Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 319/2022-T
Data da decisão: 2022-12-02  IRS  
Valor do pedido: € 63.313,64
Tema: IRS – Residentes Não Habituais - Inscrição
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SUMÁRIO:

 

  1. A pendência de discussão sobre a inscrição do contribuinte como residente não habitual, independente da fase em que se encontre (administrativa ou judicial), permite a impugnação direta do ato de liquidação de IRS com fundamento na não aplicação do regime fiscal dos residentes não habituais, inexistindo qualquer incompatibilidade com o Acórdão n.º 718/2017, de 15 de Novembro, do Tribunal Constitucional.
  2. No domínio do regime fiscal aplicável aos residentes não habituais, a inscrição a que se refere o n.º 10 do artigo 16º do Código do IRS assume natureza meramente declarativa e não constitutiva do direito a ser tributado nos termos de tal regime.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros Juiz José Poças Falcão. (árbitro-presidente), Dr. Luís Ricardo Farinha Sequeira (relator) e Dr. Pedro Saraiva Nércio, designados pelo Conselho Deontológico do CAAD para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 26-07-2022, acordam no seguinte:

 

 

I.     RELATÓRIO

 

  1. A..., NIF..., com domicilio fiscal na Rua ..., n.º ... – ..., ...-... Lisboa (adiante designada por “Requerente”), veio requerer a constituição de Tribunal Arbitral nos termos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (doravante “RJAT”), apresentando o respetivo Pedido de Pronúncia Arbitral (“PPA”) tendo em vista:
  1. A declaração de ilegalidade do ato tributário de liquidação de Imposto sobre Rendimentos de Pessoas Singulares (“IRS”) e juros compensatórios de 2019, com o n.º 2022..., no valor de € 63.313,64, com fundamento em violação de lei e subsidiariamente em preterição de formalidade essencial;
  2. Condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante também designada por “AT” ou “Requerida”) no pagamento de indemnização por garantia indevida;

 

  1. A Requerente entende que a Requerida não poderia ter deixado de aplicar aos rendimentos daquela o regime do disposto na al. a) do n.º 5 do artigo 81º do Código do IRS, enquanto normativo aplicável aos contribuintes denominados “residentes não habituais” (“RNH”), porquanto a Requerente reúne todos os requisitos para que fosse tributada ao abrigo do referido regime dos RNH, sendo que a falta de inscrição enquanto residente não habitual não prejudica a aplicação de tal regime.
  2. Igualmente propugna pela existência de preterição de formalidade essencial, porquanto jamais ter sido notificada para exercer a audição prévia relativamente à liquidação objeto destes autos, imputando a esta vício de forma, por violação do disposto nos artigos 45º do CPPT, 60º da LGT e 121º a 125º do CPA.
  3. Subsidiariamente, invoca igualmente a ausência absoluta de fundamentação do ato de liquidação objeto destes autos, sufragando o entendimento segundo o qual a mesma seria exigível por força do preceituado no n.º 3 do artigo 268º da CRP, artigo 135º do CPA e artigo 77º da Lei Geral Tributária, ilegalidade esta que acarreta a anulabilidade do ato tributário de liquidação nos termos do artigo 163º do CPA.
  4. É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.
  5. Em 16-05-2022, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT.
  6. Em 07-07-2022, o Senhor Presidente do CAAD informou as Partes da designação dos Árbitros, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 11.º do RJAT.
  7. Assim, em conformidade com o preceituado no n.º 8 do artigo 11.º do RJAT, decorrido o prazo previsto no n.º 1 do artigo 11.º do RJAT sem que as Partes nada viessem dizer, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 26-07-2022.
  8. A AT apresentou resposta em que defendeu a improcedência do pedido de pronúncia arbitral e a procedência de exceção dilatória de incompetência material do Tribunal Arbitral para conhecer do pedido arbitral formulado, sustentada no seguinte entendimento:
  • Não obstante solicitar a anulação da liquidação posta em crise, referente ao ano de 2019, a causa de pedir formulada pela Requerente nos presentes autos arbitrais centra-se no reconhecimento da condição de residente não habitual da Requerente.
  • O reconhecimento da aplicabilidade à Requerente do regime dos RNH teria de ser efetuada por via de Ação Administrativa Especial e não pela presente via impugnatória arbitral, sustentando-se para o efeito nos acórdãos do STA nº 034/14 de 2016/05/11, nº 014/19.7BALSB (uniformizador de jurisprudência) e acórdão do Tribunal Constitucional com o n.º 718/2017.

 

  1. A Requerida defende-se também por impugnação, sustentando que foi à Requerente dada a possibilidade de, querendo, exercer o direito de audição antes da emissão da liquidação oficiosa, na medida em que foi notificada da irregularidade e da respetiva intenção de supressão do Anexo L da sua declaração Modelo 3, entendendo assim não só estar cumprido o direito ao contraditório pela Requerente e bem assim através das notificações remetidas se dar a conhecer a esta a respetiva fundamentação em que tal liquidação oficiosa se baseia.
  2. Sobre a Resposta veio a Requerente a deduzir Réplica sobre a matéria de exceção - erigida pela Requerida,  sustentando que a competência do tribunal se determina pelo pedido do autor e pela causa de pedir em que o mesmo se apoia, expressos na petição inicial, tal como se decidiu nos processos n.ºs 262/2018-T e 188/2020-T, “é à face do pedido ou conjunto de pedidos que formulou o autor que se afere a adequação das formas de processo especiais, designadamente o processo arbitral.
  3. A formulação do presente pedido arbitral, tal como vem exposta no respetivo pedido, versa  sobre  a  impugnação  de  ato  de liquidação de imposto, expressamente prevista no artigo 2º, nº 1, alínea a) do RJAT como matéria de competência dos tribunais arbitrais constituídos no âmbito do CAAD, conclui-se pela improcedência da exceção de incompetência material suscitada pela AT.
  4. A Requerida procedeu à junção do processo administrativo (“PA”) em 29-09-2022.
  5. Por despacho de 20-10-2022, este Tribunal dispensou a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e notificou as Partes para a produção de alegações escritas em prazo, simultâneo, de 20 dias.
  6. Requerente e Requerida vieram a apresentar as suas alegações escritas em 05-07-2022 nas quais, no essencial, secundaram a fundamentação e o sentido já anteriormente propugnado no PPA e Resposta e Réplica, respetivamente.

 

II. MATÉRIA DE FACTO

 

1. Factos provados

 

  1. Consideram-se provados, com relevo para a presente decisão, os seguintes factos:
  1. A Requerente é cidadã de nacionalidade brasileira.
  2. A Requerente passou a residir em Portugal, designadamente na Rua ..., n.º... –... em Lisboa - no decurso do ano de 2019, morada habitual esta que ainda mantém.
  3. Em 08.03.2019, a Requerente registou-se junto da AT tendo indicado como seu domicílio fiscal a supra referida morada, cfr. Doc. 2 do PPA.
  4. A Requerente não residiu em Portugal nos cinco anos imediatamente anteriores ao ano de 2019.
  5.   A Requerente veio a apresentar, em 30-06-2020, declaração de rendimentos de IRS Modelo 3, tendo preenchido os anexos J e L relativo a rendimentos obtidos no estrangeiro e rendimentos de residentes não habituais, respetivamente, cfr. Doc. 3 do PPA.
  6. No âmbito do anexo J veio a Requerente a inscrever os seguintes rendimentos obtidos no estrangeiro, de resto, todos com origem no Brasil:

-Prediais, no montante de € 254,35, cfr. Quadro 7A, linha 701;

-Capitais (Quadro 8E): Dividendos (E11), no valor de € 130.693,24 (linha 801; Outros rendimentos de capitais sem retenção (E22), no montante de € 377.903,42, sobre os recaiu imposto pago no país da fonte de € 82.952,23 (linha 802); Juros sem retenção em Portugal, no valor de € 123,08 (linha 803);

