Decisão Arbitral
CAAD: Arbitragem Tributária
Processo nº 154/2014 – T
Tema: IUC – dever de fundamentação; audição prévia; erro nos pressupostos de liquidação; juros indemnizatórios.
I RELATÓRIO
A – Instituição Financeira de Crédito, SA (abreviadamente também designada por “autora”), com sede em …, vem, ao abrigo do artigo 2.º, n.º 1, alínea a) e artigo 10º n.º 1, alínea a) e n.º 2 da alínea do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante referido por “RJAT”)[1], requerer a constituição de Tribunal Arbitral Singular para pronúncia sobre a ilegalidade dos atos tributários de liquidação de IUC (Imposto único de Circulação) elencados no artigo 9º, do seu requerimento, respeitantes aos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012. no valor total de €15.974,05, pedindo a respetiva anulação desses atos com fundamento na violação do dever de fundamentação, do direito de audição prévia e, segundo parece, de erro nos pressupostos das liquidações.
Na procedência do pedido, pede a anulação dos atos de liquidação, o reembolso dos montantes pagos, com juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43º, da LGT.
A autora não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT, o signatário foi designado pelo presidente do Conselho Deontológico do CAAD para integrar o presente Tribunal Arbitral singular, tendo aceite esse encargo nos termos legais e regulamentares.
Em 8-04-2014 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
O Tribunal ficou constituído em 24-4-2014 [artigo 11º-1/c), do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228º, da Lei nº 66-B/2012, de 31-12]
Em 29-05-2014, a Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta defendendo que o pedido de pronúncia arbitral deve ser julgado improcedente e que os atos tributários impugnados se devem manter na ordem jurídica.
Em 27-06-2014 realizou-se a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, em que se decidiu, com o consenso das partes, dispensar as alegações finais, orais ou escritas.
Saneador/Pressupostos processuais
O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do RJAT.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
A cumulação de pedido é, no caso, admissível considerando a identidade dos tributos, do Tribunal competente para a decisão e dos fundamentos de facto e de direito invocados (artigo 104º, do CPPT e 3º, do RJAT)
O processo não enferma de nulidades e não foram suscitadas questões que possam obstar à apreciação do mérito da causa.
II FUNDAMENTAÇÃO
Os factos provados
Não há controvérsia quanto ao quadro factual essencial para enquadrar jurídica e legalmente as questões suscitadas.
Assim é que, estão essencialmente demonstrados os seguintes factos:
a) A Requerente é uma sociedade comercial cuja atividade principal é o comércio de veículos automóveis;
b) Disponibiliza também aos seus clientes diversas soluções de financiamento como a locação financeira [leasing] ou aluguer de longa duração [ALD];
c) A requerente foi notificada para proceder ao pagamento das liquidações de IUC listadas no artigo 9º do seu requerimento para constituição deste Tribunal Arbitral, respeitantes aos anos de 2009,2010,2011 e 2012;
d) Nas datas de liquidação mencionadas, constava da Conservatória do Registo Automóvel como proprietária dos respetivos veículos, a requerente;
e) Nas datas de aniversário do registo das matrículas respetivas e nas datas das liquidações mencionadas, não era a requerente proprietária de nenhum dos veículos mencionados, por terem sido vendidos entretanto [Docs 2 a 40 e lista do artigo 9º, da petição inicial];
f) Os pagamentos de IUC liquidado foram efetuados pela requerente nas datas que constam do documento 1, junto com a petição inicial, em parte ao abrigo do DL nº 151-A/2013, de 31-10;
g) A requerente exerceu o direito de audição tendo a AT mantido o entendimento segundo o qual o proprietário do veículo para efeitos de liquidação de IUC é apenas quem consta como tal do registo automóvel [cfr doc 71].
