à declaração de IRS apresentada por referência ao ano de 2015, expôs o Requerente, em sede de audição prévia, que tal facto nem era do seu conhecimento, mas que o que terá acontecido, apurou o Requerente posteriormente, foi que a sua mulher, por lapso, indicou naquela declaração que era casada, e optou erradamente pela declaração conjunta dos rendimentos.

24-Apesar de o Requerente ter exposto a factualidade acima descrita em sede de direito de audição prévia, e aí carreado os documentos ora juntos, que se crê demonstram claramente o preenchimento dos requisitos aplicáveis à inscrição como RNH, a verdade é que até à data da presente impugnação o Requerente não recebeu qualquer decisão final naquele procedimento.

25-Através do Of. ... (cf. documento n.º 9), a AT veio requerer, para efetivação da inscrição do Requerente como RNH, com efeitos ao ano de 2020, o envio de certificado de residência fiscal emitido pela Autoridade Fiscal das Bahamas.

26-A este pedido, o Requerente respondeu (cf. documento n.º 9) que as Autoridades Fiscais bahamianas não emitem certificados de residência fiscal - os quais, de qualquer forma, não deveriam ser tidos por necessários à prolação de uma decisão, porquanto da prova apresentada era por demais evidente que o Requerente residiu naquele território (Bahamas) de 2013 a 2016.

27-O pedido do Requerente, para a sua inscrição como RNH, com efeitos a 2020, continua a aguardar por uma decisão definitiva (cf. documento n.º 2).

28-Não obstante, na pendência deste impasse, foi emitida e notificada a liquidação ora impugnada, de cuja análise resulta que, aos rendimentos percebidos pelo Requerente, não foi aplicado o regime previsto no art. 72.º, n.º 10 do CIRS

29-O regime fiscal do RNH, em sede de IRS, foi introduzido no ordenamento jurídico português pelos artigos 23º a 25º do Decreto-Lei n.º 249/2009 de 23 de setembro, que aprovou o Código Fiscal do Investimento. Posteriormente, através da Lei n.º 20/2012, de 14 de maio, foram revogados aqueles preceitos, passando este regime a constar dos artigos 16.º, 22.º, 72.º e 81.º do Código do IRS.

30-Dispunha o artigo 16.º do CIRS, com a redação em vigor à data dos factos, que:

“8 - Consideram-se residentes não habituais em território português os sujeitos passivos que, tornando-se fiscalmente residentes nos termos dos nos 1 ou 2, não tenham sido residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores.

9 - O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos a partir do ano, inclusive, da sua inscrição como residente em território português.

10 - O sujeito passivo deve solicitar a inscrição como residente não habitual no ato da inscrição como residente em território português ou, posteriormente, até 31 de março, inclusive, do ano seguinte àquele em que se torne residente nesse território.

11 - O direito a ser tributado como residente não habitual em cada ano do período referido no n.º 9 depende de o sujeito passivo ser considerado residente em território português, em qualquer momento desse ano.

12 - O sujeito passivo que não tenha gozado do direito referido no número anterior em um ou mais anos do período referido no n.º 9 pode retomar o gozo do mesmo em qualquer dos anos remanescentes daquele período, a partir do ano, inclusive, em que volte a ser considerado residente em território português.”

31-E previa, o artigo 72.º, n.º 6 do CIRS, com a redação em vigor à data dos factos, o seguinte:

“6 - Os rendimentos líquidos das categorias A e B auferidos em atividades de elevado valor acrescentado, com carácter científico, artístico ou técnico, a definir em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, por residentes não habituais em território português, são tributados à taxa de 20 %”.

32-Certo é – como aliás sustenta a jurisprudência recente (cf. documento n.º 11) – que o RNH corresponde a um benefício fiscal automático, que opera quando as meras condições objetivas de residência e de tempo de permanência no exterior, imediatamente reconhecíveis pela AT, estão preenchidas, pelo que não se pode denegar a tributação ao abrigo desse estatuto quando se encontrem preenchidas aquelas condições.