  1. Através do anexo L, a Requerente declarou pretender, relativamente aos rendimentos obtidos no estrangeiro, a aplicação do método da isenção para efeitos de eliminação da dupla tributação internacional– Quadro 6B, campo 05.
  2.  Através do ofício ..., datado de 15-03-2021, foi remetida comunicação à Requerente, informando que a declaração de rendimentos identificada nos pontos antecedentes havia sido selecionada para análise por se verificar que o “Estatuto de Residente Não Habitual inexistente em cadastro para o ano em questão”, tendo a notificação em causa sido devolvida, cfr. PA.
  3. Em 18-10-2021 a Requerente veio a requerer junto da AT a “a inscrição no cadastro fiscal da Requerente da qualidade de residente não habitual para o período 2019-2018, ou subsidiariamente, o reconhecimento à Requerente da qualidade de residente não habitual para o período 2019-2018, com o direito a ser tributada nessa qualidade para o período em causa, com o reencaminhamento do presente articulado ao órgão competente para essa apreciação”.
  4. O Serviço Finanças Lisboa-... procedeu ao envio à Requerente, de ofício datado de 26-01-2022, no qual se dava a conhecer que, não tendo sido comprovados os elementos declarados na declaração Modelo 3 apresentada pela Requerente, havia sido decidido pelo Chefe de Finanças daquele serviço, a retirada do Anexo L e que nesta sequência seria a Requerente oportunamente notificada da liquidação do respetivo imposto.
  5. O ofício a que se reporta o ponto anterior foi devolvido ao remetente, porquanto não reclamado, cfr. PA.
  6. A AT veio a preencher e submeter declaração DC oficiosa em 26-01-2022 (declaração n.º 58 do lote J...), de onde apenas constava, em matéria de anexos, o Anexo J do qual fez constar os mesmos rendimentos, origem e valores anteriormente inscritos pela Requerente aquando da submissão por esta da declaração.
  7. Da declaração DC oficiosa a AT não fez constar qualquer anexo L relativo a residentes não habituais.
  8. Na sequência da submissão da declaração DC oficiosa, veio a ser emitida a respetiva liquidação oficiosa de IRS de 2019 em nome da Requerente, na qual se apurou um valor a pagar de € 63.313,64, decorrente de imposto relativo a tributações autónomas” e “Coleta Total” de € 142.512,75, uma dedução à coleta de € 82.952,23, uma coleta líquida de € 59.560,52 e ainda um sobretaxa de € 3.753,12, valor a   por esta entregue emitir liquidação oficiosa relativa ao rendimentos da Requerente do ano de 2019  ficaria sem efeito se, até à data limite de pagamento, fixada em 22-06-2020, fosse apresentada declaração periódica de IVA de substituição (Doc. n.º 3 junto com o pedido de pronúncia arbitral e fls. 13 do processo administrativo junto pela AT, cujos teores se dão por reproduzidos).
  9. Veio a Requerente a apresentar Garantia Bancária, emitida pelo Banco Carregosa em 8 de Junho de 2022, com vista a garantir à AT o pagamento até ao máximo de € 80.455,75, cfr Doc. 7 junto pela Requerente.
  10. Por decisão do Chefe de Finanças de Lisboa ..., veio a garantia identificada no ponto que antecede a ser admitida e considerada idónea para efeitos de suspensão do processo executivo ...2022..., o qual tem por objeto a liquidação ora impugnada.
  11. Inconformada com a liquidação de IRS de 2019 emitida oficiosamente pela AT, veio a Requerente a apresentar, em 12-05-2022, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral que deu origem ao presente processo – conforme registo no sistema de gestão processual do CAAD.

 

 

2.  Factos não provados

 

A. Quais os concretos custos incorridos pela Requerente por força da constituição e manutenção da garantia bancária prestada a que se refere a letra O. dos “Factos Provados” para efeitos de suspensão de cobrança da liquidação objeto dos presentes autos.

 

Não existe outra factualidade alegada que não tenha sido considerada provada e que seja relevante para a decisão da causa.

 

3.  Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

  1. Não existe um dever de pronúncia quanto a toda a matéria de facto alegada pelas partes. O Tribunal Arbitral tem sim o dever de selecionar a matéria de facto que releva para a decisão e decidir se a considera provada ou não provada, conforme resulta do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e do artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e), do RJAT.

 

  1. No caso, o Tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica dos documentos apresentados pelas partes, e que não foram impugnados e na cópia do processo administrativo, apresentado pela AT.

 

  1. Assim, e tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, o que prevê o artigo 110.º do CPPT e a prova documental produzida, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

 

 

 

III. DO DIREITO

 

1.  Da incompetência material do Tribunal Arbitral

 

  1. A competência material dos tribunais é de ordem pública[1] e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria, pelo que se impõe a sua apreciação previamente à verificação dos demais pressupostos processuais, conforme resulta do cotejo dos artigos 16.º do CPPT e 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos – CPTA, ex vi alínea c) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT[2].

 

  1. Em abono da exceção aduzida, a Requerida considera que o tribunal arbitral não é materialmente competente para apreciar a questão suscitada pela Requerente, uma vez que, a seu ver, a causa de pedir se baseia na condição de residente não habitual da Requerente, regime fiscal este que a Requerente não requereu em tempo (artigo 16º, n.º 12 do CIRS).

 

  1.  Invoca, em abono de tal exceção, a jurisprudência do Tribunal Constitucional decorrente do acórdão n.º 718/2017, de 15-11-2017, no qual se concluiu “Não julgar inconstitucional a interpretação normativa retirada do artigo 54.º do CPPT, com o sentido de que a não impugnação judicial de atos de indeferimento de pedidos de reconhecimento do estatuto de residente não habitual impede a impugnação judicial das decisões finais de liquidação do imposto com fundamento em vícios daqueles;”

 

  1.  Nesta senda, conclui a Requerida ser o Tribunal Arbitral materialmente incompetente para apreciar a matéria controvertida nos presentes autos a qual se funda na invocada ilegal desaplicação do regime previsto para os residentes não habituais, sendo certo que a impugnação de ato de indeferimento sobre benefícios fiscais assume natureza autónoma e logo, o meio de reação correto passaria pela Ação Administrativa Especial e não pelo presente meio de reação arbitral.

 

  1. Replicou a Requerente, sustentando a impugnabilidade e propriedade do meio de defesa de que se socorreu in casu, sustentado no facto de estar a impugnar arbitralmente a liquidação de IRS, com base em vícios desta e não ter o meio de defesa deduzido por objeto qualquer decisão de indeferimento da sua inscrição como residente não habitual.

 

  1. Conclui assim a Requerente que o PPA deduzido visa a declaração da ilegalidade do ato de liquidação de tributo, o que se insere na previsão normativa do n.º 1 do artigo 2º do RJAT, não podendo assim a exceção por incompetência material deixar de ser julgada improcedente.

 

  1.  Atentemos, antes de mais, no pedido formulado pela Requerente.

 

  1. Do teor do PPA apresentado resulta, sem margem para quaisquer dúbias interpretações, que o peticionado pela Requerente se reconduz à anulação da liquidação de IRS 2019 supra melhor identificada, com todas as consequências dessa anulação advenientes ao nível da indemnização pela prestação de garantia indevida.

 

  1. O Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT), que concretizou a autorização legislativa e “instituiu a arbitragem tributária limitada a determinadas matérias, arroladas no art.º 2.º do RJAT, expressamente consignou como competência dos tribunais arbitrais a pretensão relativa à “declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta”.

 

  1. Através da Portaria n.º 112-A/2011, de 20-04, ficaram vinculados os serviços da Direcção-Geral de Impostos e da Direcção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, sendo que a estes serviços corresponde, presentemente, a Autoridade Tributária e Aduaneira, nos termos do Decreto-Lei n.º 118/2011, de 15-12, que aprova a estrutura orgânica desta Autoridade.

