Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 279/2013-T
Data da decisão: 2014-06-30  IRC  
Valor do pedido: € 226.223,35
Tema: IRC – Créditos incobráveis
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DECISÃO ARBITRAL

 

 

            I – Relatório

 

            1.1. O A, S.A. (doravante designado, somente, por «requerente»), tendo sido notificado da liquidação adicional de imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC), no valor de €226.223,35, incluindo juros compensatórios, relativo a prejuízos fiscais declarados em 2009, apresentou, no dia 4/12/2013, um pedido de constituição de tribunal arbitral e de pronúncia arbitral, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, al. a), e 10.º, ambos do Dec.-Lei n.º 10/2011, de 20/1 (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante somente designado por «RJAT»), em que é «Requerida» a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), tendo em vista que seja "declarado ilegal e anulado o acto de correcção dos prejuízos fiscais declarados pela ora [requerente] patente na liquidação adicional de IRC impugnada, com todas as consequências de lei".

 

            1.2. O pedido de constituição do Tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 4/12/2013 e automaticamente notificado à AT em 5/12/2013.

 

            1.3. Nos termos do disposto na al. a) do n.º 2 do art. 6.º e da al. b) do n.º 1 do art. 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo art. 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31/12, o Conselho Deontológico designou como árbitros do Tribunal arbitral colectivo o Exmo. Juiz José Poças Falcão (árbitro presidente), o Exmo. Prof. Doutor Miguel Patrício e o Exmo. Dr. José Vieira dos Reis, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

            1.4. Em 21/1/2014, as partes foram devidamente notificadas da designação de árbitros supra referida, não tendo manifestado vontade de recusar a mesma, nos termos do art. 11.º, n.º 1, al. a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

            1.5. Assim, em conformidade com o disposto no art. 11.º, n.º 1, al. c) do RJAT, na redação introduzida pelo art. 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31/12, o presente Tribunal arbitral colectivo foi constituído em 5/2/2014.

 

            1.6. Nos termos do art. 17.º do RJAT, a AT foi citada, enquanto parte requerida, para apresentar resposta, nos termos e para os efeitos do mencionado artigo (conforme despacho do presidente do presente Tribunal, datado de 5/2/2014). A AT apresentou a sua resposta em 21/2/2014, tendo argumentado, em síntese, a total improcedência do pedido apresentado pela requerente.

 

            1.7. Em 28/2/2014, o presidente do presente Tribunal proferiu despacho para efeito de marcação de reunião com as partes, nos termos e para os efeitos do art. 18.º do RJAT.

 

            1.8. A reunião acima referida ocorreu em 24/3/2014. Nela compareceram os árbitros designados, bem como o Exmo. Dr. B, na qualidade de mandatário da ora requerente, e o Exmo. Dr. C e a Exma. Dra. D, na qualidade de juristas em representação do Director-Geral da AT.

 

            1.9. Dá-se aqui por reproduzido o conteúdo da respectiva acta. Foi, ainda, designada a data de 5/5/2014 para efeitos de realização de inquirição de testemunhas, à qual se seguiria a produção de alegações orais.

           

            1.10. Em 5/5/2014, foi realizada a mencionada inquirição de testemunhas: 1.ª) E, TOC, testemunha arrolada pela requerente e inquirida pelo representante desta sobre os artigos 7 a 9, 87 e 98 da p.i. e sobre os artigos 143 e 144 da resposta; 2.ª) F, administrador de insolvência, testemunha arrolada pela requerente e inquirida pelo representante desta sobre os artigos 9 a 19 da p.i. e sobre os artigos 62 a 65, 70, 85 e 87 da resposta. Esta segunda testemunha foi também inquirida pelos representantes da Requerida e confrontada, por solicitação do representante da requerente (e após consulta dos representantes da Requerida e autorização do tribunal), com o "Inventário de Bens e Direitos", constante do doc. n.º 2 apenso à p.i..

 

            1.11. No final da inquirição supra mencionada, os representantes da requerente e da Requerida produziram as correspondentes alegações orais. Em cumprimento do disposto no art. 18.º, n.º 2, do RJAT, o Tribunal designou, para efeito de prolação da decisão arbitral, o dia 20/6/2014. Por despacho do presidente do presente Tribunal, de 21/6/2014, foi designado o dia 15/7/2014 como nova data limite para a notificação do acórdão (data ainda dentro do prazo de seis meses estabelecido no art. 21.º, n.º 1, do RJAT).

