Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 231/2022-T
Data da decisão: 2022-11-28  IRS  
Valor do pedido: € 106.596,02
Tema: IRS – Mais-Valias – Reinvestimento – Residência Intercalada.
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Sumário: I – Designadamente para efeitos de exclusão de tributação em sede de “mais-valias” (artigo 10.º-5, do CIRS), o conceito de “habitação própria e permanente” não coincide com o de “domicílio fiscal”. II – O objectivo da citada exclusão é o de não onerar fiscalmente a efetivação do direito fundamental à habitação. III – Da não inclusão do agregado familiar nas suas declarações fiscais, por força do pagamento de pensão de alimentos e da própria lei fiscal, não resulta por si só a exclusão desse agregado familiar para efeitos do disposto no n.º 5, do artigo 10.º do Código do IRS, sob pena de contradição do sistema jurídico ou falta de coerência. IV - Para a não aplicação do regime especial de amortização previsto no artigo 11.º, da Lei n.º 82-E/2014, é necessária a prova, a cargo da Administração Tributária, de que o SP era proprietário de outro imóvel à data da alienação.

 

 

Decisão Arbitral

 

 

  1. RELATÓRIO

 

A..., com o número de identificação fiscal..., com sede na Rua..., n.º .., ..., em Lisboa, (doravante Requerente), apresentou um pedido de constituição de Tribunal Arbitral Coletivo, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, adiante apenas designado por RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante AT), com o objectivo de obter a anulação do acto de liquidação de IRS 2017, com o n.º 2021..., no montante de €106.596,02 e a restituição do imposto pago em excesso, acrescido de juros de mora à taxa legal.

 

A 15 de Junho de 2022, foi constituído o presente Tribunal.

 

A 30 de Agosto de 2022, a AT apresentou Resposta, pugnando pela improcedência do pedido, por não provado.

 

Foi realizada a reunião prevista no artigo 18.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), tendo sido inquiridas as testemunhas indicadas pelo Requerente.

 

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março) e estão devidamente representadas.

 

O processo não enferma de nulidades.

 

  1. MATÉRIA DE FACTO

 

1. Factos provados

 

Com relevância para a decisão do presente pedido arbitral, consideram-se relevantes os seguintes factos:

 

  1. A 12 de Novembro de 2002, o Requerente comprou o bem imóvel sito em ..., na Rua ... n.º ..., freguesia de ..., descrito na conservatória do Registo Predial de Cascais sob o n.º ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..., com vista à habitação própria e permanente do Requerente e do seu agregado familiar, pelo preço de €414.002,25;
  2. Para adquirir o identificado imóvel para habitação própria e permanente o Requerente recorreu a empréstimo bancário junto do BBVA no valor de €400.000,00;
  3. A 8 de Outubro de 2014, foi decretado o divórcio entre o Requerente e a ex mulher – B...- processo de Divórcio n.º .../14...TBCSC, que correu termos no Tribunal da Comarca de Lisboa Oeste, Cascais, instância central, 3.º secção de Família e Menores, J3;
  4. No âmbito do processo de divórcio acima identificado, foi homologado acordo entre o Requerente e a ex-mulher respeitante ao destino da casa de morada de família [imóvel identificado em a)], com a atribuição do direito de utilização e ocupação da mesma à sua ex-mulher e aos filhos de ambos, até à sua venda;
  5. Em consequência do acordo respeitante ao destino da casa de morada de família, em Junho de 2015, o Requerente adquiriu metade do usufruto do imóvel sito na ..., n.º ..., ..., em Lisboa;
  6. Desde Junho de 2015 até à venda do imóvel descrito em b), o domicílio fiscal do Requerente situava-se no imóvel sito na ..., n.º ..., ..., em Lisboa;
  7. Em 25 de Outubro de 2017, o Requerente vendeu o imóvel identificado em a) pela importância de €1.220.000,00;
  8. O Requerente apresentou a sua declaração Modelo 3 de IRS 2017, em 1 de Junho de 2018;
  9. A declaração de IRS referente ao ano 2017 integra o Anexo G, no qual consta a alienação do bem imóvel identificado em a) pelo valor de €1.220.000,00;
  10. A 18 de Setembro de 2019, o Requerente reinvestiu parte do valor mencionado em i), na compra de imóvel sito em ..., devidamente identificado nos autos, para sua habitação própria e permanente;
  11. A 22 de Maio de 2020, o Requerente apresentou declaração modelo 3 de IRS de substituição, tendo inscrito no Q5A como valor em dívida do empréstimo à data da alienação do bem €350.443,42, como valor de realização a reinvestir (sem recurso ao crédito) €450.000 e como valor total de encargos e despesas com o imóvel alienado, o valor de €137.715,31;
  12. A Declaração de substituição de 22.05.2020, com a identificação n.º..., veio a ser convolada em reclamação graciosa, com o seguinte fundamento: o contribuinte não reúne as condições para reinvestir parte do valor de realização de 2017, uma vez que o imóvel em causa não constitui habitação própria e permanente do Requerente à data da venda;
  13.  Não foi proferida decisão sobre a reclamação graciosa apresentada até à data de  apresentação da petição arbitral pelo Requerente (01-04-2022;
  14. Desde a data do divórcio e da atribuição, por acordo, do direito de utilização do imóvel identificado em a) à ex-mulher e aos filhos de ambos até à data da venda da casa de morada de família, o Requerente suportou todos os encargos decorrentes do uso e habitação do imóvel, como as despesas de água, gás, electricidade, internet e televisão por cabo;
  15. Desde a data do divórcio e da atribuição, por acordo, do uso do imóvel identificado em a) à ex-mulher e filhos do Requerente, até à data da venda da casa de morada de família, o Requerente pagou e declarou no modelo 3 de IRS o valor pago à sua ex mulher, a título de pensão de alimentos.
  16. O Requerente foi notificado da liquidação de IRS n.º 2021..., respeitante ao ano de 2017, no valor de €106.596,02 (cento e seis mil, quinhentos e noventa e seis euros e dois cêntimos), cujo prazo de pagamento terminou em 3 de Janeiro de 2022;
  17. O Requerente procedeu ao pagamento da liquidação acima identificada.
  18. A 4 de Abril de 2022, o Requerente apresentou pedido arbitral de anulação do acto de liquidação identificado em n).