33-Resulta, portanto, que o benefício do regime dos RNH depende apenas do preenchimento dos requisitos do n.º 8 do artigo 16.º do CIRS, e da inscrição como residente em território português, e não, a bem ver, da inscrição como residente não habitual.

34-A inscrição como residente não habitual prevista no n.º 10 do artigo 16.º do CIRS trata-se de uma mera obrigação declarativa, não sendo, por isso, constitutiva do direito à tributação naquela qualidade. Acresce que o Requerente efetuou o pagamento do imposto liquidado, solicitando a devolução do imposto liquidado por força da ilegalidade da liquidação do mesmo, acrescida de juros indemnizatórios.

 

Por seu turno a Requerida alegou em favor da sua posição o seguinte:

 

35- O A não comunicou à AT, a alteração de domicílio fiscal que alega, nos termos do n.º 3 do artigo 19º conjugado com o número 5 e 6, da Lei Geral Tributária (LGT). Não o fez à data que alega ter passado a residir fora de Portugal e não o fez até à presente data, o que poderia ter feito com efeitos retroativos, a fim de ser corrigido o cadastro para ser considerado não residente em território português desde 2013 conforme pretende.

36-No que respeita às declarações de rendimentos entregues, nos termos do artigo 57º n.º 1 do CIRS, verifica-se que em 2013 e 2015 foram entregues declarações de rendimentos Modelo 3 de IRS, como residente em Portugal, com agregado familiar constituído pelo sujeito passivo, pela cônjuge e por um dependente.

37-Conforme resulta da factualidade aduzida e atenta a causa de pedir subjacente aos autos o que está em causa é um pedido de reconhecimento do estatuto de residente não habitual para o ano de 2020.

38- Por exceção, alega a Requerida que a matéria controvertida nos presentes autos é relativa à não aplicação do regime previsto para os residentes não habituais, e, consequentemente à não tributação dos rendimentos do contribuinte à taxa de 20% prevista no n.º 10 do artigo 72.º do CIRS.

39-Em suma, a única causa de pedir respeita à sua não inscrição como residente não habitual e consequente não aplicação do respetivo regime fiscal de tributação em sede de IRS, pretendendo a correção do acto de liquidação por aplicação do regime dos residentes não habituais.

40-Em suma, do pedido de pronúncia arbitral (ppa) decorre, inequivocamente, que o Requerente pretende que o Tribunal Arbitral:

  • como questão prévia a decidir, ordene a inscrição do Requerente no registo de contribuintes da AT como residente não habitual com efeitos ao ano de 2020; e, consequentemente,
  • anule o ato tributário de liquidação de IRS.

41-Com efeito, sem aquele primeiro passo, sem que essa questão prévia seja decidida a seu favor pelo presente Tribunal, não há como imputar o vício de ilegalidade à liquidação de IRS contestada.

42-Ora, de acordo com a vontade expressa do legislador, no n.º 1 do artigo 2.º do RJAT «fixam-se, com rigor quais as matérias sobre as quais se pode pronunciar o tribunal arbitral» – conforme Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.

43- E o rigor dessa fixação exprime-se através da enunciação taxativa da competência desta jurisdição, a saber:

  • Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e pagamentos por conta, e
  • Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais.

44-No caso dos autos, o Requerente absteve-se de alegar o indeferimento tácito do pedido que deduziu - de inscrição no registo de contribuintes como residente não habitual.

45-Sabedor que é de que tal ato constitui um ato administrativo em matéria tributária que não comporta a apreciação da legalidade do ato de liquidação e que é, necessariamente, a ele estranho e dele independente.

45-Dele deveria reagir através de ação administrativa especial, nos termos do n.º 2 do artigo 97.º do CPPT.

46-Porém, o julgamento dessa questão prévia não comporta a apreciação da legalidade de nenhum ato concreto de liquidação de imposto.

