Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 393/2022-T
Data da decisão: 2023-01-04  IRC  
Valor do pedido: € 97.399,23
Tema: IRC – artigos 23.º e 63.º - dedutibilidade dos custos. Financiamento.
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Sumário

I – Não sendo possível provar a existência de qualquer conexão com a actividade empresarial, um financiamento não pode ser considerado justificado à luz e para os efeitos previstos no artigo 23.º do CIRC.

II - Estando provado que os financiamentos foram prestados a entidades que contribuem para a obtenção dos rendimentos ou para a manutenção da sua fonte produtora e verificado, portanto, o cumprimento do disposto no artigo 23.º do CIRC, a apreciação do valor dos juros cobrados deverá ser realizada à luz do artigo 63.º do CIRC face às relações especiais existentes entre as entidades, e não de acordo com o artigo 23.º do CIRC.

 

DECISÃO ARBITRAL

Os árbitros Professor Nuno Cunha Rodrigues (Árbitro-presidente), Dra. Sofia Jorge Gonçalves Xavier e Dr. Gonçalo Marquês de Menezes Estanque (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 05-09-2022, acordam no seguinte:

I. RELATÓRIO:

1. A..., S.A., registada sob o NIPC..., com sede na Rua..., ...-... ... (doravante "A..." ou Requerente) apresentou, em 27/06/2022, um pedido de constituição do tribunal arbitral, nos termos dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em conjugação com a alínea a) do art.º 99.º do CPPT, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada apenas por Requerida ou AT).

2. A Requerente pede a declaração de ilegalidade e consequente anulação do indeferimento expresso do recurso hierárquico interposto da decisão de indeferimento da reclamação graciosa deduzida pela Requerente sobre a liquidação adicional de IRC emitida sob o n.º 2018..., e os respectivos juros compensatórios, consubstanciados na demonstração de acerto de contas com o n.º 2018 ... .

3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD a 28-06-2022 e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nessa mesma data.

4. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como membros do tribunal arbitral coletivo os árbitros acima referidos, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

5. Em 16-08-2022 foram as Partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

6. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral foi constituído em 05-09-2022.

7. Por despacho arbitral de 11 de outubro de 2022 foi marcada para o dia 3 de novembro de 2022 a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, na qual se procedeu à inquirição das testemunhas indicadas pela Requerente.

8. No dia da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT a Requerente e a Requerida foram notificadas para, por esta ordem e de modo sucessivo, apresentarem alegações escritas no prazo de 10 dias.

9. Foi designado o dia 16-01-2023 para a emissão da decisão arbitral.

10. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente.

11 As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

12. O processo não enferma de nulidades.

 

II. DO PEDIDO DA REQUERENTE:

A Requerente solicita a declaração de ilegalidade e consequente anulação do indeferimento expresso do recurso hierárquico interposto da decisão de indeferimento da reclamação graciosa deduzida pela Requerente sobre a liquidação adicional de IRC emitida sob o n.º 2018..., e os respectivos juros compensatórios, consubstanciados na demonstração de acerto de contas com o n.º 2018... .

Em síntese, entende a Requerente que, estando em causa a aplicação do disposto no artigo 23.º do CIRC, resulta provada a legalidade dos gastos incorridos e da sua dedutibilidade.

 

III. DA RESPOSTA DA REQUERIDA AT:

Em resposta, a Requerida AT invocou que a fundamentação da correcção controvertida decorre do facto de a Requerente ter deduzido ao seu lucro tributável encargos suportados com financiamentos que não têm abrigo no âmbito do disposto no art.º 23º do CIRC.

 

IV. MATÉRIA DE FACTO:

A. Factos provados

Consideram-se provados os seguintes factos:

  1. A Requerente, desde a sua constituição, centra a actividade na indústria têxtil, dedicando-se especialmente à confecção de outro vestuário exterior em série gerindo, de forma complementar, participações sociais.
  2. Em 2008, a Requerente entrou no capital da C... Lda. (doravante, C...), passando a deter uma participação corresponde a 16,66% do capital social.
  3. A C... tem por objeto a construção de edifícios e a compra de bens imóveis.
  4. No ano de 2008 a Requerente acordou conceder financiamento à C... .
  5. Nos termos do contrato de financiamento celebrado, o pagamento de juros foi definido nos seguintes termos:

 