 

 

2. Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral e com o processo administrativo tributário.

Tendo em conta as relações estreitas entre o Requerente e as testemunhas inquiridas pelo Tribunal, no âmbito do princípio da liberdade de apreciação da prova deu-se primazia à prova documental junta aos autos.

 

 

  1. MATÉRIA DE DIREITO

 

O objecto do presente pedido centra-se na apreciação do acto de liquidação adicional de IRS 2017 n.º 2021..., no valor de €106.596,02, do qual resultou um acerto no valor de €106.596,02, que foi objecto de reclamação graciosa pelo Requerente, por convolação da Declaração de substituição de IRS n.º ... em Reclamação Graciosa, com fundamento no facto do Requerente não ter no imóvel gerador de mais-valias à data da venda a sua residência própria e permanente.

 

A este propósito, a Requerente alega no seu pedido de constituição do Tribunal Arbitral, em síntese, o seguinte:

 

1 - Na sequência de processo de Divórcio n.º .../14...TBCSC, que correu termos no Tribunal da Comarca de Lisboa Oeste – Cascais – Instância Central – 3ª Secção de Família e Menores – J3 foi, em 8 de Outubro de 2014, decretado o divórcio entre o Requerente e a sua ex- mulher, B..., e homologado o acordo entre as partes respeitante ao destino da casa de morada de família, com a atribuição do direito ao uso e ocupação da mesma à sua ex-mulher, para ali permanecer a habitar com os filhos de ambos até à venda do imóvel;

 

2 – O Acordo sobre a utilização da casa de morada de Família, homologado por Sentença, estabeleceu que: “ …….o direito ao uso e ocupação da casa de morada de família fica atribuído ao cônjuge mulher até ao prazo de oito dias após lhe ser entregue, por cedência do direito de uso e para esta ali habitar com os filhos do casal, o prédio urbano denominado “Vivenda...” sito no..., Rua ..., nºs ..., ... e ..., freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o nº ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..., da freguesia de ..., entrega essa que pressupõe a obtenção das devidas condições de habitabilidade na sequência da execução de obras a que será submetido este imóvel, ficando a cônjuge mulher vinculada, nesse momento ou no prazo máximo de cento e vinte dias meses a contar da assinatura do presente acordo, a proceder a imediata entrega do imóvel correspondente à casa que foi de morada de família ao cônjuge marido, no estado em que o mesmo atualmente se encontra.”

