Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 831/2021-T
Data da decisão: 2022-12-19  IVA  
Valor do pedido: € 955.265,49
Tema: IVA. Actos médicos. Isenção por finalidade terapêutica. Isenção por cessão de estabelecimento. Interpretação estrita das isenções.
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DECISÃO ARBITRAL

 

 

1. Relatório

A..., LDA., NUIPC..., com sede na Rua..., n.º ..., em ... (doravante designado por Requerente), apresentou junto do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), pedido de constituição de Tribunal Arbitral singular, ao abrigo das disposições conjugadas nos art.ºs 2.º, n.º 1, alínea a), 3.º, n.º 1, 5.º, n.º 3, alínea a), e 10.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante RJAT), tendo em vista a declaração de ilegalidade e subsequente anulação do acto de liquidação de IVA n.º 2021..., relativo ao período 2017/04, no valor de EUR 821.100,00 com prazo de pagamento voluntário até 20.09.2021 (doc. 1), e a correspondente liquidação de juros compensatórios, no valor de EUR 134.165,49, com prazo de pagamento voluntário até 20.09.2021 (doc. 2).

Peticiona ainda o pagamento dos gastos suportados com a prestação indevida de garantia bancária para suspensão do processo de execução fiscal n.º ...2021... e apensos, originado pelas referidas liquidações aqui contestadas.

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por “AT” ou simplesmente “Administração Tributária”).

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 21.12.2021.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do art.º 6.º e da alínea b) do n.º 1 do art.º 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo art.º 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo o Sr. Prof. Doutor Fernando Borges de Araújo, a Sra. Prof.ª Doutora Cristina Aragão Seia e o Sr. Dr. José Rodrigo de Castro, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 03.02.2022, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados das alíneas a) e) do n.º 1 do art.º 11.º do RJAT e dos art.ºs 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do art.º 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo art.º 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 22.02.2022.

A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta, em 09.5.2022, defendendo-se por impugnação.

Em 29.07.2022, por despacho do Sr. Presidente do Conselho Deontológico, o Sr. Dr. José Rodrigo de Castro, arbitro-adjunto, foi substituído pela Sra. Prof.ª Doutora Ana Paula Marques Rocha.

Por despacho de 02.09.2022, foi decidido dispensar a reunião prevista no art.º 18.º do RJAT e foram as partes convidadas a apresentar alegações, o que apenas a Requerente fez, reiterando a posição assumida inicialmente.

O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado na alínea e) do n.º 1 do art.º 2.º, e do n.º 1 do art.º 10.º, ambos do RJAT.

As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (art.º 4.º e n.º 2 do art.º 10.º, do mesmo diploma e art.º 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades.

 

2. Matéria de facto

2.1. Factos provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

  1. A Requerente tem por objecto a gestão e prestação de serviços de saúde, diagnóstico e terapêutica, consultas de diversas especialidades, cirurgias, análises clínicas, anatomia patológica, genética, reprodução médica assistida, maternidade, diagnóstico clínico através de tecnologia de imagem, cardiologia, gastroenterologia, terapia celular, enfermagem, fisioterapia e todo o tipo de prestação de serviços médicos e paramédicos, prestação de serviços médicos na área de medicina dentária, nomeadamente actividades de prevenção e tratamento das anomalias e doenças dos dentes, boca, maxilares e estruturas anexas, laboratório de prótese dentária, representações e comercialização de produtos e equipamentos médicos, hospitalares e produtos farmacêuticos, medicina tradicional chinesa, acupunctura, dermoestética e todo o tipo de tratamento na área da estética, beleza e bem-estar. (doc. 3)
  2. A Requerente está enquadrada, para efeitos de IVA, no regime normal de periodicidade mensal, praticando operações mistas com afectação real de parte dos bens e serviços.
  3. A Requerente foi sujeita ao procedimento inspectivo de âmbito parcial, relativo ao IVA de 2017, credenciado pela Ordem de Serviço OI2020... .
  4. O Procedimento Inspectivo foi autorizado por despacho de 30.10.2020 emitido pelo Chefe de Divisão de Inspecção Tributária, e teve como fundamento o seguinte: «No âmbito de acção inspectiva interna à sociedade B..., S.A., apurou-se que o SP identificado em epígrafe celebrou com aquela sociedade, no ano 2017, um contrato de prestação de serviços e parceria. Uma das contrapartidas do contrato foi o pagamento ao SP da quantia de 3.750.000€, que, pela análise efectuada, estaria sujeita a IVA e dele não isenta. Uma vez que o SP não procedeu à liquidação do imposto, solicita-se a emissão da Ordem de Serviço externa, de âmbito parcial, dirigida ao IVA do ano de 2017, para proceder às correcções devidas». (fls. 6 do doc. 4-PA PT1).
  5. Em 18 de Abril de 2017, a Requerente celebrou com a sociedade B... um contrato de prestação de serviços e parceria nos seguintes termos:

