Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 445/2022-T
Data da decisão: 2022-12-05  IRC  
Valor do pedido: € 212.545,59
Tema: IRC. Benefício fiscal. Fundo de investimento imobiliário não residente. Liberdade de circulação de capitais.
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Sumário:

As normas do n.º 1, parte final, e n.º 3 do artigo 22.º  do Estatuto dos Benefícios Fiscais, interpretadas conjugadamente, ao estabelecerem um tratamento fiscal mais favorável para os organismos de investimento coletivo que operem em Portugal de acordo com a legislação portuguesa, em relação aos organismos equiparáveis que tenham sido constituídos de acordo com a legislação de outro Estado-Membro da União Europeia, viola o princípio da liberdade de circulação de capitais consagrado no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

 

Acordam em tribunal arbitral

 

I – Relatório

 

     1. A..., anteriormente designada por B..., com sede social em ...,  ..., no Luxemburgo, subfundo do C..., vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade dos atos de retenção na fonte de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC), a título definitivo, sobre dividendos de fonte portuguesa pagos entre o 1 de janeiro de 2019 e 31 de dezembro de 2020, no montante global de € 212.545,592, bem como da decisão tácita de indeferimento da reclamação graciosa contra eles deduzida, requerendo ainda a condenação da Autoridade Tributária no reembolso do imposto indevidamente pago e no pagamento de juros indemnizatórios.

 

Fundamenta o pedido nos seguintes termos.

 

A Requerente é uma pessoa coletiva de direito luxemburguês, constituindo um subfundo da C..., uma Sociedade de Investimento de Capital Variável (SICAV), considerada um Organismo de Investimento Coletivo em Valores Mobiliários (OICVM) para efeitos da aplicação da Diretiva 2009/65/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009, sendo um sujeito passivo de IRC, não residente para efeitos fiscais em Portugal e sem estabelecimento estável.

No âmbito da sua atividade, a Requerente, no período entre 1 de janeiro de 2019 e 31 de dezembro de 2020, na qualidade de acionista de sociedades residentes em Portugal, auferiu dividendos sujeitos a tributação em Portugal, por se tratar do Estado da fonte de obtenção dos rendimentos, no âmbito do regime legal da substituição tributária.

Em particular, a Requerente auferiu dividendos, em 2019, no montante bruto de € 906.263,62, tendo sofrido uma retenção na fonte, com caráter definitivo, à taxa de 15%, no montante de € 135.939,54, e em 2020, no montante bruto de € 510.707,00, tendo sofrido uma retenção na fonte, com caráter definitivo, à taxa de 15%, no montante de € 76.606,05.

 

Os rendimentos de fonte portuguesa da Requerente, enquanto entidade não residente, estão sujeitos a tributação em sede de IRC apenas no caso de serem enquadráveis nas alíneas a) a f) do n.º 3 do artigo 4.º do Código do IRC.

Contudo, o artigo 22.º do Estatuto dos Benefícios Ficais (EBF), prevê um tratamento tributário distinto consoante os dividendos sejam auferidos por OIC residentes ou por OIC não residentes.

Com efeito, ao abrigo do disposto no n.º 4 do artigo 87.º do Código do IRC, bem como na alínea c) do n.º 1 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 94.º do mesmo diploma legal, os dividendos provenientes de fonte portuguesa auferidos por entidades não residentes são objeto de tributação por via de retenção na fonte, a título definitivo, à taxa de 25%, podendo esta taxa ser reduzida ao abrigo de Convenção Destinada a Evitar a Dupla Tributação, nos termos do artigo 98.º do Código do IRC.

Contrariamente, o regime previsto no artigo 22.º do EBF, ao qual os OIC residentes em Portugal estão sujeitos, estabelece no seu n.º 3 que “para efeitos do apuramento do lucro tributável, não são considerados os rendimentos referidos nos artigos 5.º, 8.º e 10.º do Código do IRS”, pelo que, estando os dividendos abrangidos pelo artigo 5.º do Código do IRS, os mesmos estão excluídos de tributação quanto aos OIC residentes em território nacional.

 

Em concordância com esta exclusão de tributação, o n.º 10 do artigo 22.º do EBF acrescenta que não incide qualquer retenção na fonte de IRC sobre os rendimentos obtidos.

