Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 492/2022-T
Data da decisão: 2022-12-02  IRS  
Valor do pedido: € 17.856,18
Tema: IRS; residência fiscal; inutilidade superveniente da lide.
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SUMÁRIO:

 

Determina a inutilidade superveniente da lide a revogação-anulação integral pela AT do ato de liquidação de IRS impugnado no processo arbitral, o que constitui causa de extinção da instância nos termos do art. 277.º, al. e) do CPC, ex vi art. 29.º, n.º 1, al. e) do RJAT.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I. Relatório[1]

 

a) Partes e pedido de pronúncia arbitral

 

1. A..., contribuinte n.º ..., residente em..., ..., ...-... Barcelona, Espanha (a seguir, o “Requerente”) apresentou, em 18.08.2022, em conformidade com os artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20.01, com as alterações posteriores (a seguir Regime Jurídico da Arbitragem Tributária ou RJAT), pedido de pronúncia arbitral, em que é demandada a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (a seguir, Requerida ou AT), no qual peticiona a anulação da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) com o n.º 2020... relativa ao ano de 2016 no valor a pagar de €17.856,18 e da decisão final de indeferimento da reclamação graciosa com o n.º RG...2022... apresentada contra a referida liquidação.

 

b) Dinâmica processual

 

2. Em conformidade com os artigos 5.º, n.º 2, al. a), 6.º, n.º 1 e 11.º, n.º 1, al. a) do RJAT, o Conselho Deontológico deste Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou como árbitro singular o signatário, que aceitou o encargo e a cuja designação as partes não apresentaram recusa.

 

3. Nos termos do disposto na al. c) do n.º 1 e do n.º 8 do artigo 11.º do RJAT, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, o Tribunal Arbitral Singular ficou constituído em 28.10.2022.

 

4. O Tribunal foi regularmente constituído, as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade (arts. 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22.3) e encontram-se devidamente representadas.

 

5. No pedido de pronúncia arbitral, o Requerente peticionou que seja declarada a ilegalidade e consequente anulação da liquidação de IRS n.º 2020 ... relativa ao ano de 2016 no valor a pagar de €17.856,18 e da decisão final de indeferimento da reclamação graciosa n.º RG...2022..., processo n.º ...2020..., apresentada em relação à referida liquidação, para o que alegou, em síntese, que:

i) em 01.06.2013, deslocou a sua morada profissional para a Polónia, onde permaneceu até 30.04.2016, tendo assumido a qualidade de residente fiscal naquele país, onde submeteu as suas declarações de rendimentos;

ii) a partir daquela data de 01.06.2013, o Requerente passou a prestar serviço ao abrigo de um contrato individual de trabalho, em regime de exclusividade e a tempo inteiro, na B..., SA, com sede em Cracóvia, na Polónia, contrato esse que cessou em 30.04.2016 por acordo de revogação entre as partes;

iii) em 25.07.2016, o Requerente iniciou novo vínculo contratual com a C..., tendo deslocado a sua morada profissional para a República da Irlanda, onde permaneceu como residente fiscal até 31.08.2018, residindo atualmente, desde 17.01.2020, em Barcelona, Espanha;

iv) em 2017, o Requerente viu-se forçado a submeter a declaração de IRS relativa a 2016 como residente dado o sistema da AT não lhe permitir submeter a modelo 3 como não residente, embora os seus rendimentos de trabalho dependente já tivessem sido tributados na Polónia dado ser considerado residente nesse país;

v) por sugestão da AT, o Requerente procedeu à entrega voluntária de uma declaração de substituição onde incluiu os referidos rendimentos no anexo J, a qual veio a dar origem à liquidação impugnada, considerando o Requerente como residente, o que não se compreende porquanto o Requerente apresentou os documentos emitidos pelas autoridades fiscais da Polónia e da Irlanda que atestam que foi residente fiscal na Polónia até ao dia 30.04.2016 e da Irlanda nos anos fiscais de 2016 e de 2017;

vi) dado não preencher os critérios previstos no art. 16.º do CIRS, o Requerente não pode ser considerado como residente fiscal em território português, pois de junho de 2013 a abril de 2016 qualificou como residente para efeitos fiscais na Polónia e de julho de 2016 a agosto de 2018 na Irlanda, o que resulta ainda do disposto no n.º 2 do art. 4.º da Convenção para Evitar a Dupla Tributação (CDT) concluída entre Portugal e a Polónia e da CDT concluída entre Portugal e a Irlanda, pelo que os seus rendimentos de trabalho dependente não podem ser sujeitos a tributação em Portugal.