 

            1.12. O presente Tribunal foi regularmente constituído, é materialmente competente, o processo não enferma de vícios que o invalidem e as Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, configurando-se legítimas.

 

            II – Fundamentação: A Matéria de Facto

 

            2.1. Vem a ora requerente, na sua petição inicial (p.i.), alegar, em síntese, que: a) a interpretação da ora Requerida, segundo a qual "a impugnante teria de aguardar por uma das circunstâncias previstas nas várias alíneas do n.º 1 do artigo 230.º do CIRE para que então, somente nessa data desse exercício, pudesse considerar como custos ou perdas créditos cuja incobrabilidade efectiva há muito [se] verificara", é formulação que "não tem um mínimo de correspondência na letra do artigo 39.º (actual 41.º) do CIRC" (vd. arts. 31.º e 33.º da p.i.); b) a expressão "«na medida em que tal resulte do processo de insolvência» [...] [significa que] essa medida não poderá ser outra senão aquela que resulta da conjugação de todos os elementos que constam dos próprios autos de insolvência [....] [nomeadamente] no caso concreto da ora impugnante [...] [o] inventário elaborado nos termos do artigo 153.º, [a] lista de credores elaborada nos termos do artigo 154.º e [o] relatório elaborado nos termos do artigo 155.º, todos do CIRE [a que acresce] a deliberação da assembleia de credores de 23 de Novembro de 2009 que determinou o encerramento da actividade dos estabelecimentos da G, S.A." (v. arts. 45.º a 48.º); c) "a inspecção tributária [não pode] fundamentar as suas correcções na mera circunstância de o processo de insolvência não estar encerrado a 31 de Dezembro de 2009. Só se lograsse fundamentar as suas correcções na circunstância de a incobrabilidade do crédito da ora impugnante não resultar da insolvência, analisados os concretos elementos que disso fossem demonstrativos" (v. arts. 57.º, 58.º, 70.º e 71.º); d) "[ainda que se entendesse] que só com o encerramento da insolvência se preenche a previsão do artigo 39.º do CIRC [...] o acto de correcção e a consequente liquidação seriam também ilegais por violação do artigo 35.º (actual 36.º) do CIRC [...]. [Note-se que] à ora impugnante não seria admitida a consideração fiscal dos seus créditos por cobrar ao abrigo do artigo 39.º, porque seriam meros créditos de cobrança duvidosa, nem ao abrigo do art. 35.º, porque não constituiu provisão para o efeito" (v. arts. 79.º e segs., maxime 93.º, da p.i.).  

 

            2.2. Conclui a requerente pela inteira procedência do pedido e, por via dela, pede que seja "declarado ilegal e anulado o acto de correcção dos prejuízos fiscais declarados pela ora [requerente] patente na liquidação adicional de IRC impugnada, com todas as consequências de lei", solicitando, ainda, "a condenação da Fazenda Pública a indemnizar a impugnante dos custos que incorrer com a garantia que houver de prestar" e "a ressarcir a impugnante das despesas resultantes da lide, nomeadamente os honorários do seu mandatário". 

 