II FUNDAMENTAÇÃO (continuação)
O Direito
Atenta as posições das Partes assumidas nos argumentos apresentados, constituem, se bem entendemos essas posições, questões centrais dirimentes saber:
-
Se ocorre o invocado vício de violação do dever de fundamentação (arts 26º e ss., do requerimento inicial);
-
Se ocorre violação do direito de audição prévia da requerente (arts 33º e ss., da petição inicial);
-
Se, nos termos de um contrato de locação financeira que tem por objeto um automóvel, na data da ocorrência do facto gerador do imposto, o veículo já tiver sido anteriormente alienado embora o direito de propriedade deste continue registado em nome do seu anterior proprietário, para efeitos do disposto no artigo 3º, nº1, do CIUC, sujeito passivo do IUC é o anterior proprietário ou o novo proprietário?
-
Qual o valor jurídico do registo automóvel na economia do CIUC, nomeadamente para efeitos da incidência subjetiva deste imposto e, designadamente, se a norma de incidência subjetiva constante do artigo 3º nº 1 do CIUC, estabelece ou não uma presunção?
a) Dever de fundamentação dos atos tributários
Este dever está consagrado constitucionalmente – artigo 268º-3, da Constituição.
À luz da Jurisprudência e Doutrina, a fundamentação tem duas funções: uma, de natureza endógena, decorrente dos princípios de legalidade, justiça e imparcialidade que se impõem a toda a Administração Pública; outra, de natureza garantística, que visa permitir aos cidadãos o conhecimento dos fundamentos de facto e de direito que motivaram a Autoridade Administrativa a decidir de determinada forma concreta (e não de outra), de molde a proporcionar aos administrados a opção consciente entre aceitação da decisão ou reação contra tal decisão por via administrativa ou contenciosa [Cfr, a este respeito, v. g., o Ac do TCAS de 13-1-2004[2] (Proc 03804/00) .
No caso dos atos tributários, maxime, de liquidação, a fundamentação visa permitir ao contribuinte conhecer as razões concretas desse ato (suas causas e motivação da AT ou da entidade que procedeu à liquidação) para a partir daí poder fazer um juízo consciente relativo à legalidade ou não do ato.
Fala-se, a este propósito, do conhecimento que deve ser dado pela Administração quanto ao iter cognoscitivo e valorativo seguido para alegadamente justificar a decisão.
Traduzindo este dever constitucional, o artigo 77º-1, da LGT, estabelece a regra da fundamentação do procedimento através de “sucinta exposição das razões de facto e de direito que motivaram a decisão”, embora com possibilidade de preencher este dever a mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem o relatório da fiscalização tributária; de todo o modo, pese embora de forma sumária, devem ser dadas a conhecer as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo (nº 2, do citado artigo 77º).
Estará cumprido este dever se, pela posição que toma e argumentos que utiliza, se evidencia que o administrado/contribuinte apreendeu as razões ou motivações, de facto e de direito, do autor do ato [cfr Diogo Leite de Campos, Benjamim Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, Lei Geral Tributária – Comentada e Anotada, Vislis Ed., 3ª ed., set/2q003, pp. 381-382].
Subsumindo:
O que o autor vem pôr em causa são as respostas aos direitos de audição que exerceu e que fundamentaram a decisão da AT no sentido de que considerou que o proprietário dos veículos (para efeitos de tributação em IUC) é aquele que, como tal, consta do registo automóvel.
E, na verdade, parece claramente ser este o entendimento sufragado pela AT.
Se esta o mantém mesmo após a apresentação de elementos comprovativos da “não propriedade” das viaturas em causa [cfr 28º, da petição], tal posição não consubstancia falta de fundamentação no sentido indicado mas antes se trata duma posição discordante da requerente quanto a ser aceitável, à luz interpretativa dos preceitos, a admissibilidade dessa fundamentação/justificação da tributação em IUC ora sindicada.
Não se afigura assim proceder a invocação do vício de falta de fundamentação.
b) Sujeito passivo do IUC no caso de contrato de locação financeira se, na data da ocorrência do facto gerador do imposto, o veículo já tiver sido anteriormente alienado embora o direito de propriedade deste continue registado em nome do seu anterior proprietário (artigo 3º-1, do CIUC).
Aderindo à e seguindo muito de perto a Jurisprudência arbitral tributária sobre esta matéria [Cfr, designadamente, decisões proferidas nos processos do CAAD nºs 14/2013, 26/2013, 27/2013, 73/2013 e 170/2013, todas publicadas em www.caad.org.pt], vejamos então.