  1. A Requerente e a C... tinham o mesmo sócio maioritário.
  2. De acordo com o acima exposto, a Requerente a e C... são consideradas entidades relacionadas ao abrigo das alíneas a) e b) do n.º 4 do art.º 63.º do CIRC.
  3. A Requerente foi objeto de uma ação de inspeção, de âmbito geral, incidente sobre o período Tributário de 2014, ao abrigo da ordem de serviço nº OI2017..., de onde resultou, entre outras, a correção à matéria coletável de IRC (cfr. Relatório Final de Inspeção Tributária junto com o processo administrativo, cujo teor se dá como reproduzido);
  4. Em resultado da referida inspeção foi desconsiderado no apuramento do lucro tributável de gastos de financiamento contabilizados, o montante apurado de € 366 343,70, com fundamento no não cumprimento dos critérios definidos no artigo 23º do CIRC, necessários à elegibilidade dos mesmos como gasto para efeitos fiscais;
  5. A par da correção supra referida foi apurado imposto de selo devido, no montante de € 5 843,41, que para efeitos de IRC resultou numa correção ao resultado tributável favorável à Requerente, a título de gastos fiscais a considerar, no mesmo montante;
  6. Do cômputo das duas correções resultou um acréscimo ao resultado tributável declarado para efeitos de IRC no montante de € 360 500,29;
  7. A Requerente suportou no período em análise - 2014 - encargos financeiros com a contratação de diversas formas de financiamento, contabilizados nas contas 68 – outros gastos e perdas e 69 – gastos e perdas de financiamento, que apresentam saldos no final do exercício nos seguintes montantes:

 

  1. Os empréstimos concedidos totalizaram € 6.170.230,40, nos seguintes termos:

 

  1. Dos cálculos efetuados pela AT resultou o apuramento de um «valor médio de financiamento do exercício de 2014 que ascendeu a € 9.146.198,96, a que correspondem encargos no montante de € 551.731,78», o apuramento de uma «taxa dos encargos suportados [que] ascende[u] a 6,03% (€ 551.731,78 / € 9.146.198,96)» e o apuramento de um saldo médio anual de empréstimos concedidos que ascendeu a € 6 075 351,58.
  2. No seguimento, apurada a taxa média dos encargos suportados e aplicada a mesma sobre o saldo médio anual dos empréstimos concedidos obteve-se um valor de encargos financeiros correspondentes que se cifrou no montante de € 366 343,70, conforme quadro abaixo:

 

  1. A atividade principal da sociedade B... SGPS, SA, que foi financiada pela Requerente nos mesmos termos que a C..., consiste na gestão de participações sociais, tendo como atividade secundária outras atividades de consultadoria para os negócios e a gestão;
  2. A sociedade B... SGPS, SA detém uma participação de 35% no capital da Requerente, possuindo 8.750 ações (entidades relacionadas ao abrigo do disposto na alínea a) do número 4 do art.º 63º do CIRC);
  3. Os financiamentos concedidos pela Requerente à B..., SGPS e à C... visaram salvaguardar a posição global do grupo perante a banca e assegurar um investimento para reforço dos capitais próprios da Requerente;
  4. A Requerente concedeu um financiamento à D... e a E..., nos valores referidos no quadro supra constante do parágrafo 12;
  5. E... é Diretor-Geral da fábrica da Requerente e é, também, irmão do administrador único da sociedade, bem como, administrador único da B... SGPS, SA (a qual, conforme referido no parágrafo 16, detém uma participação social de 35% no capital da Requerente). Assim, E... é relacionado da Requerente ao abrigo da alínea d) do n.º 4 do art.º 63.º do CIRC.    

 

B. Factos não provados

Não foi dado como provado que exista uma relação directa entre os financiamentos obtidos pela Requerente e aqueles que foram concedidos pela Requerente à B..., SGPS, D...  e E... .

Não foi dado como provado que, entre a Requerente e a D..., S.A, existam quaisquer tipo de relações especiais, para efeitos do disposto no artigo 63.º do CIRC.

Não se provaram outros factos com relevância para a decisão arbitral.

 

C. Fundamentação da matéria de facto

A matéria de facto dada como provada assenta na prova documental e testemunhal apresentada.

Os factos dados como provados são aqueles que o Tribunal considera relevantes, não se considerando factualidade dada como não provada que tenha interesse para a decisão.

A matéria de facto foi fixada por este Tribunal e a convicção ficou formada com base nas peças processuais apresentadas pelas Partes, bem como nos documentos juntos aos autos.