            2.3. Por seu lado, a AT vem alegar, na sua resposta, em síntese, que: a) a "Requerente pretende [...] (apenas) a anulação parcial da liquidação em causa [...]. [...]. Assim, tendo em atenção que o montante de imposto a pagar (€226.223,35) tem por base a totalidade das correcções efectuadas no relatório inspectivo e que a Requerente, no presente pedido arbitral, apenas contesta o valor de €1.858.998,33, [...] o valor do pedido deverá corresponder (apenas) à percentagem determinada por essa correcção, ou seja, 79% do valor da liquidação" (v. arts. 9.º a 13.º da resposta); b) "nos casos abrangidos por essa disposição [art. 39.º do CIRC] não se está já perante a eventualidade dos créditos se tornarem incobráveis, pois se houver qualquer incerteza quanto à incobrabilidade, dever-se-á, como vimos acima, recorrer à constituição de provisão para cobranças duvidosas. Está-se, antes e apenas, perante situações em que não há – não é susceptível de haver – qualquer dúvida quanto à incobrabilidade da dívida em causa." (v. arts. 56.º a 58.º e 85.º e segs.); c) "não vemos [...] como seja possível obter efectiva certeza de que o crédito é incobrável, em processo de insolvência, anteriormente ao «rateio final do período da liquidação» (cf. artigo 27.º do r.i.). [...] [Porque,] entre muitos outros exemplos que se poderiam dar, [...] pode apurar-se, posteriormente, a existência de elementos patrimoniais que não foram considerados no «inventário de bens e direitos»." (v. arts. 61.º e 62.º e segs.); d) "[Resumindo,] o «crédito incobrável» contabilizado não podia, e não pode, ser aceite como custo fiscal, pois que não cumpria os pressupostos para o efeito estabelecidos no então artigo 39.º do CIRC."; e) "face ao que pela própria requerente é referido no artigo 81.º do r.i., cabia à mesma, nesse exercício de 2009, nos termos do citado normativo, ter provisionado - e provisionado a 100% - os créditos da «G» [pelo que] carece de sentido a alegação da requerente de que, por estarem em causa créditos que entendia serem incobráveis, não constituiu, nem tinha de constituir, provisão para créditos de cobrança duvidosa, aplicando, antes, aquele artigo 39.º do CIRC." (v. arts. 116.º e 119.º); f) "a correcção posta em causa nos presentes autos e a sequente liquidação [não] violam o então artigo 35.º do CIRC" (v. art. 169.º); g) "[quanto ao pedido da requerente relativo ao pagamento das despesas, resultantes da lide, com honorários de mandatários judiciais], compaginando as competências que pelo RJAT são atribuídas aos Tribunais Arbitrais Tributários, entendeu o legislador não atribuir a estes tribunais quaisquer poderes nesta matéria" (v. art. 175.º).

 

            2.4. Em síntese, a AT sustenta que o "presente pedido de pronúncia arbitral [deve] ser julgado improcedente, absolvendo-se a Entidade Requerida dos pedidos".

 

            2.5. Consideram-se provados os seguintes factos:

           

            i) O acto colocado em causa pela ora requerente resultou de uma ação inspectiva de âmbito parcial (IRC) relativa ao exercício de 2009 e, especificamente, do disposto no RIT de 19/6/2013 (emitido sob a ordem de serviço n.º OI 2012… de 21/12/2012), que consta do PA apenso aos presentes autos.

 

            ii) No âmbito da mencionada ação inspectiva foram efectuadas correcções ao lucro tributável. Especificamente, tais correções diziam respeito, no entender da AT, a créditos incobráveis, ajustamentos para dívidas a receber e provisões do exercício e amortizações não aceites para além do limite legal, num total de €2.347.362,58 – i.e., passou-se de um prejuízo fiscal declarado de €1.578.690,69 (v. fls. 7 do PA apenso) para um lucro tributável corrigido de €768.671,89 (ibidem). 

           

            iii) Decorre do que alega a ora requerente, na sua p.i., que pretende colocar em causa a correção relativa aos créditos contabilizados como incobráveis, no valor de €1.858.998,33 (v. quadro n.º 24 a fls. 32 do PA), conformando-se "com as correcções relativas a ajustamento para dívidas a receber e provisões e amortizações não aceites ou para além do limite legal, melhor discriminadas no quadro n.º 23 e quadro n.º 35 do Relatório" (v. fls. 31 e  40 do PA).

           

            iv) Na sequência das correções acima indicadas, foi emitida uma liquidação adicional de IRC relativa ao ano de 2009, com o n.º 2013…, no montante de €78.779,66. Tendo em consideração o estorno da liquidação originária (n.º 2010 …), no valor de €147.443,69, resultou um imposto a pagar pela ora requerente de €226.223,35 (v. doc. n.º 1 apenso à p.i.).

 

            v) Deste valor global de €226.223,35, a ora requerente pretende colocar em causa apenas a correção no montante de €1.858.998,33 (montante relativo a correções respeitantes à "G, S.A.", no valor de €1.853.977,89, e à "H, Lda.", no valor de €5.020,44).

           

            vi) A ora requerente dedica-se à prestação de cuidados de saúde, oferecendo aos seus clientes, fundamentalmente, consultas externas de diversas especialidades médico-cirúrgicas apoiadas por meios complementares de diagnóstico e tratamento. No âmbito da mencionada actividade, forneceu, regularmente, à G, a prestação de serviços médicos a sinistrados por conta de diversas companhias de seguros (v. arts. 7.º e 8.º da p.i.).