Dispõe o artigo 3º do CIUC (Código do Imposto único de Circulação):
“ARTIGO 3º
INCIDÊNCIA SUBJECTIVA
1 – São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.
2 – São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”.
Estabelece, por seu lado, o nº1 do artigo 11º da LGT que “na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam, são observadas as regras e princípios gerais da interpretação e aplicação das leis”.
Resolver as dúvidas que se suscitem na aplicação de normas jurídicas pressupõe a realização de uma atividade interpretativa.
Há assim que ponderar qual a melhor interpretação[3] do art. 3º, nº 1 do CIUC, à luz, em primeiro lugar, do elemento literal, ou seja aquele em que se visa detetar o pensamento legislativo que se encontra objetivado na norma, para se verificar se a mesma contempla uma presunção, ou se determina, em definitivo, que o sujeito passivo do imposto é o proprietário que figura no registo.
A questão que se coloca é, no caso sub juditio, a de saber se a expressão “considerando-se” utilizada pelo legislador no CIUC, em vez da expressão “presumindo-se”, que era a que constava nos diplomas que antecederam o CIUC, terá retirado a natureza de “presunção” ao dispositivo legal em apreço.
A nosso ver e ao contrário do que defende a AT, a resposta tem necessariamente de ser negativa, uma vez que da análise do nosso ordenamento jurídico se retira de forma clara que as duas expressões têm sido utilizadas pelo legislador com sentido equivalente, seja ao nível de presunções ilidíveis, seja no quadro das presunções inilidíveis, pelo que nada habilita a extrair a conclusão pretendida pela Autoridade Tributária por uma mera razão semântica.
Na verdade, assim acontece em variadas normas legais que consagram presunções utilizando o verbo “considerar”, de que se indicam, meramente a título de exemplo, as seguintes:
- no âmbito do direito civil - o nº 3 do art. 243º do Código Civil, quando estabelece que “considera-se sempre de má-fé o terceiro que adquiriu o direito posteriormente ao registo da ação de simulação, quando a este haja lugar”;
- também no âmbito do direito da propriedade industrial o mesmo se passa, quando o art. 59º, nº 1 do Código da Propriedade Industrial dispõe que “(…)as invenções cuja patente tenha sido pedida durante o ano seguinte à data em que o inventor deixar a empresa, consideram-se feitas durante a execução do contrato de trabalho (…)”;
- e, também ainda, no âmbito do direito tributário, quando os nºs 3 e 4 do art. 89-A da LGT dispõem que incumbe ao contribuinte o ónus da prova que os rendimentos declarados correspondem à realidade e que, não sendo feita essa prova, presume-se (“considera-se” na letra da Lei) que os rendimentos são os que resultam da tabela que consta no nº 4 do referido artigo.
Esta conclusão de haver total equivalência de significados entre as duas expressões, que o legislador utiliza indiferentemente, satisfaz a condição estabelecida no art. 9º, nº 2 do Código Civil, uma vez que se encontra assegurado o mínimo de correspondência verbal para efeitos da determinação do pensamento legislativo.
Importa, de seguida, submeter a norma em apreço aos demais elementos de interpretação lógica, designadamente, o elemento histórico, o racional ou teleológico e o de ordem sistemática.
Dissertando sobre a atividade interpretativa diz FRANCESCO FERRARA que esta “é a operação mais difícil e delicada a que o jurista pode dedicar-se, e reclama fino trato, senso apurado, intuição feliz, muita experiência e domínio perfeito não só do material positivo, como também do espírito de uma certa legislação. (…) A interpretação deve ser objetiva, equilibrada, sem paixão, arrojada por vezes, mas não revolucionária, aguda, mas sempre respeitadora da lei” (Cfr. Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis, tradução de MANUEL DE ANDRADE, (2ª ed.), Arménio Amado, Editor, Coimbra, 1963, p. 129).