 

 

 

 

 

 

 

 

  1. Da Certidão do Procedimento Inspectivo (doc. 4), somente se verifica, na fl. 7, a mera menção no campo “observações” aos documentos anexos constantes de Cópias de Certidão Permanente, Ordem de Serviço, Contrato, Actas, Acordo e Declaração de Quitação, Requerimentos e Declarações (num total 18 de folhas), sem que tais documentos constem da referida certidão.
  2. Em resultado do Procedimento Inspectivo e do Relatório de Inspecção Tributária, foram emitidas a Liquidação de IVA n.º 2021... e a respectiva Liquidação de Juros Compensatórios.
  3. A Liquidação de IVA e a Liquidação de Juros Compensatórios deram origem ao processo de execução fiscal número ...2021... e apensos.
  4. Com vista à suspensão do processo de execução fiscal, a Requerente apresentou garantia bancária.
  5. A Requerente apresentou, em 19.12.2021, o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.

 

2.2. Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto

 

Não há factos relevantes para a decisão da causa que não se tenham provado.

Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos ao processo.

No pedido arbitral a Requerente impugna a “veracidade e integralidade” do contrato identificado na alínea e) antecedente, por não estar “em condições de confirmar ou infirmar a legalidade dos meios de obtenção de prova”. Quer dizer, não está propriamente em causa a invocação da falsidade do documento, sendo antes posto em causa pela Requerente a pretensa “ilegalidade” dos meios utilizados pela AT para a sua obtenção.

Pese embora coloque em causa, por esta forma enviusada, tal documento, a Requerente não contrapõe, por um lado, a existência de nenhum outro e, por outro, reconhece ter celebrado contrato com a mesma contraente, a sociedade B... .

Sustenta tal alegação no facto de na certidão que obteve não terem sido juntos os anexos a que a AT faz referência e, por outro lado, não encontrar justificação para a AT ter tido acesso àquele contrato, não aceitando que o mesmo possa ter sido obtido numa açcão de inspecção àquela sociedade B..., por não ter disso tido sequer conhecimento.

Relativamente a este último argumento transcreve-se o que se diz no Acórdão do STA de 17-12-2019, no Proc. 072/13.8BEMDL: “há lugar a dispensa de notificação prévia a que alude a alínea a) do n.º 1 do artigo 50º do Regime Complementar de Inspecção Tributária quando o procedimento se reconduza à consulta, recolha ou cruzamento de documentos junto de sujeitos passivos com quem o sujeito passivo inspeccionado mantenha relações económicas” (sublinhado nosso). É indiscutível que o documento em causa foi obtido junto de entidade com quem a Requerente estabeleceu relações económicas e contratuais e, mais do que isso, ela própria intervém como outorgante desse mesmo documento.

No que respeita aos anexos, reconhece que se faz referência aos mesmos no RIT e, tendo constatado a sua não incorporação na certidão que obteve, não questionou tal omissão como relevante para efeitos da apresentação do presente PPA. Acresce que ao longo do procedimento de inspecção e, designadamente, com a recepção do projecto de RIT (onde se juntam os aludidos anexos), nunca a Requerente invocou a sua falta.

Daí que nenhuma irregularidade ou vício possa ser imputado quanto à importação para o RIT do contrato obtido junto da sociedade B... .

Por outro lado, apesar de invocar a “veracidade e integralidade” do documento, entendemos que de forma não motivada, o certo é que ao longo da argumentação vertida no PPA, a Requerente analisa, sem contestar, o clausulado do contrato - transcrito no RIT -, esgrimindo argumentos no sentido de contrariar a interpretação que do mesmo a AT faz no RIT.