 

            vii) Em 2009, o valor devido pela "G, S.A." ascendia ao montante já supra referido de €1.853.977,89 (v. fls. 36 do PA, e explicação dada pelo TOC em 4/2/2013, a qual consta de fls. 199 do PA). A 31/8/2009, a referida sociedade apresentou-se à insolvência alegando estar impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas (v. fls. 33 e segs. do anexo 14 ao PA). Em 8/9/2009, a mesma sociedade foi declarada insolvente por sentença proferida pelo Tribunal do Comércio de Lisboa, no processo n.º … (sentença que transitou em julgado a 12/10/2009).

 

            viii) A ora requerente reclamou então o seu crédito de €2.053.111,00 (€1.758.286,00 a título de capital e €294.825,00 a título de juros vencidos até à data da insolvência) - v. fls. 36 do PA. Requereu, ainda, o arresto das contas bancárias e das receitas da sociedade G no processo n.º … do 3.º juízo cível do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, igualmente de 2009 (v. fls. 34 do anexo 14 ao PA). 

 

            ix) A 23/11/2009, teve lugar a assembleia de credores para apreciação do relatório (v. respectiva ata a fls. 38 e segs. do anexo 14 ao PA). O crédito reclamado pela ora requerente foi então provisoriamente reconhecido pelo valor reclamado como crédito comum. Na mesma assembleia foi deliberado o encerramento da atividade dos estabelecimentos da sociedade G, tendo sido determinado pelo Tribunal que o processo prosseguisse os seus termos com a liquidação do ativo.

 

            x) Em 31/12/2009, os autos de insolvência da sociedade G integravam o inventário a que alude o art. 153.º do CIRE, do qual constava um ativo avaliado em €1.000.567,16, bem como a lista provisória de credores a que alude o art. 154.º do CIRE, e da qual constava um valor total de créditos de €22.177.353,99 (v. declaração do administrador de insolvência da sociedade G, em 2/12/2013, que consta do doc. n.º 2 apenso à p.i.). O valor dos créditos privilegiados reconhecidos era então superior ao valor do activo inventariado (ibidem).

 

            xi) Como se refere na citada declaração do administrador de insolvência da sociedade G, não era expectável a recuperação do crédito reconhecido à ora requerente, "na medida em que o valor dos créditos privilegiados reconhecidos ascendia a €1.266.769,82 [e] o valor estimado do activo da G, S.A., era de €1.000.567,16".

 

            xii) A sociedade H apresentou-se à insolvência em 2009, tendo sido decidido o encerramento do respectivo processo em abril de 2012, por insuficiência da massa, nos termos do art. 232.º do CIRE (v. fls. 36 do PA).

 

            2.6. Não há factos não provados relevantes para a decisão da causa.

 

            III – Motivação

 

            Para a convicção do Tribunal foram essenciais o processo administrativo anexo, bem como os demais documentos incorporados nos autos, analisados criticamente e em conjugação com os depoimentos prestados em audiência pelas testemunhas F – administrador da insolvência da empresa devedora dos créditos considerados incobráveis e que constituem o objeto deste processo – que depôs com conhecimento direto e profundo dos factos e do processo de insolvência de que foi (e é ainda) administrador, e que comprovou de forma peremptória e convincente a absoluta incobrabilidade dos créditos em causa – e E, técnico oficial de contas da requerente – que corroborou ou acompanhou no essencial o depoimento da anterior testemunha.

 

            IV – Fundamentação: A Matéria de Direito

 

            No presente caso, são duas as questões de direito controvertidas: 1) por um lado, a de saber se, como alega a ora requerente, a expressão constante do disposto no art. 39.º do CIRC "«na medida em que tal resulte do processo de insolvência» [...] [significa que] essa medida não poderá ser outra senão aquela que resulta da conjugação de todos os elementos que constam dos próprios autos de insolvência", ou se, ao invés, como entende a Requerida, não é possível "obter efectiva certeza de que o crédito é incobrável, em processo de insolvência, anteriormente ao «rateio final do período da liquidação»"; 2) por outro, caso se entendesse que "só com o encerramento da insolvência se preenche a previsão do artigo 39.º do CIRC", a de saber se, como também invoca a ora requerente, "o acto de correcção e a consequente liquidação seriam também ilegais por violação do artigo 35.º (actual 36.º) do CIRC".