Como refere BAPTISTA MACHADO “a disposição legal apresenta-se ao jurista como um enunciado linguístico, como um conjunto de palavras que constituem um texto. Interpretar consiste evidentemente em retirar desse texto um determinado sentido ou conteúdo de pensamento.
O texto comporta múltiplos sentidos (polissemia do texto) e contém com frequência expressões ambíguas ou obscuras. Mesmo quando aparentemente claro à primeira leitura, a sua aplicação aos casos concretos da vida faz muitas vezes surgir dificuldades de interpretação insuspeitadas e imprevisíveis. Além de que, embora aparentemente claro na sua expressão verbal e portador de um só sentido, há ainda que contar com a possibilidade de a expressão verbal ter atraiçoado o pensamento legislativo – fenómeno mais frequente do que parecerá à primeira vista “ (Cfr. Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, pp.175/176).
“A finalidade da interpretação é determinar o sentido objetivo da lei, a vis potestas legis.(…) A lei não é o que o legislador quis ou quis exprimir, mas tão somente aquilo que ele exprimiu em forma de lei. (…) Por outro lado, o comando legal tem um valor autónomo que pode não coincidir com a vontade dos artífices e redatores da lei, e pode levar a consequências inesperadas e imprevistas para os legisladores. (…) O intérprete deve buscar não aquilo que o legislador quis, mas aquilo que na lei aparece objetivamente querido: a mens legis e não a mens legislatoris (Cfr. FRANCESCO FERRARA, Ensaio, pp. 134/135).
Entender uma lei “não é somente aferrar de modo mecânico o sentido aparente e imediato que resulta da conexão verbal; é indagar com profundeza o pensamento legislativo, descer da superfície verbal ao conceito íntimo que o texto encerra e desenvolvê-lo em todas as suas direções possíveis” (loc. cit., p.128).
Com o objetivo de desvendar o verdadeiro sentido e alcance dos textos legais, o intérprete lança mão dos fatores interpretativos que são essencialmente o elemento gramatical (o texto, ou a “letra da lei”) e o elemento lógico, o qual, por sua vez, se subdivide em elemento racional (ou teleológico), elemento sistemático e elemento histórico. (Cfr. BAPTISTA MACHADO, loc. Cit., p. 181; J. OLIVEIRA ASCENSÃO, O Direito – Introdução e Teoria Geral 2ª Ed., Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, p.361).
Entre nós, é o artigo 9º do Código Civil (CC) que fornece as regras e os elementos fundamentais à interpretação correta e adequada das normas.
O texto do nº 1 do artigo 9º do CC começa por dizer que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dela o “pensamento legislativo”.
Sobre a expressão “pensamento legislativo” diz-nos BAPTISTA MACHADO que o artigo 9º do CC “não tomou posição na controvérsia entre a doutrina subjetivista e a doutrina objetivista. Comprova-o o facto de se não referir, nem à “vontade do legislador” nem à “vontade da lei”, mas apontar antes como escopo da atividade interpretativa a descoberta do “pensamento legislativo” (artº. 9º, 1º). Esta expressão, propositadamente incolor, significa exatamente que o legislador não se quis comprometer” (loc. cit., p. 188).
No mesmo sentido se pronunciam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA em anotação ao artigo 9º do CC (Cfr. Código Civil Anotado – vol. I, Coimbra ed., 1967, p. 16).
E sobre o nº 3 do artigo 9º do CC refere aquele autor: “ este nº 3 propõe-nos, portanto, um modelo de legislador ideal que consagrou as soluções mais acertadas (mais corretas, justas ou razoáveis) e sabe exprimir-se por forma correta. Este modelo reveste-se claramente de características objetivistas, pois não se toma para ponto de referência o legislador concreto (tantas vezes incorreto, precipitado, infeliz) mas um legislador abstrato: sábio, previdente, racional e justo” (loc. cit. p. 189/190).
Logo a seguir este insigne Professor chama a atenção de que o nº 1 do artigo 9º, refere mais três elementos de interpretação a “unidade do sistema jurídico”, as “circunstâncias em que a lei foi elaborada” e as “condições específicas do tempo em que é aplicada” (loc. cit, p. 190).