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor, conforme n.º 1 do artigo 596.º e n.ºs 2 a 4 do artigo 607.º, ambos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi das alíneas a) e e) do n.º do artigo 29.º do RJAT e consignar se a considera provada ou não provada, conforme n.º 2 do artigo 123.º Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a decisão, em relação às provas produzidas, na íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme n.º 5 do artigo 607.º do CPC.

Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g. força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371.º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.

Foram ainda considerados os prestados pelas seguintes testemunhas arroladas pela Requerente:

  1. F..., economista, Diretor financeiro da Requerente, que corroborou, na essencialidade, os factos invocados pela Requerente, tendo-o feito de forma objetiva, isenta e revelando conhecimento direto dos factos, pelo que o depoimento mereceu credibilidade;
  2. G..., contabilista certificado, que corroborou, na essencialidade, os factos invocados pela Requerente, tendo-o feito de forma objetiva, isenta e revelando conhecimento direto dos factos, pelo que o depoimento mereceu credibilidade;

V. DO DIREITO:

A questão decidenda nos presentes autos visa, essencialmente, determinar se uma parte dos encargos suportados pela Requerente, em 2014, com financiamentos bancários, carece de justificação à luz do artigo 23.º do Código do IRC.

Segundo a AT, estes gastos não configuram gastos fiscais nos termos do disposto no artigo 23.º do CIRC, na medida em que foram incorridos pela Requerente na obtenção de financiamento que se destinou a financiar entidades terceiras, sem que tivesse sido obtida qualquer remuneração em contrapartida.

De forma diversa, no entender da Requerente, a decisão de aportar fundos às entidades em causa teve subjacente motivações empresariais próprias da Requerente, que visaram evitar o agravamento da situação económico-financeira destas entidades, com a diminuição do valor do seu investimento e das probabilidades de o recuperar.

Assim, e em face da prova produzida e dos factos daí assentes, resulta evidente, para a Requerente, a legalidade dos gastos incorridos e da sua dedutibilidade, mormente ao abrigo do invocado artigo 23.º do CIRC. Acresce que, para a Requerente, a correção fiscal teria de ser efetuada nos termos do artigo 63.º do CIRC e não de acordo com o artigo 23.º do mesmo Código.

Vejamos.

Está em causa uma situação em que uma sociedade – a Requerente – emprestou dinheiro a outras entidades, a uma taxa de juro inexistente. Sendo que, no caso específico do empréstimo concedido à C... a taxa de juro era inexistente até determinado período findo o qual – quando os resultados transitados fossem superiores a 200.000€ -, seriam debitados juros à taxa Euribor 12M + 2% de spread (o que poderá ser entendido como um período de carência).

Assim, estão em causa os financiamentos concedidos pela Requerente a três categorias de entidades distintas.

Assim, numa primeira categoria insere-se:

  1. O financiamento feito a uma sociedade-filha – a C...– onde a Requerente detinha 16,66% do capital social. Ambas as entidades tinham o mesmo sócio maioritário  (a qual é relacionada da Requerente de acordo com as alíneas a) e b) do n.º 4 do art.º 63º do CIRC).

Numa segunda categoria insere-se:

  1. O financiamento feito a uma sociedade-mãe – a B... SGPS– que detinha 35% do capital social da Requerente (entidade relacionada da Requerente ao abrigo da alínea a) do n.º 4 do art.º 63º do CIRC).
  2. O financiamento concedido a E..., o qual era Diretor Geral da fábrica da Requerente e irmão do administrador único da Requerente e, também, administrador único da B... SGPS, SA (relacionado da Requerente nos termos da alínea d) do n.º 4 do art.º 63º do CIRC.

Por fim, numa terceira categoria, financiado pela Requerente, insere-se:

  1. O financiamento concedido à D..., relativamente à qual não foi dado como provado que a Requerente detivesse alguma participação social nem que fosse detida qualquer participação no capital social da Requerente por esta entidade;

 

Note-se, porém, que a AT não coloca em crise os financiamentos concedidos mas, isso sim, a dedutibilidade dos gastos de financiamento incorridos pela Requerente num contexto onde esta concede, igualmente, financiamentos a título gratuito.