 

            As "questões formais" relativas aos pedidos da ora requerente quanto ao pagamento de "custos [em] que incorrer com a garantia que houver de prestar" [3.1)] e ao pagamento de "despesas resultantes da lide, nomeadamente os honorários do seu mandatário" [3.2)], e ainda quanto ao pedido da Requerida relativamente à redução do valor do presente processo [4)], serão decididas na parte final da presente decisão.

 

            Vejamos então as questões suscitadas começando por transcrever, por facilidade expositiva, as seguintes disposições do CIRC, em vigor à data de 2009:

 

Regime de outros encargos

Artigo 39º
Créditos incobráveis

 

            Os créditos incobráveis podem ser directamente considerados custos ou perdas do exercício na medida em que tal resulte de processo especial de recuperação de empresa e protecção de credores ou de processo de execução, falência ou insolvência, quando relativamente aos mesmos não seja admitida a constituição de provisão ou, sendo-o, esta se mostre insuficiente.

 

            1) A questão reside então em saber se é ou deve ser exigível uma certeza formal e segura de incobrabilidade do crédito para que este se considere incobrável e, consequentemente, o respetivo valor considerado, para efeitos de liquidação de IRC, gasto ou perda do exercício no respetivo período de tributação.

 

            Não parece que assim deva ser interpretado o preceito.

 

            Na verdade, seria uma inaudita violência exigir que o contribuinte interessado na dedução tivesse de esperar vários anos pela liquidação do ativo e pagamentos aos credores reclamantes e graduados pelo produto da liquidação.

 

            Pelo contrário, a interpretação mais razoável e lógica é a que resulta de um juízo de prognose, objetivo e seguro, donde se conclua revelar-se impossível face ao valor do ativo e ao volume de créditos, a incobrabilidade do crédito.

 

            Certo que o CIRC previa então um regime de provisões com os seguintes contornos:

 

Regime das provisões

Artigo 34.º
Provisões fiscalmente dedutíveis

 

            1 - Podem ser deduzidas para efeitos fiscais as seguintes provisões:

                 a) As que tiverem por fim a cobertura de créditos resultantes da actividade normal que no fim do exercício possam ser considerados de cobrança duvidosa e sejam evidenciados como tal na contabilidade;

                 b) As que se destinarem a cobrir as perdas de valor que sofrerem as existências;

                 c) As que se destinarem a ocorrer a obrigações e encargos derivados de processos judiciais em curso por factos que determinariam a inclusão daqueles entre os custos do exercício;

                 d) As constituídas obrigatoriamente, por força de uma imposição de carácter genérico e abstracto, pelas empresas sujeitas à supervisão do Banco de Portugal e pelas sucursais em Portugal de instituições de crédito e de outras instituições financeiras com sede em outro Estado membro da União Europeia destinadas à cobertura de risco específico de crédito, de risco-país, para menos-valias de títulos da carteira de negociação e para menos-valias de outras aplicações, e bem ainda as provisões técnicas e as provisões para prémios por cobrar constituídas obrigatoriamente, por força de normas emanadas do Instituto de Seguros de Portugal, de carácter genérico e abstracto, pelas empresas de seguros submetidas à sua supervisão e pelas sucursais em Portugal de empresas seguradoras com sede em outro Estado membro da União Europeia; (Redacção dada pelo artigo 52.º da Lei n.º 53-A/2006, de 29/12)

                 e) As que, constituídas por empresas que exerçam a indústria extractiva do petróleo, se destinem à reconstituição de jazigos;

                 f) As que, constituídas pelas empresas pertencentes ao sector das indústrias extractivas ou de tratamento e eliminação de resíduos, se destinarem a fazer face aos encargos com a recuperação paisagística e ambiental dos locais afectos à exploração, sempre que tal seja obrigatório e após a cessação desta, nos termos da legislação aplicável. (Red. da Lei n.º 64-A/2008 de 31 de Dezembro).

            2 - As provisões a que se referem as alíneas a) a d) do número anterior que não devam subsistir por não se terem verificado os eventos a que se reportam e as que forem utilizadas para fins diversos dos expressamente previstos neste artigo consideram-se proveitos do respectivo exercício. (Redacção da Lei n.º 30-G/2000, 29/12).