 

3 - Porém, para obter as condições de habitabilidade foram executadas obras no imóvel “Vivenda ...” sita no ... n.ºs ..., ... e ..., obras que se arrastaram por mais de um ano e meio, entre orçamentos e sua aprovação pelo Requerente, respectivas licenças de obras e execução das mesmas até que fossem reunidas as condições de habitabilidade previstas;

 

4 – Durante todo este período a ex-cônjuge do requerente,  B..., e os filhos de ambos,  C... e D..., mantiveram-se a habitar o imóvel de ... até data muito próxima da data da venda deste imóvel;

 

5 – O Requerente foi quem sempre pagou todos os encargos do uso e habitação do imóvel de ..., despesas com a alimentação, educação e vestuário dos seus filhos e também da sua ex-cônjuge.

 

6 – O ex-cônjuge, B..., não trabalhava nem auferia quaisquer rendimentos de outra natureza para fazer face aos próprios encargos dos filhos, menores. 

 

7 – Para além das pensões de alimentos, pagou todas as despesas decorrentes do uso e habitação do imóvel de ... .

 

8 - Todos os encargos decorrentes do uso e habitação do identificado imóvel foram sempre suportados, exclusivamente, pelo Requerente.

 

9 – Em 22-05-2020, o Requerente apresentou nova declaração de substituição, com a identificação n.º..., no que respeita ao Anexo G, em que declara as despesas de €137.715,31, declarou ter efectuado a amortização €350.443,42 (trezentos e cinquenta mil, quatrocentos e quarenta e três euros e quarenta e dois cêntimos) e que pretende reinvestir €450.000,00 (quatrocentos e cinquenta mil euros), valor este que efectivamente veio a reinvestir em 2019 na aquisição de habitação própria e permanente. 

 

10 - A Declaração de substituição de 22-05-2020, com a identificação n.º..., veio a ser convolada em reclamação graciosa, uma vez que a Autoridade Tributária – Serviço de Finanças ... de Lisboa, considera que o contribuinte não reúne as condições para reinvestir parte do valor da alienação de 2017, referente ao imóvel alienado, aqui identificado, uma vez que não correspondia à sua habitação própria permanente, por ter o Requerente, no momento da alienação, domicílio na ..., n.º..., em Lisboa, cuja metade do direito ao usufruto foi constituída a seu favor em Junho de 2015;

 

11 - O facto de o Requerente, após o seu divórcio, ter o seu domicílio fiscal noutra morada, não é fundamento para a AT não respeitar a situação concreta de ali ter sido a residência permanente do Requerente até ao seu divórcio, e naquele imóvel se ter mantido a residência permanente da sua ex-mulher, e dos filhos de ambos, por decisão homologada judicialmente, e até à venda do imóvel, como aconteceu.

 

12 - A ligação do Requerente ao imóvel, permanecendo ali a residir o seu agregado familiar, os seus filhos, e a sua ex-mulher sempre se manteve até ao momento da venda.

 

13 - Nos termos do acordo de atribuição de casa de morada família, homologado por sentença, o Requerente, com a venda do imóvel aqui identificado, sito em ..., teve que encontrar uma alternativa para habitação da sua ex-mulher e dos dois filhos menores de ambos, noutro imóvel.    

 

14 - E, o Requerente, para vender o identificado imóvel teve, obrigatoriamente, que pagar o valor em dívida do empréstimo bancário do BBVA, no valor de €334.746,70.

 

15 - A lei exclui da tributação os valores provenientes da transmissão onerosa de imóveis destinados a habitação própria e permanente do sujeito passivo ou do seu agregado familiar.

 

16 - Nos termos da Lei o agregado familiar é composto por cada um dos cônjuges, ou ex-cônjuges nos casos de dissolução do casamento, e dos dependentes a seu cargo, ou seja, os filhos do Requerente e da sua ex-mulher.

 

17 – Na sequência da separação e do divórcio decretado, os filhos menores do Requerente permaneceram a residir no imóvel alienado, com a mãe, ex-mulher do Requerente, até à venda do imóvel em 2017.

 

18 - Nestas circunstâncias não restam dúvidas que o imóvel sempre foi destinado a habitação própria e permanente do agregado familiar do Requerente até à sua venda.

 

19 - E, o Requerente manifestou a sua intenção de reinvestir o produto da alienação do imóvel, ou parte dele, noutro imóvel que se destinasse a sua habitação própria e permanente, o que aconteceu em 2019 e dentro do prazo legal, adquiriu o imóvel sito na Rua ... nº... –... Esq.º em Lisboa, que constitui a sua habitação própria e permanente.