47-Sendo, assim, o Tribunal Arbitral é incompetente em razão da matéria para apreciar o pedido de aplicação do regime jurídico-tributário dos residentes não habituais aos rendimentos auferidos pelo Requerente que se qualificarão, ou não, para o regime dos residentes não habituais.

48-A incompetência absoluta em razão da matéria configura uma exceção dilatória que obsta ao prosseguimento do processo, conducente à absolvição da instância quanto ao pedido respetivo, de acordo com o previsto nos artigos 576.º, n.º 2, 577.º, alínea a) e 278.º, n.º 1, alínea a) do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, alínea e) do RJAT.

49-Além disso a Requerida defendeu-se por impugnação, sendo que são duas as questões que importam resolver: a primeira, saber se o ato de inscrição constitui um ato meramente interlocutório do ato de liquidação de IRS e, a segunda, saber se estão cumpridos os requisitos para que o Requerente possa aproveitar do regime fiscal dos residentes não habituais (RFRNH).

50-Não tem razão o Requerente, conforme bem se fundamenta no acórdão n.º 718/2017 do Tribunal Constitucional, acórdão transitado em julgado, quanto à primeira questão.

51-Nota-se, a título prévio, que neste acórdão o Tribunal Constitucional teve a oportunidade de analisar questão idêntica à dos presentes autos, referente à liquidação de IRS de Requerente que, semelhantemente, escolheu a via arbitral para questionar este ato apresentando como fundamento único a sua não inscrição como residente não habitual (cf. processo n.º 514/2015- T), sustentando

o Tribunal Constitucional o seguinte:

«No que ao procedimento tributário para reconhecimento do estatuto do residente não habitual diz concretamente respeito, não parece estar em causa um procedimento complexo — no âmbito do qual se possa dizer que o ato de reconhecimento daquele estatuto constitui um mero ato preparatório do procedimento de liquidação do imposto —, mas antes dois procedimentos tributários autónomos.

É essa a conclusão para que aponta o regime fiscal para o residente não habitual, instituído pelo Decreto-Lei n.° 249/2009, de 23 de setembro, que aditou os n.°s 6 a 9 ao artigo 16.° do Código do IRS.

[…]

No caso de o pedido ser deferido - isto é, na hipótese de o sujeito passivo vir a ser considerado residente não habitual -, o mesmo adquire o direito a ser tributado como tal no período de 10 anos consecutivos, desde que em cada um desses 10 anos seja considerado residente para efeitos de IRS (cf. artigo 16.°, n.°s 7 e 8, do Código do IRS, na versão introduzida pelo Decreto-Lei n.° 249/2009, de 23.09, com correspondência nos n.°s 7 e 9.° do referido artigo 16.°, na redação resultante da Lei n.° 20/2012, de 14.05, e atualmente em vigor).

Do ponto de vista da autonomia do procedimento para reconhecimento do estatuto de residente não habitual relativamente ao procedimento de liquidação do imposto, o significado do deferimento do pedido não é despiciendo: em caso de reconhecimento daquele estatuto, o contribuinte adquire, no âmbito daquele procedimento, o direito a ser tributado como residente não habitual no período de 10 anos consecutivos, o que, perante a anualidade do procedimento de liquidação do imposto sobre os rendimentos singulares, não deixa de ser revelador da autonomia existente entre um e outro.

Do regime legal que acaba de expor-se parece, assim, extrair-se com segurança que o ato de deferimento/indeferimento do pedido de reconhecimento do estatuto do residente não habitual não integra, como ato preparatório, mesmo que destacável, o procedimento de liquidação do correspondente imposto - isto é, o procedimento tributário comum; antes constitui um verdadeiro ato tributário autónomo, “cuja ligação aos atos de liquidação de impostos não resulta de um pretenso caráter preparatório relativamente a estes, mas do facto de constitu[ir] um ato pressuposto, de modo que a liquidação dos impostos objeto do benefício fiscal não pode fazer-se sem ter em conta o correspondente ato beneficiador positivo, negativo ou extintivo” (cf. José Casalta Nabais, “A impugnação unitária do ato tributário”, in Cadernos de Justiça Tributária, n.° 11, Janeiro-Março, 2016, pp. 18 e 19, ainda que a propósito dos procedimentos de reconhecimento e extinção dos benefícios fiscais).