Quanto às “circunstâncias do tempo em que a lei foi elaborada”, explica BAPTISTA MACHADO que esta expressão “representa aquilo a que tradicionalmente se chama a occasio legis: os fatores conjunturais de ordem política, social e económica que determinaram ou motivaram a medida legislativa em causa” (loc. cit., p.190).
Relativamente às “condições específicas do tempo em que é aplicada” diz este autor que este elemento de interpretação “tem decididamente uma conotação atualista (loc. cit., p. 190) no que coincide com a opinião expressa por PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA nas anotações ao artigo 9º do CC.
No que respeita à “unidade do sistema jurídico”, BAPTISTA MACHADO considera este o fator interpretativo mais importante: “a sua consideração como fator decisivo ser-nos-ia sempre imposta pelo princípio da coerência valorativa ou axiológica da ordem jurídica” (loc. cit., p. 191).
É também este autor que nos diz, relativamente ao elemento literal ou gramatical (texto ou “letra da lei”) que este “é o ponto de partida da interpretação. Como tal, cabe-lhe desde logo uma função negativa: a de eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, ou pelo menos uma qualquer correspondência ou ressonância nas palavras da lei.
Mas cabe-lhe igualmente uma função positiva, nos seguintes termos: se o texto comporta apenas um sentido, é esse o sentido da norma – com a ressalva, porém, de se poder concluir com base noutras normas que a redação do texto atraiçoou o pensamento do legislador” (loc. cit., p. 182).
Referindo-se ao elemento racional ou teleológico, diz este autor que ele consiste “na razão de ser da lei (ratio legis), no fim visado pelo legislador ao elaborar a norma. O conhecimento deste fim, sobretudo quando acompanhado do conhecimento das circunstâncias (políticas, sociais, económicas, morais, etc.,) em que a norma foi elaborada ou da conjuntura política-económica-social que motivou a decisão legislativa (occasio legis) constitui um subsídio da maior importância para determinar o sentido da norma. Basta lembrar que o esclarecimento da ratio legis nos revela a valoração ou ponderação dos diversos interesses que a norma regula e, portanto, o peso relativo desses interesses, a opção entre eles traduzida pela solução que a norma exprime” (loc. cit., pp. 182/183).
É ainda BAPTISTA MACHADO que nos diz, agora no que respeita ao elemento sistemático (contexto da lei e lugares paralelos) que “este elemento compreende a consideração das outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretanda, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos). Compreende ainda o lugar sistemático que compete à norma interpretanda no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico.
Baseia-se este subsídio interpretativo no postulado da coerência intrínseca do ordenamento, designadamente no facto de que as normas contidas numa codificação obedecem por princípio a um pensamento unitário” (loc.cit., p. 183).
Como ensina JOSEF KOHLER, citado por MANUEL DE ANDRADE “(…) Em particular havemos de tomar em consideração o encandeamento das diversas leis do país, porque uma exigência fundamental de toda a sã legislação é que as leis se ajustem umas às outras e não redundem em congérie de disposições desconexas (Ensaio, p. 27).
Descendo ao caso dos autos:
Através da análise do elemento histórico, extrai-se a conclusão que, desde a entrada em vigor do Decreto-Lei 59/72, de 30 de Dezembro, o primeiro a regular esta matéria, até ao Decreto-Lei nº 116/94, de 3 de Maio, o último a anteceder o CIUC [cfr Lei nº 22-A/2007, com as alterações da Lei 67-A/2007 e 3-B/2010], foi consagrada a presunção dos sujeitos passivos do IUC serem as pessoas em nome das quais os veículos se encontravam matriculados à data da sua liquidação.
Verifica-se, portanto, que a lei fiscal teve, desde sempre, o objetivo de tributar o verdadeiro e efetivo proprietário e utilizador do veículo, afigurando-se indiferente a utilização de uma ou outra expressão que, como vimos, têm na nossa ordem jurídica um sentido coincidente.
O mesmo se diga quando nos socorremos dos elementos de interpretação de natureza racional ou teleológica.