 

  1. Na referida portaria estabelecem-se condições adicionais e limites de vinculação tendo em conta a especificidade das matérias e o valor em causa.

 

  1. Os autores Sérgio Vasques e Carla Castelo Trindade, em Cadernos de Justiça Tributária n.º 00, Abril/Junho de 2013, no artigo “O âmbito material da arbitragem tributária”, referem que “nos termos da alínea a) do n.º 1, os tribunais arbitrais têm competência para apreciar as pretensões que se prendam com a declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamentos por conta. O âmbito material da arbitragem tributária, recortado por esta alínea, corresponde ao previsto no artigo 97.º, n.º 1, alínea a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), estando-se perante questões que podem simultaneamente ser objecto de arbitragem e impugnação judicial. De facto, pode ler-se neste preceito do CPPT que o processo judicial tributário compreende “a impugnação da liquidação dos tributos, incluindo os parafiscais e os actos de autoliquidação, retenção na fonte e pagamento por conta”.

 

  1. Destarte, a competência dos tribunais arbitrais prevista no RJAT é taxativa, razão pela qual é o mesmo competente para decidir questões relacionadas apenas com a ilegalidade dos atos acima enunciados.

 

  1. Ora, a esta luz, não se vislumbra que o pedido formulado possa extravasar o âmbito da competência material do tribunal arbitral, na medida em que o pedido se reconduz à declaração da ilegalidade de um ato tributário de liquidação e não ao reconhecimento de um qualquer benefício fiscal.

 

  1. Se quanto ao pedido formulado, o mesmo se tem seguramente como enquadrado no âmbito da competência dos tribunais arbitrais a funcionar junto do CAAD, entende, ainda assim a Requerida que a causa de pedir subjacente a tal pedido implica a apreciação de vícios atinentes ao não reconhecimento de um benefício fiscal, in casu, do regime dos residentes não habituais, o que em sua perspetiva, apenas poderia suceder em sede de ação administrativa especial, não tendo esta instância arbitral competência em razão da matéria para apreciar tal vício.

 

  1. Assim, importa apreciar a questão invocada pela Requerida quanto à alegada inimpugnabilidade nesta sede de vícios que se reconduzam ao não reconhecimento pela AT de tal benefício fiscal, entendendo a Requerida ser aplicável o decidido no acórdão do TC n.º 718/2017 e nessa senda não ser tal causa de pedir enquadrável no âmbito competência material deste tribunal arbitral.

 

  1. Efetivamente, veio o Tribunal Constitucional através do acórdão n.º 718/2017, de 15-11-2017 a considerar como não inconstitucional a interpretação do artigo 54º do CPPT   com”…o sentido de que a não impugnação judicial de atos de indeferimento de pedidos de reconhecimento do estatuto de residente não habitual impede a impugnação judicial das decisões finais de liquidação do imposto com fundamento em vícios daqueles.”

 

  1. Não obstante o sentido da não inconstitucionalidade resultante do aresto supra identificado, importa relevar que a decisão não recolheu unanimidade, tendo votado vencido o Juiz Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro, o qual conclui “Se, pelo contrário, e como julgo mais correto, não chegasse a semelhante conclusão ─ aceitando como não manifestamente errada a qualificação do ato acolhida na decisão recorrida ─, cabia-lhe revisitar a questão decidida pelo Acórdão n.º 410/2015. Nessa hipótese, julgo que o Tribunal deveria ter reiterado essa jurisprudência, por me parecer que a convivência de um ónus normal de impugnação unitária com um ónus excecional de impugnação autónoma, delimitada por um conceito de elevado grau de complexidade e imprecisão ─ «ato imediatamente lesivo de direitos» ─, constitui um fator de insegurança jurídica que condiciona o exercício do direito à impugnação contenciosa das decisões tributárias, sem que se consigam discernir quaisquer razões constitucionalmente relevantes que o justifiquem. Como se afirmou naquele aresto: «ao impedir que a impugnação do ato de liquidação do imposto se funde em vícios próprios do ato de cessação do benefício fiscal, a interpretação que a decisão recorrida fez do artigo 54.º do CPPT desprotege gravemente os direitos do contribuinte, assim ofendendo princípio da tutela judicial efetiva e o princípio da justiça, inscritos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP.»

Em suma, o Tribunal deveria ter julgado o recurso improcedente.”

 

  1. Sobre similar matéria atinente à interpretação do artigo 54º do CPPT quanto à possibilidade de, em sede de impugnação de liquidação, apreciar vícios atinentes a atos interlocutórios ou autónomos entretanto já consolidados na ordem jurídica,  se havia já pronunciado o Tribunal Constitucional em 2015 em sentido inverso, ou seja, propendendo para a possibilidade de apreciação de tais vício próprios do ato interlocutório ou autónomo, o que o faz através do acórdão 410/2015, de 29-09, no qual se acordou: “Julgar inconstitucional a interpretação do artigo 54.º do Código de Procedimento e Processo Tributário que, qualificando como um ónus e não como uma faculdade do contribuinte a impugnação judicial dos atos interlocutórios imediatamente lesivos dos seus direitos, impede a impugnação judicial das decisões finais de liquidação do imposto com fundamento em vícios daqueles, por violação do princípio da tutela judicial efetiva e do princípio da justiça, inscritos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa;

 

  1. Ora, se esta questão relativa à interpretação da norma do artigo 54º do CPPT ao nível da sua conformidade constitucional pode não ser consensual, afigura-se que para a decisão da questão erigida nestes autos pela Requerida, a fundamentação para a sua dilucidação não contende sequer, no entender deste Tribunal Arbitral, com a decisão invocada pela Requerida (acórdão do TC n.º 718/2017) em suposto abono da exceção erigida, por inaplicabilidade ao caso dos autos, como se expenderá.

 

  1. Na verdade, se bem analisado o teor da decisão proferida pelo TC trazida à colação pela Requerida, tal decisão tem subjacente uma realidade factual (e jurídica) absolutamente distinta daquela que resulta dos presentes autos, porquanto se no primeiro o contribuinte não havia reagido, designadamente, impugnando a decisão de indeferimento de inscrição enquanto residente não habitual, já nos autos que nos atêm a Requerente requereu a sua inscrição ao abrigo de tal regime, encontrando-se este pedido pendente de decisão por parte da AT.

 

  1. Isto é, se no primeiro caso, apreciado pelo TC e invocado pela Requerida, o contribuinte havia omitido qualquer reação impugnatória quanto à decisão de indeferimento relativa à sua inscrição como residente não habitual e assim deixara consolidar na ordem jurídico-tributária tal decisão, já nos presentes autos a questão quanto à inscrição da Requerente enquanto RNH permanece em aberto, isto é, encontra-se pendente de apreciação e decisão por parte da AT.

 

  1. Que o mesmo equivale a afirmar que, independentemente da consideração e qualificação que se pretenda efetuar quanto à natureza de eventual decisão de indeferimento – interlocutória ou autónoma – e às eventuais repercussões ao nível impugnatório daí decorrentes no que ao princípio da tutela jurisdicional efetiva e segurança dizem respeito, certo e seguro é que no caso ora em apreciação, a Requerente não viu indeferido, até à presente data, o pedido de inscrição por esta formulado, logo dessa circunstância factual não se podendo extrair qualquer consequência ao nível de uma hipotética omissão impugnatória, leia-se, da dedução de eventual ação administrativa.

 

  1. Não se olvida, no entanto, que a Requerente poderia, querendo, lançar mão da prerrogativa legal constante dos n.ºs 1 e 5 do artigo 57º da Lei Geral Tributária (LGT), nos termos dos quais: “O procedimento tributário deve ser concluído no prazo de 4 meses…”, “Sem prejuízo do princípio da celeridade e diligência, o incumprimento do prazo referido no n.º 1, contado a partir da entrada da petição do contribuinte no serviço competente da administração tributária, faz presumir o seu indeferimento para efeitos de recurso hierárquico, recurso contencioso ou impugnação judicial.”