 

6. Notificada a AT, conforme despacho de 31.10.2022, para apresentar resposta nos termos dos n.ºs 1 e 2 do art. 17.º do RJAT, por requerimento de 07.11.2022, a Requerida, invocando o disposto no n.º 1 do art. 13.º do RJAT, veio informar que “por despacho de 31/10/2022 da Senhora Subdiretora-Geral para a área da Gestão Tributária-IR, a liquidação objeto do pedido foi revogada”, considerando, em consequência, que “se afigura existir inutilidade superveniente da lide, com as devidas consequências legais”. Juntou a Informação da DSIRS onde foi exarado o despacho revogatório.

 

7. Notificado o Requerente, conforme despacho de 09.11.2022, para se pronunciar sobre a possível extinção da instância arbitral por inutilidade superveniente da lide, por requerimento de 17.11.2022, “veio informar aos autos que, considerando a decisão de revogação do ato de liquidação, objeto do presente processo, não mantém qualquer interesse processual no prosseguimento dos presentes autos, com as consequências legalmente previstas”, pelo que “requer que os presentes autos não prossigam os seus termos, devendo a ora requerida, consequentemente, em cumprimento do disposto no art.º 100.º da LGT, proceder à restituição do imposto indevidamente pago, acrescido dos respetivos juros indemnizatórios”.

 

8. Por despacho de 21.11.2022, o Tribunal Arbitral, tendo em atenção que a matéria pendente de apreciação no presente processo respeita à inutilidade superveniente da lide e suas consequências nos autos, relativamente à qual foi exercido o contraditório, dispensou a realização da reunião prevista no art. 18.º do RJAT, bem como a produção de alegações, e fixou como data para a prolação da decisão final o dia 30.12.2022.

 

9. Cumpre, pois, proferir decisão em relação à questão da inutilidade superveniente da lide na qual se centra, atualmente, a cognição que cabe realizar por este Tribunal.

 

II. Fundamentação

 

10. As ocorrências e elementos processuais a considerar na decisão do presente processo, relativamente à questão em apreciação da inutilidade superveniente da lide, são os que constam do relatório antecedente, que aqui se dão por reproduzidos, importando também, já que não se descortina matéria que releve dar como não provada, especificar ainda os seguintes factos provados:

I. O Requerente foi objeto da liquidação de IRS n.º 2020..., relativa ao ano de 2016, com o valor a pagar de €17.856,18, na qual, pressupondo o Requerente como residente em Portugal, foram considerados os rendimentos de trabalho dependente auferidos no estrangeiro (doc. n.º 2 junto ao pedido de pronúncia arbitral).

II. O Requerente deduziu contra a referida liquidação de IRS n.º 2020 ... reclamação graciosa registada com o n.º RG...2022..., processo n.º ...2020... (cfr. docs. n.ºs 1 e 3 juntos ao pedido de pronúncia arbitral), alegando que não era residente em Portugal, reclamação essa que foi indeferida por despacho de 29.04.2022, que se fundamentou, em síntese, na consideração de que os documentos apresentados pelo Requerente não constituíam a prova necessária para se atender à pretensão formulada, pelo que faltava “prova bastante para o contribuinte contrariar a tributação como residente em território português” (vd. o referido doc. n.º 1).