Ora, apesar de não se cuidar aqui sequer de qualificar o RIT como possível documento autêntico - como o fazem, por exemplo, os Acórdãos do TCA Sul de 09-07-2020, no Proc. 862/06.8BELSB e de 13-04-2010, no Proc. 02800/08 – é inquestionável o valor probatório dos factos objectivos constantes do RIT, incumbindo ao contribuinte demonstrar a ocorrência de factos impeditivos, modificativos ou extintivos dos mesmos, contrariamente ao que sucede com as asserções que sobre o mesmo são feitas no RIT, relativamente às quais entendemos valer de forma plena o princípio do contraditório. (cf. Acórdão do TCA Norte de 16-02-2017, no Proc. 01752/11.6BEPRT).

Tendo, no caso, sido observado o ónus da prova que sobre as partes recaía, deu-se por provado a celebração do contrato identificado na alínea e) dos factos tidos como assentes.

 

3. Matéria de direito

 

3.1. Posições das Partes

 

A Requerente defende no pedido arbitral, em suma, que:

     Para além da obrigação principal de prestação de serviços de análises clínicas, a Requerente ficou, em virtude da celebração do acordo com a B..., sujeita a um conjunto de obrigações acessórias subordinadas (não independentes, pressupostas e residuais) da obrigação principal que tinham exclusivamente em vista permitir a satisfação da actividade de análises clínicas nas melhores condições possíveis, em particular, (i) obrigações de desmantelamento dos laboratórios de Viana, Porto e de São João da Madeira; (ii) obrigações de exclusividade; (iii) transmissão dos postos de colheita para convenções celebradas pela B...; obrigação mútua de não assediar.

–   A contrapartida fixada contratualmente para a prestação dos serviços de análises clínicas consistiu em duas parcelas: (i) montante correspondente a percentagem do volume de negócios relativo a colheitas realizadas nos postos de colheita relevantes (entre 45% e 47,5%) e (ii) montante inicial calculado por referência ao volume de facturação das análises clínicas realizadas nos 12 meses anteriores à celebração do contrato de parceria (correspondente a EUR 3.570.00,00).

–   A contrapartida financeira em causa tem uma relação directa, incindível e subordinada à prestação de serviços de análises clínicas cuja contratação exigiu a assunção de determinadas obrigações subordinadas. Se, por um lado, nenhuma das obrigações acessórias supra-referidas seriam assumidas se não fosse celebrado o acordo de parceria na realização de análises clínicas, por outro, essas obrigações foram condição essencial, tanto económica como regulatória, para a celebração do acordo.

–   A contrapartida foi fixada globalmente e unicamente repartida entre montante inicialmente recebido e montantes posteriormente a receber.

–   Pelo que, tanto a obrigação principal de prestação de serviços de análises clínicas (serviço estreitamente conexo com serviços médicos), como as restantes prestações acessórias não independentes do serviço principal estão isentas de IVA.

–   Mesmo se se considerasse autonomamente as prestações acessórias em causa – o que não se concede –, sempre o acordo celebrado entre a Requerente e a B... configuraria, na parte em que impõe essas mesmas obrigações uma transmissão (quanto à fase analítica) do estabelecimento comercial da Requerente, o que se encontraria, em qualquer caso, excluído de IVA (artigo 3.º, n.º 4 e 4.º, n.º 3 do Código do IVA).

–   E mesmo que se se quisesse autonomizar tão-só a obrigação de desmantelamento de laboratórios (o principal fundamento para desconsiderar a parceria em causa como acto conexo com acto médico ou prestação acessória), nunca tal actividade poderia constituir uma prestação de serviços, pois em causa não estaria uma troca de prestações recíprocas, por desse acto de desmantelamento não decorrer qualquer benefício directo e imediato na esfera da B... .

–   Com a anulação da Liquidação de IVA deve igualmente a Liquidação de Juros Compensatórios ser anulada mais devendo a Requerente ser indemnizada pelos danos causados com a prestação indevida de garantia bancária.

–   A Liquidação de IVA em crise deverá ser anulada com os seguintes fundamentos:

(i) Vício procedimental de insuficiência de procedimento inspectivo por não terem sido realizadas as diligências mínimas necessárias à emissão de uma decisão devidamente fundamentada;

(ii) Vício de violação de lei quanto à fundamentação de facto e de direito, por não estarem em causa prestações desagregadas, mas sim prestações incindíveis e subordinadas à prestação principal de serviços de análises clínicas;

(iii) Vício de violação de lei quanto à fundamentação de direito, pois, caso se considerasse autonomamente as prestações acessórias, tal operação não estaria sujeita a IVA por constituir transmissão do estabelecimento não sujeita;

(iv) Vício de violação de lei quanto à fundamentação de direito no que respeita ao tratamento da operação de “desmantelamento”, por não estar em causa uma prestação de serviços.

