Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 263/2022-T
Data da decisão: 2022-12-21  IRC  
Valor do pedido: € 366.504,59
Tema: IRC - princípio da periodização do lucro (princípio da especialização dos exercícios).
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SUMÁRIO: a rigidez do princípio da periodização do lucro, princípio meramente instrumental, tem de ser temperada nas situações em que, não havendo prejuízo para o Estado, há que evitar cair numa injustiça não justificada.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

A... S.A., NIPC ..., com sede no ..., ..., Rua ..., nº ..., ... e ..., ..., ...-... Paço de Arcos, requereu, nos termos legais, a constituição de tribunal arbitral, sendo Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira. 

 

I - RELATÓRIO

 

  1. O pedido

 

A Requerente pede a anulação da liquidação de IRC n.º 2021..., no montante de € 366.504,59 (incluindo a liquidação de juros). Pede, ainda, a condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios e das custas do processo.

 

  1. O litígio

 

Está em causa a Requerente ter, no exercício de 2017, reconhecido uma perda correspondente ao “perdão” parcial do crédito que detinha sobre um ACE em que participava em 99%, na sequência da homologação, em 2015, de um Processo Especial de Revitalização (“PER”) apresentado por tal ACE.

 

A Requerida entende que o reconhecimento de tal perda em 2017 (e não em 2015) constitui uma violação do princípio da especialização dos exercícios e que tal reconhecimento tardio apenas se pode compreender como forma de manipulação de resultados contabilísticos, visando reduzir a dívida de imposto a que, de outro modo, estaria sujeita em virtude do resultado excecional que o ACE obteve nesse mesmo período.

 

A Requerente contrapõe que a realização das operações contabilísticas em causa apenas em 2017 se deveu a mero lapso (não serem mais que correções do, antes, registado na sua contabilidade), que das mesmas não resultou qualquer prejuízo para o Estado e que não houve qualquer manipulação do resultado fiscal de 2017, pois o lucro extraordinário que a AT diz ter existido nesse exercício na esfera do ACE mais não é que a “outra face” do reconhecimento de tal perda.

 

Sustenta que os princípios da solidariedade dos exercícios (enquanto derrogação do princípio da especialização), da justiça e da tributação pelo rendimento real obrigam a aceitar as operações contabilísticas realizadas em 2017, nomeadamente o registo de tal perda.

 

No seu Requerimento inicial, a Requerente peticionava ainda a ilegalidade de tal liquidação no tocante a uma correção, decorrente da não-aceitação de imparidades relativas a créditos por cobrança duvidosa.

 

  1. Tramitação processual

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite 01-08-2022.

 

A Requerente designou para exercer as funções de árbitro o Sr. Dr. Sérgio Santos Pereira. A Autoridade Tributária designou o Sr. Dr. Jorge Carita. O árbitro presidente foi designado pelo Conselho Deontológico da CAAD a pedido dos demais árbitros.

 

Os árbitros aceitaram tempestivamente as nomeações, as quais não foram objeto de impugnação.

 

O tribunal arbitral ficou constituído em 01-08-2022.

 

Em 05-07-2022, a Requerida apresentou requerimento a informar que, por despacho de 04/07/2022, o ato tributário objeto do pedido de pronúncia arbitral havia sido parcialmente revogado, quanto às perdas por imparidade em dívidas a receber de clientes no montante de € 61.240,87 e que o Requerente havia sido notificado de tal decisão.

 

A Requerente nada disse, mas, em 12/10/2022, apresentou requerimento em que confirmava a receção de tal notificação e, em consequência, dispensava a audição da testemunha que havia arrolado para depor sobre a questão relativa a tais imparidades. O que só pode ser entendido como confirmação de que a Requerente aceitou a anulação administrativa de parte da liquidação que havia impugnado.

 

A Requerida apresentou resposta e juntou o PA.

 

A Requerida prescindiu da audição da testemunha que havia arrolado.

 

Por despacho arbitral de 30/11/2022, foi decidido dispensar, por falta de objeto, a reunião a que se refere o art. 18º do RJAT. Pelo mesmo despacho foi decidido prescindir da produção de alegações. Nenhuma das partes se opôs a tal despacho.

