Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 259/2022-T
Data da decisão: 2023-01-06  IVA  
Valor do pedido: € 400.828,74
Tema: IVA - Locação financeira. Pro rata. Direito à dedução. Ofício Circulado da Área de Gestão Tributária do IVA n.º 30108, de 30/1/2009.
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Sumário:

      I.          Nos termos do disposto no artigo 23.º, n.º 2, do CIVA, conjugado com a alínea b) do seu n.º 3, a Administração Tributária não pode obrigar o sujeito passivo que efetua operações que conferem o direito a dedução e operações que não conferem esse direito, a estruturar a dedução do imposto suportado na aquisição de bens e serviços que sejam utilizados na realização de ambos os tipos de operações através da afetação real de todos ou parte dos bens ou serviços, quando a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza ou possa conduzir a distorções significativas na tributação;

    II.         O normativo constante do n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA (conjugado com o n.º 3) não representa uma transposição para o direito interno da regra da determinação do direito à dedução acolhida no artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Diretiva, que se configura como uma disposição derrogatória da regra prevista nos artigos 17.º, n.º 5, primeiro parágrafo, e 19.º, n.º 1, de tal Diretiva. 

  III.         Termos em que, a interpretação do artigo 23.º, n.º2, do CIVA, levada a cabo pela AT, entendida por esta como norma como habilitante a aplicar ou a impor à Requerente um coeficiente de dedução diverso do método pro rata, através da imposição de utilização do «coeficiente de imputação específico» indicado no ponto 9. do Ofício Circulado n.º 30108, é material e formalmente inconstitucional, por violação dos princípios da separação dos poderes (artigos 2.º e 111.º da CRP), do artigo 112.º, n.º 5, da CRP, do princípio da legalidade tributária (103.º, n.º 2 da CRP) e da reserva de lei da Assembleia da República (165.º, n.º 1, alínea I) da CRP, não tendo o legislador feito uso  da faculdade que o TJUE entende estar à disposição dos Estados membros de limitar os valores a inserir no numerador e no denominador da aludida fração.

 

 

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DECISÃO ARBITRAL

 

I. Relatório:

 

1. A..., SUCURSAL EM PORTUGAL, (doravante designada por Requerente) sociedade com sede na Rua ..., ..., ...-... Lisboa, titular do número de pessoa coletiva e de contribuinte..., ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (adiante abreviadamente designado por RJAT) e nos artigos 1.º, alínea a) e 2.º da Portaria n.º 112- A/2011, de 22 de março, requereu a constituição de Tribunal Arbitral tendo por objeto a decisão de indeferimento, proferida pelo Senhor Chefe de Divisão de Serviço Central da Divisão de Justiça Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes, que recaiu sobre a reclamação graciosa deduzida contra o ato de autoliquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), referente ao período de dezembro de 2019, bem como, este ato de autoliquidação no valor de € 400.828,74. 

A Requerente formula o pedido nos seguintes termos:

“i) A anulação da decisão de indeferimento que recaiu sobre a reclamação graciosa que teve por objeto a autoliquidação de IVA referente ao período de dezembro de 2019; 

ii) Consequentemente e tal como peticionado naquela reclamação, ser a autoliquidação em causa também anulada e corrigida, por erro no seu preenchimento e ilegalidade da percentagem de dedução de 25% então considerada, sendo aplicada a percentagem de dedução, resultantes do cálculo correto do pro rata, de 87% e a consequente dedução adicional de IVA, no montante de € 400.828,74, o que determina o reembolso do imposto pago a mais pela Requerente, nesse montante; 

iii) Ordenar-se o pagamento à Requerente dos juros indemnizatórios, devidos nos termos do artigo 43º da LGT, por dedução inferior à devida, dos aludidos montantes, com as demais consequências legais”. 

 

2. É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (AT). 

 

3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) em 13-04-2022 e automaticamente notificado à AT.

4. A Requerente procedeu à pela designação de árbitro, tendo nomeado a professora Clotilde Celorico Palma.

5. A 2/5/2022, a Requerida designou representantes processuais os juristas B... e C... e, a 2/6/2022, e designou como árbitro o jurista António de Barros Lima Guerreiro.

6. Os árbitros designados pelas partes remeteram para o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD a designação do Presidente do Tribunal Arbitral.

7. A 12-07-2022, o Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou para Presidente do Tribunal Arbitral a Prof.ª Doutora Regina de Almeida Monteiro, que, na mesma data, aceitou o encargo.

8. Em 12-07-2022, foram as partes notificadas da designação dos árbitros a que não se oposeram.

9. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído em 01-08-2022.

10. Notificada nos termos e para efeitos do disposto no artigo 17.º do RJAT, a Requerida em 30-09-2022, apresentou Resposta na qual defende-se por impugnação requerendo a improcedência do pedido de pronúncia arbitral tendo junto o processo administrativo (adiante designado apenas por PA). 

11. Por despacho de 10-10-2022 o Tribunal Arbitral determinou a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, com inquirição das testemunhas, por entender existir matéria, com relevo para a decisão, passível de prova testemunhal, proferindo o seguinte despacho: “Atendendo ao princípio da autonomia do tribunal arbitral na condução do processo (artigo 16.º, c) do RJAT) designa-se a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, para o próximo dia 11 de novembro de 2022, pelas 14 horas, na qual terá lugar a inquirição das testemunhas a apresentar pela Requerente, considerando a respetiva utilidade para apuramento da verdade material”.

12. A AT no requerimento de 11-10-2022 afirmou: “Requerida nos presentes autos, notificada da marcação da diligência de testemunhas, agendada para o dia 11-11-2022, vem recordar que, nos artigos 258º a 288.º da Resposta, deduziu oposição ao requerimento probatório apresentado pela Requerente, referente à prova testemunhal apresentada, sobre a qual o Tribunal arbitral não emitiu qualquer despacho, o que através do presente articulado se requer”.

13. Por requerimento de 18-10-2022, a Requerida apresentou a alteração do rol de testemunhas.

14. A Requerida em 18-10-2022 apresentou requerimento em que reiteira a sua oposição à audição das testemunhas requerendo a dispensa dessa audição.

15. Em 19-10-2022, o Tribunal Arbitral proferiu o seguinte despacho: “Atendendo aos princípios da autonomia do tribunal arbitral na condução do processo e da livre determinação das diligências de produção de prova necessárias (artigo 16.º c) e e) do RJAT) e considerando a utilidade para o apuramento da verdade material, este tribunal por despacho de 11-10-2022, decidiu a marcação da inquirição das testemunhas”.

16. No dia 11-11-2022 realizou-se uma reunião em que foi produzida prova testemunhal e decidido que o processo prosseguisse com alegações escritas simultâneas.

17. No dia 05-12-2022 a Requerente apresentou as suas alegações.

18. A Requerida apresentou as suas alegações no dia 06-12-2022.

19. Por requerimento de 07-12-2022 a Requerente veio alegar que as alegações da AT foram apresentadas para além do prazo fixado.

20. Por despacho de 09-12-2022 foi ordenado o desentranhamento das alegações apresentadas pela Requerida por serem extemporâneas.

 

 

II. Matéria de facto 

II.1. Factos provados

 

A. Requerente é sucursal em Portugal de D..., uma instituição de crédito sediada em França, exercendo a sua atividade em Portugal, nos termos do Capítulo IV do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, (“RGICSF”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro.

B. A Requerente para efeitos de IVA, configura-se como um sujeito passivo nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do CIVA, encontrando-se enquadrada no regime normal de periodicidade mensal, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 41.º do mesmo diploma. 

C. A Requerente é um sujeito passivo “misto”, uma vez que exerce atividades que conferem direito à dedução e também realiza operações no âmbito da atividade financeira, a qual é isenta do imposto nos termos do n.º 27 do artigo 9.º do CIVA 

D. Entre as atividades desenvolvidas pela sucursal portuguesa, registada no Banco de Portugal com o Código 151, figura a locação financeira de bens móveis e serviços conexos, objeto de reconhecimento mútuo nos termos do Anexo I, 3, da Diretiva 2013/36/EU, do Parlamento Europeu e do Conselho. 

E. Além da locação financeira de veículos novos, a Requerente dedica-se ao crédito automóvel. A atividade da Requerente é exercida com o CAE 64190 - Outra intermediação monetária.

F. Como sujeito passivo misto utiliza os métodos de dedução previstos no n.º 1 do artigo 23.º do IVA, “pro- rata” ou afetação real, conforme os casos.

G. As regras da locação financeira seguidas pela Requerente constam, além do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24/6, das Condições Gerais anexas ao Contrato e das Condições Particulares, concretamente  negociadas entre o D... e os seus clientes, fixadas neste documento.

H. Nos termos do n.º 1 do artigo 1.º da Condições Gerais, o contrato tem por objeto a locação do bem, tal como identificado nas Condições Particulares, e cabe ao Locatário escolher de sua livre vontade o veículo automóvel a locar, bem como o respetivo Fornecedor/mediador. 

I. É com este que o Locatário acorda a marca, modelo e respetivas especificações técnicas, o preço e os demais aspetos referidos nas Condições Particulares.

J. Não tem, deste modo, o Locador qualquer intervenção nessa fase do processo de locação financeira e na formação do acordo que a finaliza.

K. Posteriormente, o Locador examina o pedido do Locatário, incluindo a promessa de compra e venda no termo do contrato, conforme as informações prestadas pelo Locatário, e com base nestas e noutros elementos obtidos, aceita ou não a concessão do crédito.

L. As Condições Gerais reservam ao Locador o direito de aceitar ou recusar a locação.

M. Segundo o n.º 2 desse artigo 1.º das Condições Gerais, com a celebração do Contrato, o Locatário reconhece e confessa-se devedor ao Locador das importâncias devidas pelos alugueres indicados nas Condições Particulares, bem como pelos juros, despesas e quaisquer indemnizações ou  compensações que resultam desse negócio jurídico. 

N. Com essa aceitação, de acordo com o n.º 3, o Locador, seguindo as instruções do Locatário, compromete-se a adquirir o bem ao Fornecedor, a conceder o respetivo gozo ao Locatário e a conceder-lhe uma opção de compra sobre o mesmo, nos termos do contrato.. 

O. Segundo o n.º 4 desse art.º, sem prejuízo do disposto na lei quanto ao risco e responsabilidade do Locador, este é única e exclusivamente responsável pelo pagamento do valor do bem ao Fornecedor, reconhecendo e aceitando, no entanto, o Locatário não poder ser imputada ao Locador qualquer responsabilidade em virtude de mora, cumprimento defeituoso ou incumprimento por parte do Fornecedor, designadamente no tocante às obrigações relativas ao bem e sua entrega nas condições previstas, devendo o locatário responsabilizar apenas e diretamente o Fornecedor: sendo caso disso, o Locador concederá autorização expressa ao Locatário para o exercício por este dos direitos associados às garantias prestadas pelo Fornecedor e fabricante do bem.

P. O artigo 2.º regula o início de vigência e prazo do aluguer nos seguintes termos: 

“1-O presente Contrato considera-se celebrado na data da respetiva assinatura, sujeito à receção pelo Locador do Auto de Receção, nos termos do Anexo I ao presente Contrato e demais documentos exigíveis pelo Locador, incluindo, entre outros, livranças e apólices de seguro, todos devidamente assinados e de acordo com as formalidades legalmente aplicáveis, o que constituirá autorização bastante para que o Locador proceda ao pagamento do valor do bem ao Fornecedor e prova suficiente da efetiva concessão do gozo do Bem pelo Locador  ao Locatário. 

2. A comunicação pelo Locador ao Locatário por escrito que todos os elementos constantes do nº 1 deste artigo se encontram devidamente formalizados e/ou o pagamento da fatura que lhe for remetida pelo Fornecedor, equivalerá em qualquer dos casos à aprovação do pedido de crédito  apresentado. 

3. Sem prejuízo do disposto no n.º 1 do presente art, o início da produção de efeitos do presente Contrato retroage à data da sua assinatura. 

4. Não se verificando a aprovação do pedido de crédito ou a receção pelo Locador dos documentos mencionados no nº 1 deste artigo, o presente Contrato ter-se-á por não celebrado. 

5. O presente Contrato durará pelo prazo previsto nas Condições Particulares e até ao fim do período a que respeita o último aluguer. 

6. O Locatário poderá antecipar o termo do prazo de vigência do Contrato procedendo à entrega ao Locador do Bem objeto do mesmo, aplicando-se, nesse caso, os procedimentos previstos nos arts.  12º e 13º do presente Contrato”. 