–   Conclui pela procedência do presente pedido arbitral.

 

A Autoridade Tributária e Aduaneira, por seu turno, defende, em suma, que:

–   Quanto ao alegado vício procedimental de insuficiência de procedimento inspectivo, a Requerida obteve a cópia do contrato celebrado entre a requerente e a B... no âmbito de uma acção inspectiva interna a esta, sendo que a própria Requerente lhe disponibilizou uma cópia, constando ambas do Processo Administrativo; o direito de participação foi estritamente cumprido pelos serviços da Requerida no âmbito do direito de audição;

–   Quanto ao vício de violação de lei quanto à fundamentação de facto, as obrigações presentes na Cláusula quarta do contrato não consubstanciam condição sine qua non para a realização de colheitas e análises clínicas a efectuar em regime de exclusividade pela B...; apenas as prestações de serviços referentes às análises clínicas correspondem ao conceito de acto médico para efeitos de IVA, que vem sendo desenvolvido pela jurisprudência do TJUE;

–   Quanto ao vício de violação de lei quanto à fundamentação de direito dada a aplicação de regime de isenção de IVA da prestação principal às prestações acessórias, as obrigações constantes da Clausula Quarta não são estritamente necessárias para a prestação de serviços médicos, sendo independentes destas e possuem um valor intrínseco próprio; acresce que não se pode considerar que tenham um valor marginal face ao valor da prestação principal, com repercussão limitada no valor global, atento quer o seu valor absoluto (3.570.000,00 €), quer relativo (mais de 15% do valor global estimado da parceria);

–   Quanto ao vício relativo à fundamentação de direito caso se considerasse autonomamente as prestações acessórias, em razão da não sujeição a IVA da transmissão do estabelecimento, tendo sido prosseguida pela B... a mesma actividade, o suposto património transmitido teria sido afecto ao sector que não confere direito à dedução, pelo que a operação em causa não se enquadraria na delimitação negativa da incidência prevista no n.º 4 do artigo 3º do Código do IVA e estaria sujeita a IVA;

–   Quanto ao vício relativo à fundamentação de direito no que respeita ao tratamento da operação “desmantelamento”, não existe qualquer nexo directo e causal entre as prestações de serviços médicos e estas prestações de serviços, que são independentes das primeiras e que não constituem pressuposto essencial para a elaboração do contrato entre ambas as partes;

–   No que se refere à não assinatura da proposta de inspecção, isso deve-se exclusivamente ao procedimento adoptado internamente, em consequência da situação pandémica, de desmaterialização deste tipo de documentos, não tendo qualquer impacto no procedimento inspectivo que se encontra devidamente credenciado pela Ordem de Serviço emitida, com despacho, de 30-10-2020, do Chefe de Divisão de Inspecção Tributária, por subdelegação do Director de Finanças Adjunto.

–   Nos quesitos 9 e 10 da p.i., a Requerente confunde a comummente designada Ficha de Identificação dos Responsáveis, um documento interno que procede à identificação da gerência de facto (cuja cópia consta da folha 6 do Processo Administrativo), bem como os respectivos documentos anexos (a prova recolhida mencionada de forma genérica no ponto II.3.2. do Relatório de Inspecção Tributária sob o título Gerentes) com o Processo de Evidência de Trabalho, sendo que foi relativamente a este último que solicitou expressamente certidão, contrariamente ao que refere na petição.

–   A afirmação da Requerente de que a obtenção de melhores condições de preço no âmbito da parceria ao assumir as obrigações remuneradas ao abrigo da Cláusula Quarta do Contrato teria como reflexo directo e imediato um menor custo imputado ao utente não corresponde à realidade, uma vez que a Requerente não define os preços praticados a esses utentes.