 

 

II - SANEAMENTO

 

O processo não enferma de nulidades ou irregularidades.

 

Não foram alegadas exceções que obstem ao conhecimento do mérito da causa.

 

 

III - PROVA

 

III.1 - Factos provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos:

  1. A Requerente tem como atividade a construção, utilização e exploração das marcas e dos processos de pré-esforço da A... e B..., estudos de engenharia e métodos de construção e execução de trabalhos especiais ligados à utilização dos referidos processos;
  2. Desde 2005, a Requerente participava, em 50%, num ACE com a C... S.A.;
  3. A C... S.A. foi declarada insolvente em 2014;
  4. Em 2016, entrou para tal ACE a D... Lda., com uma participação de 1%, ou seja, a Requerente passou a deter 99%;
  5. O ACE requereu, em 06/06/2014, um Processo Especial de Revitalização (“PER”) – Processo n.º .../14...T2SNT – tendo o mesmo sido homologado a 08/05/2015 com transito em julgado em 07/06/2016;
  6. A Requerente, em 2014, na sequência da instauração de tal PER, reconheceu, contabilisticamente, uma provisão, não considerada para efeitos fiscais, no montante de € 4.857.850,34, para refletir as perdas potenciais provenientes do ACE;
  7. Em tal PER foi decidido o “perdão” de 70% dos créditos dos credores subordinados, entre os quais a Requerente;
  8. A Requerente detinha sobre o ACE um crédito no valor de € 5.000.409,87, pelo que o “perdão” de dívida foi no montante de € 3.500.286,90;
  9. Em 2017, a Requerente procedeu ao desreconhecimento daquele crédito através da contabilização de um gasto qualificado como crédito incobrável, no montante de
    € 3.500.286,91 (o montante do “perdão”);
  10. Em simultâneo, a Requerente reverteu a provisão, não considerada para efeitos fiscais, contabilizada no exercício de 2014;
  11. A nível fiscal, a Requerente adotou o seguinte procedimento: i) Não realizou qualquer ajustamento ao montante contabilizado na rubrica 68.3 – “Dívidas incobráveis”, o qual foi integralmente considerado como gasto dedutível para efeitos de apuramento do lucro tributável de 2017; e ii) Procedeu à dedução da totalidade do montante contabilizado na rubrica 76.3.8.2 – “Reversões outras provisões – Utilizada” no campo 764 do Q07 da DM22 de 2017, atendendo ao facto de que o saldo desta provisão ter sido totalmente tributado em 2014;
  12. No mesmo exercício (2017), na esfera do ACE, foi contabilizado como rendimento o montante de € 3.500.286,91, na rubrica 78.8.7 – “Outros - Crédito Comercial, correspondente ao ganho resultante do “perdão” da dívida que tinha para com a Requerente;
  13. O que originou que o ACE tivesse, nesse exercício um lucro de € 3.502.855,27, tendo 99% desse lucro (€ 3.467.826,72) sido imputado nos rendimentos da Requerente tributáveis em IRC nesse exercício de 2017 por força do regime de transparência fiscal aplicável;
  14. Nas Certificações Legais das Contas relativas aos anos de 2015 e 2016 não foi efetuada qualquer enfâse ou reserva por parte dos revisores oficiais de contas relativamente à necessidade de desreconhecimento do crédito detido pela Requerente sobre o ACE;
  15. A liquidação impugnada resultou de inspeção promovida pela AT;
  16. Por despacho da Subdiretora Geral da AT, foi revogada parcialmente a liquidação impugnada, no tocante às perdas por imparidade em dívidas a receber de clientes, no montante de € 61.240,87;
  17. Tendo a Requerente sido notificada da referida revogação parcial na pendência do presente processo e dentro do prazo a que se refere o art. 13º nº 1 do RJAT.

 

Os factos acima estão documentalmente provados, constam do RIT e não foram objeto de qualquer controvérsia entre as partes.