            3 - Quando se verifique a reposição de provisões para riscos gerais de crédito ou de outras provisões não previstas na alínea d) do n.º 1 são consideradas proveitos do exercício, em primeiro lugar, aquelas que tenham sido aceites como custo fiscal no exercício da respectiva constituição. (Redacção dada pelo artigo 52.º da Lei n.º 53-A/2006 de 29/12).

 

 

            No artigo seguinte, dispunha o CIRC:

 

Artigo 35.º

Provisão para créditos de cobrança duvidosa

 

            1 - Para efeitos da constituição da provisão prevista na alínea a) do nº 1 do artigo anterior, são créditos de cobrança duvidosa aqueles em que o risco de incobrabilidade se considere devidamente justificado, o que se verifica nos seguintes casos:

                 a) O devedor tenha pendente processo especial de recuperação de empresa e protecção de credores ou processo de execução, falência ou insolvência;

                 b) Os créditos tenham sido reclamados judicialmente;

                 c) Os créditos estejam em mora há mais de seis meses desde a data do respectivo vencimento e existam provas de terem sido efectuadas diligências para o seu recebimento.

            2 - O montante anual acumulado da provisão para cobertura de créditos referidos na alínea c) do número anterior não pode ser superior às seguintes percentagens dos créditos em mora:

                 a) 25% para créditos em mora há mais de 6 meses e até 12 meses;

                 b) 50% para créditos em mora há mais de 12 meses e até 18 meses;

                 c) 75% para créditos em mora há mais de 18 meses e até 24 meses;

                 d) 100% para créditos em mora há mais de 24 meses.

            3 - Não são considerados de cobrança duvidosa:

                 a) Os créditos sobre o Estado, Regiões Autónomas e autarquias locais ou aqueles em que estas entidades tenham prestado aval;

                 b) Os créditos cobertos por seguro, com excepção da importância correspondente à percentagem de descoberto obrigatório, ou por qualquer espécie de garantia real;

                 c) Os créditos sobre pessoas singulares ou colectivas que detenham mais de 10% do capital da empresa ou sobre membros dos seus órgãos sociais, salvo nos casos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1;

                 d) Os créditos sobre empresas participadas em mais de 10% do capital, salvo nos casos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1.

 

            A questão, in casu, não é de saber se um crédito é ou pode ser considerado ou não de cobrança duvidosa mas antes se pode qualificar-se como incobrável.

 

            Não parece que a intenção do legislador fosse no sentido da exigência de sentença transitada em julgado como meio de prova de incobrabilidade por que se assim fosse teria sido expressa essa exigência de forma inequívoca. Ou, dito doutro modo: não há razões para que o não tivesse feito na medida em que a exigência de certo meio de prova é sempre feita inequivocamente pelo legislador.

 

            Assim é que o segmento do artigo 39.º do CIRC ("os créditos incobráveis podem ser directamente considerados custos ou perdas do exercício na medida em que tal resulte de processo especial de recuperação de empresa e protecção de credores ou de processo de execução, falência ou insolvência"), deve ser interpretado no sentido de que não é o resultado final formal do processo (recuperação de empresa, execução, falência ou insolvência) que releva mas antes esse resultado deve ser o que deriva dum conjunto de actos e factos espelhados nesse mesmo processo e reveladores inequívocos da incobrabilidade do crédito (por exemplo, foi elaborado auto de não apreensão de bens por inexistência absoluta de património ao falido ou insolvente, que sentido fará estar à espera duma decisão judicial transitada em julgado para considerar o crédito incobrável?).

 

            No mesmo sentido, veja-se, v.g., o seguinte aresto: "O art. 39.º do CIRC, na redacção do Decreto-Lei n.º 198/2001, de 3 de Julho, admitia como custos ou perdas do exercício os créditos que, para além do mais, resultassem incobráveis «de processo especial de recuperação de empresa e protecção de credores ou de processo de execução, falência ou insolvência». Essa norma não exige que os créditos em cobrança coerciva mediante processo de execução só possam ser contabilizados como créditos incobráveis mediante sentença com trânsito em julgado que declare a sua incobrabilidade em processo executivo. A mesma norma não impede, designadamente, que sirva à comprovação da incobrabilidade verificada em processo de execução a falta de bens penhoráveis certificada em auto de diligência judicial para penhora." (Acórdão do STA de 10/10/2012, proc. 782/12).