–   Esses preços são definidos nas convenções aplicadas ou, no caso dos particulares, estipulados pela B..., conforme definido no ponto (iv) do número 2 da Cláusula Segunda do Contrato, pelo que a obtenção de melhores condições de preço no âmbito da parceria apenas aproveita à Requerente como, aliás, admite, ao referir, no artigo 82.º, que permitiram “a repartição da facturação entre Requerente e B... mais favorável à Requerente”.

–   Concluindo pela improcedência do pedido, uma vez que os actos tributários contestados não merecem censura.

 

 

3.2. Apreciação da questão

 

Alega a Requerente que o procedimento de inspecção teve origem em proposta de emissão não assinada nem datada. Contudo, não retira de tal alegação qualquer consequência. É que tal documento não tem qualquer relevância externa, não produzindo quaisquer efeitos directos na esfera do contribuinte. Com efeito, no âmbito de um procedimento de inspecção apenas relevam, por um lado, a notificação prévia para procedimento de inspecção a que alude o artigo 49º do RCPITA, e, por outro, o documento formal com verdadeira relevância para o início do procedimento que é a Ordem de Serviço ou Despacho que determinou o procedimento, que, aliás, tem de ser assinado pelo sujeito passivo, como impõe o artigo 51º do mesmo diploma.

Tais formalidades foram devidamente observadas, pelo que nenhum vício procedimental pode ser assacado ao procedimento de inspecção e, consequentemente, ao acto tributário em causa.

Posto isto, todo o PPA gira à volta do contrato mencionado na alínea e) da matéria de facto e da necessidade de se apurar se, do mesmo, resultam para a Requerente as obrigações em sede de IVA constantes do RIT.

Como o RIT bem identifica, com a celebração do contrato em causa, a Requerente assumiu, em suma, quatro obrigações principais:

- o desmantelamento da capacidade laboratorial instalada;

- a não concorrência com a B...;

- o encaminhamento, em regime de exclusividade, da realização de todas as análises clínicas colhidas em postos de colheita por si explorados para laboratórios da B...;

- a prestação do serviço correspondente às fases pré- e pós-analítica do serviço de análises clínicas, relativamente às colheitas provenientes dos seus postos de colheita.

Para a AT, tendo presente, por um lado, que apenas as prestações de serviços referentes às análises clinicas propriamente ditas correspondem ao conceito de acto médico para efeitos de IVA, que vem sendo desenvolvido pela jurisprudência do TJUE, e, por outro, que as obrigações constantes da Clausula Quarta não são estritamente necessárias para a prestação de serviços médicos, sendo independentes destas, e possuem um valor intrínseco próprio (não podendo considerar-se que representam um valor marginal face ao valor da prestação principal), não se aplica a isenção de IVA do artigo 9º, n.ºs 1 e 2.

Por seu lado, a Requerente entende que as obrigações contratuais em causa são acessórias e subordinadas (não independentes, pressupostas e residuais) da obrigação principal, que tinham exclusivamente em vista permitir a satisfação da actividade de análises clínicas nas melhores condições possíveis. Daí que a contrapartida financeira delas resultante tenha uma relação directa, incindível e subordinada à prestação de serviços de análises clínicas cuja contratação exigiu a assunção daquelas obrigações subordinadas. Logo, nada obstaria a que estivessem isentas de IVA

Diga-se, desde já, que não se vislumbra que as contrapartidas financeiras contratualmente previstas, designadamente na Cláusula Quarta do Contrato, estejam conexas com os actos para os quais se estabelece a isenção de IVA, prevista no artigo 9º, n.º 1 e 2 do CIVA. Não procedem os argumentos invocados pela Requerente em apoio da extensão da isenção de IVA às obrigações a que se obrigou contratualmente, já que os mesmos não são indispensáveis para a prestação dos actos médicos isentos, nem estão subordinados a estes. Antes são acessórios de forma meramente indirecta ou reflexa, e de modo algum entram no círculo da "finalidade terapêutica" para a qual foi concebida, legal e jurisprudencialmente, o regime de isenção de IVA.

Vejamos.

O conceito de prestações de serviços para efeitos de IVA, consagrado no n.º 1 do artigo 4º do CIVA, tem um carácter marcadamente residual, pelo que nele estão também compreendidas prestações de carácter negativo, como a “obrigação de não fazer ou de tolerar um acto ou uma situação” (artigo 25º, alínea b) da Directiva IVA).