 

 

III.2 - Factos não provados

 

Não foram alegados quaisquer factos, relevantes para a boa decisão da causa, que se devam considerar não provados

 

IV - O Direito

 

  1. A liquidação impugnada

 

A fundamentação da liquidação adicional ora impugnada foi, no que aqui releva, a seguinte:

(…) o crédito em análise foi tipificado como crédito subordinado aquando da homologação em 08.05.2015, o que permite concluir que, desde esta data, o Sujeito Passivo tinha conhecimento da incobrabilidade do valor em dívida. (…) Porém, face às operações em causa, nomeadamente, fazer refletir neste período o perdão PER de € 3.500.286,90, quando o mesmo deveria ter sido reconhecido em 2015 (ano de homologação do PER), anula o resultado extraordinário do ACE, de € 3.467.826,72, a integrar o resultado tributável deste período, que já era positivo, convertendo-o assim num prejuízo, para efeitos fiscais, no montante de - € 104.958,36. (…) Desta forma, com base na factualidade exposta, resulta que a A..., no exercício de 2017, converteu em crédito incobrável de forma livre, autónoma e, expressa (sublinhado nosso), valores que apenas poderiam ser reconhecido diretamente como gasto, para efeitos fiscais, neste exercício de 2017, caso estivessem cumpridos os requisitos elencados no artº 41º, bem como o disposto no artº 18º, ambos do CIRC, o que se comprova não ter acontecido. (…) Face ao disposto, o exercício para proceder ao reconhecimento do crédito incobrável, caso não tivesse sido constituída a perda imparidade ou esta se mostrasse insuficiente era no exercício de 2015, uma vez que a homologação do PER ocorreu em 08.05.2015 e o sujeito passivo tinha perfeito conhecimento desse facto.

Da análise à operação praticada pelo Sujeito Passivo, foi possível confirmar que o registo do gasto no exercício de 2017, ao invés de o registar em exercícios anteriores, mais precisamente no exercício de 2015 (período de homologação do PER), permitiu alcançar o seguinte desiderato “tributário”: 1) Aliviar a carga fiscal no período de 2017, face ao valor global de rendimentos contabilizados no exercício, de € 11.645.457,92, sujeitos a tributação neste exercício. Isto associado ao facto de o agrupamento complementar A... ACE, que praticamente estava inativo, ter registado neste exercício de 2017, um rendimento extraordinário não especificado de € 3.510.842,19 e, consequentemente, estando este abrangido pelo regime de transparência fiscal, face ao disposto no artº 6º nº 2 do CIRC, o lucro tributável apurado por este, no montante de € 3.502.855,27 é imputado diretamente aos respetivos membros, integrando-se no seu rendimento tributável. Participando o sujeito passivo, no referido ACE em 99%, conduziu a um acréscimo do seu rendimento tributável, no montante de € 3.467.826,72, (…). Porém, face às operações em causa, nomeadamente, fazer refletir neste período económico, o perdão PER de € 3.500.286,90, quando o mesmo deveria ter sido reconhecido em 2015 (ano de homologação do PER), anula o resultado extraordinário do ACE, de € 3.467.826,72, a integrar o resultado tributável deste período, que já era positivo, convertendo-o assim num prejuízo, para efeitos fiscais, no montante de - € 104.958,36.

 

A análise da questão que se coloca passa, num primeiro momento, por saber se dos factos provados resultou alguma vantagem fiscal para a Requerente.

Desde já se adianta que não foi alegada a existência de qualquer uma das vantagens fiscais normalmente associadas ao desrespeito do princípio da especialização dos exercícios (hoje designado por princípio da periodização do lucro tributável), quais sejam aproveitar de um benefício fiscal prestes a expirar, existência de prejuízos cujo prazo de reporte esteja a expirar, minoração da progressividade do imposto, obstar a tributações adicionais, etc..

A AT entende apenas que a contabilização da perda correspondente ao “perdão” da dívida do ACE apenas em 2017 visou obstar às consequências fiscais do “lucro extraordinário” obtido pelo ACE nesse exercício.

 

Vejamos se, na realidade, o ACE obteve algum “lucro extraordinário” em 2017.

 

Dos factos dados como provados resulta que, em 2017, o ACE praticamente não obteve lucro da sua atividade corrente, o que parece confirmar a alegada situação de quase inatividade.