 

No caso do financiamento concedido à C..., refere a AT que existe uma relação entre os financiamentos incorridos pela Requerente e o financiamento concedido à C..., porquanto “decorre do clausulado do contrato de financiamento celebrado entre a A... e a C... (ver anexo n.º 9), essa opção de financiamento tem como consequência a transferência de encargos financeiros da C... para a A..., dado que os encargos bancários antes suportados pela C... passaram a ser suportados pela A...” (Relatório Final de Inspeção, pág. 23)[1].

 

No entanto, relativamente aos financiamentos concedidos à restantes entidades a AT considera que, apesar de não ser “possível estabelecer no exercício em análise uma ligação direta entre financiamentos obtidos e financiamentos concedidos a título gratuito, é certo, contudo, QUE SE NÃO EXISTISSEM ESTES ÚLTIMOS, AS NECESSIDADES DE FINANCIAMENTO SERIAM BEM MENORES, BEM COMO OS ENCARGOS FINANCEIROS SUPORTADOS” (negrito, sublinhado e maiúsculas constantes do Relatório Final de Inspeção, pág. 22).

 

V.1 DO FINANCIAMENTO CONCEDIDO À C...:

Feita esta clarificação, o caso sub judice deve ser analisado, prima facie, à luz do disposto no artigo 23.º do CIRC, que dispõe da seguinte forma:

«Artigo 23.º

Gastos e perdas

1 - Para a determinação do lucro tributável, são dedutíveis todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC.

2 - Consideram-se abrangidos pelo número anterior, nomeadamente, os seguintes gastos e perdas:

(…)

c) De natureza financeira, tais como juros de capitais alheios aplicados na exploração, descontos, ágios, transferências, diferenças de câmbio, gastos com operações de crédito, cobrança de dívidas e emissão de obrigações e outros títulos, prémios de reembolso e os resultantes da aplicação do método do juro efectivo aos instrumentos financeiros valorizados pelo custo amortizado;

(…)

3 - Os gastos dedutíveis nos termos dos números anteriores devem estar comprovados documentalmente, independentemente da natureza ou suporte dos documentos utilizados para esse efeito.

 

A propósito do artigo 23.º do CIRC e do respetivo enquadramento teórico, recorde-se o afirmado no processo n.º 305/2021-T, que aqui acompanhamos e seguimos:

Na redação resultante da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, com efeitos desde 1 de Janeiro de 2014, e aplicável aos períodos de tributação em análise, o n.º 1 desse preceito passou a dispor que “para a determinação do lucro tributável, são dedutíveis todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC”, especificando o n.º 2, a título exemplificativo, os gastos e perdas que se encontram abrangidos por essa cláusula geral, e entre os quais se contam os “gastos de natureza financeira, tais como juros de capitais alheio aplicados na exploração”, a que se refere agora à alínea c) do n.º 2.

Tem-se como assente e constitui entendimento jurisprudencial firme que da noção legal de custo fornecida pelo artigo 23.º do Código de IRC não resulta que a Administração Tributária possa pôr em causa o princípio da liberdade de gestão, sindicando a bondade e oportunidade das decisões económicas da gestão da empresa e considerando que apenas podem ser assumidos fiscalmente aqueles de que decorram diretamente proveitos para a empresa ou que se revelem convenientes para a empresa (cfr. acórdão do TCA Sul de 6 de outubro de 2009, Processo 03022/09 e, em idêntico sentido, acórdão do TCA Norte, de 12 de janeiro de 2012, Processo 00624/05).

Em síntese conclusiva, deve entender-se que a actividade empresarial que gere custos dedutíveis há de ser aquela que se traduza em operações que tenham um propósito (e não um obrigatório nexo de causalidade imediata) de obtenção de rendimento ou a finalidade de manter o potencial de uma fonte produtora de rendimento. Nesse sentido, a actividade produtiva não deverá ser entendida em sentido restritivo, mas sim em sentido amplo, significando actividade relacionada com uma fonte produtora de rendimento da entidade que suporta os gastos. Ao buscar-se o sentido do conceito de actividade das empresas, ele não pode circunscrever-se a meras ou simples operações de produção de bens ou serviços, mas pressupõe uma relação com as operações económicas globais de exploração ou com as operações ou actos de gestão que se insiram no interesse próprio da entidade que assume os custos (cfr. neste sentido, o acórdão arbitral proferido no Processo n.º 480/2016).

