Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 348/2022-T
Data da decisão: 2022-11-23  IRS  
Valor do pedido: € 1.768,23
Tema: IRS — art. 19.º, 2, LGT, e 43.º, 1 CPPT — residência fiscal — falta de comunicação de alteração do domicílio fiscal.
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Sumário:

  1.  “Residência fiscal” e “domicílio fiscal” são conceitos distintos que apontam para        realidades também distintas.
  2. A obrigação declarativa prevista no artigo 19.º, 3, da LGT não é uma formalidade             ad substanciam, pelo que a sua preterição não tem, em princípio, impacto em        termos de tributação.
  3. “Não residência fiscal” resulta a contrario do próprio Código do IRS. Quem não        preencher um dos critérios para ser residente, previstos no artigo 16.º do Código do   IRS, é não residente fiscal em Portugal.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

            O árbitro Ricardo Marques Candeias, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o presente Tribunal Arbitral, decide nos termos que se seguem:

 

I – RELATÓRIO

 

A. Dinâmica processual

 

  1. A… (‘Requerente’), titular do NIF …, com domicilio na Avenida …, Lisboa, apresentou pedido de pronúncia arbitral ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), para que seja declarada a ilegalidade do ato de indeferimento do recurso hierárquico e, consequentemente, anulada a liquidação n.º 2021 … de Rendimento das Pessoas Singulares (‘IRS’) do ano de 2017, no valor de € 1.768,27, e efetuado o reembolso correspondente, acrescido dos juros indemnizatórios à taxa legal em vigor.
  2. No dia 2 de junho de 2022 o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à Requerente e à AT.
  3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, 1, e artigo 11.º, 1, b), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o signatário como árbitro do tribunal arbitral singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável
  4. Em 25 de julho de 2022 as partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar.
  5. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral Singular foi constituído em 12 de agosto de 2022.
  6. No dia 23 de setembro de 2022, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação.
  7. Ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art. 16.º, e n.º 2 do art. 29.º, ambos do RJAT, a 24 de outubro de 2022 foi dispensada a realização da reunião a que alude o art. 18.º do RJAT, bem como a de apresentação de alegações escritas. Mais foi indicado que a decisão final seria notificada até ao dia 24 de novembro de 2022.

 

B. Posição das partes

 

            Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, que era residente fiscal no Reino Unido em 2017 uma vez que se encontrava a trabalhar nesse país enquadrada por relação laboral a tempo inteiro, encontrando-se aí registada para efeitos fiscais.

            A Requerente, com relação ao referido ano, não cumpria nenhum dos requisitos legais previstos no artigo 16.º, CIRS para ser considerada residente em Portugal em 2017 (não permaneceu em Portugal mais de 183 dias, não tinha família direta ou casa de morada ou auferia quaisquer rendimentos em Portugal).

            Apesar de não ter atualizado em tempo o seu cadastro fiscal, em Portugal, e apesar de ter apresentado abundante prova aquando da sua reclamação e recurso demonstrativa que residia, em 2017 no Reino Unido, o certo é que foi emitida a nota de liquidação de IRS do ano de 2017, com o valor a pagar de € 1.768,23.

            Considera, em linha com o acórdão de 11.11.2021 do TCA Sul, que o dever de comunicação, previsto quer no art. 43.º, 1, CPPT, quer no então art. 19.º, 2, LGT (atual n.º 3), não configura uma formalidade ad substanciam, pelo que a sua preterição não tem necessária e definitivamente impacto em termos de tributação.

            Daí que, não se conformando, apresentou junto do CAAD o presente PPA que ora se aprecia.

            Por sua vez, a AT defende-se por impugnação, argumentando que em conformidade com a informação recebida das autoridades do Reino Unido, com relação a 2017, a Requerente não foi considerada por esse Estado como aí residindo para efeitos fiscais. Isto é, a documentação junta pela requerente não corresponde a certificado de residência fiscal no Reino Unido.

            Face a isto, o SF Lisboa … promoveu a competente liquidação oficiosa, nos termos do art. 76.º, 1, b), CIRS, pois considerou que a Requerente não apresentou qualquer documento que afaste a presunção da sua residência em Portugal.

            Além disso, a dupla tributação foi eliminada, pois a Requerente beneficiou em Portugal de um crédito de imposto de € 2.412,92 (correspondente ao valor de imposto que a Requerente terá pagado no Reino Unido de 2.166,20 GBP).

 

II. SANEAMENTO

            O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, 1, a), 5.º, 6.º, 1, e 10.º, 1, RJAT.