O lucro apurado pelo ACE em 2017 foi determinado, na sua quase totalidade, por uma redução do seu passivo resultante do registo, nesse exercício, do perdão parcial (70%) da dívida que tinha para com a Requerente.

 

Mas, e esta é a particularidade do caso concreto, fiscalmente, tal “lucro extraordinário”, refletiu-se, em 99%, no cálculo do imposto devido pela Requerente, em virtude do regime de transparência fiscal aplicável. Ou seja, em termos simplistas, considerando a realidade substancial e não simplesmente a formal, com o registo, na contabilidade do ACE, de tal ganho – registo certamente promovido pela Requerente, uma vez que esta era detentora de 99% de tal ACE – foi a matéria coletável da Requerente, sujeita a IRC, que aumentou, foi a Requerente que registou um “lucro extraordinário”.

 

Aumento da matéria coletável que resultou compensada, no mesmo exercício, pelo registo da perda resultante do perdão parcial da dívida.

 

Continuando-nos a situar num plano apenas substancial, podemos, em resumo, dizer que, fiscalmente, a Requerente tinha por efetuar dois registos com relevância fiscal[1], os quais, rigorosamente deveria ter procedido com referência ao exercício de 2015: o de um gasto (perdão da dívida) e o de um ganho de montante praticamente igual, na esfera do ACE, o qual lhe seria imputado por força do regime da transparência fiscal.

 

O mesmo é dizer que, em termos de imposto a pagar pela Requerente, o registo simultâneo das duas operações (perda e rendimento imputado) resultaria sempre praticamente neutro, independentemente do exercício em que tal registo acontecesse.

 

Registo que, necessariamente, teria de ser simultâneo (num mesmo exercício) pois o facto gerador de ambos é o mesmo: o “perdão” parcial do crédito da Requerente (e o consequente “enriquecimento do ACE”) por força da aprovação do PER.

 

O que mais impressiona na fundamentação da liquidação impugnada é o facto de a Requerida se insurgir contra a violação do princípio da periodização do lucro no tocante ao registo da perda e nada dizer quanto a igual violação do mesmo princípio no registo do correspondente ganho na esfera do ACE, antes adotando a postura de afirmar que esta entidade teve, no exercício um “lucro extraordinário”, o que – como vimos –, sendo formalmente exato, não corresponde à realidade.

 

Houve, de facto, violação do princípio da periodização do lucro, mas quanto “às duas faces de uma mesma moeda”: no registo do rendimento e no registo da perda (de valores idênticos), ambos com reflexos na determinação do lucro tributável da Requerente. Violação “neutra” na medida em que essas duas componentes do lucro praticamente se anulam na totalidade.

 

Rigorosamente, a correção destas duas operações, feita em homenagem ao cumprimento do princípio da especialização dos exercícios, deveria ocorrer com referência ao ano de 2015. Mas tal é, agora, objetivamente impossível dado ter decorrido o prazo de caducidade para a revisão do lucro tributável desse exercício.

 

 A jurisprudência do STA, desde há já largos anos, é no sentido de que a violação do princípio da especialização dos exercícios deve irrelevar quando a sua observância legitimar um resultado claramente ofensivo do princípio da justiça.

 

Com tal jurisprudência, diremos que esse princípio deve tendencialmente conformar-se e ser interpretado de acordo com o princípio da justiça, com conformação constitucional e legal (artigos 266.º, n.º 2 da CRP e 55.º da LGT), por forma a permitir a imputação a um exercício de custos referentes a exercícios anteriores, desde que não resulte de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios.[2]

Jurisprudência que é pacífica e aparece refletida em numerosas decisões, quer dos tribunais estaduais, quer arbitrais.

 

Na doutrina, na obra que é referência maior sobre o tema[3], Tomás Cantista Tavares analisa, detalhadamente, a questão dos “erros temporais”. Entre as suas várias conclusões, que partilhamos, defende a positivação legal de uma norma semelhante à que existe na Ley del Impuesto sobre Sociedades espanhola, a qual aceita tais erros (i. e., a violação do princípio da periodização do lucro) siempre que de ello no derive una tributación inferior a la que hubiera correspondido por aplicación de las normas de imputación temporal prevista en los apartados anteriores.