É nesse âmbito compreensivo que se enquadra a nova redação introduzida pela Lei n.º 2/2014, que, visando implementar um maior grau de certeza na aplicação concreta dos critérios de dedutibilidade, passou a consagrar como princípio geral que são dedutíveis os gastos relacionados com actividade do sujeito passivo por este incorridos ou suportados, reforçando a ideia de que basta a conexão com a actividade empresarial, independentemente da efectiva contribuição para os rendimentos sujeitos a imposto (cfr. Relatório Final da Comissão para a Reforma do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, 30 de junho de 2013).”

 

Feito este breve excurso, no caso sub judice procura-se saber se os gastos com financiamentos incorridos  pela Requerente configuram, ou não, gastos fiscais nos termos do disposto no artigo 23.º do CIRC.      

Como vimos, o princípio geral previsto no artigo 23.º do CIRC determina que sejam dedutíveis os gastos relacionados com actividade do sujeito passivo por este incorridos ou suportados, bastando a conexão com a actividade empresarial, independentemente da efectiva contribuição para os rendimentos sujeitos a imposto.

Ora relativamente à primeira categoria de entidades acima descrito ficou claro que está em causa financiamento realizado a uma entidade relacionada com a Requerente (nos termos das alíneas a) e b) do n.º 4 do artigo 63.º do CIRC), não podendo deixar de se considerar que, como tal, são uma das fontes produtoras de rendimentos da Requerente.

Aqueles financiamentos contribuíram, assim, «para a obtenção dos seus rendimentos ou para a manutenção da sua fonte produtora», sendo do interesse da Requerente a realização daqueles financiamentos numa lógica de grupo empresarial que visou salvaguardar a posição global do grupo perante a banca e assegurar um investimento para reforço dos capitais próprios da Requerente.

Aqui chegados, note-se que, para a Requerida, estamos perante um suposto financiamento gratuito destas empresas, analisado apenas relativamente ao ano de 2014 que, entende, os juros suportados pela Requerente nos financiamentos obtidos para conceder posteriormente à entidade acima especificada não são admissíveis à luz do artigo 23.º do CIRC.

Para a Requerida, o que estaria em causa é saber, à luz do consignado no art.º 23.º do CIRC, se os encargos comprovadamente incorridos com financiamentos remunerados obtidos pela Requerente junto de terceiros, e por diversas modalidades, são dedutíveis na sua esfera jurídica para efeitos de determinação do seu lucro tributável quando a Requerente concede, igualmente, financiamentos ainda que a sociedades relacionadas, a título gratuito, não sendo a Requerente uma sociedade gestora de participações sociais. (sublinhado nosso)

Adicionalmente, conforme se refere na Decisão Arbitral n.º 695/2015-T “O financiamento provindo da participante será feito no interesse desta caso sirva para que daí decorra uma expectativa de rendimentos futuros dele diretamente decorrentes. Ou, ainda, que tais fundos contribuam para manter BETA em funcionamento, isto é, permitindo manter ou sustentar o ativo financeiro da participante como elemento patrimonial de que se esperam vantagens, ainda que futuras e não imediatamente quantificáveis. Isto independentemente do juro cobrado ser nulo ou positivo”.

Mais ainda, ficou provado que o financiamento em apreço - concedido pela Requerente à C...- não era gratuito, conforme resulta do contrato de financiamento, que determina o pagamento de juros ao fim de um dado período (período de carência). Porém, independentemente da gratuidade ou não do financiamento, estando provado que estes financiamentos foram prestados a entidades que contribuem «para a obtenção dos seus rendimentos ou para a manutenção da sua fonte produtora e verificado, portanto, o cumprimento do disposto no artigo 23.º do CIRC, a apreciação do valor dos juros cobrados a estas duas entidades deveria ser realizada à luz do artigo 63.º do CIRC face às relações especiais existentes entre a Requerente e o primeiro grupo de sociedades e não de acordo com o artigo 23.º do CIRC.

V.2 DOS FINANCIAMENTOS CONCEDIDOS À B... SGPS E A E...:

Ficou, todavia, por apurar a relação entre os financiamentos incorridos pela Requerente e aqueles concedidos à segunda categoria de entidades. Recorde-se que é a própria AT que reconhece não ser “possível estabelecer no exercício em análise uma ligação direta entre financiamentos obtidos e financiamentos concedidos a título gratuito, é certo, contudo, QUE SE NÃO EXISTISSEM ESTES ÚLTIMOS, AS NECESSIDADES DE FINANCIAMENTO SERIAM BEM MENORES, BEM COMO OS ENCARGOS FINANCEIROS SUPORTADOS” (negrito, sublinhado e maiúsculas constantes do Relatório Final de Inspeção, pág. 22).