 

  1. E desta forma, era legítimo à Requerente, ficcionando o indeferimento expresso do pedido de inscrição enquanto RNH, optar, logo que transcorrido tal prazo, impugnar tal decisão de indeferimento tácito.

 

  1. Ora, sucede que tal prerrogativa legalmente consagrada no âmbito do procedimento tributário se deve ler como uma faculdade, traduzida num mecanismo garantístico acrescido que permite ao contribuinte desbloquear a inércia decisória da administração tributária, não implicando a não utilização de tal garantia uma qualquer desoneração desta última em dar cumprimento ao princípio da decisão a que se encontra legalmente vinculada, nos termos dos artigos 268º da Constituição da República Portuguesa (“CRP”) e do artigo 56º da LGT, não obstante o incumprimento do prazo estabelecido no n.º 1 do artigo 57º da LGT.

 

  1. De resto, tem sido jurisprudência reiterada dos tribunais superiores e nomeadamente do Supremo Tribunal Administrativo, segundo o qual “Constitui jurisprudência corrente que a lei não deve ser interpretada com o sentido de impor ao interessado a reacção contenciosa contra o indeferimento presumido, sob pena de tal indeferimento gerar caso decidido ou resolvido. Antes, o que a lei confere é uma mera faculdade, que o interessado pode usar ou abster-se de usar, sem que a sua inércia exima a Administração da sua obrigação de decidir ou a situação fique definitivamente decidida pelo indeferimento presumido. Ainda recentemente – 12 de Janeiro de 2006 – a Secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal reafirmou, no  processo nº 347/04, que«(...) a presunção de indeferimento, face ao silêncio da Administração, é uma mera ficção  legal para protecção do administrado, com finalidades exclusivamente adjectivas». Não pode, pois, afirmar-se, com pertinência (como faz a recorrente, nas conclusões 1 e 4), que a recorrida se socorreu da intimação para um comportamento porque, por inércia sua, deixou precludir a possibilidade de usar outros meios...”

 

  1. Ou seja, resulta do entendimento do Supremo Tribunal Administrativo, o qual se secunda, que a ficção de indeferimento não é mais do que uma faculdade que assiste ao administrado/contribuinte, não se retirando do seu não uso qualquer consequência ao nível da diminuição dos meios de reação ao seu dispor logo que a decisão omitida venha a ser proferida.

 

  1. O que no caso em apreciação, equivale por afirmar que a não dedução, face ao decurso do prazo para a conclusão do procedimento tributário relativo ao pedido de inscrição enquanto residente não habitual não desonera, por um lado, a AT de proferir decisão sobre o requerido, nem em nada tolhe o direito da Requerente, uma vez notificada de uma eventual decisão de indeferimento sobre tal pedido, em lançar mão dos respetivos meios de defesa que então tenha por pertinentes.

 

  1. Perante este conspecto factual de base e o entorno jurídico-tributário a que vimos aludindo, não se afigura de todo subsumível ao caso dos autos o sentido da jurisprudência invocada pela Requerida (Acórdão do TC n.º 718/2017).

 

  1. Concretizando: a pendência de discussão sobre a inscrição do contribuinte como residente não habitual, independente da fase em que se encontre (administrativa ou judicial), permite a impugnação direta do ato de liquidação de IRS com fundamento na não aplicação do regime fiscal dos residentes não habituais, inexistindo qualquer incompatibilidade com o Acórdão n.º 718/2017, de 15 de Novembro, do Tribunal Constitucional.

 

  1. De resto, o caso em análise nestes autos arbitrais deixa bem patenteado que, por força da omissão decisória da AT quanto ao pedido de inscrição da Requerente enquanto residente não habitual, o primeiro ato suscetível de ser considerado como lesivo do direito da Requerente em lhe ver aplicado tal estatuto fiscal se externalizou na liquidação ora colocada em crise e assim mesmo, não é compaginável qualquer outra solução em matéria de meios de defesa que contenda com a possibilidade de ver esgrimido em sede impugnatória vícios dessa mesma liquidação que se reconduzam à apreciação sobre o direito a ser tributada (nessa liquidação) ao abrigo do versado estatuto de residente não habitual.

 

  1. Entendimento inverso permitiria, de resto, uma solução e um resultado prático que se entende contender frontalmente com o espírito da lei, porquanto permitiria bloquear a apreciação de eventual ilegalidade de liquidação emitida à Requerente por não lhe ser considerado o regime dos residentes não habituais, bloqueio esse que poderia ter na sua génese (como se afigura ser aqui o caso) a inércia da própria AT ao se abster de apreciar e decidir o pedido de inscrição anteriormente formulado pela Requerente.

 

  1. Inexistindo como inexiste qualquer decisão relativa ao pedido de inscrição enquanto residente não habitual e muito menos qualquer consolidação na ordem jurídica da mesma, dado esta última não ter sido sequer tomada pela AT, resulta insofismavelmente inaplicável o disposto no artigo 54º do CPPT ao caso dos autos, visto no caso em análise inexistir, por ora, qualquer ato, mau grado a qualificação que a ele se prenda atribuir - natureza interlocutória ou autónoma - suscetível de impugnação autónoma pela Requerente, até porque não usou esta da faculdade de presumir indeferido o pedido de inscrição requerido, razão pela qual continua o requerimento efetuado pendente de decisão.

 

  1. À míngua de qualquer decisão sobre a matéria da inscrição da Requerente enquanto residente não habitual, esvaziada de aplicabilidade fica a norma ínsita no artigo 54º do CPPT e consequentemente, toda a problemática sobre esta centrada, nomeadamente ao nível constitucional, quanto à interpretação a colher desse normativo em matéria de garantias impugnatórias.

 

  1. Por outro lado, nos termos da al.a) do artigo 99º do CPPT: “Constitui fundamento de impugnação qualquer ilegalidade, designadamente:

a) Errónea qualificação e quantificação dos rendimentos, lucros, valores patrimoniais e outros factos tributários;”

 

  1. No que à ilegalidade apontada à liquidação por não aplicação do regime fiscal dos residentes não habituais concerne, tal causa de pedir não poderá deixar de ter como inscrita no leque de fundamentos suscetíveis de, em caso de provimento, determinar a errada quantificação dos rendimentos por esta declarados e consequentemente, a ilegalidade do ato tributário de liquidação.

 

  1.  Inexistindo in casu qualquer ato ou decisão interlocutória ou autónoma, suscetível de ser enquadrada no artigo 54º do CPPT e constituindo fundamento da impugnação da liquidação qualquer ilegalidade, designadamente a “Errónea qualificação e quantificação dos rendimentos, lucros, valores patrimoniais e outros factos tributários” - al. a) do artigo 99º do CPPT - não se vislumbra a existência de qualquer entrave no ordenamento legal tributário, que impeça a apreciação da declaração de ilegalidade da liquidação que se reconduza, no que à causa de pedir concerne, ao direito da Requerente em ver apreciada a questão relativa à apontada ilegalidade tangente à não tributação de acordo com o regime de residentes não habituais, cujo pedido de inscrição, de valor meramente declarativo (como adiante se expenderá), se encontra ainda pendente de decisão.

 

  1.  Ante o exposto, visando o pedido arbitral a ilegalidade de ato tributário de liquidação (do IRS de 2019), com acolhimento na al. a) do n.º 1 do artigo 2º do RJAT e não qualquer pedido de reconhecimento de benefício fiscal, tendo por causa de pedir fundamentos integráveis no disposto no artigo 99º do CPPT, não pode deixar de improceder a exceção de incompetência material deste tribunal arbitral pela Requerente invocada.

 

Da Questão de fundo:

 

 

  1. No que concerne aos vícios concretamente apontados pela Requerente ao ato tributário ora impugnado, a saber: não aplicação do regime do residente não habitual, preterição do direito de audição prévia e falta de fundamentação, importa relevar o que dispõe o artigo 124.º do CPPT.