 

É manifestamente o presente caso: não houve prejuízo para o Estado e a manutenção da liquidação impugnada resultaria na tributação de um rendimento de elevado valor que, em termos reais, a Requerente nunca obteve, ou seja, em ofensa grave ao princípio da capacidade contributiva ou, se se quiser, ao princípio constitucional da tributação das empresas pelo rendimento real.

 

Estes dois princípios são, pela sua natureza, estruturantes do nosso sistema fiscal. Já o princípio da periodização do lucro tem caráter meramente instrumental (é uma convenção contabilística) que visa, em primeira linha, o correto balanceamento de ganhos perdas como condição de apuramento de um resultado que espelhe a realidade económica da empresa.

 

A previsão deste princípio na lei fiscal (artº 18º do CIRC) – caso único de expressa consagração na lei fiscal de um princípio contabilístico – obedece, necessariamente a um intuito fiscal: proteger os interesses fazendários, sempre que, através da sua violação por alguma forma seja reduzido ou adiado o montante do imposto legalmente devido.

 

Não havendo prejuízo para o Estado, ou, mais ainda, havendo um ganho em resultado da violação de tal princípio, a questão será, em princípio, fiscalmente irrelevante, tal como sucede relativamente à não observância de outros princípios contabilísticos.

 

Esta afirmação é especialmente pertinente para os casos, como o presente, em que o rigor na observância deste princípio resultaria, desnecessariamente, em violação dos princípios estruturantes do sistema fiscal que deixámos referidos.

 

Mais que o apelo a outro princípio – o da justiça – como é corrente nos tribunais, a nosso ver está em causa uma questão de “hierarquização” de princípios, quando resultem conflituantes.

 

Mais, não fora a singularidade de ser a Requerente a credora, que viu parte substancial do seu crédito ser declarado incobrável, ser também, em termos fiscais, a entidade tributada pelo lucro obtido pela devedora (o ACE), teríamos que a perda, que efetivamente teve, seria relevante (não surgiria “neutralizada”) no apuramento da sua dívida de IRC.

 

Temos assim que a liquidação impugnada, atenta a sua fundamentação, conduz a um resultado manifestamente iníquo, sem qualquer justificação racional, pelo que não pode ser mantida.

 

 

  1. Juros indemnizatórios

 

A liquidação impugnada foi da iniciativa da AT. Tendo sido anulada por este tribunal arbitral, há que concluir, necessariamente, pela existência de erro imputável aos serviços, o que confere à Requerente, para além de ser reembolsada do indevidamente pago, o direito a ser indemnizada através do recebimento de juros indemnizatórios (art. 43º da LGT e art. 61º, nº 5, do CPPT), em montante a ser determinado pela Requerida em execução da presente decisão arbitral.

 

V- DECISÃO ARBITRAL

 

Termos em que se decide:

 

  1. Não conhecer, por inutilidade superveniente, da parte do pedido relativo a imparidades relativas a créditos de cobrança duvidosa.

 

  1. Julgar totalmente procedente o restante pedido, anulando-se, no mais, a liquidação impugnada, com as consequências legais, nomeadamente no tocante a juros indemnizatórios-

 

Valor: 366.504,59 euros

 

Custas arbitrais a cargo da Requerente uma vez que exerceu a opção de nomear árbitro.

 

21 de dezembro de 2022

 

 

 

Rui Duarte Morais (relator)

 

 

 

 

Sérgio Santos Pereira

 

 

 

Jorge Carita

(vota vencido conforme declaração anexa)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Declaração de Voto

 

Logo na identificação do litígio e na definição da posição das partes a presente Decisão sintetiza a posição da Requerida do seguinte modo:

 

“A Requerida entende que o reconhecimento de tal perda em 2017 (e não em 2015) constitui uma violação do princípio da especialização dos exercícios e que tal reconhecimento tardio apenas se pode compreender como forma de manipulação de resultados contabilísticos, visando reduzir a dívida de imposto a que, de outro modo, estaria sujeita em virtude do resultado excecional que o ACE obteve nesse mesmo período.”

 

Corresponde efetivamente à verdade o que se afirma.