 

20 - Pelo que, os ganhos obtidos na venda do imóvel identificado pelo artigo Urbano ... da freguesia de ..., concelho de Cascais, melhor identificado no número 5 deste articulado, está excluído de tributação, na parte referente ao reinvestimento efectuado em 2019 pelo Requerente, e na amortização do crédito bancário.

 

21 - Em conformidade, deve a identificada liquidação de IRS de 2017 efectuada ser anulada e efectuada uma nova liquidação, com respeito pelos valores constantes do Anexo G, comprovados documentalmente, e nos termos da invocada legislação aplicável (Artigo 10.º n.º 5 do Código do IRS). 

 

Por sua vez, a AT defende, em síntese, o seguinte:

 

1 – Estipula o artigo 13.º do Código do IRS que o agregado familiar é constituído, nomeadamente por cada cônjuge ou ex-cônjuge, bem como os dependentes a seu cargo.

 

2 - O Requerente nas declarações de rendimentos modelo 3 de IRS, referentes aos anos de 2014 a 2017, não incluiu os dependentes no seu agregado familiar, tendo declarado, naqueles anos, como dedução à coleta os montantes de pensões de alimentos pagos;

 

3 - Nos termos do artigo 83.º-A do Código do IRS, podem ser deduzidas à coleta as importâncias referentes a pensões de alimentos, salvo nos casos em que o seu beneficiário faça parte, para efeitos fiscais, do mesmo agregado familiar, pelo que, e para estes efeitos, os filhos do Requerente não constituíam o seu agregado familiar desde o ano de 2014, pelo que não pode proceder o alegado de que o imóvel alienado se destinava a habitação própria e permanente do agregado familiar, acrescendo o facto de que o Requerente no momento da alienação do imóvel possuía a sua morada na ..., n.º ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..., da freguesia de ..., concelho de Lisboa, imóvel este adquirido por si em Junho de 2015;

 

4 - Conforme decisão proferida na reclamação graciosa ... 2020 ..., instaurada na sequência da submissão da declaração apresentada em 2020/05/22, deferida parcialmente e notificada ao Requerente por carta registada de 2022/04/29:

No que concerne às despesas alegadamente suportadas com a alienação do imóvel em referência, após análise dos elementos constantes dos autos, temos a referir que, permanece por comprovar, nos termos do art.º 51º do CIRS, a parte não confirmada pelo Serviços no âmbito dos processos de divergências, no montante acima indicado de €8.356,01. Pelo que, atenta a falta de meios probatórios não será de validar o total das despesas pretendido.

Nesta senda, em virtude de o imóvel alienado se situar numa morada que não corresponde à habitação própria e permanente do ora reclamante, resta concluir que não se encontram reunidas as condições para ser considerado o reinvestimento de parte do valor de realização, nos termos do n.º 5 do art.º 10.º do CIRS, conforme era pretensão do reclamante. Bem como, a amortização do valor em dívida do empréstimo bancário, à data da alienação. Em suma, face à falta de comprovação e justificação de parte do valor constante da Mod.3 de substituição na rúbrica correspondente a despesas suportadas com a alienação do imóvel, bem como, ao facto de o reclamante não reunir as condições necessárias para poder ser considerado o reinvestimento e a amortização do empréstimo que fez constar da referida declaração de rendimentos, não se torna possível validar integralmente os valores declarados na mesma, pelo que se propõe o deferimento parcial do pedido.

 

7 - Sendo que, o valor que o Requerente alega ter suportado em despesas e encargos, em sede do presente pedido arbitral (€45.465,05 + €75.519,05 = €120.984,10), é inferior ao mencionado nas declarações de rendimentos entregues (€137.715,31) e inclusive, inferior ao valor já confirmado pela AT (€129.359,30);

 

8 - Nestes termos, e nos demais que V. Exas. doutamente suprirão, deve ser julgado improcedente o presente pedido de pronuncia arbitral, por não provado, mantendo-se na ordem jurídica o acto tributário de liquidação impugnado, absolvendo-se, em conformidade, a entidade requerida do pedido.

 

Vejamos o que deve ser entendido.