A relação entre os dois atos reside apenas na dependência que intercede entre o efeito produzido

  • o desagravamento do imposto — e a circunstância que lhe dá causa — o reconhecimento administrativo daquele estatuto —, não sendo tal conclusão, de resto, contrariada pelo disposto na alínea d) do n,° 1 do artigo 54.° da Lei Geral Tributária (doravante, «LGT»).»

52-Prosseguindo, então a sua análise, tendo por base a premissa exposta, entendeu o Tribunal Constitucional, quanto à alegada violação dos princípios constitucionais, em síntese, o seguinte:

«Do entendimento prevalecente tanto na doutrina como na jurisprudência em matéria de impugnabilidade dos atos relativos ao reconhecimento e extinção de benefícios fiscais, extrai-se, assim, que a norma cuja aplicação foi recusada pelo Tribunal a quo é, afinal, aquela que é ali tida por mais consonante com a natureza autónoma do ato pressuposto — no caso sub judicio, aquele que aprecia o pedido de reconhecimento do estatuto de residente não habitual. Constatação que, não deixando de contribuir para um melhor enquadramento da norma sob sindicância, não dispensa obviamente a verificação autónoma da respetiva constitucionalidade, em especial no confronto com os princípios da tutela jurisdicional efetiva e da justiça, expressamente invocados pelo Tribunal recorrido para fundamentar a recusa da sua aplicação ao caso sub judicie.

[…]

Ora, tendo tido o contribuinte ora recorrido plena possibilidade de reagir contenciosamente, nos termos que ficaram expostos, contra o ato de indeferimento do pedido de reconhecimento do benefício fiscal que apresentou, não se vê como a exclusão da possibilidade de invocação dos vícios deste em momento ulterior - isto é, no âmbito da impugnação da legalidade do ato de liquidação do imposto - possa violar o princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva.

Do ponto de vista da tutela jurisdicional efetiva, tal conclusão só poderia ser diferente se estivéssemos perante uma situação em que, por força do regime globalmente aplicável, o contribuinte não tivesse tido oportunidade processual de reagir contenciosamente contra o ato administrativo-tributário através do qual é definido o estatuto a considerar para efeitos de liquidação do imposto. […]

Não é essa, conforme se viu, a situação em causa nos presentes autos.

Nestes, trata-se tão-só da impossibilidade de o contribuinte que não impugne diretamente o ato de indeferimento do pedido de reconhecimento do estatuto fiscal pretendido o poder vir a fazer ainda a posteriori, em sede de impugnação do ato de liquidação do respetivo imposto, apesar de expirado o prazo legal para a invocação do vício relativo ao primeiro ato. Ou, dito de outro modo, apenas de (mais) uma concretização do princípio, comum a tantas outras soluções processuais, segundo o qual a não impugnação de um determinado ato dentro do prazo para o efeito fixado implica a respetiva consolidação na ordem jurídica, com consequente preclusão da faculdade de invocação dos vícios que lhe correspondam no âmbito da impugnação de um ato ulterior.”

53-Quanto à segunda questão que ora se impugna, alega o Requerente que ainda que não tenha efetuado o pedido de inscrição no prazo identificado no n.º 8 do artigo 16.º do Código do IRS, tal pedido de inscrição como residente não habitual tem uma natureza meramente declarativa, sendo tal benefício fiscal de cariz automático;

54-Assim, nos termos do n.º 6 do referido artigo 16.º do Código do IRS, na redação à data aplicável:

«Consideram-se residentes não habituais em território português os sujeitos passivos que, tornando-se fiscalmente residentes nos termos dos n.os 1 ou 2, não tenham sido residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores.»