 

Entendo, contudo, que tal é bastante redutor da posição da Requerida.

 

Isto porque, em meu entender, a tónica tem que ser colocada na violação do princípio da especialização dos exercícios, por incumprimento do disposto, nomeadamente, no artº. 18º. do CIRC e não tanto na eventual manipulação de resultados contabilísticos, visando reduzir a dívida de imposto gerada por resultados excecionais do ACE em que a Requerente participava.

 

É que se o “leitmotiv” da atuação da AT fosse este último, o caminho não se faria pela violação do artº. 18º. do CIRC, mas sim, e naturalmente, pela aplicação da cláusula geral anti abuso.

 

E não foi esse o caminho seguido pelo RIT.

 

Consequentemente, não está em causa saber se a AT aplicou bem ou mal a CGAA, porque tal não foi essa a opção metodológica da AT neste processo.

 

Fiquemo-nos, por isso, pela violação do disposto no artº. 18º. do CIRC e a consequente violação pela Requerente do princípio da especialização dos exercícios ou da periodização do lucro.

 

Já quando a presente Decisão em análise refere a posição da Requerente diz o seguinte:

 

“A Requerente contrapõe que a realização das operações contabilísticas em causa apenas em 2017 se deveu a mero lapso (não serem mais que correções do, antes, registado na sua contabilidade), que das mesmas não resultou qualquer prejuízo para o Estado e que não houve qualquer manipulação do resultado fiscal de 2017, pois o lucro extraordinário que a AT diz ter existido nesse exercício na esfera do ACE mais não é que a “outra face” do reconhecimento de tal perda.”

 

Ou seja, a Requerente confessa o erro cometido em 2015, dizendo que contrariamente àquilo de que é “acusada”, o seu comportamento em 2017 não constitui qualquer manipulação de resultados, e fazendo as contas entre o deve o haver com o Estado, diz que no computo das tributações de todos os exercícios em causa e de todas as entidade envolvidas (ela própria e o seu ACE  e restivos membros), o Estado, note-se bem, não ficou prejudicado…

 

E, finalmente, no projeto de Decisão remata-se  que a Requerente:

 

“Sustenta que os princípios da solidariedade dos exercícios (enquanto derrogação do princípio da especialização), da justiça e da tributação pelo rendimento real obrigam a aceitar as operações contabilísticas realizadas em 2017, nomeadamente o registo de tal perda.”

 

Considero que a matéria de facto dada como provada neste Acórdão retrata fielmente a realidade que consta do processo.

 

Entrando na matéria de Direito e quanto à liquidação impugnada, a AT no seu RIT sustenta a posição de que o perdão concedido pela Requerente no montante de € 3.500.286,90, deveria ter sido reconhecido em 2015, ano da homologação do PER e não em 2017, como fez a Requerente.

 

E o que é que diz a Requerente sobre isto.

 

Que a AT tem razão.

 

Que o perdão deveria ter sido reconhecido em 2015, mas tal não aconteceu por mero lapso.

 

E depois, para reforçar a sua posição das “acusações” laterais de que é alvo, é que defende que do seu ERRO, que não foi intencional, não resultou qualquer prejuízo para o Estado.

 

Mas não nega o ERRO.

 

É este Tribunal, com a presente Decisão, que torna esse erro irrelevante.

 

E relativamente a esse resultado, manifestando o maior respeito pelo que vem decidido, não posso concordar.

 

O ERRO tem que ter consequências, porque se assim não fosse, legitimada ficava a prática do erro, lapso, descuido, não demos conta, não foi por mal, foi o contabilista, nem os ROCs deram conta, maldita contabilidade….

 

Criada ficava uma outra figura: a do erro inocente.

 

Bem, fizemos aqui umas contas e no saldo final o Estado não fica prejudicado, quem sabe até se não terá ficado a ganhar.

 

Ou seja, eu deveria ter pago um valor  de imposto a menos  em 2015, mas como não dei conta do perdão, tal não aconteceu, mas depois tratei do assunto, dois anos mais tarde e afinal percebi que havia imposto a pagar, mas que poderia perfeitamente ser compensado com aquela que paguei a menos em 2015, porque no fundo as duas operações deveriam ter casado no mesmo ano e não havia imposto algum a pagar, o que não faz diferença nenhuma porque de qualquer modo o  Estado até nem sequer ficou prejudicado.