 

II – Questões a Decidir

 

As questões materiais controvertidas reconduzem-se, essencialmente, a saber se o facto de o Requerente ter procedido à alteração do seu domicílio fiscal para a casa sita em ... e, cujo usufruto adquiriu após o divórcio, em 2015, impede que se aplique a exclusão de tributação prevista no artigo 10.º, n.º 5 do Código do IRS às mais-valias imobiliárias apuradas com a venda da casa sita em ..., onde viveu com a sua família até à data do divórcio. Mais se impõe esclarecer se a amortização do empréstimo bancário associado ao imóvel gerador de mais-valias deve ou não ser considerada no apuramento das mais-valias imobiliárias e se devem ser aceites como despesas e encargos inerentes à alienação do imóvel, o valor declarado pelo Requerente de €137.715,31.

 

Assim vejamos:

 

A – Reinvestimento do Valor de Realização

 

De acordo com o disposto no artigo 10.º, n.º 5 do Código do IRS, estão excluídos de tributação os ganhos provenientes da transmissão onerosa de imóveis destinados a habitação própria e permanente do sujeito passivo ou do seu agregado familiar, desde que verificadas, cumulativamente, as seguintes condições:

  1. O valor de realização, deduzido da amortização de eventual empréstimo contraído para a aquisição do imóvel, seja reinvestido na aquisição da propriedade de outro imóvel, de terreno para construção de imóvel e ou respectiva construção, ou na ampliação ou melhoramento de outro imóvel exclusivamente com o mesmo destino situado em território português ou no território de outro Estado membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, desde que, neste último caso, exista intercâmbio de informações em matéria fiscal;
  2. O reinvestimento previsto na alínea anterior seja efetuado entre os 24 meses anteriores e os 36 meses posteriores contados da data da realização;
  3. O sujeito passivo manifeste a intenção de proceder ao reinvestimento, ainda que parcial, mencionando o respetivo montante na declaração de rendimentos respeitante ao ano da alienação.

Entende a AT a este propósito que o conceito de “habitação própria e permanente” coincide com o de domicílio fiscal do sujeito passivo, concluindo em face da divergência de moradas, pela não aplicação da exclusão de tributação decorrente do reinvestimento prevista no artigo 10.º, n.º 5 do Código do IRS.

 

Sucede que, do ponto de vista literal, não existe qualquer correspondência entre a expressão “habitação própria e permanente” e “domicílio fiscal”, razão pela qual não pode a argumentação da AT proceder com essa base.

 

Na verdade, como resulta das mais elementares regras de interpretação jurídica, “Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.“

 

Em consequência, atendendo-se literalmente ao disposto no n.º 5 do artigo 10.º do Código do IRS não tem a interpretação efectuada pela AT qualquer fundamento na letra da própria lei.

 

Acresce que, também do ponto de vista teleológico, não existe qualquer fundamento para tributar os ganhos obtidos pelo Requerente decorrentes da venda da sua habitação própria e permanente, reinvestidos na compra de outra habitação própria e permanente, conquanto, a exclusão de tributação prevista no n.º 5 do artigo 10.º do Código do IRS “tem como objectivo favorecer a propriedade do imóvel destinado a habitação permanente.” - (cfr. José Guilherme Xavier de Basto, in IRS – Incidência real e determinação dos rendimentos líquidos – pp. 413, Coimbra Editora.)

 

Na verdade, o objectivo da exclusão é o de não onerar fiscalmente a efectivação do direito fundamental à habitação.

 

Não foi colocado em causa pela AT e decorre dos autos que o Requerente utilizou o produto da venda do imóvel alienado em 2017 para adquirir um novo imóvel, em 2019, para sua habitação própria e permanente.

 

O facto de o Requerente ter alterado o seu domicílio fiscal para ..., após o divórcio, não determina por si só a desaplicação do n.º 5 do artigo 10.º do Código do IRS, na medida em que tal norma apenas exige que as mais-valias decorram de imóvel destinado a habitação própria e permanente e não de imóvel no qual esteja fixado o domicílio fiscal do sujeito passivo.

 

Considerando que a interpretação efectuada pela AT parte do pressuposto de que o domicílio fiscal corresponde à habitação própria e permanente do sujeito passivo, tal interpretação é, portanto, contra legem.