 

  1. O artigo 124.º do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, al. a), do RJAT, estatui que o tribunal deve apreciar prioritariamente os vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do ato impugnado e, seguidamente, os vícios que conduzam à sua anulação (n.º 1).

 

  1. No que respeita aos vícios que consubstanciem inexistência ou nulidade, o julgador deve conhecer prioritariamente dos vícios cuja procedência determine, segundo o seu prudente critério, mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos.

 

  1.  No tocante aos vícios que constituam anulabilidade, é estabelecido o mesmo critério, que só não será aplicável se o impugnante tiver estabelecido uma relação de subsidiariedade entre os vícios imputados ao ato – o que é permitido pelo artigo 101.º do CPPT –, pois nesse caso é dada primazia à sua vontade (desde que o Ministério Público não tenha arguido outros vícios) (n.º 2).

 

  1. Em face das regras sobre a ordem de conhecimento de vícios que constam do artigo 124.º do CPPT, subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, apreciar-se-á prioritariamente o vício de violação de lei substancial, por ser aquele cuja eventual procedência determina a mais estável tutela dos interesses da Requerente.

 

  1.  Nesta conformidade, iniciar-se-á a apreciação do invocado vicio tangente à não aplicação do regime fiscal dos residentes não habituais.

2.  Da não aplicação do regime dos residentes não habituais:

 

  1. A questão a analisar e decidir nos presentes autos passa por aferir se a Requerente, a despeito de não ter, no prazo previsto na lei, requerido o seu registo como residente não habitual, ao abrigo do nº 10 do art.º 16 CIRS, tem ou não o direito de ser tributada ao abrigo do regime dos residentes não habituais no tocante ao ano de 2019 a que respeita à  liquidação sob impugnação.

 

  1. Como oportunamente se referiu a propósito da motivação da matéria de facto dada por provada, também o posicionamento das partes foi sopesado enquanto elemento relevante para a convicção deste tribunal arbitral, sendo que a Requerente não pode deixar de beneficiar, nos termos do n.º 1 do artigo 75º da LGT da presunção de veracidade no tocante ao teor da declaração de rendimentos por esta entregue e em que assenta o conteúdo do pedido de ilegalidade do ato tributário arbitralmente impugnado.

 

  1. Nos termos deste último normativo “Presumem-se verdadeiras e de boa-fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal, sem prejuízo dos demais requisitos de que depende a dedutibilidade dos gastos.”

 

  1. Ora, tendo presente que o teor dos rendimentos declarados pela Requerente –constantes do Anexo J – foram objeto de validação pela própria AT, a qual, os replicou na declaração DC oficiosa e portanto, necessariamente, os reputou igualmente por corretos e verdadeiros, inexistem razões para colocar em crise todo o conteúdo de tais Anexos J constante, a saber: natureza, origem e valor de todos e de cada um dos rendimentos aí relevados.

 

  1. Efetuado este enquadramento de base quanto à factualidade subjacente aos presentes autos, importa ater-nos no sustentado pela Requerente em abono da ilegalidade e anulação da liquidação ora posta em crise e a qual passa pela desconsideração por aquele ato tributário do regime de tributação dos residentes não habituais, sustentando que ao abrigo de tal regime fiscal não poderia deixar de se aplicar o método da isenção sobre os rendimentos de capitais (Categoria E) e prediais (Categoria F) obtidos no estrangeiro (Brasil) por esta declarados.

 

  1. Contrapõe a Requerida, entendendo que tal não é legalmente possível, conforme por exceção se defendeu e cuja apreciação supra se deixou expendida, afigurando fundar-se na circunstância de a Requerente não ter procedido à inscrição enquanto residente não habitual no prazo legalmente cominado no n.º 10 do artigo 16º do CIRS.  

 

  1. Atentemos, pelo exposto e antes de mais, no enquadramento legal de tal regime e desde logo, no preceituado no artigo 16º do CIRS em vigor à data dos factos (2019), nos termos do qual:

 

8 - Consideram-se residentes não habituais em território português os sujeitos passivos que, tornando-se fiscalmente residentes nos termos dos nºs 1 ou 2, não tenham sido residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores.

9 - O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos a partir do ano, inclusive, da sua inscrição como residente em território português.

10 - O sujeito passivo deve solicitar a inscrição como residente não habitual, por via eletrónica, no Portal das Finanças, posteriormente ao ato da inscrição como residente em território português e até 31 de março, inclusive, do ano seguinte àquele em que se torne residente nesse território. (Redação do Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de agosto)

11 - O direito a ser tributado como residente não habitual em cada ano do período referido no n.º 9 depende de o sujeito passivo ser considerado residente em território português, em qualquer momento desse ano. (sublinhados nossos)

 

  1. Do cotejo dos n.ºs 8 a 11 do artigo 16º do Código do IRS é possível apreender que os pressupostos para a aplicação deste regime são os seguintes:

- O sujeito passivo se torne fiscalmente residente em Portugal, em conformidade com qualquer dos critérios estabelecidos nos n.º 1 e 2 do artigo 16º do CIRS;

- O sujeito passivo não tenha sido considerado residente em território nacional em qualquer dos cinco anos anteriores ao ano em que se deva considerar residente nos termos do n.º 1 e 2 da referida norma;

 

  1. Face ao exposto, indelével resulta concluir que o legislador fez depender, para efeitos da aplicação deste benefício fiscal, do preenchimento dos pressupostos previstos no artigo 16º, n.º 8, do CIRS, e não da inscrição formal como residente não habitual.

 

  1. O teor da norma – n.º 11 do artigo 16º do CIRS – é, a este propósito, lapidar ao fazer depender para a aplicação de tal regime da circunstância factual de o sujeito passivo se ter inscrito (e assim ser considerado) como residente em território português e não da sua inscrição formal enquanto residente não habitual.

 

  1. Destarte, a inscrição formal enquanto residente não habitual não poderá deixar de se ter como uma mera obrigação declarativa, obrigação essa que, quando eventualmente não cumprida no prazo definido no n.º 10 do artigo 16º do CIRS constituirá infração a esse mesmo comando legislativo.

 

  1. Infração essa suscetível de ser punida nos termos do artigo 116º do RGIT, mas ainda assim neutra quanto à suscetibilidade do sujeito passivo poder ou não beneficiar desse mesmo regime, porquanto, como supra exposto, os pressupostos dos quais a lei faz depender a aplicação do regime em causa não compreendem o atempado cumprimento de tal procedimento de inscrição enquanto residente não habitual.

 

  1. Neste sentido, veja-se o decidido no processo arbitral no âmbito do processo n.º 188/2020-T, cujo entendimento acompanhamos, segundo o qual:

“…como por regra ocorre, a interpretação da lei fiscal não pode, nem deve, ficar-se pelo teor literal dos normativos imediatamente aplicáveis, devendo, antes, e mais não seja pela imposição da realização dos princípios da tributação da capacidade contributiva e da justiça material, decorrentes dos artigos 4.º, n.º 1, e 5.º, n.º 2, da LGT, identificar-se a finalidade material do regime a aplicar, através da compreensão da natureza das normas convocáveis, das finalidades por si visadas, e do contexto sistemático das mesmas.

Sob esta perspectiva, a norma do n.º 10 do artigo 16.º do CIRS, que disciplina a data limite até à qual os sujeitos passivos que reúnam os pressupostos materiais de que depende a tributação de acordo com o regime dos residentes não habituais podem requerer a inscrição como residente não habitual - até 31 de Março, inclusive, do ano seguinte àquele em que se torne residente em território nacional -, deverá entender-se como uma norma essencialmente procedimental, de organização do sistema operacional de tributação, que visa assegurar sua efectividade e o seu normal funcionamento, sendo, especialmente e desde logo de notar que a norma em causa, não tem subjacentes quaisquer finalidades de evitar a fraude ou a evasão fiscal.