            As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. arts. 4.º e 10.º, 2, RJAT, e art. 1.º, Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

            O processo não enferma de nulidades.

 

III FUNDAMENTAÇÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

A) Pelo período que decorreu de pelo menos desde janeiro de 2017 a 28 de abril de 2017, a Requerente manteve uma relação contratual laboral a tempo inteiro com a B…, sedeada em Londres, tendo por objeto as funções próprias de designer, relação essa que depois foi tornada permanente a partir de 1 de maio de 2017.

B) Resulta do referido documento contratual a seguinte morada da Requerente:

 

C) A Requerente abriu conta bancária no C… — Reino Unido, tendo-lhe sido enviada comunicação de boas vindas datada de 14 de setembro de 2015 assim como apresentou, às entidades competentes, declaração do exercício da sua atividade profissional no Reino Unido/JOB CENTER PLUS.

D) Foi atribuído à Requerente um número de segurança social, conforme informação que lhe foi facultada, datada de 5.09.2015.

E) Com data de 29.02.2016, a entidade patronal declarou pagar à Requerente e esta declarou ter recebido, a importância de 1.390,63 GBD, a título de "basic pay".

F) A Requerente procedeu ao seu registo eleitoral no Reino Unido, tendo recebido comunicação de a mesma ter tido sucesso, datada de 12.04.2016, bem como era titular de seguro médico no Reino Unido em 2017.

G) A Requerente apresentou rendimentos que foram tributados e pagos no Reino Unido, referentes aos anos de 2015-2016.

H) A Requerente declarou no "Details of employee leaving work" que cessou o seu contrato de trabalho com a B… a 31.12.2017 assim como declarou em 4.01.2018 o seu registo de saída do Reino Unido a 22.12.2017.

I) A Requerente efetuou o pagamento de impostos no Reino Unido durante o referido período.

J) Durante o período cujo início se ignora, mas que terá sido desde 2015, e pelo menos até 4.01.2018, a ora Requerente fez do Reino Unido o país onde se localizava o seu centro de vida.

K) Conforme informação proveniente da troca automática internacional de informações no domínio da fiscalidade, datada de 28 de julho de 2022, mas recebida pela AT em 01.07.2019, proveniente do Reino Unido, no ano de 2017 foram colocados à disposição da Requerente rendimentos de trabalho dependente no montante total de 19.304,93 GBP (21.503.68 euros), o que originou o pagamento de impostos no valor de 2.412,92 euros.

L) Da informação do cadastro da Requerente junto da AT consta, à data de 31.12.2017, o seguinte:

 

M) A 15.11.2021 os serviços da AT procederam à elaboração de uma declaração oficiosa (DC) para o ano de 2017, com base nos rendimentos auferidos no estrangeiro, onde foram declarados os rendimentos no anexo J – Rendimentos Obtidos no Estrangeiro.

N) A AT emitiu nota de liquidação de IRS do ano de 2017, datada de 16.11.2021, com o n.º 2021…., com o valor a pagar de € 1.768,23.

O) A requerente proceder ao pagamento da referida nota de liquidação, no montante de € 1.768,23, a 28.12.2021.

P) A Requerente apresentou a 29.11.2021 junto da AT reclamação graciosa que foi autuada com o n.º ….

Q) A reclamação graciosa foi objeto de decisão de indeferimento, com data de 30.11.2021, com a seguinte sustentação, que foi dada a conhecer à Requerente por comunicação datada de 30.11.2021:

 

 

R) Em 3.12.2021 a Requerente apresentou junto do E Balcão pedido de alteração de cadastro, com a seguinte fundamentação:

 

S) Com data de entrada de 13.01.2022, a Requerente apresentou recurso hierárquico, que foi autuado com o n.º ….

T) O recurso hierárquico foi indeferido por despacho datado de 25.02.2022, com a seguinte fundamentação:

 

 

U) Por carta datada de 4 maio 2022 as autoridades fiscais do Reino Unido declararam confirmar a residência da Requerente de acordo com o seguinte:

 

V) Por comunicação datada de 19 de maio de 2022 as autoridades fiscais do Reino Unido emitiram em nome da Requerente uma "Confirmation of Residence" pelo período de 12 de agosto de 2015 a 22 de dezembro de 2017, datada de 4 de maio de 2022, certificado esse que foi remetido à AT a 26.05.2022.