 

Porém, como resulta do n.º 1 do citado artigo 22.º do EBF, esse regime só se aplica aos “fundos de investimento mobiliário, fundos de investimento imobiliário, sociedades de investimento mobiliário e sociedades de investimento imobiliário que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional”, excluindo do âmbito dessa previsão os fundos de investimento que não foram constituídos ao abrigo do direito português – como é o caso da Requerente– ainda que atuem de acordo com a legislação comunitária em situação comparável aos fundos residentes.

Assim, o regime em apreço consagra uma distinção de tratamento para efeitos de tributação entre OIC residentes e não residentes em Portugal, estabelecendo para as primeiras um regime claramente mais favorável, através da concessão de uma exclusão de tributação, enquanto os dividendos auferidos pelas segundas são tributados à taxa de 25%, ainda que passível de redução ao abrigo das Convenções para evitar a Dupla Tributação celebradas por Portugal.

Essa medida discriminatória viola o disposto no artigo 63.º, n.º 1, do TFUE, que consagra a liberdade de circulação de capitais e, consequentemente, proíbe “todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros”, sendo que o TJUE, no acórdão de 17 de março de 2022, no Processo C-545-19, já se pronunciou sobre esta questão, decidindo que o artigo 63º TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado-Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção”.

A título subsidiário, caso ainda subsistam dúvidas interpretativas, a Requerente solicita, a suspensão da instância para reenvio prejudicial ao TJUE.

 

A Autoridade Tributária, na sua resposta, refere que o quadro fiscal dos Organismos de Investimento Coletivo (OIC) resultante da alteração da redação do artigo 22.º do EBF, estabelece uma exclusão na determinação do lucro tributável dos rendimentos de capitais, prediais e mais-valias e uma isenção das derramas municipal e estadual, deslocando a tributação para a esfera do imposto do selo, além de que sujeita os OIC às taxas de tributação autónoma previstas no artigo 88.º do Código do IRC.

 

Por outro lado, o imposto retido à Requerente pode eventualmente dar lugar a um crédito de imposto por dupla tributação internacional na sua esfera jurídica ou dos investidores, não podendo afirmar-se, por todos esses fatores, que se esteja perante situações objetivamente comparáveis, porquanto, a tributação dos dividendos opera segundo modalidades diferentes, e nada indica que a carga fiscal que onera os dividendos auferidos pelos OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF possa ser mais reduzida do que a que recai sobre os dividendos auferidos em Portugal pela Requerente.

 

Acresce que a Requerida encontra-se vinculada ao princípio da legalidade, não lhe competindo apreciar a desconformidade das normas internas com o TFUE, pelo que não pode desaplicar normas por suposta violação do direito europeu ou da Constituição da República, competência essa que apenas é atribuída aos tribunais.

 

Conclui pela improcedência do pedido arbitral

 

2. No seguimento do processo, por despacho de 9 de novembro de 2022, o tribunal arbitral, considerando não haver outros elementos sobre que as partes se devam pronunciar, dispensou a reunião do tribunal arbitral a que se refere o artigo 18.º desse Regime, bem como a apresentação de alegações.

 

3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 3 de outubro de 2022.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções.

 

Cabe apreciar e decidir.

 

II - Fundamentação

 

Matéria de facto

 

4. Os factos relevantes para a decisão da causa que são tidos como assentes são os seguintes.

A) A Requerente é uma pessoa coletiva de direito luxemburguês, constituindo um subfundo da C..., Sociedade de Investimento de Capital Variável (SICAV), considerada um Organismo de Investimento Coletivo em Valores Mobiliários.

B) A Requerente segue, na sua constituição e funcionamento, as regras previstas na Diretiva 2009/65/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho, relativa a Organismos de Investimento Coletivo em Valores Mobiliários, correspondendo, no direito português, a um organismo de investimento coletivo sob a forma societária ou sociedade de investimento coletivo.

C) A Requerente é gerida pela sociedade gestora D... e tem como Banco Depositário o E... .

D) No âmbito da sua atividade, a Requerente, no período entre 1 de janeiro de 2019 e 31 de dezembro de 2020, na qualidade de acionista de sociedades residentes em Portugal, auferiu dividendos sujeitos a tributação em Portugal, por se tratar do Estado da fonte de obtenção dos mesmos, no âmbito do regime legal da substituição tributária.