E, nem se diga, como faz a AT, que não tendo o Requerente respeitado o prazo previsto no n.º 10 do artigo 16.º do Código do IRS para requerer a sua inscrição como residente não habitual, não pode beneficiar desse regime em qualquer um dos dez anos a que teria direito se tivesse apresentado o pedido dentro do prazo. Tratando-se a obrigação de apresentar o pedido de inscrição como residente não habitual, de uma obrigação meramente declarativa e, portanto não constitutiva do direito a beneficiar daquele regime, o atraso na entrega de declarações constitui uma contraordenação tributária prevista e punida nos termos do artigo 116.º do RGIT, e não deverá ter como consequência, sem mais, o não enquadramento no regime do residente não habitual.

Do exposto resulta – em suma – que o pedido de inscrição como residente não habitual não tem efeito constitutivo, mas meramente, declarativo, tudo o que, como adiante se verá, será de relevar na solução jurídica a formular no caso concreto”

 

  1. Em idêntico sentido, veja-se a decisão coletiva proferida no processo arbitral tributário junto do CAAD, sob o n.º 777/2020-T, no qual se concluiu:

Para que o sujeito passivo possa “ser considerado residente não habitual”, a lei não exige o registo. Pelo contrário, o n.º 6 é perfeitamente expresso e inequívoco ao dizer que “Consideram-se residentes não habituais em território português os sujeitos passivos que, tornando-se fiscalmente residentes nos termos dos n.os 1 ou 2, não tenham sido residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores.”

Ou seja, para que o sujeito passivo possa “ser considerado residente não habitual”, basta que se verifiquem dois requisitos, não sendo nenhum deles o registo como residente não habitual.

São esses requisitos:

    Ter-se o sujeito passivo tornado fiscalmente residente num determinado ano;

    Não ter o sujeito passivo sido residente em território português em qualquer dos cinco anos anteriores.

Afigura-se assim evidente que a letra das disposições relevantes não permite a conclusão de que o registo como residente habitual é requisito para a aplicação do regime.”

 

  1. Em face do enquadramento do regime fiscal em apreço e das decisões a que supra nos reportamos e sobre as quais não antevemos qualquer razão para do sentido das mesmas dissentir, não é possível deixar de concluir que o pedido de inscrição como residente não habitual no respetivo prazo a que se alude no n.º 10 do artigo 16º do CIRS encerra efeito meramente declarativo e não constitutivo do direito a ser tributado em tal regime fiscal.
  2. Vistos os pressupostos dos quais o legislador faz depender a aplicação do regime fiscal dos residentes não habituais e o efeito que o pedido de inscrição enquanto RNH reveste no ordenamento jurídico, importa aferir se no caso da Requerente, a mesma reúne os pressupostos para a aplicação de tal regime de residente não habituais relativamente aos rendimentos do ano de 2019.

 

  1. Como resulta da matéria de facto dada por provada, a Requerente passou a ser residente para efeitos fiscais em Portugal a partir de 08-03-2019, sendo que igualmente se provou que a mesma não se encontrou inscrita como residente fiscal em Portugal nos cinco anos imediatamente anteriores a 2019.

 

 

  1. Em face da matéria de facto provada e do respetivo direito aplicável supra explanado, inexorável se torna concluir no sentido de a Requerente cumprir os necessários requisitos previstos no nº 8,  do artigo 16.º, do CIRS, os quais são os únicos requisitos exigidos pela lei para que o sujeito passivo possa beneficiar do regime dos residentes não habituais.

 

  1. Tendo presente o teor da declaração de rendimentos apresentada pela Requerente e a correção efetuada pela Requerida é possível concluir pela inexistência de qualquer dissensão quanto aos valores, origem e natureza dos rendimentos aí inscritos.

 

  1. Assim, resulta que a Requerente, relativamente ao ano de 2019, auferiu rendimentos obtidos no Brasil, resultantes de rendimentos prediais (categoria F) e rendimentos de capitais (categoria E), desdobrando-se estes últimos em dividendos, juros e “outros rendimentos de capitais”.

 

  1. O artigo 81.º, n.º 5, do CIRS, sobre a «eliminação da dupla tributação jurídica internacional», estabelece, no que a estes autos releva:

5 - Aos residentes não habituais em território português que obtenham, no estrangeiro, rendimentos da categoria B, auferidos em atividades de prestação de serviços de elevado valor acrescentado, com carácter científico, artístico ou técnico, a definir em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, ou provenientes da propriedade intelectual ou industrial, ou ainda da prestação de informações respeitantes a uma experiência adquirida no setor industrial, comercial ou científico, bem como das categorias E, F e G, aplica-se o método da isenção, bastando que se verifique qualquer uma das condições previstas nas alíneas seguintes:

a) Possam ser tributados no outro Estado contratante, em conformidade com convenção para eliminar a dupla tributação celebrada por Portugal com esse Estado; ou…”(sublinhados nossos).

 

2. a) Rendimentos Prediais:

 

  1. A Convenção entre a República Portuguesa e a República Federativa do Brasil para Evitar a Dupla Tributação e Prevenir a Evasão Fiscal em Matéria de Impostos sobre o Rendimento, assinada em Brasília em 16 de Maio de 2000, aprovada, para ratificação, pela Resolução da Assembleia da República n.º 33/2001, de 1 de Março (doravante «CDT»), dispõe o artigo 6º o seguinte:

Artigo 6º

Rendimentos dos bens imobiliários

1 — Os rendimentos que um residente de um Estado Contratante aufira de bens imobiliários (incluídos os rendimentos das explorações agrícolas ou florestais)

situados no outro Estado Contratante podem ser tributados nesse outro Estado.

2 — A expressão «bens imobiliários» terá o significado que lhe for atribuído pelo direito do Estado Contratante em que tais bens estiverem situados. A expressão compreende sempre os acessórios, o gado e o equipamento das explorações agrícolas e florestais, os direitos a que se apliquem as disposições do direito privado relativas à propriedade, o usufruto de bens imóveis e os direitos a retribuições variáveis ou fixas pela explo-

ração ou pela concessão da exploração de jazidas minerais, fontes e outros recursos naturais. Os navios e aeronaves não são considerados bens imobiliários.

3 — O disposto no nº 1 aplica-se aos rendimentos derivados da utilização directa, do arrendamento ou de qualquer outra forma de utilização dos bens imobiliários.

4 — O disposto nos nºs 1 e 3 aplica-se igualmente aos rendimentos provenientes dos bens imobiliários de uma empresa.

5 — As disposições anteriores aplicam-se igualmente aos rendimentos derivados dos bens mobiliários ou de serviços conexos com os bens imobiliários que, de acordo com o direito fiscal do Estado Contratante em que tais bens estiverem situados ou os serviços sejam prestados, sejam assimilados aos rendimentos derivados dos bens imobiliários.

 

  1. No que aos rendimentos prediais originados em bens imobiliários situados no Brasil estabelece o n.º 1 da norma vinda de citar o direito destes serem tributados naquele Estado contratante.

 

  1. Face a este direito do Estado Brasileiro, convencionalmente atribuído, de poder tributar os rendimentos prediais e a atento o preceituado na al. a) do n.º 5 do artigo 81.º do CIRS estão reunidos os requisitos previstos para aplicação do método de isenção para eliminação da dupla tributação jurídica internacional.

 

2. a) Rendimentos de dividendos:

 

  1. No que aos rendimentos de dividendos importa atentar no que estabelece a CDT no seu artigo 10.º:

1 — Os dividendos pagos por uma sociedade residente de um Estado Contratante a um residente do outro Estado Contratante podem ser tributados nesse outro Estado.