Com efeito, o atual e novo quadro da tributação automóvel consagra princípios que visam sujeitar os proprietários dos veículos a suportarem os prejuízos por danos viários e ambientais causados por estes, como se alcança do teor do art. 1º do CIUC.
Ora a consideração destes princípios, designadamente, o princípio da equivalência, que merecem tutela constitucional e consagração no direito comunitário, e são também reconhecidos em outros ramos do ordenamento jurídico, determina que os aludidos custos sejam suportados pelos reais proprietários, os causadores dos referidos danos, o que afasta, de todo, uma interpretação que visasse impedir os presumíveis proprietários de fazer prova de que já não o são por a propriedade estar na esfera jurídica de outrem[4].
Assim, também, da interpretação efetuada à luz dos elementos de natureza racional e teleológica, atento aquilo que a racionalidade do sistema garante e os fins visados pelo novo CIUC, resulta claro que o nº 1 do art. 3º do CIUC consagra uma presunção legal ilidível.
Em face do exposto, importa concluir que a ratio legis do imposto aponta no sentido de serem tributados os efetivos proprietários-utilizadores dos veículos pelo que a expressão “considerando-se” está usada no normativo em apreço num sentido semelhante a “presumindo-se”, razão pela qual dúvidas não há que está consagrada uma presunção legal.
Por outro lado, estabelece o art. 73º da LGT que “(…) as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário, pelo que são ilidíveis (…)”.
Assim sendo, consagrando o art. 3º, nº 1 do CIUC uma presunção juris tantum [e, portanto, ilidível], a pessoa que está inscrita no registo como proprietária do veículo e que, por essa razão foi considerada pela Autoridade Tributária como sujeito passivo do imposto, pode apresentar elementos de prova visando demonstrar que o titular da propriedade, na data do facto tributário, é outra pessoa, para quem a propriedade foi transferida.
E, no essencial da mesma linha argumentativa, se conclui igualmente que o real locatário financeiro do veículo à data do facto gerador do IUC, será também o sujeito passivo do imposto ainda que seja outro o titular inscrito no registo automóvel.
Analisados os elementos carreados para o processo pela Requerente e os factos provados, extrai-se a conclusão que aquela não era proprietária dos veículos a que respeitam as liquidações em apreço, por, entretanto, já ter transferido a propriedade dos mesmos, nos termos da lei civil ou por ter dado de locação financeira os restantes veículos elencados na mencionada lista.
Esses elementos documentais, constituídos por cópias das respetivas faturas de venda – que não foram impugnados pela AT -, gozam da presunção de veracidade que lhes é conferida pelo art.º 75º, nº 1 da LGT, tendo, assim, idoneidade e força bastante para ilidir a presunção que suportou as liquidações efetuadas.
Estas operações de transmissão de propriedade, são oponíveis à Autoridade Tributária e Aduaneira, porquanto, embora os factos sujeitos a registo só produzam efeitos em relação a terceiros quando registados, face ao disposto no art. 5º, nº 1 do Código do Registo Predial [aplicável por remissão do Código do Registo Automóvel], a Autoridade Tributária não é terceiro para efeitos de registo, uma vez que não se encontra na situação prevista no nº 2 do referido art. 5º do Código do Registo Predial, aplicável por força do Código do Registo Automóvel, ou seja: não adquiriu de um autor comum direitos incompatíveis entre si.
Voltando às questões decidendas e em síntese conclusiva podem ser então dadas as seguintes resposta:
Em caso de locação financeira o sujeito passivo do IUC será o locatário à data do facto gerador do imposto, sendo a titularidade retratada pelo registo automóvel, mera presunção juris tantum da respetiva qualidade do titular (proprietário ou locatário financeiro).
Quanto ao valor jurídico do registo automóvel na economia do CIUC, nomeadamente para efeitos da incidência subjetiva deste imposto e, concretamente, se a norma de incidência subjetiva constante do artigo 3º, nº 1, do CIUC, estabelece ou não uma presunção, conclui-se, das considerações supra, que a Autoridade Tributária e Aduaneira só pode prevalecer-se da realidade registal do automóvel, maxime relativamente à propriedade do veículo ou equivalente, se não for comprovada a desatualização da situação jurídica, designadamente quanto à propriedade ou locação financeira do veículo.