55-Passando, com a alteração legislativa operada pelo Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de agosto, a ser ainda fixado no n.º 10 daquele artigo 16.º que:

«O sujeito passivo deve solicitar a inscrição como residente não habitual no ato da inscrição como residente em território português ou, posteriormente, até 31 de março, inclusive, do ano seguinte àquele em que se torne residente nesse território.»

56-Por relevante para a situação em discussão nos autos, note-se ainda que a redação do artigo 5.º, n.º 2, da Lei n.º 20/2012, de 14.05, que alterou o artigo 16.º do IRS, não deixa margem para dúvidas quanto à natureza perentória do prazo fixado no artigo 16.º, n.º 8 do Código do IRS (atual nº 10 acima citado), dado que estabelece o seguinte:

«2 - O novo prazo previsto no n.º 8 do artigo 16º do Código do IRS não é aplicável aos sujeitos passivos que se tenham tornado residentes em território português até 31 de dezembro de 2011 e tenham solicitado, até à data de entrada em vigor da presente lei, a inscrição como residente não habitual nos termos da redação anterior daquela disposição, o qual não previa qualquer limite temporal para a apresentação deste pedido.»

57-Pelo que, importa notar que, onde antes não existia limite temporal para apresentar o pedido, passou a existir um prazo, contado a partir da data em que os sujeitos passivos se tornem residentes em território Português, e, cujo incumprimento, faz precludir o direito.

49-Assim, importa concluir que estamos perante um benefício fiscal, sujeito a reconhecimento, tendo o prazo fixado natureza perentória, de cujo exercício tempestivo, depende o direito, sob pena de caducidade do mesmo, nos termos do artigo 16º do CIRS, concluindo a Requerida pela improcedência do pedido do Requerente.

 

II- DECISÃO

 

II-MATÉRIA DE FACTO

FACTOS PROVADOS

  1. O Requerente demonstra por documentação junta aos autos que residiu fora de Portugal nos anos de 2013 a 2020 (até fevereiro), ou seja, esteve mais de cinco anos sem residir em Portugal, tendo exercido funções como diretor do resort ... Mar, nas Bahamas, desde julho de 2013 a junho de 2016 e, subsequentemente, foi diretor do resort ... Beach Club, no México.
  2. Em fevereiro de 2020, regressou a Portugal para abraçar novo projeto profissional;
  3. Em 2020-04-16, requereu perante a AT a aplicação do estatuto de RNH.
  4. Em 2010-06-24 foi notificado de projeto de indeferimento do seu requerimento, o qual, contudo, nunca veio a ter despacho definitivo até à propositura de pedido de pronúncia arbitral (ppa).
  5. A AT, no referido projeto de indeferimento fundou a sua intenção de indeferir o pedido com fundamento em que o Requerente estar cadastrado nesses anos como residente em território nacional.
  6.  A AT procedeu à liquidação do tributo (IRS 2020) com termo do prazo de pagamento em 2021-08-31, pagamento que o Requerente efetuou em 2021-09-27, não levando aquela, na sua liquidação, em linha de conta a aplicação da taxa de 20% resultante do estatuto de RNH.

 

FACTOS QUE NÃO SE CONSIDERAM PROVADOS

Não existem quaisquer outros factos com relevância para a decisão arbitral que não tenham sido dados como provados.

 

FUDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO QUE SE CONSIDERA PROVADA

Os factos provados integram matéria não contestada e documentalmente comprovada nos autos por documentos juntos pelas Partes.

 

MATÉRIA DE DIREITO

 

1- Conforme descrito no relatório na parte relativa aos argumentos de Requerente e Requerida e nos factos dados como provados, o Requerente, até ao momento da propositura desta impugnação, viu-se unicamente confrontado com um projeto de decisão, a que o mesmo respondeu na audiência prévia, de denegação do pedido de inscrição como RNH no cadastro da AT.