 

            Pode-se afirmar então e em síntese que o que devem ser é captados sinais no processo de insolvência, de recuperação de empresa, de execução, que inequivocamente revelem a natureza incobrável de créditos.

 

            Subsumindo:

 

            No caso dos autos evidencia-se o seguinte quadro factual (cf. supra, elenco de factos provados):

 

"(…) vi) A ora requerente dedica-se à prestação de cuidados de saúde, oferecendo aos seus clientes, fundamentalmente, consultas externas de diversas especialidades médico-cirúrgicas apoiadas por meios complementares de diagnóstico e tratamento. No âmbito da mencionada actividade, forneceu, regularmente, à G, a prestação de serviços médicos a sinistrados por conta de diversas companhias de seguros (v. arts. 7.º e 8.º da p.i.).

 

            vii) Em 2009, o valor devido pela "G, S.A." ascendia ao montante já supra referido de €1.853.977,89 (v. fls. 36 do PA, e explicação dada pelo TOC em 4/2/2013, a qual consta de fls. 199 do PA). A 31/8/2009, a referida sociedade apresentou-se à insolvência alegando estar impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas (v. fls. 33 e segs. do anexo 14 ao PA). Em 8/9/2009, a mesma sociedade foi declarada insolvente por sentença proferida pelo Tribunal do Comércio de Lisboa, no processo n.º … (sentença que transitou em julgado a 12/10/2009).

 

            viii) A ora requerente reclamou então o seu crédito de €2.053.111,00 (€1.758.286,00 a título de capital e €294.825,00 a título de juros vencidos até à data da insolvência) - v. fls. 36 do PA. Requereu, ainda, o arresto das contas bancárias e das receitas da sociedade G no processo n.º … do 3.º juízo cível do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, igualmente de 2009 (v. fls. 34 do anexo 14 ao PA). 

 

            ix) A 23/11/2009, teve lugar a assembleia de credores para apreciação do relatório (v. respectiva ata a fls. 38 e segs. do anexo 14 ao PA). O crédito reclamado pela ora requerente foi então provisoriamente reconhecido pelo valor reclamado como crédito comum. Na mesma assembleia foi deliberado o encerramento da atividade dos estabelecimentos da sociedade G, tendo sido determinado pelo Tribunal que o processo prosseguisse os seus termos com a liquidação do ativo.

 

            x) Em 31/12/2009, os autos de insolvência da sociedade G integravam o inventário a que alude o art. 153.º do CIRE, do qual constava um ativo avaliado em €1.000.567,16, bem como a lista provisória de credores a que alude o art. 154.º do CIRE, e da qual constava um valor total de créditos de €22.177.353,99 (v. declaração do administrador de insolvência da sociedade G, em 2/12/2013, que consta do doc. n.º 2 apenso à p.i.). O valor dos créditos privilegiados reconhecidos era então superior ao valor do activo inventariado (ibidem).

 

            xi) Como se refere na citada declaração do administrador de insolvência da sociedade G, não era expectável a recuperação do crédito reconhecido à ora requerente, "na medida em que o valor dos créditos privilegiados reconhecidos ascendia a €1.266.769,82 [e] o valor estimado do activo da G, S.A., era de €1.000.567,16".

 

            xii) A sociedade H apresentou-se à insolvência em 2009, tendo sido decidido o encerramento do respectivo processo em abril de 2012, por insuficiência da massa, nos termos do art. 232.º do CIRE (v. fls. 36 do PA) (…)".

 

            Ora em face desta realidade revelada designadamente pelos processos de insolvência da H, com encerramento do respetivo processo em 2012 por insuficiência de bens (art. 232.º, do Cód. de Insolvência e Recup. de Empresa – CIRE) e a existência de um ativo da G avaliado em €1.000.567,16, para um total de créditos privilegiados de valor superior, num volume global de €22.177.353,99, não pode ser formulada conclusão diversa da que foi produzida pela ora requerente: o seu crédito é incobrável sem necessidade de aguardar pelo encerramento do processo de insolvência.

 

            Certo que, formalmente, o crédito reclamado subsiste pela cristalina razão de que não se extinguiu juridicamente pelas formas legalmente previstas.