 

A.2. Factos dados como não provados

            Com relevo para a decisão, não foram identificados outros factos que devam considerar-se como não provados.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

            Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, 2, CPPT, e art. 607.º, 3, CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, 1, a) e e), RJAT).

            Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de direito (cfr. anterior art. 511.º, 1, CPC, correspondente ao atual art. 596.º, aplicável ex vi art. 29.º, 1, e), RJAT).

            Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do art. 110.º, 7, CPPT, e a prova documental aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

            Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

B. DE DIREITO

            B.1 - Enquadramento em sede de CIRS do conceito "residência fiscal"

            A questão que constitui o thema decidendum centra-se em saber se , para efeitos de IRS, qual a residência da Requerente com relação ao período relativo ao ano de 2017 — se em Portugal ou se no Reino Unido — com vista a determinar qual o Estado onde deve ocorrer a tributação dos rendimentos de trabalho dependente.

            A questão convoca o disposto nos arts. 15.º, 1, 2, e ainda 16.º, 1, a), b), 2, 3, todos do CIRS, bem como os conceitos "domicílio fiscal" e "residência fiscal", cujos regimes se encontram nos arts 19.º, LGT, e 43.º, CPPT.

            Determina o art. 15.º, idem:

Artigo 15.º

Âmbito da sujeição

1 - Sendo as pessoas residentes em território português, o IRS incide sobre a totalidade dos seus rendimentos, incluindo os obtidos fora desse território.

2 - Tratando-se de não residentes, o IRS incide unicamente sobre os rendimentos obtidos em território português.

3 - O disposto nos números anteriores aplica-se aos casos de residência parcial previstos nos n.os 3 e 4 do artigo seguinte, relativamente a cada um dos estatutos de residência.

 

            Por sua vez, o art. 16.º, CIRS, prescreve:

Artigo 16.º

Residência

1 - São residentes em território português as pessoas que, no ano a que respeitam os rendimentos:
a) Hajam nele permanecido mais de 183 dias, seguidos ou interpolados, em qualquer período de 12 meses com início ou fim no ano em causa;

b) Tendo permanecido por menos tempo, aí disponham, num qualquer dia do período referido na alínea anterior, de habitação em condições que façam supor intenção atual de a manter e ocupar como residência habitual;

c) Em 31 de dezembro, sejam tripulantes de navios ou aeronaves, desde que aqueles estejam ao serviço de entidades com residência, sede ou direção efetiva nesse território;
d) Desempenhem no estrangeiro funções ou comissões de carácter público, ao serviço do Estado Português.

2 - Para efeitos do disposto no número anterior, considera-se como dia de presença em território português qualquer dia, completo ou parcial, que inclua dormida no mesmo.

3 - As pessoas que preencham as condições previstas nas alíneas a) ou b) do n.º 1 tornam-se residentes desde o primeiro dia do período de permanência em território português, salvo quando tenham aí sido residentes em qualquer dia do ano anterior, caso em que se consideram residentes neste território desde o primeiro dia do ano em que se verifique qualquer uma das condições previstas no n.º 1.

 

            Os arts. 19.º LGT, e 43.º, CPPT, rezam assim:

Artigo 19.º

Domicílio fiscal

1 - O domicílio fiscal do sujeito passivo é, salvo disposição em contrário:

a) Para as pessoas singulares, o local da residência habitual;
b) Para as pessoas colectivas, o local da sede ou direcção efectiva ou, na falta destas, do seu estabelecimento estável em Portugal.

2 - O domicílio fiscal integra ainda o domicílio fiscal eletrónico, que inclui o serviço público de notificações eletrónicas associado à morada única digital, bem como a caixa postal eletrónica, nos termos previstos no serviço público de notificações eletrónicas associado à morada única digital e no serviço público de caixa postal eletrónica.

3 - É obrigatória, nos termos da lei, a comunicação do domicílio do sujeito passivo à administração tributária.

4 - É ineficaz a mudança de domicílio enquanto não for comunicada à administração tributária.
5 - Sempre que se altere o estatuto de residência de um sujeito passivo, este deve comunicar, no prazo de 60 dias, tal alteração à administração tributária.

6 - Os sujeitos passivos residentes no estrangeiro, bem como os que, embora residentes no território nacional, se ausentem deste por período superior a seis meses, bem como as pessoas colectivas e outras entidades legalmente equiparadas que cessem a actividade, devem, para efeitos tributários, designar um representante com residência em território nacional.

7 - Independentemente das sanções aplicáveis, depende da designação de representante nos termos do número anterior o exercício dos direitos dos sujeitos passivos nele referidos perante a administração tributária, incluindo os de reclamação, recurso ou impugnação.