Q. A disponibilização pelo Locador ao Locatário, a partir da qual este entra na posse do veículo, não obstante, nos termos do n.º 1 do artigo 8.º a propriedade deste continuar do locador, é regulada pelo art. 3.º do Contrato, com a epígrafe “Entrega do Bem”, nos seguintes termos: 

“1. O Locador confere, por este meio, mandato ao Locatário, que o aceita, para proceder à receção do Bem, em seu nome e por sua conta, 

2- Após a aprovação do pedido de crédito apresentado, o Locatário rececionará o Bem, em nome e representação do Locador, procederá a uma inspeção completa do mesmo e, caso conclua que o Bem está de acordo com a encomenda, se encontra em bom estado, reúne as características do bem pretendido e as especificações de utilização, manutenção e conservação estabelecidas são do seu conhecimento ,assinará, em conjunto com o Fornecedor, um Auto de Receção certificando esses factos de acordo com o modelo constante do Anexo I ao presente Contrato.

3. O Auto de Receção, devidamente assinado e datado pelo Fornecedor e pelo Locatário, deverá ser remetido por este ao Locador na data da entrega do Bem.

4. Caso o Bem entregue não esteja em conformidade com a encomenda ou apresente defeitos de funcionamento, o Locatário encontra-se obrigado a recusá-lo, não devendo para tal efeito assinar o Auto de Receção, e deverá informar prontamente o Locador desse facto através de carta registada com aviso de receção, fundamentando os motivos da recusa, e resolvendo o presente Contrato”.

R. Os encargos do contrato são, nos termos do art. 5.º, da exclusiva responsabilidade do locatário, nos seguintes termos: 

“1. Todas as despesas de natureza judicial ou extrajudicial,  suportadas pelo Locador, em consequência de simples mora ou de incumprimento definitivo das obrigações contratuais por  parte do Locatário, serão da responsabilidade do Locatário, sendo neste repercutidas através de débito respetivo, devendo 

para tanto o Locador apresentar o suporte documental de tais despesas, sem prejuízo do direito do Locatário de contestar as mesmas no que toca à sua exigibilidade. 

2. De igual modo correrão por conta do Locatário as despesas de reboque, parqueamento, portagem e acondicionamento do Bem, pagamento dos serviços prestados por terceiros e outras despesas necessárias para recuperação do Bem. 

3. Todas as despesas relacionadas com os serviços a que as Partes tenham de recorrer para fazer valer os seus direitos, incluindo honorários dos mandatários forenses, serão suportados pela Parte que decair. 

4. O presente Contrato tem os encargos especificados nas Condições Particulares. 

5. O Locatário desde já declara ter tomado conhecimento e aceitar integralmente o Preçário de Serviços do Locador atualmente em vigor e disponível no seu sítio da internet. O Locador poderá alterar o montante dos encargos fixados nas Condições Particulares, aumentando-o ou reduzindo-o, caso exista razão atendível para o efeito, obrigando-se a comunicar ao Locatário as referidas alterações, para qualquer dos contactos indicados nas Condições Particulares. 

6. Em caso de mora do Locatário, o Locador poderá cobrar uma comissão por não pagamento do aluguer na data do seu vencimento, como retribuição pelos serviços prestados por este, ou subcontratados a terceiro, no âmbito da sua atividade, no montante máximo permitido por lei, que à data da publicação do Decreto-Lei n.º 58/2013, de 8/5, se fixa em 4% do valor vencido e não pago com um montante mínimo de € 12 e um montante máximo de € 150, assim como as despesas ou encargos suportados pelo Locador perante terceiros, por conta do Locatário, nomeadamente pagamentos a conservatórias, cartórios notariais ou encargos de natureza fiscal.

7. Em caso de incumprimento definitivo, o Locador poderá cobrar uma comissão, como retribuição pelos serviços prestados por este, no âmbito da sua atividade, no montante que desde já se fixa em 10% do valor vencido e não pago com um montante mínimo de € 500 e um montante máximo de € 

1000, situação em que não se aplicará a comissão prevista no nº  anterior”.

S. A utilização e manutenção do Bem no período da posse do locatário são reguladas no art.º 7.º desta forma:

“1. O Locatário obriga-se a respeitar as leis e regulamentos em vigor relativos à detenção e à utilização do Bem, assim como dar ao Bem uma utilização normal, diligente e prudente, observando as instruções dadas pelo Fornecedor/Fabricante e/ou Fornecedor e, de um modo geral, não o utilizando para fins diversos daquele a que se destina.

2. Serão da exclusiva responsabilidade do Locatário todos os encargos e despesas inerentes à utilização e circulação do Bem, designadamente impostos, onde se poderá incluir, entre outros, o Imposto Único de Circulação (IUC), taxas, multas e, em geral, quaisquer prestações devidas a entidades públicas, tendo o Locador direito de regresso sobre o Locatário pelo valor de quaisquer despesas e encargos desta natureza que tenha suportado e das despesas associadas à respetiva gestão e tratamento.

3. O Locatário obriga-se a proceder à manutenção e conservação ordinária e extraordinária do Bem, observando as regras definidas pelo Fornecedor/Fabricante e/ou Fornecedor, devendo, designadamente, submeter o Bem a inspeções segundo os intervalos e instruções de manutenção preconizados pela marca, utilizando peças originais, líquidos, lubrificantes e óleos autorizados e homologados pela marca do Bem, devendo tal ser documentado aquando da entrega do Bem, cabendo ao Locatário suportar todos os respetivos custos, encargos e despesas.

4………..

5……….”

T. Nos termos do art.º 10.º, entre os encargos do locatário, conta-se o pagamento do prémio de seguro do veículo locado, em benefício do locador. Esse pagamento pode ser efetuado diretamente pelo locatário em nome do locador ou pelo locador que o debita ao locatário.

U. O art.º 9.º regula o risco do locatário financeiro durante contrato nos seguintes termos:

 1- “Enquanto o Bem se mantiver em seu poder e não for devolvido ao Locador, o Locatário, na sua qualidade de fruidor e de defensor da integridade do Bem, é o único responsável pelos prejuízos causados pela utilização do Bem, salvo caso fortuito ou de força maior. 

2. Caso o Locador venha a ser responsabilizado perante terceiros, em virtude da produção de danos decorrentes da utilização do Bem, nos termos do número anterior, aquele gozará de direito de regresso sobre o Locatário relativamente a todos os montantes que houver despendido, incluindo custas e outras despesas judiciais, nomeadamente honorários dos  mandatários forenses”.

V. De acordo com o Preçário da sucursal da D... divulgado na Internet, assiste ao Locador o direito de cobrar ao Locatário comissões pela abertura do contrato, pelo reembolso antecipado do financiamento, pelo processamento das prestações, pela simples mora, pelo incumprimento definitivo por alterações contratuais, pela renegociação do contrato, pela cedência da posição contratual a terceiros, pelo requerimento do registo automóvel, pela emissão e extratos da conta corrente mantida com o locatário, pelo intervenção em processo de homologação de viaturas transformadas, pela emissão de 2.ª via dos documentos do contrato, bem como de faturas e outros documentos contabilísticos, pela  contestação das multas , pelo tratamento do IUC, pelo reboque e parqueamento das viaturas,  Inclui despesas pagas  a  terceiros e pela anulação de seguros e serviços. 

W. Sobre todas essas comissões liquida IVA à taxa normal de 23 %.

X. Fora dos casos de aplicação do Preçário, a Requerente suporta, entre outros, os encargos com a guarda dos bens cuja opção de compra no termo do não seja exercida pelo Locatário  ou quando o Locatário os  devolva voluntariamente por não ter condições para o cumprimento das suas obrigações contratuais, com a recuperação e reboque  dos veículos que o Locatário não tiver voluntariamente devolvido, com a venda em leilão ou qualquer outro meio de transmissão da propriedade legalmente admissível, com o controlo do  pagamento das coimas e impostos relacionados com o veículo locado, com os serviços informáticos ou jurídicos assegurados pelos seus departamentos ou prestadores externos com vista ao desenvolvimento da locação financeira, com o envio de cartas aos clientes da documentação relacionada com o a emissão do IUC e do Documento Único Automóvel e com a entrega junto dos CTT, de cartas relacionadas com a execução dos contratos. Tais encargos não são diretamente debitados ao Locatário mas eventualmente repercutidos na renda paga.

Y. Aquando do apuramento da percentagem de dedução definitiva do ano de 2019 na respetiva declaração periódica n.º ..., a Requerente aplicou o n.º 9 do Ofício-circulado da Área de Gestão Tributária do IVA n.º 30108, de 30/1/2009, aplicável ao exercício  do direito à dedução do IVA incorrido pelas instituições financeiras na aquisição de recursos indistintamente utilizados na realização de operações que conferem e que não conferem o direito à dedução (recursos comuns), quando estas desenvolvam simultaneamente  tributadas e não tributadas. 

Z. Consideraria a AT, no referido Ofício- circulado que “Na aplicação do método da afetação real, nos termos do nº anterior e sempre que não seja possível a aplicação de critérios objetivos de imputação dos custos comuns, deve ser utilizado um coeficiente de imputação específico, tendo em conta os valores envolvidos, devendo ser considerado no cálculo da percentagem de dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à atividade de Leasing ou de ALD.”

AA. Aplicando esse critério, a Requerente apuraria um coeficiente de imputação específico de 25%, nos termos aí definidos, pelo que, no cálculo do direito à dedução não teve em consideração, quer no numerador, quer no denominador da fração, a “componente de amortização de capital” associada às rendas de locação financeira. 

BB. Cindiria, assim, para efeitos do exercício do direito à dedução e seguindo as orientações vinculativas da cadeia hierárquica da administração fiscal, a contraprestação da locação financeira (renda) em juros  e amortização financeira, que concorrem igualmente para o valor tributável de IVA, conforme decorre da alínea h) do n.º 2 do artigo 16.º do CIVA.

CC. Não obstante o procedimento adotado pela Requerente estar em harmonia com o entendimento vertido naquele Ofício-Circulado, esta consideraria esta tal orientação administrativa carecer de base legal. 

DD. Entenderia, assim, ter havido um erro na autoliquidação do IVA contida na declaração periódica do último mês de 2019, fundamento de reclamação graciosa deduzida a 03/05/2021.

EE. Consideraria ilegal a imposição pela AT do método de afetação real, devendo a liquidação efetuar-se pelo método do “pro- rata” do seguinte modo:

 

[A] Numerador (com inclusão da “amortização financeira”/capital) 

[B] Denominador

€195.845.705,79

227.093.204,55

[C]=[A]/[B] Pro rata

87,00%

[D] IVA incorrido em recursos comuns  

€ 658.328,83

[E] IVA deduzido sem inclusão do capital no Pro Rata 

€ 171.917,34

[F]=[D]×[C] - [E] IVA a deduzir adicionalmente por Pro rata

€ 400.828,74

 

FF. A Requerente justifica a utilização do método do pro rata, previsto no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA, porque dada a sua estrutura empresarial, pratica operações de locação financeira que implicam a utilização de recursos comuns, a gestão dos contratos de financiamento, a disponibilização e gestão dos bens locados, os quais são determinados pelo facto de ser a proprietária dos referidos bens. 

GG. Como proprietária dos bens dados em locação, a Requerente tem um consumo significativo de recursos comuns, que não se verificaria numa situação em que apenas concedesse financiamento aos seus clientes e estes, por sua vez, adquirissem diretamente os bens em causa. 

HH. Entre esses recursos incluem-se, os referentes à interação com os fornecedores dos bens no âmbito da entrega dos mesmos, à contabilização e gestão de toda a documentação associada à propriedade dos bens - propriedade essa que implica, entre outros procedimentos, a gestão e pagamento de impostos, multas e outras importâncias associadas à detenção dos bens e à respetiva imputação de tais montantes aos locatários. 

II. O consumo de recursos comuns associados à propriedade dos bens dados em locação quando os mesmos não são adquiridos pelos locatários (e também em caso de incumprimento do contrato pelos locatários), caso em que a Requerente tem um conjunto significativo de recursos comuns afetos a esta operação, quer para a recolha, armazenagem e gestão dos bens, quer para o processo de venda dos mesmos no mercado. 

JJ. Existem recursos comuns afetos à “parcela” da atividade de locação financeira relativa à disponibilização de bens locados.