2-O único ato tributário praticado pela AT foi a liquidação do IRS relativo a 2020 sem a assunção dos benefícios fiscais relativos ao estatuto de RNH, mas, como se disse, sem que haja tomado posição definitiva sobre se o pedido de inscrição como RNH foi deferido ou indeferido e porquê.

3-Tal como descrito no relatório (número 51), também seguimos a douta jurisprudência do Tribunal Constitucional e dos tribunais superiores, designadamente, do Supremo Tribunal Administrativo que entendem que o ato que indefira o reconhecimento como RNH  é atacável contenciosamente através de ação administrativa, não sendo uma faculdade, mas um ónus do contribuinte fazê-lo, não podendo efetuá-lo no âmbito da liquidação do tributo.

4-Todavia, a verdade é que, no caso vertente, ao contrário da matéria de facto subjacente ao Acórdão nº 718/2017, não houve decisão expressa da AT sobre se era ou não de reconhecer o estatuto de RNH, pelo que o contribuinte não tinha ato tributário de indeferimento do benefício fiscal do qual pudesse recorrer. É certo, como diz a AT, que ao fim de quatro meses sem resposta por parte desta, nos termos do artigo 57º, nº 5 da LGT, se formou o ato tácito de indeferimento, mas como é bem sabido e toda a doutrina e jurisprudência o afirmam, esse é um direito que assiste ao contribuinte exercer, caso assim o entenda, não sendo obrigado a fazê-lo, podendo esperar pelo despacho expresso até porque pode querer ver qual é, a final, o entendimento da AT, não perdendo o direito a, de tal indeferimento, poder recorrer hierárquica ou contenciosamente, se assim o entender. O não aproveitamento da ficção do indeferimento tácito em nada belisca o direito a aguardar a decisão final e será desta que o contribuinte irá adotar os procedimentos administrativos ou jurisdicionais que tiver por convenientes, conforme se salienta na Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada da autoria de Diogo Leite de Campos, Benjamim Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, 4ª edição, 2012, Lisboa, pgs. 483 e 484 (entre diversos outros Autores que poderiam citar-se).

5-Por consequência, ao contrário do que foi objeto de pronúncia pelo TC no Acórdão antes mencionado (onde tinha havido um indeferimento do estatuto de RNH), não se verificou um indeferimento expresso da concessão do estatuto de RNH, sendo que o único ato efetivo da AT foi a liquidação do IRS não considerando o benefício fiscal relativo ao estatuto de RNH. Ora, salvo melhor opinião, deste ato de liquidação nasceu o direito para o contribuinte de o pôr em causa, através da impugnação efetuada, a qual poderia ser interposta num tribunal dito togado ou, como foi o caso, no tribunal arbitral.

6-Não acompanhamos, em consequência, neste particular o entendimento da AT invocando a pretensa exceção que resultaria de o tribunal arbitral estar a ultrapassar as competências que lhe são cominadas por lei, designadamente, discutir a atribuição do estatuto de RNH que originou a liquidação sub judice, não ficando vedado ao tribunal arbitral pronunciar-se sobre a liquidação do tributo e, consequentemente, da fundamentação que levou a tal ato de liquidação, acompanhando, nesta parte, o que se diz no processo nº 188/2020-T do CAAD (entre diversos outros),  onde se diz que no caso em apreço, o Requerente impugnou os atos de liquidação, os quais tiveram por base, entre outros pressupostos, o não enquadramento do Requerente no regime de residente não habitual.(B.a. da decisão).