Aplicando tal regra ao caso em apreço, dúvidas não há de que as obrigações contratuais passivas assumidas pela Requerente, como a obrigação de não concorrência e exclusividade, e até o desmantelamento da capacidade laboratorial, integram a incidência do imposto.

Posto isto, há que apurar se as mesmas, porque eventualmente conexas com a actividade de análises clínicas que vinha sendo desenvolvida pela Requerente, beneficiam da isenção de imposto prevista no artigo 9º, n.º 1 e 2 do CIVA.

O TJUE tem vindo a desenvolver, ao longo destes anos, jurisprudência relevante sobre a matéria das isenções em geral, nomeadamente sobre as respectivas características e objectivos, e, em especial, no tocante às situações concretas acolhidas na Directiva IVA. O princípio da interpretação estrita das isenções é aquele que mais frequentemente tem vindo a ser invocado pelo Tribunal. É jurisprudência constante que, com alguns matizes, as isenções devem ser objecto de interpretação estrita, quer no que toca aos prestadores de serviços, quer relativamente ao tipo de actividades que devem ser isentas. Atendendo a que as isenções consubstanciam derrogações ao princípio geral de tributação, os termos utilizados para designar as isenções visadas pelo artigo 13.º da Sexta Directiva devem ser interpretadas de forma estrita (ver, por exemplo, Acórdãos de 12 de Dezembro de 1995, Caso Oude Luttikhuis e o Verenigde Coöperatieve Melkindustrie Coberco BA, Proc. C-399/93, Colect., p I-4515, de 12 de Fevereiro de 1998, Caso Comissão/Espanha, Proc. C-92/96, Colect., p. I-505, e de 7 de Setembro de 1999, Caso Gregg, Proc. C-216/97).

Como consequência do que vem de dizer-se, deverá evitar-se o recurso a interpretações extensivas que alarguem o alcance daquelas disposições cuja redacção é suficientemente precisa, pois tal é incompatível com o seu objectivo, que é o de isentar, apenas e tão só, as actividades nele enumeradas e descritas.

A propósito do conceito de “assistência médica” que figura no artigo 13.° A, n.° 1, alínea b), da Sexta Directiva, diz-se no Acórdão do TJUE de 07-06-2006, no Processo n.º C-106/05, que estão em causa “prestações que tenham por finalidade diagnosticar, tratar e, na medida do possível, curar doenças ou anomalias de saúde”.

Posto isto, há que apurar se as obrigações contratualmente assumidas pela Requerente, porque eventualmente conexas com a actividade de análises clínicas que vinha sendo por si desenvolvida, beneficiam da isenção de imposto prevista no artigo 9º, n.º 1 e 2 do CIVA.

Ora, contrariamente ao que a Requerente defende, não se consegue alcançar como as obrigações por ela assumidas possam ser consideradas como indispensáveis para a prestação dos actos médicos isentos, ou subordinados a estes. São sim acessórias, mas de forma meramente indirecta ou reflexa, e de modo algum entram no conceito da "finalidade terapêutica” para a qual foi concebida a aludida isenção de IVA.

O desmantelamento da capacidade laboratorial, a obrigação de não concorrência e o regime de exclusividade concedido são aptos a constituírem “fins em si mesmos”, de cariz não terapêutico e independentes da prestação de cuidados de saúde. Acresce o facto de a remuneração das contrapartidas dadas pela Requerente poder ser contratualmente individualizada, ter carácter relevante e possuir um valor intrínseco que extravasa do âmbito das demais prestações de serviços.

Ou seja, estão em causa obrigações que não têm qualquer carácter instrumental face à prestação de serviços médicos.

Donde se conclui que nada há a apontar ao RIT, quando considera haver lugar a tributação em IVA por ser inaplicável a isenção pretendida pela Requerente.

Defende a Requerente que, ainda que se considerassem autonomamente as prestações acessórias em causa, sempre o acordo celebrado entre a Requerente e a B... configuraria, na parte em que impõe essas mesmas obrigações, uma transmissão (quanto à fase analítica) do estabelecimento comercial da Requerente, o que se encontraria, por essa via, excluído de IVA.

Discordamos, também, de tal entendimento.