KK. Todas as estruturas envolvidas nas atividades de locação/ALD afetam indistintamente os recursos da Requerente, quer relacionadas com essa disponibilização e gestão dos bens locados, quer com a gestão e financiamento dos contratos.

LL. Além das obrigações de gestão relacionadas com a disponibilização de bens dados em locação/ALD, que resultam diretamente dos contratos realizados com os seus clientes, a Requerente assegura ainda todos os custos e responsabilidades com a gestão da receção de tais bens e do correspondente armazenamento até que os mesmos sejam alienados, seja porque o Cliente não exerceu a opção de compra, seja porque está em causa a recuperação de veículos em sede de Contencioso ou de processo de restituição voluntária pelo Locatário por impossibilidade de cumprimento do contrato.

MM. A Requerente, apesar de ser da responsabilidade do cliente, realiza a gestão e o controlo do pagamento de coimas e impostos associados aos bens dados em locação/ALD. 

NN. A Requerente responde a notificações emitidas pelas autoridades competentes, no âmbito de contraordenações rodoviárias, procedendo, por essa via, à identificação do locatário, designadamente, para evitar a instauração contra o proprietário dos bens (i.e., a Requerente) de processos judiciais para cobrança de montantes em dívida, ou ainda gerir processos de sinistro, designadamente quando se verifique a apreensão dos documentos dos veículos de que é proprietária. 

OO. Como custos mais específicos da atividade de locação financeira, podem ser destacados os associados aos procedimentos de inserção manual no sistema informático de gestão de contratos, relativamente a cada contrato celebrado, da informação detalhada de cada fatura de compra das viaturas (Documento n.º 6 junto com o PPA).

PP. A Requerente suporta os custos com o pagamento do IUC dos contratos de locação em que é proprietária dos veículos, o que acontece, por exemplo nas situações em que o cliente não liquidou o imposto, na data da matrícula do veículo, e o contrato terminou em momento anterior a essa data ou em que a transferência da propriedade não se consumou na data da emissão da respetiva fatura e a Requerente procedeu ao pagamento do IUC por conta de contratos já terminados (quando aplicável). (CFRDocumento n.º 9 e n.º 10 juntos com o PPA).

QQ. Outros custos suportados pela Requerente são os custos com correio, respeitante ao envio de cartas aos clientes da documentação relacionada com o a emissão do IUC e do Documento Único Automóvel (Documento n.º 11 junto com o PPA). Custos com empresas de reboques; custos com a empresa responsável pela gestão das viaturas, desde entram no parque dos referidos recuperadores, até a sua venda efetiva por via de um leilão on-line. 

RR. A Requerente, nos termos do n.º 1 do artigo 131º do CPPT, apresentou junto da UGC reclamação graciosa da autoliquidação, que seria processada com o n.º ..., que foi indeferido pelo chefe de divisão da área de justiça tributária da UGC, por delegação, que foi notificada à Requerente pelo Ofício n. ...-DJT/2022, a 30/12/2021.

 

 

II. 2. Factos não provados

Com relevo para a decisão não existem factos alegados que devam considerar-se não provados. 

 

II. 3. Fundamentação da matéria de facto 

O juiz (ou o árbitro) não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria de facto alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa à decisão, tendo em conta a causa de pedir que suporta o pedido formulado pelo autor, e decidir se a considera provada ou não provada (artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por força do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e), do RJAT). 

Por outro lado, segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal deve basear a sua decisão em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e de conhecimento das pessoas e da envolvência. 

No que se refere aos factos provados, a convicção dos árbitros fundou-se, essencialmente, na análise crítica da prova documental junta aos autos e que não foram impugnados, e sempre que aplicável, nos depoimentos das testemunhas inquiridas. 

Assim, e tendo em consideração as posições assumidas pelas Partes, como prevê o artigo 110.º do CPPT, relativa à prova documental produzida, consideraram-se provados, com relevo para a decisão os factos supra elencados. 

A Requerente apresentou quatro testemunhas, o técnico de contas, uma colaboradora do seu Departamento Financeiro, o responsável pela área do cliente e o responsável pela área das operações em Portugal.

As referidas testemunhas descreveram pormenorizadamente, à luz da sua experiência profissional as despesas incorridas pela Requerente no exercício da sua atividade de locação financeira e os critérios da sua repartição entre as operações económicas em que se desdobra a execução desse contrato.

Uma parte relativamente significativa, ainda que não quantificada por essas testemunhas, segundo essas testemunhas, está afeta à disponibilização do veículo, operação sujeita e não isenta de IVA.

 

 

III. Saneamento 

 

O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2, n.º 1, alínea a), 5 e 6, n.º 2, alínea a), do RJAT. 

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4 e 10 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março. 

O processo não enferma de nulidades.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa. 

 

IV. Do Direito

 

Como vimos, está em causa essencialmente apurar se a AT, através do Ofício-Circulado da Área de Gestão Tributária do IVA n.º 30108, de 30 Janeiro de 2009, pode vir “impor condições especiais” para a determinação do direito à dedução do IVA suportado pelas instituições financeiras em recursos indistintamente utilizados na realização de operações que conferem e que não conferem o direito à dedução (“recursos comuns”), quando estas desenvolvam simultaneamente atividades de Leasing ou de ALD, situação que se verifica no caso em apreço.

No aludido Ofício-Circulado refere a AT que, “No caso específico das entidades financeiras que desenvolvem igualmente atividades de Leasing ou de ALD, a prática conjunta de operações de concessão de crédito e de locação tributada, incluindo a locação financeira, implica, quando houver bens e serviços adquiridos que sejam conjuntamente utilizados em ambas, a necessidade de recorrer às disposições do artigo 23.º do CIVA para apuramento da parcela do imposto suportado, que é passível de direito a dedução”. (cfr. ponto 5 do Ofício-Circulado).

É neste contexto que conclui que, “considerando que o apuramento do IVA dedutível segundo a aplicação do pro rata geral estabelecido no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA é suscetível de provocar vantagens ou prejuízos injustificados pela falta de coerência das variáveis nele utilizadas, ou seja, pode conduzir a «distorções significativas na tributação», os sujeitos passivos que no âmbito de atividades financeiras pratiquem operações de Leasing ou de ALD, devem utilizar, nos termos do n.º 2 do artigo 23.º do CIVA, a afetação real com base em critérios objetivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços, de modo a determinar o montante de IVA a deduzir relativamente ao conjunto das atividades”. (cfr. ponto 8 do Ofício-Circulado).

Importa, pois, apurar se efetivamente a AT pode, nos termos referidos, tributar toda a renda, como determina o disposto na alínea h) do n.º 2 do artigo 16.º do CIVA, e de expurgar, para efeitos de apuramento da percentagem de dedução, do numerador e do denominador da fração, a parte da renda correspondente à amortização. 

Com efeito, se concluirmos em sentido contrário, inútil será o exercício subsequente de apurarmos se efetivamente a utilização pela Requerente do método do pro rata, previsto no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA, decorre da sua própria estrutura empresarial, dado as operações de locação financeira em causa implicarem a utilização de recursos comuns, quer para a gestão dos contratos de financiamento, quer para a disponibilização e gestão dos bens locados, os quais são determinados pelo facto de ser a proprietária dos referidos bens.

Isto é, sendo a questão de apurar se a referida propriedade implica um consumo significativo de recursos comuns, que não se verificaria numa situação em que apenas concedesse financiamento aos seus clientes e estes, por sua vez, adquirissem directamente os bens em causa, uma questão subsequente, importa então, prima facie, analisar até que ponto será legal o aludido entendimento sufragado pela AT.

A AT invoca que a questão ora em análise foi já apreciada pelo TJUE, no Acórdão proferido no Caso Banco Mais, Proc. C-183/13, de 10 de Julho de 2014, alegando que este veio a confirmar a posição da AT nesta matéria, invocando ainda o Acórdão do STA, de 4 de Março de 2020, proferido no âmbito do recurso n.º 052/19.

Ora, entendemos desde logo que a interpretação levada a cabo pela AT não tem apoio directo nos textos legais, uma vez que o legislador não fez uso da faculdade que o TJUE entende estar à disposição dos Estados membros de limitar os valores a inserir no numerador e no denominador da aludida fração. 

Com efeito, não se nos afigura que o normativo constante do n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA (conjugado com o n.º 3) represente uma transposição para o direito interno da regra da determinação do direito à dedução acolhida no artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Diretiva, que se configura como uma disposição derrogatória da regra prevista nos artigos 17.º, n.º 5, primeiro parágrafo, e 19.º, n.º 1, de tal Diretiva. 

E deve notar-se que a jurisprudência do TJUE, no denominado Caso Banco Mais, não pode colher no sentido invocado pela AT, porquanto, analisado o mesmo, conclui-se que parte de uma premissa que não está correta, dado assumir uma interpretação, sem na realidade verificar se a lei portuguesa (o disposto no artigo 23.º do Código do IVA) prevê ou não mecanismos que permitam à AT impor outros métodos de dedução de IVA para bens e serviços de utilização mista.

Vejamos.

É nosso entendimento que uma interpretação segundo a qual os n.ºs 2 e 3 do artigo 23.º do Código do IVA permitem à AT através de circular interna definir e restringir o direito à dedução do IVA dos contribuintes, com carácter geral e abstrato, através de uma diferente modelação do método pro rata previsto no n.º 4 do artigo 23.º do Código do IVA (excluindo, para efeitos de apuramento da percentagem de dedução, do numerador e do denominador da fração a parte da renda correspondente à amortização), é material e formalmente inconstitucional por violação dos princípios da separação dos poderes (artigos 2.º e 111.º da CRP), do artigo 112.º, n.º 5, da CRP, do princípio da legalidade tributária (artigo 103.º, n.º 2, da CRP) e da reserva de lei da Assembleia da República (artigo 165.º, n.º 1, alínea i) da CRP).

Não tendo tal solução sido prevista legislativamente, não pode a Autoridade Tributária e Aduaneira aplicá-la, pois está subordinada ao princípio da legalidade em toda a sua atuação (artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT) e explicitado no artigo 3.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, pelo que uma interpretação segundo a qual o n.º 2 e 3 do artigo 23.º do Código do IVA lhe confere, à AT, tal possibilidade, também é violadora do princípio da legalidade da atuação da AT (artigos 266.º, n.º 2, da CRP).

Termos em que se conclui que o IVA a liquidar deve incidir sobre a totalidade da renda, sem distinção entre juro e capital, pois o valor tributável do imposto, nas operações de locação financeira é, segundo a alínea h) do n.º 2 do artigo 16.º do CIVA, “o valor da renda recebida ou a receber do locatário”; sendo igualmente claro que o numerador da fração que exprime a percentagem a dedução é constituído pelo “montante anualimposto excluído, das operações que dão lugar à dedução”, ou seja pelo valor das operações que foram tributadas, e que o respectivo denominador é o “montante anual, imposto excluído, de todas as operações efectuadas pelo sujeito passivo…”, o que obviamente inclui as primeiras.

Como é sabido, a força vinculativa das circulares e outras resoluções da AT de natureza geral e abstrata, publicitadas circunscreve-se à esfera administrativa, resultando apenas e da autoridade hierárquica dos agentes de onde provêm e dos deveres de acatamento dos subordinados aos quais se dirigem. Por isso, as orientações genéricas da AT, nomeadamente quanto à interpretação da lei fiscal, apenas vinculam os funcionários sobre quem o emissor tem posição superior na hierarquia, não vinculando os particulares, cidadãos ou contribuintes, nem os tribunais.

Neste contexto importa relembrar que, como nos ensina Saldanha Sanches: “Estas orientações administrativas, sob a forma de circulares ou sob outras formas, são uma interpretação da lei fiscal e um instrumento unificador das decisões (…) da administração.

(…).

Com a estrutura formal duma norma jurídica – uma vez que não são a aplicação do Direito a um caso concreto, mas têm antes um carácter geral e abstracto -, as circulares valem o que valer a interpretação que fazem da lei. Como se afirmou sem ambiguidades num acórdão do STA que analisa uma determinada orientação administrativa, “o valor da doutrina dessa circular será apenas o da sua valia intrínseca. Contém uma doutrina que será boa ou má, válida ou inválida, como qualquer outra doutrina”. Estar contida numa decisão administrativa não amplia nem reduz a sua força convincente, nem cria uma presunção de legalidade ou ilegalidade.” [1]

Assim, como bem notam os Professores Doutores Guilherme Xavier de Basto e António Martins analisando o designado Caso Banco Mais julgado pelo TJUE[2], “O Acórdão parece fundamentar a sua decisão final – no sentido de que o direito comunitário não se opõe a que um Estado membro obrigue um banco que exerce, actividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fracção que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, que corresponde aos juros (com exclusão, portanto, daquela outra parte que corresponde a “amortização financeira”) – no que é hoje o artigo 173º, nº 2 alínea c) da directiva (citando o artigo 17º, nº 5, terceiro parágrafo, alínea c) da 6ª directiva, aplicável aos factos tributários controvertidos no processo).