 

            Mas tal circunstância não pode ser impeditiva para a relevância fiscal dum enquadramento que aponta inequivocamente para a incobrabilidade com reflexos na tributação em IRC com base no rendimento real do sujeito passivo (Cfr. artigo 104.º, n.º 2, da Constituição).

 

            Procederá assim, com este fundamento, a anulação do acto de correcção dos prejuízos fiscais patente na liquidação adicional de IRC sob impugnação, conforme pedido.

 

            2) A apreciação da segunda questão [caso se entendesse que "só com o encerramento da insolvência se preenche a previsão do artigo 39.º do CIRC", a de saber se, como também invoca a ora requerente, "o acto de correcção e a consequente liquidação seriam também ilegais por violação do artigo 35.º (actual 36.º) do CIRC"] fica, em face do acima exposto, prejudicada.

 

            3.1) Quanto ao pedido de indemnização pelos custos em que incorrer a impugnante “(…) com a garantia que houver de prestar (…)”:

 

            Pede a requerente a condenação da AT em indemnização por custos de hipotética garantia.

 

            Tal pedido é manifestamente improcedente porquanto não tem suporte legal.

 

            Na verdade, para que se conceda o ressarcimento por dano material, é necessário prova de que o autor tenha experimentado prejuízo real ou concreto. Não são indemnizáveis danos  hipotéticos e quanto aos danos futuros só relativamente aos previsíveis é que a Lei confere a possibilidade de ressarcimento se enquadráveis à luz do artigo 564.º, do Código Civil. O que não é o caso.

 

            No mesmo sentido, vd. os seguintes arestos: "Os danos a ressarcir terão de ser certos e não apenas prováveis, não sendo susceptíveis de indemnização, como danos patrimoniais, os danos potenciais ou hipotéticos." (Acórdão do STA de 7/5/1998, proc. 41751); "Os danos hipotéticos não são indemnizáveis." (Acórdão do STA de 17/3/2010, proc. 45899A).

 

            Improcede, por isso, tal pedido.

            3.2) Quanto ao pedido de ressarcimento da requerente pelas despesas resultantes da lide e honorários de advogado, a liquidar em execução de julgado:

 

            O objeto deste pedido está subtraído ao âmbito de competências do Tribunal Arbitral Tributário, definidas no Dec.-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, na redação introduzida pelos artigos 228.º e 229.º, da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro.

 

            Daí a inevitável improcedência deste pedido.

 

 

 

            V –  Decisão

 

            De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

            a) Julgar totalmente procedente o pedido de anulação do acto de correcção dos prejuízos fiscais declarados pela requerente patente na liquidação adicional [n.º 2010 …] sob impugnação;

            b) Julgar totalmente improcedentes os demais pedidos formulados em a) e b) do requerimento para pronúncia arbitral.

 

 

           

Valor do processo

 

            4) A Autoridade Tributária e Aduaneira suscitou o incidente do valor da causa, propondo em alternativa ao indicado pela requerente o valor de €178.716,45, considerando ser este apenas o resultante do impacto da correcção impugnada no valor da liquidação/acerto de contas.

 

            A requerente, instada a pronunciar-se, manteve o valor indicado no requerimento inicial (Cf. acta da reunião do Tribunal com as partes – artigo 18.º, do RJAT).

 

            Cumpre decidir o incidente e fixar o valor.

 

            Ainda que o ato tributário e as consequências da sua anulação se possam traduzir em valor inferior ao indicado no requerimento inicial, a verdade é que a requerente cumula vários pedidos com o de anulação da liquidação, designadamente um pedido de indemnização por custos com garantia a prestar e por despesas com a lide e honorários do advogado.

 

            Não se antolha, por isso, fundamento para alterar o valor do pedido indicado pela requerente.

 

            Assim sendo e de harmonia com o disposto no art. 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de €226.223,35.

 

            Custas

 

            Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em €4.284,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a suportar por ambas as partes, considerando os respetivos decaimentos, na proporção equitativa de 5/6 pela AT e 1/6 pela requerente.

 

 

Lisboa, 30 de junho de 2014

 

 

 

Os Árbitros

 

 

 

 

 

 

(José Poças Falcão)

 

 

 

 

 

 

 

(Miguel Patrício)

 

 

 

 

 

 

 

(José Vieira dos Reis)