E) No período de tributação de 2019, a Requerente auferiu dividendos no montante total de € 906.263,62, tendo sofrido uma retenção na fonte, com caráter definitivo, à taxa reduzida de 15%, no montante total de € 135.939,54, de acordo com o quadro seguinte:

 

 

 

 

 

2019

Identificação da entidade\ distribuidora de dividendos

Data do pagamento

Guia de Retenção na fonte

Dividendos

Retenção da fonte (15%)

F...

15-05-2019

...

719.522,78

107.928,42

G...

09-05-2019

...

186.740,84

28.011,13

Total

 

 

906.263,62

135.939,54

 

 

  1. No período de tributação de 2020, a Requerente auferiu dividendos no montante total de € 510.707,00, tendo sofrido uma retenção na fonte, com caráter definitivo, à taxa reduzida de 15%, no montante total de € 76.606,05, de acordo com o quadro seguinte:

 

 

 

 

 

2020

Identificação da entidade distribuidora de dividendos

Data do pagamento

Guia de Retenção na fonte

Dividendos

Retenção da fonte (15%)

F...

14-05-2020

...

482.958,24

72.443,74

H...

16-12-2020

...

27.748,76

4.162,31

Total

 

 

510.707,00

76.606,05

 

 

G) A taxa reduzida de 15% foi aplicada ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 10.º da Convenção para Evitar a Dupla Tributação celebrada entre Portugal e o Grão-Ducado do Luxemburgo

H) As retenções na fonte em apreço foram efetuadas pelo Banco Santander enquanto entidade registadora dos títulos.

J) No dia 3 de dezembro de 2021, a Requerente apresentou reclamação graciosa contra os atos de retenção na fonte de IRC.

L) A reclamação graciosa não foi decidida dentro do prazo legalmente cominado.

J) A Requerente apresentou pedido de pronúncia arbitral em 22 de julho de 2022.

 

Factos não provados

 

Não há factos não provados que se considerem relevantes para a decisão da causa.

 

Motivação da matéria de facto

 

O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária com a resposta.

 

            Matéria de direito

 

5. Sustenta a Requerente que o regime especial de tributação aplicável aos fundos de investimento que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional, nos termos da parte final do n.º 1 e do n.º 3 do artigo 22.º  do EBF, implicando a exclusão desse regime jurídico dos organismos equiparáveis que operem em Portugal de acordo com a legislação portuguesa mas tenham sido constituídos de acordo com a legislação de outro Estado-Membro da União Europeia, viola o princípio da liberdade de circulação de capitais consagrado no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE).

A Autoridade Tributária contrapõe que o artigo 22.º do EBF, aplicável aos rendimentos obtidos por fundos de investimento que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional, estabelece uma exclusão na determinação do lucro tributável dos rendimentos de capitais, prediais e mais-valias e uma isenção das derramas municipal e estadual, deslocando a tributação para a esfera do imposto do selo, além de que sujeita os OIC às taxas de tributação autónoma previstas no artigo 88.º do Código do IRC. Não podendo afirmar-se, neste condicionalismo, que se esteja perante situações objetivamente comparáveis, porquanto, a tributação dos dividendos opera segundo modalidades diferentes, e nada indica que a carga fiscal que onera os dividendos auferidos pelos OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF possa ser mais reduzida do que a que recai sobre os dividendos auferidos em Portugal pela Requerente.

 

A questão que nestes termos vem colocada foi analisada no acórdão do Tribunal de Justiça de 17 de março de 2022, proferido em reenvio prejudicial no âmbito do Processo n.º C-545/19, em que se extrai a seguinte conclusão:

 

O artigo 63.° do TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.

 

E não pode deixar de se sufragar esse entendimento, que, aliás, vem na linha de anterior jurisprudência do TJUE, ainda que não sobre a específica questão que está em análise nos presentes autos.

 

O citado artigo 22.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 7/2015, de 31 de janeiro, na parte que mais interessa considerar, dispõe o seguinte:

 

Artigo 22.º

Organismos de Investimento Coletivo

1 – São tributados em IRC, nos termos previstos neste artigo, os fundos de investimento mobiliário, fundos de investimento imobiliário, sociedades de investimento mobiliário e sociedades de investimento imobiliário que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional.