Ora, nessa disposição, atrás transcrita, do que se trata é de autorizar os Estados a, afastando-se da regra mais geral da percentagem de dedução, efectuar a dedução “com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços”. O método dito da afectação real é uma alternativa ao método da percentagem de dedução ou do pro rata, mas não consiste em alteração do algoritmo de cálculo dessa percentagem, o qual está estabelecido no artigo 174º da directiva e envolve a construção de uma fracção em que no numerador se inclui “o montante total do volume de negócios anual, líquido de IVA, relativo às operações que confiram direito à dedução” (alínea a) do nº 1) e no denominador “o montante total do volume de negócios anual, líquido de IVA, relativo às operações incluídas no numerador e às operações que não confiram direito à dedução” (alínea b) do mesmo nº).

Deve porém analisar-se se essa faculdade, que o TJUE admite que os Estados membros exerçam, foi efectivamente tomada pelo legislador português. A resposta, a nosso ver, é negativa e a imposição da AT de operar com um pro rata diferente do definido no nº 4 do artigo 23º do CIVA afigura-se sem fundamento legal no direito nacional. Não é obviamente um ofício-circulado, que não é mais que um regulamento interno que apenas obriga os serviços, mas não tem eficácia externa, que pode substituir-se à lei, impondo aos sujeitos passivos aquilo que a lei não prevê.”[3]

Neste contexto, salientam que, “As distorções de tributação que o legislador nacional previu que poderiam existir na modulação do direito à dedução são, na nossa lei, resolvidas através da imposição ao sujeito passivo do método da afectação real (nº 3, alínea b) do artigo 23º, ou, quando elas resultam de o sujeito passivo ter optado por esse método, da imposição de o abandonar (parte final do nº 2 do mesmo artigo). Também é certo que a lei consente que, no caso de opção pelo método da afectação real, a administração possa impor ao sujeito passivo “condições especiais”, que a lei não define, mas que não consistem em alteração do pro rata de dedução.”

Igualmente neste sentido, José Maria Montenegro[4] conclui, adequadamente em nosso entendimento, que o legislador nacional não usou da faculdade que o TJUE entende estar à disposição dos Estados membros de limitar os valores a inserir no numerador e no denominador da fracção do pro rata de dedução, pelo que o que é permitido pelo artigo 23.º, n.º 3, do CIVA, não estando em causa uma alteração ao modo como o sujeito passivo apurou o seu pro rata, tratando-se sim, nos termos legais, de uma alteração do método de dedução. Assim, como nota o autor, no Caso Banco Mais o direito nacional não terá sido analisado com o rigor e a profundidade desejável, sendo que a pertinência da resposta do Tribunal dependia de ser verdadeiro o pressuposto de que a lei portuguesa concede poderes à AT, através de uma decisão administrativa, de alterar a composição do pro rata de dedução. Ora, não dando a nossa lei esses poderes, as respostas do Tribunal não contribuem para legitimar a interpretação que a AT tem vindo a querer impor.

Note-se que, tal como alega a Requerente, no Caso VW Financial Services[5], veio o TJUE acrescentar, que “não se pode deduzir do raciocínio desenvolvido pelo Tribunal de Justiça a propósito das operações de locação financeira em causa no processo que deu origem ao Acórdão de 10 de julho de 2014, Banco Mais (C‑183/13, EU:C:2014:2056), que o artigo 173.º, n.º 2, alínea c), da Diretiva IVA permite aos Estados‑Membros, de maneira geral, aplicarem a todos os tipos de operações semelhantes para o setor automóvel, como as operações de locação financeira em causa no processo principal, um método de repartição que não tem em conta o valor do veículo aquando da sua entrega” (cfr. n. 56).

Aditando que ainda que, “sempre que as modalidades de cálculo da dedução não tenham em conta uma afetação real e significativa de uma parte dos custos gerais a operações que confiram direito à dedução, não se pode considerar que tais modalidades reflitam objetivamente a parte real das despesas efetuadas com a aquisição dos bens e dos serviços de utilização mista que pode ser imputada a essas operações. Por conseguinte, tais modalidades não são suscetíveis de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios.” (cfr. n. 57). 

Neste contexto conclui o TJUE que, “(…) os artigos 168.º e 173.º, n.º 2, alínea c), da Diretiva IVA devem ser interpretados no sentido de que, por um lado, mesmo quando os custos gerais relativos às operações de locação financeira de bens móveis, como as que estão em causa no processo principal, não sejam repercutidos no montante devido pelo cliente pela disponibilização do bem em causa, ou seja, na parte tributável da operação, mas no montante dos juros devidos a título da parte «financiamento» da operação, ou seja, na parte isenta da operação, esses custos gerais devem ser considerados, para efeitos do IVA, como um elemento constitutivo do preço dessa disponibilização e, por outro lado, que os Estados membros não podem aplicar um método de repartição que não tenha em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega, uma vez que esse método não é suscetível de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios.” (cfr. n. 59).

No mesmo sentido, como já antes referimos, vão a maioria das decisões do Tribunal Arbitral. 

Assim, na Decisão proferida no Processo Arbitral n.º 309/2017, de 20 de Novembro de 2017, conclui-se que, “(…) embora a Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, permita ao Estado Português «obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços», não foi legislativamente prevista no CIVA a possibilidade de aplicação de uma percentagem de dedução diferente da que se indica no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA. E, não tendo essa possibilidade sido legislativamente prevista, não a pode aplicar a Autoridade Tributária e Aduaneira, pois está subordinada ao princípio da legalidade em toda a sua actuação (artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT) e explicitado no artigo 3.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo. (…).

Por isso, não tendo suporte legal a utilização do método previsto no ponto 9 do Ofício Circulado n.º 30108, de 30.01.2009, é ilegal a imposição da sua utilização pela Requerente.

(,,,)

Pelo exposto, conclui-se que a imposição de utilização do «coeficiente de imputação específico» indicado no ponto 9. do Ofício Circulado n.º 30108 enferma de vício de violação de lei, por ofensa do princípio da legalidade (…).”

Também na Decisão proferida no Processo Arbitral n.º 339/2018, de 25 de Março de 2019, se conclui que, “A Requerente sustenta, todavia, que o artigo 23.º, n.º 2, do Código do IVA não transpõe para o direito interno a disposição do artigo 17.°, n.° 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Diretiva baseando-se essencialmente no seguinte argumento: enquanto a Directiva permitia que os Estados-membros autorizassem ou obrigassem o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na utilização da totalidade ou de parte dos bens ou serviços, o legislador nacional não conferiu à Administração essa prerrogativa, limitando-se a permitir o controlo dos critérios objectivos que o sujeito passivo tenha utilizado quando opte pelo mecanismo da afectação real.”

Veja-se igualmente a Decisão proferida no Processo Arbitral n.º 498/2018, de 28 de Maio de 2019, nos termos da qual se decide que, “Assim, ter-se-á de concluir que a faculdade concedida à Autoridade Tributária pelo n.º 3 do artigo 23.º não inclui a faculdade de impor ao sujeito passivo a aplicação de uma percentagem de dedução que, assim, só pode ser utilizada nas situações em que está prevista directamente na alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º, e este método é o que consta do n.º 4 do mesmo artigo. Embora à luz da referida Jurisprudência, se possa admitir que a Directiva IVA permitia ao legislador interno «obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços», a verdade é que este não usou tal prerrogativa, pelo que não pode a mesma ser aplicada internamente por ausência de base legal”.

Na Decisão proferida no Processo Arbitral n.º 581/2018, de 17 de Junho de 2019, conclui-se no mesmo sentido que, “Pelo que a imposição da AT de operar com um pro rata diferente do definido no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA afigura-se sem fundamento legal no direito nacional. Não é um Ofício-Circulado, que não é mais que uma instrução interna que apenas obriga aos serviços, mas que não tem eficácia externa, que pode substituir-se à lei, impondo aos sujeitos passivos aquilo que a lei não prevê.

Acresce que importa atender que, como se faz notar na Decisão proferida no Processo Arbitral n.º 769/2019, de 2 de Abril de 2020, “Mas, mesmo que o método previsto no ponto 9 do Ofício Circulado assegurasse mais eficazmente os referidos princípios, a falta da sua previsão em diploma de natureza legislativo nacional, em matéria em que não é directamente aplicável qualquer norma de direito da União Europeia, sempre seria um obstáculo intransponível à sua aplicação, por força do princípio da legalidade, em que se insere o da hierarquia das fontes de direito, à face do qual não é constitucionalmente admissível que seja reconhecido a actos de natureza não legislativa «o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos» (artigo 112.º, n.º 5, da CRP), para mais em matéria sujeita ao princípio da legalidade fiscal…”

Atente-se no voto de vencida no âmbito do Processo n.º 887/2019, de 12 de Outubro de 2020, que, no tocante ao Caso Banco Mais, conclui que, “neste caso o TJUE considerou que a Sexta Diretiva do IVA não se opõe a que os Estados membros apliquem, numa determinada operação, um método ou critério diferente do método baseado no volume de negócios, desde que esse método garanta uma determinação do pro rata de dedução mais precisa do que a resultante daquele outro método. Ora, analisado o Acórdão (…), conclui-se que parte de uma premissa que não está correta, dado assumir uma interpretação, sem na realidade verificar se a lei portuguesa (o disposto no artigo 23.º do Código do IVA) prevê ou não mecanismos que permitam à AT impor outros métodos de dedução de IVA para bens e serviços de utilização mista.”

Por seu turno, como se conclui na Decisão proferida no Processo Arbitral n.º 335/2018, de 14 de Dezembro de 2020, “(…) tem de se concluir que o poder concedido à Administração Fiscal pelo n.º 3 do artigo 23.º, não inclui a possibilidade de impor ao sujeito passivo a aplicação de uma percentagem dedução. (…) Por isso, embora a Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, permita ao Estado Português «obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços», não foi legislativamente prevista no CIVA a possibilidade de aplicação de uma percentagem de dedução diferente da que se indica no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA. E, não tendo essa possibilidade sido legislativamente prevista, não a pode aplicar a Autoridade Tributária e Aduaneira, pois está subordinada ao princípio da legalidade em toda a sua actuação (artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55º da LGT) e explicitado no artigo 3.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo. Este último diploma, definindo tal princípio, estabelece que «Os órgãos da Administração Pública devem atuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes forem conferidos e em conformidade com os respetivos fins».” “Por isso, não tendo suporte legal a utilização do método previsto no ponto 9 do Ofício Circulado n.º 30108, de 30.01.2009, é ilegal a imposição da sua utilização pela Requerente.” “Pelo exposto, conclui-se que a imposição de utilização do «coeficiente de imputação específico» indicado no ponto 9 do Ofício Circulado n.º 30108 enferma de vício de violação de lei, por ofensa do princípio da legalidade, pelo que procede o pedido de pronúncia arbitral.” 

Veja-se ainda a Decisão proferida no Processo n.º 58/2020-T, de 21 de Janeiro de 2021, em conformidade com a qual se deve recusar a aplicação do n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA “na interpretação subjacente ao Ofício-Circulado n.º 30108, de 30-01-2009, segundo a qual, a Administração Tributária poderia impor aos sujeitos passivos de IVA, através de diploma normativo de natureza não legislativa, condições especiais limitadoras do direito à dedução, de que resulta os sujeitos passivos terem de suportar imposto que não suportariam se elas não existissem.

Igualmente no Processo n.º 58/2020-T, se salienta que, “em face da jurisprudência do TJUE e do Supremo Tribunal Administrativo, a possibilidade de impor o método de cálculo do pro rata de dedução quanto a recursos de utilização mista previsto no n.º 9 do Ofício-Circulado n.º 30108, no que concerne aos contratos de locação financeira efetuados por bancos, não é admitida generalizadamente, antes «tal situação será excecional», dependendo de se verificar, casuisticamente, que a utilização dos «bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos» (processo C-183/13, Banco Mais, e acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 15-11-2017, processo n.º 0485/17, e de 04-03-2015, processos n.ºs 081/13 e 01017/12, e de 04-03-2020, processos n.ºs 7/19.4BALSB e 052/19.0BALSB, entre muitos outros).”