 

E a censura do comportamento, onde é que fica?

 

A cobertura deste tipo de situações, como resulta desta Decisão, é, na minha modesta opinião, extremamente  perigosa, e abre a porta à legalização de práticas absolutamente  proibidas por lei.

 

Tudo se poderia resumir a ter ou não havido prejuízo para o Estado.

 

Não posso, por isso, respeitosamente, estar de acordo com a projetada Decisão, quando se diz que:

 

“A análise da questão que se coloca passa, num primeiro momento, por saber se dos factos provados resultou alguma vantagem fiscal para a Requerente.”

 

É um facto que parece que não se dão por verificadas as situações tipificadas de violação do princípio da especialização dos exercícios, melhor dito “periodização do lucro tributável” (aproveitar de um benefício fiscal prestes a expirar, existência de prejuízos cujo prazo de reporte esteja a expirar, minoração da progressividade do imposto, obstar a tributações adicionais, etc), mas não pode o Tribunal reduzir a posição da AT ao facto de que a “…a contabilização da perda correspondente ao “perdão” da dívida do ACE apenas em 2017 visou obstar às consequências fiscais do “lucro extraordinário” obtido pelo ACE nesse exercício.”

 

Não se pode esquecer que as partes estão de acordo que o perdão em causa deveria ter sido registado em 2015.

 

E o Tribunal tem que decidir que consequências devem ser extraídas desse facto inquestionável.

 

E, na minha opinião, não o faz.

 

Não há dúvidas de que em 2017 a Requerente tinha que registar um proveito extraordinário, e como não tinha modo de o anular, foi buscar a perda que deveria ter contabilizado em 2015… e não contabilizou, mas que já não poderia contabilizar em 2017.

 

E deveria a AT ter corrigido tudo isto no exercício de 2015?

 

Podia, mas para tal seria preciso que o ano tivesse sido fiscalizado e em tempo útil e que tivesse sido detetado esse lapso do sujeito passivo, e que já se tivesse verificado o proveito que só veio a ser registado em 2017 (registo de um ganho na contabilidade do ACE), para que as operações se anulassem reciprocamente em 2015.

 

Ora, o registo do ganho na contabilidade do ACE só foi efetuado em 2017 e só em 2017 teve reflexos na contabilidade da Requerente, que nele participava em 99% e tudo por via da aplicação do regime de transparência fiscal.

 

Mas tal não aconteceu em 2015 e sobe isso o Tribunal não tem que se pronunciar.

 

E que tudo deveria ter sido registado em 2015, é o próprio Tribunal que o confessa ao afirmar o seguinte:

 

“Continuando-nos a situar num plano apenas substancial, podemos, em resumo, dizer que, fiscalmente, a Requerente tinha por efetuar dois registos com relevância fiscal[1], os quais, rigorosamente deveria ter procedido com referência ao exercício de 2015: …” (sublinhado nosso).

 

Se assim é, pergunto respeitosamente, porque é que o Tribunal esquece a censura que este comportamento omissivo merece e mais, é imposto por lei.???

 

E parece que o Tribunal penaliza a AT por não ter aberto a fiscalização do exercício de 2015 e de não ter feito por sua iniciativa o que o sujeito passivo não fez.

 

Mas a seguir à crítica vem a resposta:

 

“Mas tal é, agora, objetivamente impossível dado ter decorrido o prazo de caducidade para a revisão do lucro tributável desse exercício.”

 

Então esse argumento não pode jogar contra a AT neste processo.

 

Sinceramente, tenho dúvidas que a conformação ditada jurisprudencialmente do princípio da especialização, como uma espécie de princípio menor, que cede perante o esplender do princípio da justiça, se resume tão simplesmente às contas que estamos a fazer neste processo, sobre se houve ou não prejuízo para o Estado.

 

Tanto mais que não dispomos para o fazer de todo os elementos necessários.