 

Sobre a falta de coincidência entre o conceito de habitação própria e permanente e o conceito de domicílio fiscal veja-se, entre outros:

1 - Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, Proc. 373/17.6BESNT, de 30.09.2020: O conceito de habitação própria permanente não equivale ao conceito de domicílio fiscal

2 – Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, Proc. 779/11.4BELLE, de 16.09.2019: O requisito da permanência na habitação, deve ser entendido no sentido de habitualidade e normalidade, impondo-se para efeitos da exclusão tributária que o beneficiário aí organize as condições da sua vida normal e do seu agregado familiar. São atos demonstrativos da fixação do centro da sua vida pessoal a ocorrência de condições físicas, jurídicas e sociais, não se esgotando na ligação à circunscrição fiscal onde se situa o prédio ou na correspondência da habitação com o domicílio fiscal registado nos serviços de finanças;

3 – Supremo Tribunal Administrativo, Proc. 1077/11.9BESNT 01448/17, de 14.11.2018: O conceito de habitação própria e permanente não equivale ao conceito de domicílio fiscal

4 – CAAD, Proc. 285/2018, de 22.01.2019: No plano conceitual, nem a residência habitual se identifica com a residência permanente, nem o domicílio coincide com a morada, ou seja, o local onde a pessoa tem a sua habitação, tal como se pode inferir do artigo 82º do Código Civil.

 

5 - Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, proferido no âmbito do Proc. 590/11, de 23.11.2011: “o conceito de residência própria e permanente tem sido entendido no sentido de habitualidade e normalidade e não propriamente no sentido cronológico absoluto de estadia sem qualquer solução de continuidade;

6 - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Fevereiro de 2009, no âmbito do processo 09A144: É, no entanto, essencial que o centro de permanência estável e duradoura se situe num determinado local, que aí esteja instalado o seu lar, organizada a sua logística, onde convive, e da qual, sempre que se ausenta, o faz a título transitório, ou temporário, e com o propósito de regressar com estabilidade, por lá permanecer a sua economia doméstica e o seu agregado familiar;

7 - Acórdão do STJ, de 18 de Dezembro de 2007, proferido no âmbito do proc. A4127: residência permanente não significa residência única, sendo possível uma pessoa ter residências alternadas, onde vive interpoladamente, face a exigências da vida, desde que o faça com carácter de habitualidade e estabilidade

 

A tudo acresce que devemos na interpretação da norma ater-nos ao princípio “Ubi Lex Non Distinguit Nec Nos Distinguere Debemus” para concluirmos que se a exclusão de tributação de mais-valias prevista no artigo 10.º, n.º 5 do Código do IRS pretendesse apenas abranger os imóveis onde estivesse registado o domicílio fiscal dos alienantes, o Legislador deveria ter exprimido expressamente tal entendimento, tal como o fez relativamente à isenção de IMI prevista no artigo 46.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF).

Verifica-se, contudo, dos factos apurados no processo, que o Requerente não só alterou o seu domicílio fiscal para o imóvel sito em ..., como viveu de facto nesse outro imóvel, como sua habitação própria e permanente, após o divórcio da sua ex-mulher, por força do próprio acordo de atribuição do direito de utilização da casa de família à ex-mulher e aos filhos de ambos, até à venda do imóvel.

 

 

Assim, importa, também, considerar que resulta da prova carreada para os autos que o agregado familiar do Requerente permaneceu na casa de... – Imóvel de Partida - encontrando-se todas as facturas de água luz e gás em nome do Requerente, que procedia ao seu pagamento.

Contudo, tal como constata a AT, o Requerente não indicou os seus filhos como agregado familiar nas declarações de IRS desde 2014, e com esse fundamento considera a AT que o reinvestimento realizado pelo Requerente não é elegível para efeitos da exclusão de tributação prevista no artigo 10.º, n.º 5 do Código do IRS.

Ficou, no entanto, demonstrado que o Requerente pagou sempre uma pensão de alimentos à ex-mulher e declarou essa pensão de alimentos no seu IRS, ao longo dos anos.

Tendo em conta que o Requerente deixou de viver na casa de ... e alterou o seu domicílio fiscal para o imóvel de ..., após o divórcio, as mais-valias resultantes da venda da casa de morada de família só poderão ser excluídas de tributação, nos termos e para os efeitos do art. 10.º, n.º 5 do Código do IRS, caso se conclua que o imóvel era habitação própria e permanente da ex-mulher e dos filhos – centro de vida doméstica – do Requerente.

Considera a este propósito a AT que não tendo o Requerente indicado nas declarações de IRS qualquer agregado familiar não pode considerar-se que o agregado familiar do Requerente tinha residência própria e permanente na casa de morada de família.

Contudo, no caso concreto em análise, não há qualquer dúvida de que o agregado familiar do Requerente se manteve a viver na casa de morada de família, à guarda da Mãe.

Neste caso, por força das disposições previstas no art. 13.º, n.º 7 e 8 e art. 83.º-A do Código do IRS, os dependentes do Requerente só podiam integrar um agregado familiar, para efeitos fiscais.