Assim, a não verificação de que os financiamentos obtidos pela Requerente, os quais geraram os encargos financeiros corrigidos pela AT, foram utilizados no financiamento gratuito das entidades supra referidas, por si só, determina a ilegalidade da correção efetuada pela AT.

Não obstante, conforme se referiu anteriormente, esta segunda categoria de entidades inclui partes relacionadas para efeitos do artigo 63.º do CIRC. Por esta razão, pretendendo a AT questionar os termos e condições associados a estes financiamentos, deveria ter-se socorrido do artigo 63.º do CIRC face às relações especiais existentes entre a Requerente e a segunda categoria de entidades.

V.3 DO FINANCIAMENTO CONCEDIDO À D...:

Ficou, todavia, por apurar a existência de relações especiais entre a Requerente e a D... . A Requerente não tem, com aquela entidade, quaisquer relações especiais tendo assinalado, apenas, um suposto “interesse de grupo” para financiar aquela entidade.

A este propósito observe-se que, como reconhece o Supremo Tribunal Administrativo no acórdão proferido a 29-03-2006, processo n.º 01236/05, “a Administração só pode excluir gastos não diretamente afastados pela lei debaixo de uma forte motivação que convença de que eles foram incorridos para além do objectivo social, ou seja, na prossecução de outro interesse que não o empresarial, ou, ao menos, com nítido excesso, desviante, face às necessidades e capacidades objectivas da empresa.”

Continuando na mesma linha de raciocínio cite-se o acórdão emitido no processo 191/2019, do CAAD:

“O art. 23.º do CIRC limita o seu raio de ação à não dedução fiscal dos gastos assim contabilizados, mas que, quando contraídos (ou os investimentos efetuados) não se inserem no interesse económico da Sociedade, mas servem interesses extra societários, dos administradores ou de terceiros. Suponhamos que uma Sociedade suporta os juros de um financiamento por si contraído para efetuar um investimento apenas em benefício privado de um sócio ou administrador (e isso não é reconduzido a um rendimento em espécie da pessoa singular). Ou que se financia na banca para entregar essa quantia financeira a terceiro, sem qualquer contrapartida, fora do grupo ou fora do seu objeto social. Nesses casos, os juros que vier a suportar com esses fundos não são fiscalmente dedutíveis porque não foram (ab initio e para sempre) aplicados na exploração da Sociedade.”

Não tendo sido possível provar a existência de qualquer conexão entre os financiamentos obtidos pela Requerente e o financiamento concedido a esta entidade não pode considerar-se justificada a correção efetuada pela AT à luz e para os efeitos previstos no artigo 23.º do CIRC.

Nestes termos, e nos demais de direito, deve o presente pedido arbitral ser considerado totalmente procedente.

VI. DECISÃO:

Nestes termos, decide o Tribunal Arbitral:

  1. Julgar totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral;
  2. Anular a decisão de indeferimento expresso do recurso hierárquico interposto da decisão de indeferimento da reclamação graciosa deduzida pela Requerente sobre a liquidação adicional de IRC emitida sob o n.º 2018..., e os respectivos juros compensatórios, consubstanciados na demonstração de acerto de contas com o n.º 2018... no valor de €97.399,23;
  3. Condenar a Requerida nas custas do processo.

 

VII. VALOR DO PROCESSO:

De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 97.399,23 (noventa e sete mil trezentos e noventa e nove euros e vinte e três cêntimos).

 

VIII. CUSTAS:

Nos termos do n.º 4 do artigo 22.º do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 2.754,00 (dois mil setecentos e cinquenta e quatro euros), nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, totalmente a cargo da Requerida.

 

Registe-se e notifique-se.

 

Lisboa, 4 de janeiro de 2023

Os Árbitros

 

(Nuno Cunha Rodrigues (Presidente e relator))

 

 

(Sofia Xavier)

 

 

(Gonçalo Estanque)



[1] Refere-se a AT ao facto do invocado Contrato de Financiamento, no seu Considerando 6, referir que “A A... e o seu accionista de referência têm actualmente uma credibilidade bancária que permite a contração de financiamento para a primeira em condições muito vantajosas”.