8 - O disposto no número anterior não é aplicável, sendo a designação de representante meramente facultativa, em relação a não residentes de, ou a residentes que se ausentem para, Estados membros da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, neste último caso desde que esse Estado membro esteja vinculado a cooperação administrativa no domínio da fiscalidade equivalente à estabelecida no âmbito da União Europeia.

9 - A administração tributária poderá rectificar oficiosamente o domicílio fiscal dos sujeitos passivos se tal decorrer dos elementos ao seu dispor.

 

Artigo 43.º

Obrigação de participação de domicílio

1 - Os interessados que intervenham ou possam intervir em quaisquer procedimentos ou processos nos serviços da administração tributária ou nos tribunais tributários comunicam, no prazo de 15 dias, qualquer alteração do seu domicílio, sede ou caixa postal electrónica.

2 – A falta de recebimento de qualquer aviso ou comunicação expedidos nos termos dos artigos anteriores, devido ao não cumprimento do disposto no n.o 1, não é oponível à administração tributária, sem prejuízo do que a lei dispõe quanto à obrigatoriedade da citação e da notificação e dos termos por que devem ser efectuadas.

3 - A comunicação referida no n.o 1 só produz efeitos, sem prejuízo da possibilidade legal de a administração tributária proceder oficiosamente à sua rectificação, se o interessado fizer prova de já ter solicitado ou obtido a actualização fiscal do domicílio, sede ou caixa postal electrónica.

 

            Sobre este tema já varias decisões arbitrais se pronunciaram, como, vg.. as mais recentes, que correram sob os números 803/2021-T, 36/2022-T e 63/2022-T.

            Seguimos de perto o teor da decisão prolatada no n.º 803/2021-T, que concordamos.

            Com efeito, resulta dos normativos legais citados que são sujeitos passivos de IRS, por um lado, as pessoas singulares residentes e, por outro lado, as pessoas singulares não residentes.

            Relativamente aos residentes, a tributação pauta-se pelo princípio da universalidade ou do rendimento mundial e quanto aos não residentes a tributação rege-se pelo princípio da territorialidade, ou seja, são tributados apenas pelos rendimentos obtidos em Portugal.

            Com efeito, a residência apresenta-se como o elemento de conexão mais importante, sendo com referência a ela que se define a própria extensão de imposto. A lei criou no artigo 16.º, CIRS, critérios específicos para qualificar as pessoas e outras entidades como residentes ou não residentes em território português.

            Como visto, no caso de pessoas singulares tais critérios reportam-se, no essencial, à permanência em território português por determinado período mínimo de tempo (183 dias) ou à permanência nesse território por menos tempo, mas acompanhada pela disponibilidade em certa data (31 de dezembro) de uma habitação própria em condições que façam supor a intenção de a manter e ocupar como residência habitual.

            Ora, conforme provado, apesar de constar do sistema informático a residência fiscal da Requerente em Portugal, acontece que essa situação se deu devido ao facto de a própria não ter atualizado essa mesma informação. Com efeito, certo é que, da prova dada como produzida, é clarividente que a Requerente, no ano de 2017, residia não em Portugal mas sim no Reino Unido. Com efeito, atendendo ao previsto no artigo 16º, um, CIRS, ter-se-á de concluir pela não residência da Requerente em Portugal.

            Olhemos agora para o artigo 19.º,  LGT  — domicílio fiscal.

            A doutrina e a jurisprudência dos tribunais superiores, têm concluído que os conceitos de domicílio fiscal e de residente fiscal para efeitos de IRS não são sinonímicos.

            De acordo com Alberto Xavier, Direito Tributário Internacional, 2.ª Ed., Almedina, Coimbra, 2009, p. 281,  a “noção de residência ou domicílio para efeitos de delimitação da esfera de incidência das normas tributárias de cada Estado é também distinta da noção de domicílio tributário de direito interno e que é um domicilio especial pelo qual a lei refere a um lugar bem determinado, o exercício de direitos e o cumprimento dos deveres estabelecidos pelas normas tributárias, localizando o sujeito passivo com vista a fixar a circunscrição territorial em cuja área se situem os serviços de administração competentes para a prática de actos relativos à situação fiscal do contribuinte."

            Assim, de um lado, podemos discernir o conceito de domicílio fiscal previsto no art.19.º da LGT, cuja relevância mais evidente se situa ao nível dos contactos entre o contribuinte e a AT (aliás, cabe atualmente no conceito de domicílio fiscal o domicílio fiscal eletrónico).