2 – O lucro tributável dos sujeitos passivos de IRC referidos no número anterior corresponde ao resultado líquido do exercício, apurado de acordo com as normas contabilísticas legalmente aplicáveis às entidades referidas no número anterior, sem prejuízo do disposto no número seguinte.

3 – Para efeitos do apuramento do lucro tributável, não são considerados os rendimentos referidos nos artigos 5.º, 8.º e 10.º do Código do IRS, exceto quando tais rendimentos provenham de entidades com residência ou domicílio em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável constante de lista aprovada em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, os gastos ligados àqueles rendimentos ou previstos no artigo 23.º-A do Código do IRC, bem como os rendimentos, incluindo os descontos, e gastos relativos a comissões de gestão e outras comissões que revertam para as entidades referidas no n.º 1.

4 – Os prejuízos fiscais apurados em determinado período de tributação nos termos do disposto nos números anteriores são deduzidos aos lucros tributáveis, havendo-os, de um ou mais dos 12 períodos de tributação posteriores, aplicando-se o disposto no n.º 2 do artigo 52.º do Código do IRC.

5 – Sobre a matéria coletável correspondente ao lucro tributável deduzido dos prejuízos fiscais, tal como apurado nos termos dos números anteriores, aplica -se a taxa geral prevista no n.º 1 do artigo 87.º do Código do IRC.

6 – As entidades referidas no n.º 1 estão isentas de derrama municipal e derrama estadual.

            (…).

 

Como resulta, em especial, do disposto nos n.ºs 3 e 6, as entidades referidas no n.º 1, beneficiam de um regime consideravelmente mais favorável que o regime geral de tributação em IRC, porquanto não são considerados, para efeitos do apuramento do lucro tributável, os rendimentos de capitais, os rendimentos prediais e mais-valias, além de que essas entidades estão isentas de derrama municipal e derrama estadual.  Por outro lado, nos termos do transcrito n.º 1, o benefício fiscal assim estabelecido aplica-se aos organismos de investimento coletivo que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional, o que conduz a afastar, numa interpretação literal do preceito, os organismos equiparáveis que operem no território nacional segundo o direito interno mas tenham sido constituídos segunda legislação de um outro Estado-membro da União Europeia.

 

A questão carece de ser analisada, nestes termos, à luz da alegada violação do princípio da proibição da liberdade de circulação de capitais.

 

6. No caso, como resulta da matéria de facto tida como assente, a Requerente é um organismo de investimento coletivo mobiliário, constituída segundo o direito do Luxemburgo, desempenhando em Portugal o mesmo papel económico que as sociedades de investimento mobiliário de capital variável heterogeridas, efectuando a angariação de investimento da mesma natureza e oferecendo aos seus clientes o mesmo tipo de condições de mercado.

 

Alega a Requerente, neste contexto, que a norma do artigo 22.º, n.ºs 1 e 3, do EBF se torna incompatível com o princípio da liberdade de circulação de capitais consagrado no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.

 

Conforme tem sido entendimento comum, o princípio da proibição de discriminação em razão da nacionalidade consagrado no artigo 18.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia apenas deve ser objeto de aplicação autónoma quando esse mesmo princípio se não encontre concretizado em disposições específicas do Tratado relativas às liberdades de circulação. E, nesse sentido, pode dizer-se que o princípio da não discriminação se realiza, designadamente, por via do direito à livre circulação de movimentos de capitais a que se refere o artigo 63.º do Tratado (cfr. Paula Rosado Pereira, Princípios do Direito Fiscal Internacional – Do Paradigma Clássico ao Direito Fiscal Europeu, Coimbra, 2011, pág. 254).

 

O artigo 63.º proíbe todas as restrições aos movimentos de capitais, bem como todas as restrições aos pagamentos entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros. O artigo 65.º consigna, todavia, que o artigo 63.º não prejudica o direito de os Estados-Membros aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido (n.º 1), esclarecendo o n.º 3, em todo o caso, que essa possibilidade não deve constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos.