Ademais, a própria dedutibilidade da pensão de alimentos paga pelo Requerente impõe que não indique os filhos no agregado familiar, visto que o benefício da dedução de 20% da pensão de alimentos não é compatível com as deduções à colecta dos dependentes.

Da não inclusão do agregado familiar nas suas declarações fiscais, por força do pagamento de pensão de alimentos e da própria lei fiscal, não parece poder resultar a exclusão desse agregado familiar para efeitos do disposto no n.º5 do artigo 10.º do Código do IRS, sob pena de contradição do sistema jurídico ou falta de coerência.

Seguindo de perto a jurisprudência constante do Acórdão do STA, proc. 164/13.3BEALM, de 17.02.2021:

I - O conceito de reinvestimento subjacente ao n.º 5 do artigo 10.º é um “conceito económico” e, por isso, o que é essencial é provar que “o produto da alienação obtido na transmissão onerosa de imóvel destinado à habitação do sujeito passivo ou do seu agregado familiar seja reinvestido na aquisição de outro imóvel destinado ao mesmo fim”.

II - Admitindo a lei expressamente que o reinvestimento possa consistir na aquisição “de terreno para construção de imóvel e ou respectiva construção” e que esta aquisição e construção “seja efectuada entre os 24 meses anteriores e os 36 meses posteriores contados da data da realização”, é lógico e razoável que durante o período que medeia a alienação do “imóvel de partida” e a obtenção (aquisição do terreno e construção) do “imóvel de chegada” o agregado familiar tenha que residir em outra habitação, seja arrendada, seja própria.

III - A necessária residência intercalada não consubstancia uma interrupção do nexo de ligação-causalidade entre o “imóvel de partida” e o “imóvel de chegada” que impeça o preenchimento da previsão normativa da isenção prevista no n.º 5 do artigo 10.º do CIRS, sempre que a factualidade seja reconduzível a uma razoável e plausível situação da vida, apreciada casuisticamente.

Deste modo, considerando que o Requerente foi, por força de situação específica da vida – divórcio – residente entre 2015 e 2019, em imóvel, de que detinha 50% do usufruto, em ..., em face dos documentos que atestam e comprovam que os filhos do Requerente residiram na casa de morada de família (imóvel de partida) desde 2014 até meados de 2017 e da situação fiscal concreta do Requerente determinar que os filhos não pudessem ser considerados/indicados como agregado familiar nas declarações de IRS, entende-se que a residência intercalada do Requerente entre 2014 e 2017 é razoável e plausível na situação concreta do Requerente. Em consequência, deve ser aplicada ao apuramento das mais-valias realizadas pelo Requerente a exclusão de tributação prevista no n.º 5 do artigo 10.º do Código do IRS.

Em face do exposto, deve, nesta parte, ser anulado o acto de liquidação adicional de IRS n.º 2021..., por vício de violação de Lei, mormente erro sobre os pressupostos de facto e de direito, e restituído ao Requerente a quantia indevidamente paga.

 

B – Da Amortização do Empréstimo Bancário

 

De acordo com o Requerente o acto de liquidação impugnado é, também ilegal por não contemplar a amortização do empréstimo bancário efectuado pelo Requerente, com a alienação do imóvel gerador de mais-valias. A AT não se pronuncia sobre tal questão na Resposta apresentada.

 

A este propósito estabelece-se no artigo 11.º da Lei n.º 82-A/2014, de 31.12.2014 (Lei do Orçamento do Estado para 2015), o seguinte:

Artigo 11.º
Regime especial aplicável às mais-valias imobiliárias

 

 

1 - A exclusão de tributação prevista no n.º 5 do artigo 10.º do Código do IRS é extensível às situações em que o valor de realização seja aplicado na amortização de eventual empréstimo contraído para a aquisição do imóvel alienado.
2 - Nas situações referidas no número anterior em que o valor de realização seja apenas arcialmente aplicado na finalidade aí prevista, a exclusão de tributação abrange somente a parte proporcional dos ganhos correspondentes àquela aplicação.
3 - O regime previsto no n.º 1 não é aplicável se, à data da alienação, o sujeito passivo for

proprietário de outro imóvel habitacional.
 

4 - O disposto nos números anteriores aplica-se às alienações de imóveis ocorridas nos anos de 2015 a 2020, em que os contratos de empréstimo tenham sido celebrados até 31 de dezembro de 2014.