Por um lado, já abordámos e qualificámos as prestações tidas por acessórias e, por outro lado, há no contrato uma clara decomposição do preço em parcelas, em função de cada uma das prestações, sendo feita expressamente a diferenciação da remuneração consoante o tipo de obrigações assumidas. Estabelecem-se na Cláusula Terceira do contrato as contrapartidas da prestação de serviços médicos durante a vigência do contrato, e, na Cláusula Quarta, as contrapartidas das demais obrigações assumidas pela Requerente, designadamente o desmantelamento da capacidade laboratorial, a obrigação de não concorrência e o regime de exclusividade concedida.

Acresce que, do clausulado em causa, resulta que a Requerente não transmitiu os seus postos de colheita, mas antes transferiu para a B... as convenções e licenciamentos, relativas aos laboratórios desmantelados e aos postos de colheita, que a Requerente continua a explorar.

Não se percebe a leitura que a Requerente faz do Acórdão do TCA Norte de 10-05-2018 - Proc. 00145/06.4BEVIS. Não é posto em causa, pelo RIT, que a não aplicação, ao caso, do disposto no n.º 4 do artigo 3º do CIVA resulte da não existência de transmissão de um imóvel.

O que o aresto em causa defende, entendimento que perfilhamos, é que “(…) a transmissão do estabelecimento não pressupõe necessariamente a transmissão do local onde ele está instalado. Pode bem suceder que o titular de um estabelecimento, sendo dono do local, transmita o estabelecimento sem o local, ou que não sendo seu proprietário, transmita o estabelecimento sem o direito ao arrendamento do local. É até possível e lícita a exclusão da transmissão de um ou mais elementos que integram o estabelecimento, desde que fique salvaguardada a sua autonomia e funcionalidade e que sejam transmitidos os elementos que asseguram o funcionamento do estabelecimento. elo menos os que sejam susceptíveis de constituir um ramo de actividade independente. Essencial para preenchimento da 1ª parte do n.º4 do art.º 3 do CIVA é que se transmita um património como uma unidade económica, portadora de uma individualidade própria distinta dos elementos que a integram. Ou seja, um conjunto de bens organizados com estabilidade e autonomia suficientes para a realização de uma actividade de natureza comercial ou industrial. Ora, reportando-nos ao caso em análise, com a alegada transmissão das mercadorias (existências e móveis) documentada pela nota de lançamento n.º 14/1999 não se vê como dela se pode extrair que as mesmas correspondem ao estabelecimento ou que são uma parte do seu património susceptível de constituir um ramo de actividade independente”.

No caso, ocorre precisamente o mesmo. É que a Requerente não transmitiu os seus postos de colheita (que, esses sim, poderiam ser entendidos como uma unidade económica portadora de uma individualidade própria), tendo apenas transferido as convenções e licenciamentos que detinha relativamente aos laboratórios desmantelados e aos postos de colheita que a Requerente continua a explorar, como decorre das suas obrigações contratuais.

Ou seja, não ocorreu qualquer operação económica que possa ser qualificada como cessão de estabelecimento comercial, para efeitos de aplicação do artigo 3º, n.º 4 do CIVA, com a consequente exclusão de tributação.

Como bem se diz no Acórdão do TCA Sul de 17-06-2003 - Proc. 07468/02, “para não haver tributação em IVA - de acordo com os termos do n.° 4 do artigo 3.° do Código do IVA - exige-se a transmissão in totum da universalidade da actividade do estabelecimento comercial” (sublinhado nosso).

Em suma, a transmissão das convenções e licenciamentos detidos pela Requerente não é susceptível de integrar o conceito de transmissão de estabelecimento para efeitos do disposto no n.º 4 do artigo 3º do CIVA.

Diga-se, por último, que não se vislumbra como a questão do “desmantelamento” dos laboratórios, já abordada acima, possa ter a relevância e autonomização de tratamento pretendidas pela Requerente.

Em conclusão, nenhuma ilegalidade pode ser apontada à liquidação objecto do presente pedido arbitral.

Fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas.

 

4. Decisão     

 

De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

  1. Julgar totalmente improcedente o pedido arbitral dele absolvendo a Requerida;
  2. Condenar a Requerente no pagamento das custas.

 

 

5. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto nos art.ºs 296.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 955.265,49.

 

6. Custas

 

Nos termos do art.º 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 13.464,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

Lisboa, 19 de Dezembro de 2022

 

 

Os Árbitros,

 

 

 

 

(Fernando Araújo)

 

 

(Cristina Aragão Seia - relatora)

 

 

(Ana Paula Marques Rocha)