2 — Esses dividendos podem, no entanto, ser igualmente tributados no Estado Contratante de que é residente a sociedade que paga os dividendos e de acordo com a legislação desse Estado, mas se o beneficiário efectivo dos dividendos for um residente do outro Estado Contratante, o imposto assim estabelecido não excederá:

a) 10 % do montante bruto dos dividendos, se o seu beneficiário efectivo for uma sociedade que detenha, directamente, pelo menos 25 % do capital da sociedade que paga os dividendos, durante um período ininterrupto de dois anos antes do pagamento dos dividendos;

b) 15 % do montante bruto dos dividendos, nos restantes casos.

 

  1. Em face da alínea a) do n.º 5 do artigo 81.º do CIRS, a eliminação da dupla tributação jurídica internacional faz-se através do método da isenção quando os residentes não habituais em território português que obtenham, no estrangeiro, rendimentos da categoria E os rendimentos possam ser tributados no outro Estado contratante (Brasil), em conformidade com convenção para eliminar a dupla tributação celebrada por Portugal com esse Estado.

 

  1. Os rendimentos de dividendos eram suscetíveis de ser tributados no Brasil, à face do n.º 2 artigo 10.º da CDT, pelo que estão reunidos os requisitos previstos para aplicação do método de isenção para eliminação da dupla tributação jurídica internacional, nos termos da alínea a) do n.º 5 do artigo 85.º do CIRS, relativamente aos dividendos recebidos pela Requerente.

 

2. c) Rendimentos de Juros:

 

  1. Já no que concerne aos rendimentos provenientes de juros pagos por entidade brasileira, releva em matéria de estipulação convencional o estipulado no artigo 11º da CDT entre Portugal e o Brasil:

Artigo 11.º

Juros


1 — Os juros provenientes de um Estado Contratante e pagos a um residente do outro Estado Contratante podem ser tributados nesse outro Estado.

2 — No entanto, esses juros podem ser igualmente tributados, no Estado Contratante de que provêm e de acordo com a legislação desse Estado, mas se o beneficiário efectivo dos juros for um residente do outro Estado Contratante, o imposto assim estabelecido não excederá 15 % do montante bruto dos juros.

As autoridades competentes dos Estados Contratantes estabelecerão, de comum acordo, a forma de aplicar este limite.

3 — Não obstante as disposições dos n.os 1 e 2, os juros provenientes de um Estado Contratante e pagos ao Governo do outro Estado Contratante, a uma sua
subdivisão política ou administrativa ou autarquia local ou a qualquer instituição (inclusive financeira) de propriedade exclusiva daquele Governo ou subdivisão política ou administrativa ou autarquia local são isentos de imposto no primeiro Estado.
4 — A limitação estabelecida no n.o 2 não se aplica aos juros provenientes de um Estado Contratante atribuídos ou pagos a um estabelecimento estável de um
residente do outro Estado Contratante situado em terceiro Estado.

5 — O termo «juros», usado neste artigo, significa os rendimentos da dívida pública, de obrigações com ou sem garantia hipotecária e com direito ou não a
participar nos lucros e de outros créditos de qualquer natureza, bem como quaisquer outros rendimentos assimilados aos rendimentos de importâncias emprestadas
pela legislação fiscal do Estado de que provêm os rendimentos.
6 — O disposto nos n.os 1 e 2 não é aplicável se o beneficiário efectivo dos juros, residente de um Estado Contratante, exercer actividade no outro Estado Con-
tratante de que provêm os juros, por meio de um estabelecimento estável aí situado, e o crédito relativamente ao qual os juros são pagos estiver efectivamente ligado
a esse estabelecimento estável. Neste caso, são aplicáveis as disposições do artigo
7 — Os juros consideram-se provenientes de um Estado Contratante quando o devedor for um residente desse Estado. Todavia, quando o devedor dos juros, seja
ou não residente de um Estado Contratante, tiver num Estado Contratante um estabelecimento estável em relação com os quais haja sido contraída a obrigação pela qual os juros são pagos e esse estabelecimento estável suporte o pagamento desses juros, tais juros são considerados provenientes do Estado Contratante em que
o estabelecimento estável estiver situado.

8 — Quando, devido a relações especiais existentes entre o devedor e o beneficiário efectivo ou entre ambos e qualquer outra pessoa, o montante dos juros pagos, tendo em conta o crédito pelo qual são pagos, exceder o montante que seria acordado entre o devedor e o beneficiário efectivo na ausência de tais relações, as disposições deste artigo são aplicáveis apenas a este último montante. Neste caso, o excesso pode continuar a ser tributado de acordo com a legislação de cada Estado Contratante, tendo em conta as outras disposições desta Convenção.

 

  1. Considerando o facto de se estarem perante juros pagos por entidade com origem no Brasil a um residente em Portugal (Requerente), os rendimentos de juros eram suscetíveis de ser tributados no Brasil, à face do n.º 2 artigo 11.º da CDT, pelo que também quanto a estes rendimentos em concreto estão reunidos os requisitos previstos para aplicação do método de isenção para eliminação da dupla tributação jurídica internacional, nos termos da alínea a) do n.º 5 do artigo 81.º do CIRS.

 

2. d) “Outros rendimentos de capitais”:

 

  1. Por último, impõe-se apreciar o tratamento fiscal ao abrigo do regime dos residentes não habituais no que concerne aos rendimentos de capitais declarados pela Requerente no Anexo J da Modelo 3 (e replicados na DC oficiosa) sob o código declarativo E22 – Outros rendimentos de capitais.

 

  1. A Requerente, relativamente a este rendimento em concreto, tal como quanto aos demais declarados, não procedeu à junção de qualquer elemento documental adicional que permita perscrutar, densificando a intrínseca natureza deste rendimento de capitais, para além do teor declarativo do Anexo J, mas não obstante, quer a Requerente, quer a Requerida, aceitam como correto o enquadramento declarativo quanto à natureza/tipo, valor e origem de rendimentos, sob o código E22 - “outros rendimentos de capitais” - em conformidade com a Portaria 370/2019, de 14 de outubro, a qual aprovou os modelos de impressos para cumprimento da obrigação declarativa prevista no n.º 1 do artigo 57.º do Código do IRS e respetivas instruções de preenchimento a vigorar a partir de 1 de janeiro de 2020, que se destinavam a declarar rendimentos dos anos de 2015 e seguintes).

 

  1. Nos termos do teor do já aqui citado na al. a) do n.º 5 do artigo 81º do CIRS, a solução por este normativo preconizada relativa ao método para efeitos de eliminação da dupla tributação jurídica internacional relativamente a residentes não habituais possibilita, em tese, o método da isenção, desde que no âmbito da CDT em vigor com o Brasil, possa a este Estado ser atribuída competência para sobre tais rendimentos os sujeitar a tributação.

 

  1. Dada a formulação das instruções de preenchimento então em vigor ao abrigo da supra identificada Portaria, é de concluir pela assumida natureza residual face aos demais rendimentos de capitais autonomizados, considerada a inexistência de qualquer outra fonte adicional de informação obre a sua concreta natureza e o posicionamento declarativo exteriorizado por Requerente e Requerida, importa aferir da competência tributária destes “outros rendimentos de capitais” ao nível da CDT.

 

  1. Ora, lido e analisado o teor integral da CDT vigente entre ambas as jurisdições em conexão, apenas se vislumbra que o rendimento declarado pela Requerente enquanto “outros rendimentos de capitais” – E22 – seja enquadrável no âmbito do artigo 22º da CDT, norma esta que, também ela se reveste de aplicação residual, isto é, a rendimentos não especificamente regulados nas demais normas da CDT.

 

  1. Neste conspecto, determina o artigo 22º da CDT que se vem analisando, o seguinte:

Artigo 22. o

Outros rendimentos

1 — Os elementos do rendimento de um residente de um Estado Contratante, e donde quer que provenham, não tratados nos artigos anteriores desta Convenção, só podem ser tributados nesse Estado.

2 — O disposto no n.o 1 não se aplica ao rendimento, que não seja rendimento de bens imobiliários como são definidos no n.o 2 do artigo 6.º, auferido por um resi-

dente de um Estado Contratante que exerce actividade no outro Estado Contratante por meio de um estabelecimento estável nele situado, estando o direito ou a propriedade em relação ao qual o rendimento é pago efectivamente ligado com esse estabelecimento estável.