 

Em relação à liberdade de circulação de capitais, o citado acórdão do Tribunal de Justiça de 17 de março de 2022, proferido em reenvio prejudicial no âmbito do Processo n.º C-545/19, esclarece o âmbito de aplicação desse princípio, formulando, na parte que mais interessa reter, os seguintes considerandos:

 

36      Resulta de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que as medidas proibidas pelo artigo 63.°, n.° 1, TFUE, enquanto restrições aos movimentos de capitais, incluem as que são suscetíveis de dissuadir os não residentes de investir num Estado‑Membro ou de dissuadir os residentes de investir noutros Estados (-).

37      No caso em apreço, é facto assente que a isenção fiscal prevista pela legislação nacional em causa no processo principal é concedida aos OIC constituídos e que operam de acordo com a legislação portuguesa, ao passo que os dividendos pagos a OIC estabelecidos noutro Estado‑Membro não podem beneficiar dessa isenção.

38      Ao proceder a uma retenção na fonte sobre os dividendos pagos aos OIC não residentes e ao reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção dessa retenção na fonte, a legislação nacional em causa no processo principal procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes.

39      Esse tratamento desfavorável pode dissuadir, por um lado, os OIC não residentes de investirem em sociedades estabelecidas em Portugal e, por outro, os investidores residentes em Portugal de adquirirem participações sociais em OIC e constitui, por conseguinte, uma restrição à livre circulação de capitais proibida, em princípio, pelo artigo 63.° TFUE (-).

40      Não obstante, segundo o artigo 65.°, n.° 1, alínea a), TFUE, o disposto no artigo 63.° TFUE não prejudica o direito de os Estados‑Membros aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido.

41      Esta disposição, enquanto derrogação ao princípio fundamental da livre circulação de capitais, é de interpretação estrita. Por conseguinte, não pode ser interpretada no sentido de que qualquer legislação fiscal que comporte uma distinção entre os contribuintes em função do lugar em que residam ou do Estado‑Membro onde invistam os seus capitais é automaticamente compatível com o TFUE. Com efeito, a derrogação prevista no artigo 65.º, n.º 1, alínea a), TFUE é ela própria limitada pelo disposto no artigo 65.º, n.º 3, TFUE, que prevê que as disposições nacionais a que se refere o n.º 1 desse artigo «não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.º [TFUE]» (-).

42      O Tribunal de Justiça declarou igualmente que, por conseguinte, há que distinguir as diferenças de tratamento permitidas pelo artigo 65.°, n.° 1, alínea a), TFUE das discriminações proibidas pelo artigo 65.°, n.° 3, TFUE. Ora, para que uma legislação fiscal nacional possa ser considerada compatível com as disposições do Tratado FUE relativas à livre circulação de capitais, é necessário que a diferença de tratamento daí decorrente diga respeito a situações que não sejam objetivamente comparáveis ou se justifique por uma razão imperiosa de interesse geral (-).

Quanto à existência de situações objetivamente comparáveis, o Tribunal de Justiça concluiu que o “critério de distinção a que se refere a legislação nacional (…), que tem por objeto unicamente o lugar de residência dos OIC, não permite concluir pela existência de uma diferença objetiva de situações entre os organismos residentes e os organismos não residentes (considerando 73), havendo de entender-se que, “no caso em apreço, a diferença de tratamento entre os OIC residentes e os OIC não residentes diz respeito a situações objetivamente comparáveis (considerando 74).

E não há motivo para que o tribunal arbitral, face aos elementos factuais conhecidos, deva dissentir do entendimento formulado em sede de reenvio prejudicial, quanto a esta matéria.

Em relação à possibilidade de uma restrição à livre circulação de capitais ser admitida por razões imperiosas de interesse geral, o Tribunal de Justiça declarou que, para esse efeito, “é necessário que esteja demonstrada a existência de uma relação direta entre o benefício fiscal em causa e a compensação desse benefício por uma determinada imposição fiscal” (considerando 78). Concluindo que, no caso, “não há uma relação direta (…) entre a isenção da retenção na fonte dos dividendos de origem nacional auferidos por um OIC residente e a tributação dos referidos dividendos enquanto rendimentos dos detentores de participações sociais nesse organismo” e a “necessidade de preservar a coerência do regime fiscal nacional não pode, por conseguinte, ser invocada para justificar a restrição à livre circulação de capitais induzida pela legislação nacional (…) (considerandos 80 e 81).