Note-se que, no contexto deste Processo, o Tribunal Arbitral, a propósito do Acórdão do TJUE no âmbito do Caso VW Financial Services, vem concluir que, “na linha desta jurisprudência, tendo em conta que a obrigatoriedade da jurisprudência do TJUE implicará o acatamento da mais recente quando ela se modifica, tem de entender-se que o método previsto no ponto 9. do Ofício-Circulado n.º 30108, que não tem em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega, tem de considerar-se não suscetível de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios, pelo que, também sob esta perspetiva, é incompatível com a alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º da Diretiva n.º 2006/112/CE” (cfr. página 75 da referida decisão do Tribunal Arbitral).

De entre esta extensa panóplia de Decisões cumpre ainda salientar a proferida no Processo n.º 576/2021-T, de 14 de Fevereiro de 2022.

Nesta Decisão, inicia o Tribunal Arbitral por analisar a decisão proferida no referido Caso VW Financial Services, nos seguintes termos: “Assim, neste acórdão do processo C-153/17, apesar de ficar demonstrado que os custos gerais eram imputados à parte das rendas referentes aos juros e a parte das rendas correspondente ao capital não era tributada (por ser isenta à face da lei inglesa), entendeu-se que esta última não podia ser completamente excluída do cálculo do pro rata, pelo que esta jurisprudência não pode deixar  de ser aplicável à face da lei portuguesa, em que toda a atividade de leasing é tributada e, por isso, trata-se na totalidade de operações que dão direito à dedução, à face do artigo 20.º, n.º 1, e para efeitos do artigo 23.º, n.º 4, do CIVA.

Na verdade, se o TJUE entendeu que, mesmo nos casos de a parte das rendas correspondente às amortizações não ser tributada (como sucede na lei inglesa) esse montante não podia ser excluído completamente do numerador da fração, por maioria de razão valerá este entendimento quanto este montante também é tributado em IVA (como sucede na lei portuguesa) e, por isso, se está perante operação que confere operações que conferem direito a dedução, relativamente à qual resulta explicitamente da lei a sua inclusão no numerador da fração (artigo 23.º, n.º 4, do CIVA).

De qualquer forma, no citado acórdão 10-07-2014, proferido no processo n.º C-183/13 (Banco Mais), não se admitiu generalizadamente que um Estado-Membro possa obrigar um banco que exerce, nomeadamente, atividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fração que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, mas apenas admitiu tal possibilidade «quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar»”.

Termos em que se conclui que, “Como resulta desta parte final, na perspectiva do TJUE, não é compaginável com a alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º da Directiva n.º 2006/112/CE a imposição aos contribuintes de uma percentagem de dedução especial de forma genérica, independentemente da comprovação da utilização real dos bens e serviços, pelo que a imposição dessa percentagem especial pelo Ofício-Circulado n.º 30108 e na decisão da reclamação graciosa, sem qualquer indagação da utilização real dos recursos de utilização mista, enferma de vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de direito.

De salientar em particular que veio ainda nessa Decisão reiterar-se o entendimento de que é necessário fazer um “apuramento casuístico” da utilização real dos bens e serviços de uso misto, em concreto, se é ou não sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos.

Termos de acordo com os quais o Tribunal Arbitral considerou expressamente que a autoliquidação então sindicada enfermava de erro sobre os pressupostos de direito, ao ter subjacente o entendimento de que a imposição do método que consta do ponto 9. do Ofício-Circulado n.º 30108, pode ser efectuada pela AT, de forma genérica, “sem apreciação casuística da questão de saber se a concreta utilização de bens ou serviços de utilização mista por parte da Requerente relacionados com os contratos de locação financeira foi ou não sobretudo determinada pela atividade de disponibilização dos veículos e não pelo financiamento e gestão de contratos de locação financeira celebrados com os seus clientes.

O Tribunal chega mesmo a considerar que o método previsto no referido n.º 9 do Ofício-Circulado, por não ter “em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega, em situação que se comprova uma afetação real e significativa de uma parte dos custos gerais à disponibilização dos veículos”, não tem potencialidade para “garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios, pelo que, também sob esta perspectiva, é incompatível com a alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º da Directiva n.º 2006/112/CE, como entendeu o TJUE no processo C-153/17, Volkswagen Financial Services (UK) Ltd.

Mas importa salientar que o Tribunal entende que, entre nós, a imposição daquele método apenas poderia ser feita por via de diploma legislativo e não de circular administrativa, pelo que a sua imposição “viola os princípios constitucionais da legalidade e da hierarquia das normas e o princípio administrativo da legalidade [artigos 103.º, n.º2, e 112.º, n.º 5, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP e 55.º da LGT]”. Acrescendo que o artigo 23.º, n.º 2, do CIVA, é materialmente inconstitucional na interpretação de que permite à AT “impor um método de determinação da matéria tributável por via de Circular, à face dos artigos 103.º, n.º 2, 112.º, n.º 5, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP.”

Assim como, conclui, por violação do princípio da igualdade plasmado no artigo 13.º da CRP, “se interpretadas como a aplicação do método previsto no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30108”.

No tocante à invocada decisão do STA, importa salientar que, distintamente do invocado pela AT, admite claramente antever a possibilidade de realização da prova sobre a utilização dos recursos mistos, designadamente por parte do sujeito passivo, de forma a apurar a adequação do critério e da taxa do pro rata por si utilizada – ou, neste caso, da taxa de dedução que pretende ver aplicada, por oposição ao previsto no Ofício-Circulado n.º 30108.

Face ao exposto, concluímos que a Requerente tem razão ao invocar que, atenta a jurisprudência comunitária e nacional neste âmbito, há que retirar as seguintes conclusões:

·     A utilização de um critério de dedução de IVA dos recursos comuns como o defendido pela AT através do Ofício-Circulado não tem fundamento legal no Código do IVA, pelo que qualquer tentativa de aplicação do mesmo é ilegal;

·     Ainda que tal critério possa ser admissível para o TJUE, à luz da interpretação das normas relevantes da Diretiva do IVA, o mesmo apenas é de aplicar caso se verifique que os recursos comuns são maioritariamente determinados pelo financiamento e gestão dos contratos; e,

·     Para determinação do IVA dedutível, não se pode aplicar um método de repartição que não tenha em conta a situação concreta de cada contribuinte e as especificidades da sua atividade;

·     Além disso, aquele método terá que ter igualmente em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega, uma vez que esse método não é suscetível de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios.”

 

Uma última nota para, a final, salientarmos que, ainda que se concluísse, erroneamente, que o entendimento da AT estava correcto, o certo é que, efectivamente, não sendo utilizados critérios objectivos de repartição dos recursos comuns, apenas é admissível a utilização do critério defendido pela AT no caso de os referidos recursos serem sobretudo determinados pelo financiamento e gestão dos contratos de locação, resultando a nosso ver provado da documentação junta aos autos e da prova testemunhal carreada, que não é o caso da Requerente. Na realidade, os recursos comuns por si utilizados no âmbito da sua actividade são determinados quer pelo financiamento e gestão dos contratos, quer pela disponibilização dos bens locados.

Ou seja, não ficou demonstrado que o método do pro rata previsto no artigo 23.º, n.º 4, do CIVA, provocou “distorções significativas da tributação”, não se tendo verificado no caso controvertido o pressuposto no qual o Ofício-Circulado n.º 30108 assenta a imposição da aplicação do coeficiente de imputação específico previsto no seu n.º 9, termos em que se conclui que a imposição na situação dos atos enferma igualmente de erro sobre os pressupostos de facto.

 

 

V. Da restituição e Juros indemnizatórios

 

A Requerente solicita também a restituição do valor do IVA pago em excesso em dezembro de 2019, no montante de € 400.828,74.

O erro da autoliquidação é imputável à Requerida, pois foram seguidas pela Requerente – ainda que de modo contrariado – as orientações da Autoridade Tributária e Aduaneira constantes do Ofício-Circulado n.º 30108, de 30-01-2009.

Nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que permite concluir pelo reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.

Neste processo a Requerida não questiona a quantificação efetuada pela Requerente do montante do IVA alegadamente pago em excesso, pelo que a Requerente tem direito à restituição das quantias indevidamente pagas acrescidas de juros indemnizatórios, peticionadas nos termos dos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º do CPPT, desde as datas dos pagamentos indevidos até ser reembolsada.

Contudo, não constam dos autos comprovativos do pagamento das quantias e, em consequência, não há fundamento factual para se decidir neste processo se há ou não direito ao reembolso das quantias pagas e a juros indemnizatórios.

Assim, têm de ser julgados improcedentes os pedidos de restituição das quantias pagas e de juros indemnizatórios formulados no presente processo arbitral, sem prejuízo de, se necessário, em sede de execução de julgado, caso se provem os respetivos pressupostos, serem reconhecidos esses mesmos direitos.

 

 

VI. Decisão

 

Em face de tudo quanto se deixa consignado, decide-se:

 

a.   Anular a decisão de indeferimento da reclamação graciosa que teve por objeto a autoliquidação de IVA referente ao período de dezembro de 2019;

b.   Julgar procedente o pedido de anulação parcial da autoliquidação de IVA, referente a dezembro de 2019 no montante de € 400.828,74;

c.   Julgar improcedentes os pedidos de reembolso e de juros indemnizatórios, sem prejuízo de poderem vir a ser reconhecidos em execução do presente acórdão;

 

 

VII. Valor do processo

 

Fixa-se o valor do processo em € 400.828,55, valor atribuído pela requerente e não impugnado pela Requerida de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT), 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 306.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, este último ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

 

Notifique-se

 

Lisboa, 6 de janeiro de 2023

 

 

Os Árbitros

 

___________________

(Regina de Almeida Monteiro - Árbitro Presidente)


_______________________

(Clotilde Celorico Palma - Árbitro Adjunto )

 

 

____________________

(António Lima Guerreiro -Árbitro Adjunto – com declaração de voto)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

DECLARAÇÃO DE VOTO

 

Discordo totalmente do presente Acórdão e da sua fundamentação, que põe em causa a jurisprudência do TJUE e a jurisprudência consolidada do STA, pelos motivos que passo a expor.

 Segundo as Conclusões desse Acórdão: 

“-A utilização de um critério de dedução de IVA dos recursos comuns como o defendido pela AT através do Ofício-Circulado não tem fundamento legal no Código do IVA, pelo que qualquer tentativa de aplicação do mesmo é ilegal (CONCLUSÃO 1);

Ainda que tal critério possa ser admissível para o TJUE, à luz da interpretação das normas relevantes da Diretiva do IVA, o mesmo apenas é de aplicar caso se verifique que os recursos comuns são maioritariamente determinados pelo financiamento e gestão dos contratos ( CONCLUSÃO 2); e,

-Para determinação do IVA dedutível, não se pode aplicar um método de repartição que não tenha em conta a situação concreta de cada contribuinte e as especificidades da sua atividade (CONCLUSÃO 3).

-Além disso, aquele método terá que ter igualmente em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega, uma vez que esse método não é suscetível de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios (CONCLUSÃO 4).”

Salienta ainda o referido Acórdão que, ainda que se  entendesse, erroneamente, que o entendimento da  administração fiscal estaria  correto, “o certo é que, efetivamente, não sendo utilizados critérios objetivos de repartição dos recursos comuns, apenas é admissível a utilização do critério defendido pela administração fiscal  no caso de os referidos recursos serem sobretudo determinados pelo financiamento e gestão dos contratos de locação, resultando a nosso ver provado da documentação junta aos autos e da prova testemunhal carreada, que não é o caso da Requerente”. Segundo a posição maioritária no Tribunal Arbitral adotada nesse Acórdão, “os recursos comuns por si utilizados no âmbito da sua atividade são determinados quer pelo financiamento e gestão dos contratos, quer pela disponibilização dos bens locados”(CONCLUSÃO  5).

Ou seja, “não ficou demonstrado que o método do pro rata previsto no nº 4 do art. 23º  do CIVA, tenha provocado  “distorções significativas da tributação”, não se tendo verificado no caso controvertido o pressuposto no qual o Ofício-Circulado n.º 30108 assenta a imposição da aplicação do coeficiente de imputação específico previsto no seu n.º 9, termos em que se conclui que a imposição na situação dos atos enferma igualmente de erro sobre os pressupostos de facto” (CONCLUSÃO 6).