7-Dito isto, entendemos, ainda, que a Requerida não tem razão na sua argumentação quanto à questão de que o pedido tem efeitos meramente declarativos e a sua não apresentação dentro do prazo estipulado pelo artigo 16º do CIRS (que nos escusamos de transcrever de novo, remetendo para o ponto número 30 do relatório). Em primeiro lugar, pese embora por razões de vício formal o Requerente não ter corrigido a sua situação no cadastro fiscal, a verdade é que demonstra, como ficou descrito nos factos provados, que foi residente no estrangeiro de 2015 a 2019 Ora, o Requerente tinha até 31 de março de 2020 para requerer o estatuto de RNH. Mas mesmo que o prazo tivesse sido ultrapassado, à data legal dos factos, a tributação de acordo com o regime de RNH dependia do preenchimento de dois pressupostos cumulativos:

  1. Que se torne fiscalmente residente em território português, de acordo com qualquer dos critérios estabelecidos nos nº’s 1 ou 2 do artigo 16º do CIRS no ano relativamente ao qual pretende que tenha início a tributação como RNH;
  2. Que não tenha sido considerado residente em território português em qualquer dos 5 anos anteriores ao ano relativamente ao qual pretende que tenha início a tributação como RNH.

8-Resulta que o benefício fiscal dos RNH depende apenas do preenchimento dos requisitos do nº 8 do artigo 16º do CIRS E DA INSCRIÇÃO COMO RESIDENTE NO TERRITÓRIO PORTUGUÊS ( e não como RNH), pelo que tal inscrição tem caráter meramente declarativo e não constitutivo, mesmo que os prazos para o fazer não hajam sido cumpridos .Ora, a verdade é que em termos de verdade material, o Requerente foi não residente em território nacional por um período de 5 anos antes do pedido de ser considerado como RNH e passou a ser inequivocamente residente em território português para efeitos fiscais, desde fevereiro de 2020.

Quanto ao pedido de juros indemnizatórios por parte do Requerente, ao abrigo do artigo 43º da LGT, os mesmos são devidos já que são imputáveis a erro dos serviços, mormente na interpretação dada à matéria sob apreciação, a saber que o Tribunal Arbitral não era competente para apreciar a causa e que, no caso vertente, ao ação de impugnação não era o meio apropriado para o Requerente fazer valer os seus direitos na ausência de decisão imputável à AT quanto à concessão ou não do estatuto de RNH, além de que este tem efeito meramente declaratório e não é constitutivo do direito em causa.

9- Aliás, acrescente-se que o Tribunal instou as partes a dizerem se já havia ocorrido a pronúncia definitiva, a qual só ocorreu em 2022-03-15, comunicada ao Requerente por ofício datado de 2022-03-21 e foi no sentido de negar o estatuto de RNH ao sujeito passivo. Todavia, a liquidação efetuada pela AT tinha como termo do prazo voluntário do imposto supostamente devido a data de 2021-08-31 e o ppa foi entregue em 2021-11-25 e é, pois, à luz destes factos e respetivo enquadramento que o Tribunal formulou o seu juízo.

 

DECISÃO:

 

Em conformidade, o Tribunal declara que assiste razão ao Requerente na justa medida em que deve ser considerado o benefício fiscal do RNH pelo que:

 

  1. Deve ser dado provimento nesta parte ao pedido do Requerente, pelo que o imposto a mais liquidado, por não ter sido considerado o estatuto de RNH desde 2020, deverá ser devolvido pela Requerida ao Requerente;
  2. Os juros indemnizatórios a que o Requerente tem direito deverão ser calculados e pagos com base no pressuposto da alínea anterior, ou seja, na parte relativa ao imposto a mais liquidado pela AT;
  3. As custas são devidas pela Requerida.

 

VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em 44.271,20€, nos termos do artigo 97º-A do CPPT, aplicável por força do disposto no artigo 29º, nº 1 alínea a) do RJAT e do artigo 3º, nº2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

CUSTAS

 

Custas a suportar pela Requerida no montante de 2.142,00€, de acordo com o artigo 22º, nº 4 do RJAT e da Tabela I anexa ao RPAT.

 

Notifique.

 

Lisboa, 9 de janeiro de 2023.

 

O árbitro singular

 

 

Vasco Valdez