 

Deveria ser feita uma simulação para os dois exercícios, de 2015 e 2017, mas também para os restantes, quer anteriores quer posteriores, precisamente para se apurar se outras vicissitudes da atividade da empresa não serão igualmente determinantes para o  apuramento do saldo dessa conta (prejuízos fiscais reportáveis, benefícios a serem extintos outras deduções à coleta, etc).

 

Diga-se, aliás, que o Acórdão do STA citado neste Acórdão, refere que tal conformação deve ser tendencial e não absoluta e citamos: “Constitui no entanto jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal que a rigidez deste princípio tem de ser colmatada ou temperada com a invocação do princípio da justiça.”

 

Refira-se que o Acórdão do STA aponto algumas dos motivos que justificam tal rigidez.

 

Senão vejamos:

 

“Com vista a evitar práticas de manipulação do cálculo do lucro tributável, nomeadamente o adiamento da tributação ou a sua concentração em exercícios onde a tributação possa resultar mais favorável, a lei fiscal consagra com grande rigidez este princípio da especialização de exercícios (Rui Duarte Morais, Apontamentos ao IRC, Ed. Almedina, pág. 69).

 

Testemunho dessa rigidez é, como sublinha Rui Duarte Morais (Ob. citada, pag. 70), o nº 2 do artº 18º do CIRC que dispõe que as componentes positivas ou negativas consideradas como respeitando a exercícios anteriores só são imputáveis ao exercício quando na data de encerramento das contas daquele a que deveriam ser imputadas eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas.

 

E mais adiante, sabendo-se que no caso deste Acórdão do STA estava em causa o facto da empresa contribuinte não ter constituído uma provisão, o Tribunal constata o seguinte:

 

“E, sendo certo que a constituição de uma provisão implica sempre uma avaliação por parte do sujeito passivo, haverá que notar que, como sublinha Rui Duarte Morais (Ob. citada, pags. 128/129.), dada a incerteza que qualquer pleito judicial envolve, existe sempre um risco real de a empresa ser condenada no valor total peticionado, pelo que, verificando-se os demais condicionalismos legais, deverá ser aceite a relevância fiscal de uma provisão correspondente ao montante do pedido.

 

Por isso entendemos que, ao invés do que decidiu a sentença recorrida, deveria de facto, ter sido constituída a respectiva provisão em 1989.” (sublinhado nosso)

 

Ali, como aqui, ambos foram de opinião que a provisão ali e o custo aqui, deveriam ter sido contabilizados num exercício anterior àquele que depois veio a ser considerado pela empresa em causa, mas tudo cede perante o princípio da justiça, que, no meu modesto entender é no caso concreto de difícil aplicação prática.

 

Quando à cobertura que a Doutrina dá a esta situação, não basta dizer que existe uma Lei em Espanha nesse sentido, tem que se acrescentar que a mesma não existe em Portugal.

 

Seria bom que houvesse, talvez, mas à data da verificação dos factos não havia e hoje ainda não há.

 

Diga-se que o ordenamento fiscal está eivado de regras que determinam o momento em que as operações têm relevância contabilística e fiscal e que ultrapassado esse momento o contribuinte perde direito a elas (reconhecimento de provisões e imparidades, amortizações e reintegrações, etc).

 

É, no meu modesto entender, o caso da realidade substantiva deste processo, devendo o mesmo ser decidido, por violação do princípio da periodização do lucro, em desfavor da Requerente, nada havendo a censurar no comportamento da Autoridade Tributária.

 

Se alguém andou mal neste processo, foi o sujeito passivo, face ao seu errático e intempestivo comportamento contabilístico, com as conhecidas consequências fiscais.

 

Lisboa, 22 de dezembro de 2022

 

 

Jorge Carita

 

 

 



[1] Fiscalmente, não está em causa uma retificação do registo de uma provisão, feita em 2015, uma vez que esta não foi considerada para efeitos do apuramento do lucro tributável desse exercício.

[2]  Ac. STA, proc. 0716/13 de 14-03-2018.

[3] IRC e Contabilidade, 2011, 62 ss, maxime 68.

[1] Fiscalmente, não está em causa uma retificação do registo de uma provisão, feita em 2015, uma vez que esta não foi considerada para efeitos do apuramento do lucro tributável desse exercício.