III. Por despacho da Subdiretora-Geral para a área da Gestão Tributária-IR, por delegação, datado de 31.10.2022, e exarado na Informação da DSRI de 24.10.2022 proferida no processo ...2022..., foi revogado o ato de liquidação de IRS n.º 2020..., do ano de 2016, com os seguintes fundamentos essenciais (cfr. o documento junto com o requerimento da AT acima indicado no n.º 6, que aqui se dá por integralmente reproduzido):

 - “tendo por base as dúvidas quanto à validade do certificado de residência fiscal apresentado, foi desencadeada uma troca de informação previsto no artº 26º da Convenção para evitar a Dupla Tributação (CDT) celebrada entre Portugal e a Irlanda para se clarificar se o sujeito passivo foi considerado residente fiscal na Irlanda no ano de 2016 e 2017, nos termos da respetiva CDT e se o certificado apresentado é válido, ainda que não contenha qualquer assinatura”;

- “Em resposta ao nosso pedido vieram as autoridades fiscais da Irlanda confirmar a residência do contribuinte no seu país, de acordo com a legislação interna e com o disposto na Convenção entre a Irlanda e Portugal.

- “Mais confirmaram igualmente a validade do Certificado de Residência Fiscal apresentado pelo contribuinte, apesar de não ter sido assinado, uma vez que segundo as autoridades fiscais da Irlanda normalmente não é necessária uma assinatura com tinta no documento emitido digitalmente.

Deste modo, de acordo com a informação das autoridades fiscais da Irlanda, o sujeito passivo foi considerado residente fiscal na Irlanda no ano de 2016 e 2017, nos termos da respetiva CDT Portugal / Irlanda”.

- “Face ao exposto, da análise aos documentos apresentados pelo sujeito passivo e atendendo à informação recebida das autoridades fiscais da Irlanda confirma-se que deverá ser atendido o pedido do sujeito passivo anulando-se o ato contestado, nomeadamente a não tributação dos rendimentos auferidos no estrangeiro, estando apenas sujeito a tributação em Portugal os rendimentos obtidos no nosso território (cf. disposto no art. 18º do CIRS)”.

 

11. Resulta desta factualidade dada como provada com base nos documentos acima elencados que, pelo despacho de 31.10.2022, foi revogado (rectius, anulado) o ato de liquidação de IRS n.º 2020 ... relativo ao ano de 2016 no valor a pagar de €17.856,18, que era sindicado nos presentes autos e que constituía, assim, objeto do presente processo arbitral.

Ora, verifica-se a inutilidade superveniente da lide quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a solução do litígio deixe de interessar por ter sido atingido por outro meio o resultado que a parte visava obter, o que implica, em conformidade com o disposto no art. 277.º, al. e), do Código de Processo Civil (CPC), a extinção da instância.

Na verdade, atenta a revogação, rectius anulação administrativa (cfr. art. 165.º do Código do Procedimento Administrativo), do ato de liquidação sindicado, a pretensão do Requerente e a resolução do correspondente litígio por este Tribunal deixa de assumir relevância, pois o efeito peticionado de desaparecimento da ordem jurídica do ato impugnado foi alcançado por outra via, a anulação administrativa, do que decorre que o prosseguimento dos autos não envolve a esse respeito quaisquer consequências para o Requerente.

A extinção da instância, por impossibilidade superveniente da lide, como resulta do relatório antecedente, não é, aliás, controvertida, dado que ambas as partes subscrevem esse desfecho processual.

Termos em que se decide julgar a presente instância arbitral extinta por inutilidade superveniente da lide nos termos do art. 277.º, alínea e) do CPC, aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, al. e) do RJAT.

 

12. Impõe-se, seguidamente, apreciar a responsabilidade quanto a custas decorrente da decisão de extinção da instância, em cumprimento do determinado pelo art. 22.º, n.º 4 do RJAT e pelo art. 4.º, n.º 5 do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária.