Em todo este contexto, a doutrina fixada pelo TJUE é a seguinte:

O artigo 63.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.

7. Revertendo à situação do caso, e como resulta do ponto II e notas explicativas da nomenclatura anexa à Diretiva 88/361/CEE, o conceito de movimentos de capitais, para efeito da liberdade de circulação a que refere o artigo 63.º do TFUE, abrange os investimentos mobiliários (cfr. considerandos 21 e 22 do acórdão do TJUE de 16 de março de 1999, no Processo C-222/97).

 

O artigo 22.º, n.º 1, do EBF, ao circunscrever o regime de tributação constante do n.º 3 aos fundos e sociedades de investimento mobiliário que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional, estabelece um regime mais gravoso para as entidades equiparáveis que operem no território nacional mas se tenham constituído segundo o direito de um outro Estado-Membro, sem que tenha sido apresentada qualquer justificação para esse tratamento discriminatório.

 

Segundo o disposto no artigo 65.º, n.º 3, do TFUE, os Estados-Membros podem estabelecer distinções em matéria fiscal entre sujeitos passivos que não se encontrem em idêntica situação em função do lugar da nacionalidade ou residência desde que não implique uma discriminação arbitrária ou uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos.

 

Havendo de entender-se, tal como refere o acórdão do TJUE proferido no Processo n.º C-545/19, que a diferença de tratamento na legislação fiscal nacional, em relação à livre circulação de capitais, apenas é compatível com as disposições do Tratado se respeitarem a situações objetivamente não comparáveis ou se se justificar por razões imperiosas de interesse geral (cfr. ainda considerando 58 do acórdão de 10 de fevereiro de 2011, nos Processos C-436/08 e C-437/08).

 

De acordo com o disposto no artigo 8.º, n.º 4, da CRP, as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições são aplicáveis na ordem interna, e nesse sentido prevalecem sobre as normas do direito nacional, motivo por que os tribunais devem recusar a aplicação de lei ou norma jurídica que se encontre em desconformidade com o direito europeu (cfr., entre outros, o acórdão do STA de 1 de julho de 2015, Processo n.º 0188/15).

 

Os atos de liquidação em IRC impugnados e a decisão de indeferimento tácito da reclamação graciosa contra eles apresentada são assim ilegais por assentarem em disposição legal que viola o princípio da liberdade de circulação de capitais consagrado no artigo 63.º, n.º 1, do TFUE.

 

 

Reembolso do imposto indevidamente pago e juros indemnizatórios

 

8. A Requerente pede ainda a condenação da Autoridade Tributária no reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.

 

De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”. O que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.

 

Por efeito da reconstituição da situação jurídica em resultado da anulação do ato tributário, há assim lugar ao reembolso do imposto indevidamente pago.

 

Ainda nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que remete para o disposto nos artigos 43.º, n.º 1, e 61.º, n.º 5, de um e outro desses diplomas, implicando o pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito.

 

Há assim lugar, na sequência de declaração de ilegalidade do ato de liquidação de IRC, ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos das citadas disposições dos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT, calculados sobre a quantia que a Requerente pagou indevidamente, à taxa dos juros legais (artigos 35.º, n.º 10, e 43.º, n.º 4, da LGT).

 

III - Decisão

Termos em que se decide:

a)  Julgar procedente o pedido arbitral e anular os atos tributários de retenção na fonte em IRC impugnados, referentes aos anos de 2019 e 2020, no montante global de € 212.545,59, bem como a decisão de indeferimento tácito da reclamação graciosa contra eles deduzida;

b) Condenar a Administração Tributária no reembolso do imposto indevidamente pago e pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito.

 

Valor da causa

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 212.545,59, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

Custas

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 3, do RJAT, e 5.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela II anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 4.284,00, que fica a cargo da Requerida.

 

Notifique.

 

Lisboa, 5 de dezembro de 2022,

  

 

O Presidente do Tribunal Arbitral

 

 

Carlos Fernandes Cadilha

 

O Árbitro Vogal

 

 

Luís Menezes Leitão

 

A Árbitro Vogal

 

 

Adelaide Moura