Neste caso, são aplicáveis as disposições do artigo 7.º

3 — Não obstante as disposições dos n.os 1 e 2 deste artigo, os elementos do rendimento de um residente de um Estado Contratante provenientes do outro Estado Contratante e não tratados nos artigos anteriores desta Convenção podem também ser tributados nesse outro Estado. (sublinhado nosso)

 

  1. Da norma ora citada e concretamente do seu n.º 3, decorre que sempre que o  rendimento não se encontre especificamente previsto em qualquer norma anterior da CDT, como é a situação sub judice e se esteja perante rendimento de um residente de um Estado Contratante proveniente e pago por entidade do outro Estado Contratante  é atribuída competência de tributação a ambos as jurisdições contratantes.

 

  1. Em razão do assim normativamente determinado, tem o Brasil o poder de tributar, nos termos da CDT em apreço, estes “outros rendimentos de capitais” da Requerente e nesta conformidade, atento o disposto na al. a) do n.º 5 do artigo 81º do CIRS, não podia a Requerida deixar de aplicar o método de isenção enquanto método de eliminação da dupla tributação jurídica internacional.

 

  1. Em suma e do que se vem supra assentando, inquestionável é concluir que o ato de liquidação que não conferiu à Requerente a tributação dos seus rendimentos através do regime dos residentes habituais é ilegal por erro nos pressupostos de direito, erro este que objetivamente afeta a quantificação espelhada em tal ato tributário.

 

 

3.  Questões de conhecimento prejudicado:

 

  1. Resultando do exposto a declaração de ilegalidade da liquidação objeto do presente processo, por vício que impede a renovação do ato, fica prejudicado, por ser inútil (artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do CPC), o conhecimento dos restantes vícios que lhes são imputados pela Requerente.

 

  1. Na verdade, o artigo 124.º do CPPT, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, do RJAT, ao estabelecer uma ordem de conhecimento de vícios, pressupõe que, julgado procedente um vício que assegura a eficaz tutela dos direitos dos impugnantes, desnecessário se torna conhecer dos demais, porquanto, solução contrário esvaziaria de relevância a ordem do seu conhecimento.

 

  1. Pelo exposto, não se toma conhecimento dos restantes vícios imputados pela Requerente ao ato tributário, a saber, preterição do direito ao exercício da audição prévia e falta de fundamentação.

 

 

4. Da indemnização por prestação de garantia indevida:

 

  1. A Requerente pede  ainda  a  condenação  da  Requerida  na  indemnização pelos custos relativos à prestação de garantia bancária indevida.

 

  1. O artigo 171.º do CPPT garante a indemnização em caso de garantia bancária ou equivalente indevidamente prestada, que poderá ser requerida no processo em que seja controvertida a legalidade da dívida exequenda, havendo de entender-se que o processo arbitral é também o meio processual próprio para deduzir esse pedido visto que poderá ter por objeto a apreciação de pretensões relativas à declaração de legalidade de actos de liquidação de tributos (artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT).   

 

  1. O artigo 53.º da LGT admite ainda que o devedor que ofereça garantia bancária ou equivalente para suspender a execução fiscal será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior  a três anos, salvo quando se verifique na impugnação judicial que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo, caso em que a indemnização não está dependente do prazo pelo qual vigorou a garantia.  

 

  1. De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que  não  caiba  recurso  ou  impugnação  vincula  a  Autoridade Tributária, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”. O que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.

 

  1. Por referência ao referido artigo 53º da LGT, foi proferido o seguinte no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 21 de novembro de 2007, no âmbito do processo n.º 0633/07: “o fundamento do direito à indemnização reside no facto complexo integrado pelo prejuízo resultante da prestação de garantia e pela ilegal atuação da administração devida a erro seu, ao liquidar indevidamente, forçando o contribuinte a incorrer em despesas com a constituição da garantia que, não fora aquela sua atuação, não teria sido necessária prestar”.

 

  1. Destarte, sendo demonstrada a existência de erro imputável aos serviços conducente à ilegalidade do ato tributário controvertido e, consequentemente, à indevida prestação de garantia para suspensão da execução fiscal resultante do não pagamento da prestação tributária ilegalmente liquidada por aquele ato tributário, assiste ao contribuinte o direito a ser ressarcido dos custos incorridos com a prestação e manutenção da garantia.

 

  1. Retomando à apreciação destes autos arbitrais, a declaração de ilegalidade e consequente anulação da liquidação controvertida assenta em vício de violação de lei, consubstanciado em erro sobre os pressupostos de direito sobre tal liquidação, concretamente em errónea interpretação e aplicação do n.º 8 a 11 do artigo 16º e da al. a) do n.º 5 do artigo 81º, ambos do CIRS, o qual afeta a quantificação efetuada no ato tributário arbitralmente impugnado, pelo que se mostra comprovado o erro imputável aos serviços.

 

  1. Acresce que o aludido ato de liquidação de IRS e de juros compensatórios foram da exclusiva iniciativa da AT, não tendo a Requerente contribuído em nada para que tal ato fosse praticado.

 

  1. No entanto, considerando que não há elementos que permitam determinar o montante exato da indemnização, a condenação terá de ser efetuada com referência ao que vier a ser liquidado em sede de execução da presente decisão arbitral, de harmonia com o preceituado no artigo 609.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

  1. Resultou provado que a Requerente prestou garantia bancária para suspender o processo executivo instaurado na sequência da liquidação de imposto impugnada, no entanto, inexistem elementos que permitam determinar o montante exato da indemnização, pelo que a condenação terá de ser efetuada com referência ao que vier a ser liquidado em sede de execução da presente sentença arbitral, de harmonia com o preceituado no artigo 609.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

  1. Em face de tal carência de evidenciação, procede o pedido acessório de condenação da Requerida na indemnização relativa aos custos por prestação de garantia indevida em apreço, cujo valor deverá ser determinado, após demonstração dos referidos custos por parte da Requerente, em sede de execução do presente julgado.

 

 

IV. DECISÃO

 

De harmonia com o acima exposto, decide este Tribunal Arbitral:

 

  1. Julgar improcedente a exceção de incompetência material suscitada pela Requerida;
  2. Julgar ilegal e anular, por erro nos pressupostos de direito, a liquidação de IRS e juros compensatórios de 2019, com o n.º 2022...;
  3. Condenar a Requerida em indemnização por prestação indevida de garantia em montante a liquidar em execução de julgado;
  4. Condenar a Requerida nas custas do processo, em face do decaimento.

 

V. VALOR DO PROCESSO

 

  1. De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de 63.313,64, atribuído pela Requerente, sem contestação da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

VI. CUSTAS

 

  1. Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 2.448,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, totalmente a cargo da Requerida.

 

  • Notifique-se.

 

 

Lisboa, 2 de Dezembro de 2022.

 

Os Árbitros,

 

 

José Poças Falcão (Presidente)

 

Luís Ricardo Farinha Sequeira (relator)

 

Pedro Saraiva Nércio

 

 

[Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5 do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT].

 

 



[1] I.e., deve ser aferida independentemente de ser suscitada pela Requerida. Note-se que no processo administrativo todas as exceções dilatórias são de conhecimento oficioso – v. artigo 89.º, n.º 2 do CPTA. Também o é a incompetência absoluta em razão da matéria no processo civil – v. artigos 97.º, n.º 1 e 578.º do CPC.

[2] Neste sentido, veja-se a Decisão arbitral proferida no âmbito do Proc. n.º 384/2018-T. De igual modo, o Código de Processo Civil (“CPC”) considera a incompetência absoluta, na qual se inscreve a incompetência em razão da matéria, como primeira causa de absolvição da instância – v. artigo 278.º, n.º 1, alínea a) do CPC.