Nenhuma dessas conclusões é aceitável.

A questão controvertida no presente processo arbitral consiste, em caso de sujeito passivo do IVA que pratique simultaneamente atividades económicas abrangidas pela alínea a) do nº 1 do art. 2º   do CIVA e atividades   não sujeitas a IVA, por  colocadas fora do campo do imposto, na obrigatoriedade legal de dedução pelo método da afetação real do IVA  suportado  na aquisição de bens ou serviços utilizados simultaneamente em  ambas as atividades (“ in –puts” mistos).

 

A administração fiscal, sustenta essa obrigatoriedade, ao contrário da Requerente que entende não ter base legal.

 

Discute-se em particular se , na locação  financeira  de  veículos automóveis,  no cômputo do  coeficiente   de imputação  dos custos  comuns a atividades sujeitas, isentas ou fora do campo de incidência do imposto, com base no qual é determinado o direito à dedução, quando o sujeito passivo não aplique  critérios objetivos de repartição desses   custos ,    pode o sujeito passivo, ao aplicar a percentagem  de dedução  regulada  no nº 4 do art. 23º do CIVA,   incluir   no numerador e no denominador  da fração através da qual é apurada o montante anual das rendas auferidas ou antes tal montante  deve ser   expurgado da  parte destinada à amortização do capital financiado/investido para a aquisição do bem locado, como  a administração fiscal sustentaria no nº 9 do   Ofício- Circulado nº 30.108, de 30/1/2009. 

 

Ou seja, está em causa se, do volume de negócios através do qual é apurada a percentagem de  dedução característica do regime do “pro-rata” deve, ou não, ser excluída pelo sujeito passivo  a parte das rendas recebidas que visa  a compensação  do custo de aquisição dos veículos, com o fundamento de essa compensação não estar abrangida no campo da incidência do IVA, exclusão  que obviamente apenas tem fundamento não  se considere não constituir atividade económica, dentro do campo da incidência do IVA, a aquisição/disponibilização do veículo pelo locador para o entregar ao locatário, por constituir mera operação acessória da concessão do crédito, carecendo, assim, de autonomia.

 

Segundo as decisões arbitrais n.ºs 309/2017-T; 311/2017-T; 312/2017-T, 11/2019- T e 354/2019-T, cuja argumentação é na parte essencial tomadas pela Requerente, que acrescentaria   doutrina no mesmo sentido  o método de  imputação específico referido no nº 9 desse  Ofício- Circulado nº 30.108, que a Requerente optou por seguir na autoliquidação, não obstante o  reconhecimento  da  inexistência de efeito vinculativo dessa orientação administrativa,  não teria enquadramento  no n.º 4 do art.  23.º do CIVA nem em qualquer outro preceito legal.

 

Esse nº 4 do art. 23º, ao determinar que a percentagem de dedução referida na alínea b) do n.º 1 dessa norma  resulta de uma fração que comporta, no numerador, o montante anual, imposto excluído, das operações que dão lugar a dedução nos termos do n.º 1 do art. 20º .º e, no denominador, o montante anual, imposto excluído, de todas as operações efetuadas pelo sujeito passivo  resultantes do exercício de uma atividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do art.  2.º, bem como as subvenções não tributadas que não sejam subsídios ao equipamento, seria incompatível com a imposição por via meramente administrativa, ainda que parcialmente, do método de afetação real, com a consequente redução do âmbito de aplicação do  regime do “pro-rata” regulado nesse nº 4, já que  a amortização do capital financiado/investido para a  aquisição do bem locado seria então  excluída do volume de negócios do sujeito passivo.

A determinação de uma percentagem de dedução calculada com exclusão de uma parte do valor (renda) das operações de locação financeira que esse nº 9 do Ofício- circulado nº 30.108 entenderia obrigatória contrariaria também, segundo a Requerente a aplicação uniforme do direito à dedução  que o  art.173º e, por remissão do  segundo  parágrafo do nº 1 deste art., os arts. 174º e 175º da Diretiva IVA, que proíbe aos Estados membros introduzirem   ao direito à dedução restrições incompatíveis com essas normas da Diretiva IVA.

Tal imposição também  não teria, por seu turno, enquadramento nos  nºs  2 e 3 desse art. 23º do CIVA, nos termos dos quais respetivamente, não obstante o disposto da alínea b) do nº 1, pode o sujeito passivo efetuar a dedução segundo a afetação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, com base em critérios objetivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito, sem prejuízo de a administração fiscal  lhe vir a impor condições especiais ou a fazer cessar esse procedimento no caso de se verificar que provocam ou que podem provocar distorções significativas na tributação(afetação da iniciativa do sujeito passivo)  e de a administração fiscal poder também  obrigar o sujeito passivo a adotar o método da afetação real, quando o sujeito passivo exerça atividades económicas distintas; ou quando a aplicação do regime do “pro-rata”  no n.º 1 conduza a distorções significativas na tributação (afetação da iniciativa da administração fiscal. Tal  conclusão dever-se-ia à falta de fundamento legal para essa determinação. 

A aplicação desse nº 3, invocado como base legal desse nº 9, dependeria,  com efeito , do seu desenvolvimento por outros atos normativos, legislativos ou regulamentares, posteriores nos quais não se incluiriam os ofícios –circulados   ou quaisquer circulares administrativas , o que seria proibido pelo nº 4 do art. 112º da CRP, que garante, assim, o princípio da tipicidade  dos atos normativos introduzido neste art. 

É certo, admite a Requerente, que o nº 2 do art. 173º da Diretiva IVA permite os Estados–Membros  a tomar  as medidas seguintes:

 

a)Autorizar o sujeito passivo a determinar um pro rata para cada sector da respetiva atividade, se tiver contabilidades distintas para cada um desses sectores;

 

b)

Obrigar o sujeito passivo a determinar um pro rata para cada sector da respetiva atividade e a manter contabilidades distintas para cada um desses sectores;

 

c)

Autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efetuar a dedução com base na afetação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços;

 

d) Autorizar ou obrigar os sujeitos passivos a efetuar a dedução referida no 1º Parágrafo do nº 1 relativamente a todos os bens e serviços utilizados nas operações aí previstas.

 

e)Estabelecer que não seja tomado em consideração o IVA que não pode ser deduzido pelo sujeito passivo, quando  o  respetivo montante for insignificante 

Segundo o presente Acórdão, tal norma imitar-se-ia, no entanto,  o nº 2 do art. 173º da Diretiva IVA  a conferir aos Estados membros a possibilidade—não a impor a obrigatoriedade- de, por via  normativa, ou seja, por disposições  gerais e abstratas constantes de atos legislativos ou regulamentares  e não através do direito interno da administração fiscal ou atos administrativos sem norma de direito interno habilitante, obrigarem em os sujeitos  passivos a optarem  total ou sectorialmente pelo método da afetação real,  possibilidade que o Estado português não teria  exercido. 

Assim, o nº 2 do art.  23º do CIVA não constituiria o exercício dos poderes atribuídos aos Estados membros no nº  2 do art. 174º   da Diretiva IVA, norma que não tem aplicação direta, mas mero efeito direto, carecendo a sua aplicação de uma  mediação normativa, ou seja, da transposição para o direito interno de cada Estado membro, que teria sempre de respeitar o princípio da legalidade expresso na tipicidade dos atos normativos expressa no art. 112º da CRP.

Tal doutrina não viria, no entanto, a ser confirmada pela jurisprudência estadual superior,  iniciada pelo  Acórdão do STA 0485/17, de 15/4/2017,  na sequência do reenvio prejudicial  para o TJUE que originaria o proc.  C-183/13

No enquadramento jurídico da questão, o STA, em resultado da decisão do reenvio prejudicial pelo do Acórdão do   proc. C-183/13, considerou  que os citados  nºs. 2 e 3 do art. 23° do CIVA se reconduzem,  no seu todo,  a uma norma que reproduz, em substância, a regra de determinação do direito à dedução enunciada  na então alínea c) do terceiro  parágrafo do nº 5 do art. 17º da  Sexta Diretiva 77/388/CEE do Conselho, de 17/5/77, constituindo, por isso,  a transposição, para o direito interno do Estado português do direito da  União. 

Esse nº 5 do art. 17º  da Sexta Diretiva  , correspondente ao nº 2 do art. 273º da atual Diretiva, para além de determinar,  no que diz respeito aos bens e aos serviços utilizados por um sujeito passivo , não só para operações com direito à dedução , previstas nos n ºs 2 e 3  desta norma , como para operações sem direito à dedução ,  que a dedução só é concedida relativamente à parte do IVA  proporcional ao montante respeitante à primeira categoria de operações e que o  respetivo “pro rata” é determinado nos termos do art. 19 º , para o conjunto das operações efetuadas pelo sujeitos passivo , em termos idênticos aos previstos nos arts. 174º e 174º da atual Diretiva podendo os Estados membros adotar medidas idênticas às atualmente autorizadas no nº 2 do referido  art. 173º.   

Assim, a norma do art. 23° n° 2 do CIVA, ao permitir que a administração fiscal  imponha condições especiais no caso de se verificarem distorções significativas na tributação, limitar-se-ia, em substância, a reproduzir aquela regra de determinação do direito à dedução enunciada nessa  Sexta Diretiva, quando ali se estabelece que, «os Estados-membros podem: autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efetuar a dedução com base na utilização da totalidade ou parte dos bens ou serviços”, constituindo para todos os efeitos a sua transposição para o direito interno português .

Concluiria esse Acórdão que, sendo, portanto, admissível à administração fiscal determinar um critério para cálculo do “pro rata” (como no caso sucedeu), caberia então à impugnante demonstrar que a utilização de bens e serviços de utilização mista seria determinada predominantemente  pela disponibilização dos veículos, o que não  teria acontecido no caso concreto sobre o qual este Acórdão se pronunciou. 

Esse doutrina seria confirmada pelo Acórdão do STA de  4/3/2020, n.º 052/19.0BALSB.

Posteriormente, em recursos extraordinários visando a uniformização de jurisprudência, os  acórdãos do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do STA  proferidos a 20/1/2021, no processo n.º 101/19.1BALSB, a 24/2 2021, no processo n.º 84/19.8BALSB, a 24/3/2021, no processo n.º 87/20.0BALSB ,e a 21/4/2021 nos processos n.ºs 32/20.2BALSB, 63/20.2BALSB e 113/20.2BALSB. confirmariam tal entendimento, inexistindo quaisquer indícios, por a quase totalidade dos membros do STA que intervieram nesses processos se manterem  em funções, de que  essa posição do STA possa, mesmo a médio  prazo,  possa ser revertida por aquele tribunal superior. Tais Acórdãos foram em geral proferidos por unanimidade e, quando houve votos de vencido, não resultaram de quaisquer divergências sobre as questões de fundo, mas sobre o preenchimento das condições de admissibilidade desses recursos:  tais divergências recaíram sobre aspetos formais, mas não são referidos na presente Decisão Arbitral.   

Tal jurisprudência superior  viria a determinar  uma inflexão da jurisprudência do CAAD, que é uma jurisdição de 1ª instância, estando as suas decisões sujeitas, nos termos da lei , ao controlo dos tribunais superiores. 

É certo que, na jurisdição administrativa e fiscal, como na legislação penal e processual, inexiste a figura dos assentos, abolida pelo DL nº 329/95, de 1/12, que revogaria o art. 2º do Código Civil, carecendo, assim, o recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência de força obrigatória, ou seja,  para além do processo em que foi proferida a decisão.

Tal meio de recurso tem, no entanto.  a força persuasiva, ainda que meramente de facto, que resulta da solenidade do seu julgamento, em Pleno do Tribunal ou da Secção, da qualidade dos julgadores já que, magistrados no topo de carreira e com um relevante “curriculum” e do especial crivo a que está sujeita a sua fundamentação, uma vez ser pressuposto de admissibilidade a oposição de decisões. Em especial os Acórdãos do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do STA são o produto de uma longa e maturada reflexão dos conselheiros que a integram.

Essa força obrigatória tem sido reconhecida pelos tribunais tributários de 1ª instância e do próprio CAAD: a jurisdição arbitral não é uma jurisdição paralela ou concorrente da jurisdição estadual mas uma das formas de exercício da jurisdição fiscal em 1ª instância.