            Daí a previsão constante do art. 43.º, n.º 2, do CPPT, no sentido de que a “falta de recebimento de qualquer aviso ou comunicação expedidos nos termos dos artigos anteriores, devido ao não cumprimento do disposto no n.º 1 [comunicação da alteração do domicílio], não é oponível à administração tributária, sem prejuízo do que a lei dispõe quanto à obrigatoriedade da citação e da notificação e dos termos por que devem ser efetuadas”.

            Refira-se ainda que este dever de comunicação, previsto quer no art. 43.º, 1, CPPT, quer no então art. 19.º, 3, LGT, não é qualificado como de uma formalidade ad substanciam, o que significa que a sua preterição não tem necessária e definitivamente impacto em termos de tributação (vide, nesse sentido, os acórdão do TCAN, processo n.º 00546/10.2BEVIS, de 17/09/2015, acórdão do TCAS, proferido no processo n.º 2369/09.7, de 11/11/2021, acórdão do TCAS, proferido no processo n.º 986/11, de 04/07/2022).

            Já o conceito de residência fiscal tem subjacente outros pressupostos, como decorre do art. 16.º, CIRS. Recordemos:

            a) Permanência em território português mais de 183 dias seguidos ou interpolados;

            b) Permanência por menos tempo, se aí se dispuser, em 31 de dezembro desse ano, de habitação em condições que façam supor a intenção de a manter e ocupar como residência habitual.

            Considerando o que foi dado como provado, ter-se-á de concluir que a Requerente era efetivamente, em 2017, não residente em território português.

            Ora, aqui chegados, cumprirá aferir da competência do Estado português para a tributação dos rendimentos auferidos no Reino Unido pela Requerente, conforme entende a AT, sendo certo que o Estado da residência é o Reino Unido.

            Para este efeito, importará convocar a Convenção Celebrada entre Portugal e o Reino Unido, pois conforme previsto no artigo 8.º, 2, CRP, o direito convencional prevalece sobre o direito interno, significando isso que sendo a situação regulada por uma norma interna e por uma norma de direito internacional,  é esta última que prevalece e, consequentemente, será a aplicada.

            Prescreve o art. 15.º da CDT celebrada entre Portugal e o Reino Unido:

Artigo 15.º

Empregos
1) Com ressalva do disposto no artigo 17.o, os salários, ordenados e remunerações similares, que não sejam aquelas a que se aplica o artigo 18.o, obtidos de um emprego por um residente de um Estado Contratante só podem ser tributados nesse Estado, a não ser que o emprego seja exercido no outro Estado Contratante. Se o emprego for aí exercido, as remunerações correspondentes podem ser tributadas nesse outro Estado.

2) Não obstante o disposto no parágrafo 1), as remunerações obtidas por um residente de um Estado Contratante de um emprego exercido no outro Estado Contratante só podem ser tributadas no Estado primeiramente mencionado se:

a) O beneficiário permanecer no outro Estado durante um período ou períodos que, no ano fiscal em causa, não excedam, no total, 183 dias;

b) As remunerações forem pagas por uma entidade patronal ou em nome de uma entidade patronal que não seja residente do outro Estado;

c) As remunerações não forem suportadas por um estabelecimento estável ou por uma instalação fixa que a entidade patronal tenha no outro Estado.

3) Não obstante as disposições anteriores deste artigo, as remunerações de um emprego exercido a bordo de um navio ou de uma aeronave no tráfego internacional, podem ser tributadas no Estado Contratante em que estiver situada a direcção efectiva da empresa.”

            Ora, resulta do texto legal citado a atribuição com exclusividade da competência de tributação ao Estado da residência do sujeito passivo.

            Na verdade, esta é a regra geral. Ela sofre derrogações caso o trabalho dependente seja executado no outro Estado contratante, passando, assim, a ocorrer competência cumulativa de tributação. Em determinadas circunstâncias o Estado da fonte passa a ter também competência de tributação ainda que não incondicionalmente, na medida que a verificarem-se determinadas circunstâncias coadunadas, na prática, com uma forte ligação ao Estado da residência, regressa-se e legitima-se a regra geral, ou seja, a da competência exclusiva do Estado da residência.

            Relativamente à tributação de rendimentos do trabalho dependente, veja-se Alberto Xavier, que se transcreve como segue:

Em matéria de profissões dependentes, as convenções internacionais — seguindo o artigo 15.º do Modelo OCDE — reconhecem, em princípio, a competência exclusiva do Estado da Residência.