 

Assim, em face do regime especial referido, considerando a prova documental realizada quanto à amortização do empréstimo contraído com a aquisição do imóvel alienado verifica-se que tal regime é extensível ao Requerente.

 

Na verdade, apenas não seria de aplicar o regime especial de amortização caso tivesse sido feita prova pela AT de que o Requerente era proprietário de outro imóvel, à data da alienação.

 

Dos documentos juntos autos não é possível concluir que o Requerente era proprietário de outro imóvel, à data da alienação, sendo apenas referido que o Requerente era usufrutuário de outro imóvel, em 50%, à data da alienação.

 

Tendo em conta que a norma em análise contempla um regime especialmente previsto para a aplicação do artigo 10.º, n.º 5 do Código do IRS, ao determinar a não aplicação desse regime específico às situações de propriedade, deverá entender-se que apenas essas específicas situações estão abrangidas.

 

Não sendo o direito de usufruto sinónimo do direito de propriedade, mas antes uma figura distinta deve entender-se que o legislador soube exprimir correctamente a sua intenção.

 

Sendo especificamente proibida a interpretação analógica em direito fiscal, entende-se que a exclusão do regime especial previsto no artigo 11.º, n.º 3 da Lei do OE para 2015 é apenas aplicável aos sujeitos passivos que tenham constituído o seu direito de propriedade sobre outro imóvel.

 

Estando em causa a interpretação de normas de exclusão de tributação, devem ser interpretadas nos seus exactos termos, sem o recurso à analogia e evitando também a interpretação extensiva, tornando prevalente a certeza e a segurança na sua aplicação de acordo com as regras interpretativas ditada pelo artigo 9.º n.º 3 do Código Civil, que determina que tenhamos de presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

 

Em consequência, considera-se, também, procedente o pedido de anulação do acto de liquidação, por vicio de violação de lei, no que respeita à não aceitação do valor da amortização do empréstimo bancário, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 10.º, n.º 5 do Código do IRS.

 

C – Do Valor das Despesas e Encargos

 

De acordo com a Resposta da AT, foram aceites como dedutíveis as despesas e encargos declarados pelo Requerente, no valor total de €129.359,30.

 

Na Petição arbitral, o Requerente indica que na última declaração de substituição de IRS entregue, objecto de convolação em reclamação graciosa, suportou despesas e encargos no valor de €137.715,31. Na resposta apresentada, a AT refere que o valor de €129.359,30 já se encontrava confirmado pela AT, sendo que apenas não se encontrava comprovado “parte das despesas alegadamente suportadas com a alienação do imóvel, na importância de €8.356,01.

 

Não se conhecem as razões pelas quais a AT não aceitou as despesas declaradas pelo Requerente, no valor de €8.356,01, no âmbito do processo de divergências, nem no âmbito do presente processo arbitral, onde foram juntos aos autos os documentos referentes a parte dos encargos e despesas declarados pelo Requerente.

 

Considerando as regras do ónus da prova aplicáveis, entende-se que a AT não logrou nem alegar nem demonstrar a existência de factos ou razões para não considerar como verdadeiro o valor das despesas e encargos declarados pelo Requerente.

 

Assim, também, com este fundamento deve o acto tributário impugnado, ser anulado, por vicio de violação de Lei.

 

 

  1. DECISÃO

 

Nestes termos acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

  1. Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral;
  2. Anular a liquidação adicional n.º IRS 2017 n.º 2021..., no valor de €106.596,02
  3. Julgar procedente o pedido de reembolso da quantia paga e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagar à Requerente a quantia €106.596,02;
  4. Julgar procedente o pedido de pagamento pela Requerida ao Requerente de juros indemnizatórios, nos termos legais, desde a data do pagamento da sobredita importância de €106.596,02 e
  5. Condenar a Requerida nas custas do processo atento o seu decaimento total.

 

V. VALOR DO PROCESSO

De harmonia com o disposto nos artigos 306.º n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de €106.596,02.

 

VI. CUSTAS

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em €3.060,00 conforme a Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da AT, conforme decidido supra.

 

Lisboa, 28 de Novembro de 2022

 

 

O Tribunal Arbitral Coletivo,

 

José Poças Falcão(Árbitro Presidente)

 

 

 

_________________________________

Magda Feliciano

(Árbitra Adjunta e Relatora)

 

 

 

 

__________________________

Alexandra Iglésias

(Árbitra Adjunta)

 

 

(O texto da presente decisão foi elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, da alínea e) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT) regendo-se a sua redacção pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990)