Esse respeito dos acórdãos proferidos em recurso extraordinário de 1ª instância resulta do reconhecimento dos valores da estabilidade e previsibilidade da jurisprudência e contribui para uma melhor aplicação do direito, incluindo no CAAD.

Seriam exemplo dessa inflexão, entre outras, as Decisões Arbitrais proferids nos processos n.ºs 709/2019-T, 759/2019-T, de 811/2019- T, 887/2019-T , 927/2019-276/20020 e 157/2021-T. Em sentido oposto, mantendo a doutrina da Decisões Arbitrais. ºs 309/2017-T; 311/2017-T; 312/2017-T, 11/2019- T e 354/2019-T e divergindo da atual jurisprudência uniformizada do Pleno do Contencioso Tributário do STA, pronunciar-se-ia a Decisão Arbitral nº 158/2020-T, que se baseou no voto de vencido na Decisão Arbitral nº 887/2019-T. Até aqui, no entanto, a jurisprudência deste Acórdão não obteve qualquer respaldo na jurisprudência superior. 

Essa jurisprudência do STA seria também impulsionada, além de pelo já citado  Acórdão do TJUE C-183/13 , pelo Acórdão proferido no processo C- 153/17.

De acordo com o primeiro desses Acórdãos, seria emitido em reenvio prejudicial do STA sobre a seguinte questão: «Num contrato de locação financeira, em que o cliente paga a renda, sendo esta composta pela amortização financeira, juros e outros encargos, essa renda paga deve ou não entrar, na sua aceção plena, para o denominador do pro rata, ou, ao invés, devem ser considerados unicamente os juros, pois estes, são a remuneração, o lucro que a atividade da banca obtém pelo contrato de locação?»

O TJUE responderia do seguinte modo: 

“A alínea c) do terceiro parágrafo do nº 5 do art. 17º  da  Sexta Diretiva 77/388/CEE do Conselho, de 17/5/77, relativa à harmonização das legislações dos Estados‑Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios deve  ser interpretada no sentido de que não se opõe a que um Estado‑Membro, em circunstâncias como as do processo principal, obrigue um banco que exerce, nomeadamente, atividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fração que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

Assim, os Estados membros podem excluir do âmbito do “pro-rata” , com o consequente expurgo do numerador e denominador da fração pela qual se concretiza o seu apuramento,  parte  da renda relativa à amortização do capital.

Resta saber se tal exclusão é uma mera faculdade dos Estados membros, que a podem exercer ou não mediante critérios de oportunidade, ou uma imposição do Direito Comunitário,  subtraída à   livre apreciação pelos Estados membros (poder- dever) , como pressupõe a 1ª Conclusão do presente Acórdão.

Com efeito, faz parte do poder de livre apreciação pelos Estados membros a fixação dos métodos e critérios de repartição dos montantes do IVA pagos a montante na aquisição de bem ou serviços   de utilização mista, desde que tenham em conta a finalidade e a estrutura da Diretiva IVA e a percentagem de dedução  reflita objetivamente a parte da imputação real das despesas a montante comuns a dada uma dessas  atividades. Esse poder de livre apreciação, quando exista, deve ser exercido por via legislativa ou, se for o caso, regulamentar, no caso do direito nacional, mediante ato normativo nos termos do art.112º  da CRP..

Esse poder de livre apreciação não é ilimitado:   vem definido imperativamente no Acórdão C- 437/06 nos seguintes termos:

“32- Com a sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se, na hipótese de a dedução do IVA pago a montante só ser permitida na medida em que as despesas suportadas pelo sujeito passivo possam ser imputadas a atividades económicas, se deve aplicar uma chave de repartição segundo a natureza do investimento ou, no caso de uma a fim de repartir os montantes de IVA que incidiram sobre estas despesas. aplicação por analogia do artigo 17.o, n.o 5, da Sexta Diretiva, segundo a natureza da operação

33- Nestas condições e a fim de que os sujeitos passivos possam efetuar os cálculos necessários, incumbe aos Estados-Membros estabelecer os métodos e os critérios adequados para esse efeito, no respeito dos princípios subjacentes ao sistema comum do IVA.

34-Nestas condições e a fim de que os sujeitos passivos possam efetuar os cálculos necessários, incumbe aos Estados-Membros estabelecer os métodos e os critérios adequados para esse efeito, no respeito dos princípios subjacentes ao sistema comum do IVA. 

35- Nesta medida, quando a Sexta Diretiva não contiver as indicações necessárias para tais cálculos precisos, os Estados-Membros estão obrigados a exercer o referido poder, tendo em conta a finalidade e a economia desta Diretiva (v., neste sentido, acórdão  no proc, C-72/05)

 

36- Em especial, como o advogado-geral salientou no n.o 47 das suas conclusões, as medidas que os Estados-Membros são chamados a adotar para este efeito devem respeitar o princípio da neutralidade fiscal em que assenta o sistema comum do IVA 

37-Por conseguinte, os Estados-Membros devem exercer o seu poder de apreciação de modo a assegurar que a dedução só será efetuada para a parte do IVA que é proporcional ao montante referente às operações que conferem direito a dedução. Devem, pois, zelar para que o cálculo do pro rata entre atividades económicas e atividades não económicas reflita objetivamente a parte de imputação real das despesas a montante a cada uma destas duas atividades.

38- Importa acrescentar que, no âmbito do exercício do referido poder, os Estados-Membros estão habilitados a aplicar, sendo caso disso, quer uma chave de repartição segundo a natureza do investimento, quer uma chave de repartição segundo a natureza da operação, quer ainda qualquer outra chave adequada, sem estarem obrigados a limitar-se a um único destes métodos.

39- Há, pois, que responder à segunda questão que a determinação dos métodos e dos critérios de repartição dos montantes do IVA pago a montante entre atividades económicas e atividades não económicas, na aceção da Sexta Diretiva, se insere no poder de apreciação dos Estados-Membros, que, no exercício deste poder, devem ter em conta a finalidade e a economia desta diretiva e, a esse título, prever um modo de cálculo que reflita objetivamente a parte de imputação real das despesas relativamente a cada uma dessas atividades.” 

Assim, o poder de os Estados membros determinarem os critérios de repartição do IVA pago a montante entre atividades económicas e atividades não económicas é um poder vinculado:  o ser exercício deve refletir objetivamente a parte de imputação real das despesas relativamente a cada uma dessas atividades, o que não pode deixar de limitar a utilização do “pro-rata”. Nessa medida, ao contrário do que, ainda que º porventura implicitamente sustenta o presente Acórdão, o nº 2 do art. 173º da Diretiva IVA tem aplicação  direta e não mero efeito direto. 

Nessa medida, o nº 31 do Acórdão no proc. C-183/13, retomaria a doutrina do proc- C-437/06.  o princípio da neutralidade fiscal, inerente ao sistema comum do IVA, exigindo expressamente que as modalidades do cálculo da dedução que os Estados membros podem adotar,  reflitam objetivamente a parte real das despesas efetuadas com a aquisição de bens e serviços de utilização mista que pode ser imputada a operações que conferem direito à dedução, ou seja, a afetação especial de uma parte dos bens e serviços utilizados. 

Caso cada Estado membro dispusesse de um poder absolutamente  discricionário na definição  do direito à dedução, os seus pressupostos poderiam  variar livremente dentro do território comunitário, ficando, assim , comprometido um aspeto fundamental do sistema comum IVA. 

 Quaisquer dúvidas seriam dissipadas  pelo segundo Acórdão do TJUE, o C-153/17.

Assim, de acordo com as suas  Conclusões:

“ O art. 168º. e a alínea c) do nº 2 do art. 173º da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 /5/2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, devem ser interpretados no sentido de que, por um lado, mesmo quando os custos gerais relativos às operações de locação financeira de bens móveis, como as que estão em causa no processo principal, não sejam repercutidos no montante devido pelo cliente pela disponibilização do bem em causa, ou seja, na parte tributável da operação, mas no montante dos juros devidos a título da parte «financiamento» da operação, ou seja, na parte isenta da operação, esses custos gerais devem ser considerados, para efeitos de imposto sobre o valor acrescentado, como um elemento constitutivo do preço dessa disponibilização e, por outro lado, que os Estados-Membros não podem aplicar um método de repartição que não tenha em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega, uma vez que esse método não é suscetível de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios”.

Assim, nos casos em que não seja possível  ao sujeito passivo a aplicação de critérios objetivos de imputação dos custos comuns , este    não só pode como deve   considerar no numerador e no denominador  da fração,  de apuramento do “pro-rata” da dedução,  o montante anual das rendas auferidas, expurgado da  parte    destinada à amortização do capital financiado/investido para a aquisição do bem locado.

Essa solução é , como já se disse,  a que resulta de, não obstante  caber aos Estados membros definir livremente  os métodos e critérios a utilizar na repartição das despesas de investimento, nos termos do nº 2 do art. 173º da Diretiva IVA,  tal liberdade  não  ser absoluta: tendo   por limite, os princípios fundamentais  do funcionamento do imposto  e consequentemente, de acordo com o Parágrafo 39º do preâmbulo dessa Diretiva ,  a necessidade de “o cálculo do “pro-rata” da dedução ser efetuado da mesma forma em todos os Estados membros” 

Como refere essa jurisprudência, o contrato de locação financeira, embora constitua uma operação comercial única, inclui, em termos da legislação nacional em matéria de IVA como na generalidade dos países da União Europeia que consagraram a figura,  , várias operações distintas, compreendendo , por um lado, a disponibilização de um veículo, por outro, uma concessão de crédito..

O não expurgo do numerador e denominador da fração da parte destinada à amortização do capital financiado/investido para a aquisição do bem locado, que é um elemento do preço do bem e não a remuneração do crédito concedido, ainda que essa amortização seja integrada nos juros,  originaria , segundo o último Acórdão, um empolamento artificial do direto à dedução.

Com efeito a amortização do capital investido não constitui a remuneração da  concessão do crédito

Assim, no apuramento do “pro-rata”, a parcela dos juros que reflete a amortização do capital  é um elemento da contrapartida recebida  pela entrega dos bens e não  a  contraprestação de uma operação de financiamento( Acórdão do TJUE C- 281/91).

Assim, extraindo todas as consequência dessa jurisprudência comunitária, apenas no quadro de um comportamento nacional de franco incumprimento do Direito Comunitário, se colocaria a possibilidade de inclusão legal no numerador e denominador da fração  que serve de base ao  apuramento do “pro-rata” da amortização do capital investido. 

Embora os  Estados-Membros estarem habilitados a aplicar, sendo caso disso, quer uma chave de repartição segundo a natureza do investimento, quer uma chave de repartição segundo a natureza da operação, quer ainda qualquer outra chave adequada, sem estarem obrigados a limitar-se a um único destes métodos, como evocaria  o nº 38 do Acórdão do TJUE C-437/06, essa habilitação termina  quando a chave de repartição adotada implique distorções significativas da concorrência, que se verificam sempre – e não apenas eventualmente- quando o valor das rendas com base no qual é determinado o direito à dedução  não seja expurgada a parcela destinada à amortização do capital. Nesse caso, ou o sujeito passivo opta pela afetação real, ou o montante amortizado é excluído do “pro-rata” da dedução.  

Assim, a norma do art. 23° n° 2 do CIVA, ao permitir que a administração fiscal imponha condições especiais de dedução no caso de se verificarem distorções significativas na tributação, não  concede  à administração fiscal quaisquer poderes de liberdade ou oportunidade de fixação dos métodos e critérios de repartição dos montantes do IVA pagos a montante. Limita-se a reconhecer a obrigatoriedade da afetação real implique distorções significativas da concorrência 

Tal poder é vinculado: deve ser exercido quando da aplicação do regime de “pro-rata”  resultarem  “distorções significativas da concorrência”, como as que resultam a inclusão nas rendas com base nas quais é determinado o direito à dedução de uma parcela correspondente à amortização do capital investido.

O conceito de “distorções significativas da concorrência” que implica a imposição da afetação real, não é, por outro lado, um conceito absolutamente  indeterminado, que as administrações  fiscais dos Estados membros  possam preencher à sua vontade.

 É corolário do princípio da neutralidade subjacente à tributação em IVA, que impede a discriminação arbitrária para efeitos deste imposto entre atividades substancialmente idênticas(Acórdãos do TJUE C-8/01, C-288/07 C-344/15)  

A margem de apreciação que o nº 2 do art. 23 do CIVA confere à administração fiscal consiste apenas no preenchimento do conceito apenas relativamente indeterminado de “distorções significativas da concorrência” e não  na omissão da imposição ao sujeito passivo do método da afetação real, nos casos em que da  adoção do método do “pro-rata” possam resultar distorções significativas da concorrência: nesse caso, o método de afetação real é  imposto aos   Estados membros . 