Se o emprego é exercido no Estado da residência do empregado, nenhum problema se suscita; se, porém, é exercido noutro Estado, importa proceder à repartição dos poderes de tributar potencialmente interessados na situação."

            Ora, face à posição assumida, subsumindo-se os factos dados como provados à hipótese normativa do citado art. 15.º, CDT, do qual resulta que o Estado da residência tem competência exclusiva quanto a rendimentos do trabalho dependente, apenas e tão só afastada caso o trabalho seja desenvolvido no outro Estado contratante, e não se verificando, como acontece no caso sub iudice, tal circunstância, ter-se-á de concluir que a competência para a tributação é exclusivamente o Reino Unido. Deste modo, fica excluída a competência de tributação do Estado português.

            Por conseguinte, e ao abrigo da legislação supra citada, o Estado português não dispõe de competência para tributar os rendimentos do trabalho auferidos pelo Requerente no Reino Unido.

            Posto isto, amarrado que está o intérprete à normatividade vigente, não pode este consagrar putativas linhas legislativa-tributárias arredadas da positividade. Portanto, manifesto é que tem de se dar razão à Recorrente quanto ao que peticiona, nesta parte, e declarar ilegal o indeferimento do recurso hierárquico e, consequentemente, o ato de liquidação em apreciação.

 

            B.2. O pedido de reembolso de quantia indevidamente paga e juros indemnizatórios

       A Requerente formula um pedido de reembolso do IRS indevidamente pago bem como o pagamento dos juros indemnizatórios.

       É jurisprudência uniforme — maxime, cf. Ac. 630/2014-T, CAAD — que de acordo com disposto no art. 24.º, 1, b), RJAT "a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, «restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito».

       E continua o citado Ac.: "Com efeito, apesar de o processo de impugnação judicial ser essencialmente um processo de mera anulação (arts. 99.º e 124.º do CPPT), pode nele ser proferida condenação da administração tributária no pagamento de juros indemnizatórios e de indemnização por garantia indevida.

       Sendo processualmente viável apreciar o pedido de juros indemnizatórios será necessariamente também possível apreciar o pedido de reembolso da quantia indevidamente paga, cujo montante é factor de determinação do montante dos juros indemnizatórios.

       Assim, à semelhança do que sucede com os tribunais tributários em processo de impugnação judicial, este Tribunal Arbitral é competente para apreciar os pedidos de reembolso da quantia paga e de pagamento de juros indemnizatórios.

       Ficou dado como provado (art. 110.º, 7, CPPT, ex vi, art. 29.º, RJAT, e art 16.º, e), RJAT) que a Requerente pagou a quantia liquidada acima identificada.

       Consequentemente, determino que a AT reembolse a Requerente do valor de liquidação de IRS indevidamente pago, porque não devido, conforme fundamentação já expedida supra.

 

*

       Quanto aos juros indemnizatórios.

A Requerente peticiona o pagamento de juros indemnizatórios sobre o valor de 1.768,23 €.

Determina o art. 24.º, 5, RJAT, que "“é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”.

Nos processos arbitrais tributários pode haver lugar ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do disposto nos arts. 43.º, e 100.º, LGT, quando se determine que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante não devido, o que foi o caso, conforme resulta da matéria dada como provada.

Deste modo, considerando o disposto no art. 61.º, CPPT, como se verificam preenchidos os requisitos do direito a juros indemnizatórios, a Requerente terá direito a esses juros, calculados à taxa legal sobre o montante pago e não devido, contabilizado de acordo com o disposto no art. 61.º, 3, CPPT.

 

* * *

 

C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:

  1. Julgar procedente o pedido de anulação da decisão de indeferimento do recurso hierárquico e consequentemente, de liquidação de IRS n.º 2021 … referente ao exercício de 2017, e, consequentemente, determino a anulação da nota de liquidação correspondente;
  2. Julgar procedente o pedido de reembolso de 1.768,23 €, bem como os respetivos juros indemnizatórios, calculados à taxa legal, nos termos do art. 61.º, CPPT,
  3. Condenar a Requerida no pagamento integral das custas do presente processo.

 

D. Valor do processo

       Fixa-se o valor do processo em 1.768,23 €, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. Custas

       Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em 306,00 € nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, conforme o disposto no artigo 22.º, n.º 4, RJAT.

 

Notifique-se.

Lisboa

23 de novembro de 2022

 

O Árbitro Singular

 

(Ricardo Marques Candeias)