Antes do mais, note-se que, não obstante a Requerida enquadrar o seu requerimento de 07.11.2022 no disposto no art. 13.º, n.º 1 do RJAT (vd. supra n.º 6), tal previsão não tem aplicação ao caso porquanto o exercício das faculdades administrativas aí previstas tem que ser realizado no prazo de 30 dias a contar do conhecimento do pedido de constituição do tribunal arbitral (cfr. n.ºs 3 e 4 do art. 10.º do RJAT). Dado que se indica na Informação da DSRI de 24.10.2022 proferida no processo ...2022... (acima referida no facto provado n.º III), que a Requerida tomou conhecimento do pedido de pronúncia arbitral em 25.08.2022, conforme igualmente resulta da referência constante do sistema de gestão processual do CAAD, conclui-se que o prazo estabelecido no indicado art. 13.º, n.º 1 já tinha decorrido na data do despacho revogatório. Daí que se tenha verificado a constituição do Tribunal Arbitral e o início do processo arbitral em conformidade com o art. 15.º do RJAT, sendo, pois, neste âmbito processual (que é alheio à previsão do art. 3.º-A do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, que se reporta ao procedimento arbitral) que cabe decidir a “fixação do montante e a repartição pelas partes das custas diretamente resultantes do processo arbitral” (n.º 4 do art. 22.º do RJAT).

Em matéria de custas, o art. 536.º do CPC, aplicável por força do art. 29.º, n.º 1, al. e) do RJAT, estabelece que: “Nos restantes casos de extinção da instância por impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, a responsabilidade pelas custas fica a cargo do autor ou requerente, salvo se tal impossibilidade ou inutilidade for imputável ao réu ou requerido, caso em que é este o responsável pela totalidade das custas” (n.º 3) e que: “Considera-se, designadamente, que é imputável ao réu ou requerido a inutilidade superveniente da lide quando esta decorra da satisfação voluntária, por parte deste, da pretensão do autor ou requerente, fora dos casos previstos no n.º 2 do artigo anterior e salvo se, em caso de acordo, as partes acordem a repartição das custas” (n.º 4).

Como se explica no acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 13.05.2021, proc. n.º 01640/17.4BEBRG: “para gerar a sua responsabilização pelas custas, a imputação ao réu do facto causal da inutilidade superveniente não terá de configurar uma imputação subjetiva, traduzida na eventual censura ético-jurídica pela sua reação tardia à pretensão deduzida na ação, sendo suficiente que essa imputação seja objetiva, isto é, que o facto que retira utilidade à lide seja do domínio do réu”.

Pois bem, não se pode deixar de concluir que é imputável à Requerida a inutilidade superveniente da lide porquanto isso resultou da anulação administrativa do ato sindicado, portanto, de um ato no estrito domínio da AT, o qual se fundou no reconhecimento de que o Requerente se deveria considerar residente fiscal na Irlanda no ano de 2016 (cfr. facto provado n.º III).

Nestes termos, como a inutilidade superveniente da lide é objetivamente imputável à Requerida, dado o ato praticado de anulação administrativa da liquidação sindicada no decurso da presente instância, é responsável pela totalidade das custas, em conformidade com o previsto nos citados n.ºs 3 e 4 do art. 536.º do CPC.

 

III. Decisão

 

Termos em que se decide:

  1. julgar extinta a instância por inutilidade superveniente da lide por falta de objeto, nos termos do art. 277.º, al. e) do CPC, ex vi art. 29.º, n.º 1, al. e) do RJAT;
  2. condenar a Requerida nas custas arbitrais, em conformidade com o art. 563.º, n.ºs 3 e 4 do CPC, ex vi art. 29.º, n.º 1, al. e) do RJAT.

 

IV. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto no art. 306.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, no artigo 97.º-A, n.º 1, al. a), e n.º 3 do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicáveis por força das alíneas a), c) e e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, fixa-se ao processo o valor de €17.856,18 (dezassete mil, oitocentos e cinquenta e seis euros e dezoito cêntimos), que constitui a importância da liquidação objeto do pedido de pronúncia arbitral.

 

V. Custas

 

De harmonia com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e nos artigos 3.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 e 4.º, n.º 5 do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €1.224,00, nos termos da Tabela I do mencionado Regulamento, a cargo da Requerida, conforme acima decidido.

 

 Notifique-se.

 

Lisboa, 2 de dezembro de 2022.

 

O Árbitro

 

 

(João Menezes Leitão)

 

 



[1] Adota-se a ortografia resultante do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, com atualização, em conformidade, da grafia constante das citações efetuadas.