A liberdade dos critérios de dedução não implica a adoção de métodos menos precisos dos que os que resultam da Diretiva IVA, como sustenta a Conclusão nº 4. O método de inclusão no “pro-rata” da parte das rendas destinada à amortização do capital investido é, como refere o nº 55 do Acórdão 153/2017, menos preciso do que o do seu expurgo 

A interpretação sistemática do nº 2 confirma esse entendimento. 

É o que resulta do seu confronto com o anterior nº 1, que se reproduz:

“1- Quando o sujeito passivo, no exercício da sua atividade, efetuar operações que conferem direito a dedução e operações que não conferem esse direito, nos termos do art. 20.º, a dedução do imposto suportado na aquisição de bens e serviços que sejam utilizados na realização de ambos os tipos de operações é determinada do seguinte modo: 

a) Tratando-se de um bem ou serviço parcialmente afeto à realização de operações não decorrentes do exercício de uma atividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, o imposto não dedutível em resultado dessa afetação parcial é determinado nos termos do n.º 2; 

b) Sem prejuízo do disposto na alínea anterior, tratando-se de um bem ou serviço afeto à realização de operações decorrentes do exercício de uma atividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, parte das quais não confira direito à dedução, o imposto é dedutível na percentagem correspondente ao montante anual das operações que dêem lugar a dedução”. 

O nº 1 do art. 23º impõe, com efeito, que o IVA contido nos chamados “in-puts” simultaneamente afetos a uma atividade económica e a uma atividade não económica seja objeto de um rateio prévio por via da aplicação do método da afetação real.

Apenas feito esse rateio, já no âmbito da atividade económica desenvolvida, pode o sujeito passivo utilizar alternativamente o método da afetação real ou do “pro-rata”, dentro dos limites do sistema comum IVA.

No entanto, a Requerente admitiria implicitamente não ter efetuado o rateio prévio imposto por esta disposição.

É que resulta do art. 20º das Alegações, .em que diz.:” Mesmo a eventual aferição da percentagem de incumprimento vs o universo total de contratos de Leasing e ALD ou o apuramento da percentagem de afetação de recursos (comuns ou exclusivos) a estas duas atividades, quando confrontada com a percentagem de recursos afetos à atividade de crédito, são discussões que acabam por ser irrelevantes, pois há muito que ficou evidenciado que a Requerente não consegue fazer a afetação real dos recursos efetivamente consumidos nas atividades de Leasing e ALD”. 

Como diz Rui Manuel da Costa Bastos, “O Direito à Dedução do IVA- O Caso Particular dos Inputs de Utilização Mista”, Coimbra, 2014, pg. 166, qualquer que seja a opção do sujeito passivo, “pro-rata” ou afetação real, ela abrange apenas os “in-puts” não previamente filtrados através desse nº 1, por força da sua afetação a uma atividade não tributada, com a consequente não dedução integral do IVA. 

Nessa medida, os nºs 1  e 2 do art. 23º do CIVA são a    transposição para o direito interno da alínea c) do terceiro parágrafo do nº 5 do art. 17º da Diretiva IVA , atual  nº 2 do art. 173º como afirmaria perentoriamente o nº 19 do Acórdão do TJUE C-183/13.

Nessa medida, a  referida Conclusão  1 contém um evidente erro de direito,  juízo extensivo, como se referiu , à Conclusão  4.

A jurisprudência comunitária e nacional citada reconhece o direito do sujeito passivo demonstrar a    utilização  mista dos  bens e serviços ser  sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão  dos  contratos de  locação financeira  , e não  pela disponibilização  de um bem, em que tal financiamento e gestão do crédito  são meramente acessórios ou instrumentais de uma atividade tributada. 

Nesse caso, o cálculo do direito à dedução não está abrangido pelo rateio obrigatório a que se refere   a alínea a) do nº 1 do art. 23º do CIVA, nem a afetação real é imposta pelo nº 3.

Cabe sempre, no entanto,  ao titular do direito à dedução do IVA  demonstrar  que a utilização mista dos bens ou serviços foi sobretudo determinada pela disponibilização de um bem e não pelo financiamento e gestão dos contratos de locação , como resulta  do Acórdão   recurso 0485/17 do STA e dos Acórdãos do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do STA de 20/01/2021, rec.101/19.1BALSB;   de 24/03/2021, rec.87/20.0BALSB, ou seja, . 

Segunda essa jurisprudência, que deve ser havida por consolidada, nos termos do nº 3 do art. 152º do Código do Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), aplicável “ex vi” do nº 3 do art. 25º do RJAT, no âmbito do procedimento e do processo tributário o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da AT e dos contribuintes, recai sobre quem os invoque , como, aliás, resulta do nº 1 do art. 342° do CCivil(CC) e nº 1 do art. 74° da LGT. Incumbe, assim, ao titular do direito à dedução demonstrar que a utilização dos bens ou serviços é sobretudo determinada pelo financiamento e gestão dos contratos e não pela disponibilização de um bem. 

Tal afetação objetiva deve resultar da contabilidade, como resulta do nº 1 do art. 44º do CIVA., nos termos do qual a contabilidade deve ser organizada de forma a possibilitar o conhecimento claro e inequívoco dos elementos necessários ao cálculo do imposto, comportando todos os dados  necessários ao preenchimento da declaração periódica  , com força probatória nos termos do nº 1 do art, 75º da LGT. 

A afetação real pressupõe, assim, além da separação das atividades desenvolvidas pelo sujeito passivo, o elemento adicional da repartição dos custos em função da utilização real- e não meramente presumida, ao contrário do que acontece no regime do “pro-rata”, justificada de acordo com critérios objetivos- 

Ora, apenas constitui proveito contabilístico da  sociedade locadora, integrando, assim o  volume de negócios que serve de base   ao apuramento do “pro-rata”, nos termos do nº 4 do art. 23º do CIVA, a parcela das rendas  registada nas respetivas contas de proveitos.

 A componente de amortização financeira das rendas, subjacente à aquisição do bem locado,  não reveste, pelo contrário, a natureza de proveito, nos termos do art. 42º do CIVA. 

Como dizem o Parágrafo 32 e 33  da NCRF 9:

32. Os locadores devem reconhecer os ativos detidos sob uma locação financeira nos seus balanços e apresentá-los como uma conta a receber por uma quantia igual ao investimento líquido na locação. 

33. Substancialmente, numa locação financeira todos os riscos e vantagens inerentes à propriedade legal são transferidos pelo locador, e por conseguinte os pagamentos da locação a receber são tratados pelo locador como reembolso de capital e rendimento financeiro para reembolsar e  recompensar o locador pelo seu investimento e serviço.

O mero reembolso do capital mutuado, à luz desse enquadramento contabilístico, não é rendimento do locador, ao contrário do rendimento financeiro que visa  reembolsar e  recompensar o locador pelo seu investimento e serviço.

Nos termos do nº 1 do art. 1º da Condições Gerais, cabe ao Locatário escolher  de sua livre vontade o veículo automóvel  a locar, bem como o respetivo Fornecedor/mediador, com o qual  negocia  diretamente a aquisição, não se podendo, assim, imputar ao locador  custos relevantes  dessa negociação, como evidenciaria, aliás, a propósito de uma situação idêntica, aliás comum  ao sector da locação financeira, o Acórdão  de 26/3/2022 , no proc. 75.21.9BALSB.  

É, assim, com o Fornecedor /mediador  que  o Locatário acorda  a marca, modelo e  respetivas especificações técnicas, o preço e os  demais aspetos referidos nas Condições Particulares.

 

Não tem, deste modo o Locador qualquer intervenção nessa fase do  processo de locação financeira  e na formação do acordo que a finaliza.- O Locatário escolhe livremente o veículo automóvel a adquirir.  .

 

Apenas posteriormente a esse acordo, começando aí a sua intervenção efetiva na operação, o Locador  examina  o pedido do Locatário, incluindo a promessa de compra e venda no termo do contrato, conforme  as informações prestadas pelo Locatário, e com base nestas e noutros elementos obtidos , aceita ou não a concessão do crédito. 

 

Os consumos relacionados com a preparação do contrato e consequente concessão do crédito são ressarcidos através de uma comissão específica, tributável em IVA, independentemente de esta poder ser dispensada por razões comerciais.

Apenas com a assinatura do auto de receção do veículo, posterior à aprovação do contrato, o veículo é disponibilizado ao locatário, sendo evidente, como sustentaria o acórdão do proc. 75.21.9BALSB que os consumos dessa disponibilização, dada a reduzida intervenção do Locador, são inferiores que os que resultam do financiamento e gestão implicados pela locação financeira.

Por outro lado, ao contrário dos consumos incorridos com serviços informáticos  ,  com o processamentos de faturas durante a execução do contrato e  com o envio de correio,, outros   consumos , posteriores à entrega/disponibilização  dos bens , como relacionados com  a gestão dos  seguros, o pagamento de IUC, a gestão das multas, alterações contratuais, processamento das prestações , gestão de sinistros, incluindo o reboque da viatura  ou incumprimento definitivo   objeto de uma comissões  específicas, sobre as quais recai IVA.

Tais despesas concorrem para o volume de negócios do locador, que pode deduzir o imposto  suportado  de acordo com o método do “pro-rata” ou afetação real, conforme o método que entenda mais adequado.

No entanto, a Requerente não contabilizou esses consumos de acordo com o método da afetação real, mas inclui-os no “pro- rata” de dedução, sem sujeição  ao rateio prévio da alínea a)  nº 1 do art. 23º do CIRC e em violação do nº 2 desta norma .

Face a este quadro, a Requerida não estava obrigada a provar quaisquer distorções significativas da concorrência: elas resultam necessariamente, face à jurisprudência comunitária citada, do método de imputação de custos que adotou.

Por outro lado, apenas foi apurado que os recursos comuns  utilizados pela Requerente no âmbito da sua atividade foram determinados quer pelo financiamento e gestão dos contratos, quer pela disponibilização dos bens locados(CONCLUSÂO 5).

 Não foi provado que os recursos utilizados pela Requerente foram essencialmente  determinados pela disposição de bens foram predominantes, mas apenas que esses custos existiram, o que, nos termos do Acórdão 75.21.9BALSB também sobre idêntica situação de facto, não é suficiente para justificar a pretensão da Requerente.

A liquidação impugnada não se fundou, por outro lado, em qualquer orientação administrativa, como o citado nº 9 do Ofício- circulado nº 30.108., mas no nº 2 do art. 23º do CIVA, ainda que de acordo com a interpretação dessa norma efetuada por esse Ofício - circulado., que é mero direito interno da administração fiscal, sem eficácia externa., como aliás resulta claramente dos nºs 72º a 75. da informação da Divisão de Justiça Tributária da UGC em que se baseou o despacho impugnado.

Não está em causa, assim, qualquer violação do princípio da legalidade formal, nomeadamente estabelecido no nº 2 do art. 103º e na alínea i) do nº 1 do art. 161º da CRP que, haveria sem dúvida  caso a administração fiscal tivesse introduzido restrições ao direito à dedução para além das previstas no nº 2 do art. 23º do CIVA, mas, quanto muito, da legalidade material  a qual  pela motivação apresentada,  confirmada pela jurisprudência até aqui unânime do STA e TJUE, não ocorreu. 


O ÁRBITRO

(António de Barros Lima Guerreiro)

 



[1] Manual de Direito Fiscal, Coimbra Editora, 3ª Ed., 2007, pp.125-126.

[2] “A determinação da parcela de IVA dedutível contida nos inputs “promíscuos” dos operadores de locação financeira – as consequências do Acórdão do TJUE no caso Banco Mais, de 10 de Julho de 2014 (Proc. C-183/13)”, Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, Coimbra, a.10n.1(Primavera2017), pp. 27-56.

 

[3] O bold é nosso.

[4] Veja-se José Maria Montenegro, “Comentário ao acórdão «Fazenda Pública contra Banco Mais, SA» de 10 de Julho de 2014, Proc. C- 183/13”, em Anuário de Direito Internacional, 2014/2015, pp. 313-323. 

[5] Decisão proferida no âmbito do Proc. C-153/17, de 18 de Outubro de 2018.