Na verdade, o registo automóvel, na economia do CIUC, representa mera presunção ilidível dos sujeitos passivos do imposto.
No caso, a requerente logrou, com total êxito, ilidir essa presunção e demonstrar que a realidade do registo era uma mera aparência dessa mesma realidade, ou seja, os titulares/proprietários inscritos não eram os proprietários reais na data do aniversário de matrícula dos veículos e, em consequência, não eram eles os sujeitos passivos do IUC.
Nestas circunstâncias, as mencionadas e ora impugnadas liquidações devem ser anuladas e, consequentemente restituídas à Requerente, pela Autoridade Tributária e Aduaneira, as respetivas importâncias assim indevidamente cobradas e retratadas nos mencionados e documentados atos de liquidação e pagamento.
Juros indemnizatórios
A requerente efetuou o pagamento das liquidações, sendo que estas se revelam indevidas.
Tal circunstância configura erro imputável aos serviços na medida em que procede a impugnação dessas liquidações – artigo 43º-1, da LGT.
A privação das importâncias pagas deve “sancionada” com a obrigação de pagamento de juros indemnizatórios decorrentes dessa mesma privação.
Se os juros indemnizatórios forem provocados pela existência de um erro imputável aos serviços (cfr. artigo 43º , nº 1 e nº 2 da Lei Geral Tributária) , eles serão devidos desde o momento em que foi paga ou retida a quantia em excesso até ao momento em que seja elaborada a nota de crédito que permita ao sujeito passivo receber a quantia de que, indevidamente, ficou privado.
A taxa de juros indemnizatórios é igual à taxa dos juros prevista no artigo 559º, do Código Civil, nos termos previstos nos artigos 43º e 35º/10, da LGT [cfr ainda Jorge Lopes de Sousa, Juros nas Relações Tributárias, in Problemas Fundamentais do Direito Tributário, Ed.Vislis, Lisboa, 1999, pp. 55 e ss.].
Ora, no caso, tendo a requerente efetuado o pagamento das liquidações sob impugnação, tem direito à restituição do que pagou, com juros indemnizatórios.
III – DECISÃO
De harmonia com o exposto, decide este Tribunal Arbitral, julgar totalmente procedentes os pedidos de anulação das liquidações de IUC conforme peticionado e, em consequência, anulam-se esses atos tributários, com as demais consequências legais inerentes e determina-se a restituição das importâncias dessas liquidações, com juros indemnizatórios às taxas legais em vigor, nos termos expostos supra, desde as datas de cada um dos pagamentos até à elaboração das notas de crédito respetivas pela Autoridade Tributária e Aduaneira.
*
Valor do processo
De harmonia com o disposto no art. 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 15.974,05.
Custas
Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 918,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.
Lisboa, 5 de setembro de 2014.
O Árbitro,
(José Poças Falcão)
[1] Acrónimo de Regime Jurídico da Arbitragem Tributária.
[2] Este e qualquer outro aresto que venha a ser citado sem identificação da fonte, pode ser consultado na internet, em http://www.dgsi.pt/
[3] A génese da relação jurídica de imposto pressupõe a verificação cumulativa dos três pressupostos necessários ao seu surgimento, a saber: o elemento real, o elemento pessoal e o elemento temporal. (Neste sentido veja-se, entre muitos outros autores, Freitas Pereira, M. H., Fiscalidade, 3ª Edição, Almedina, Coimbra, 2009).
[4] Sob a epígrafe “princípio da equivalência” estabelece o artigo 1º do CIUC: “O imposto único de circulação obedece ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária”.Sobre a noção do princípio da equivalência diz-nos SÉRGIO VASQUES: “Em obediência ao princípio da equivalência, o imposto deve ser conformado em atenção ao benefício que o contribuinte retira da actividade pública, ou em atenção ao custo que imputa à comunidade pela sua própria actividade”(Cfr. Os Impostos Especiais de Consumo, Almedina, 2000, p. 110).E, mais à frente, explica este Professor, relativamente aos automóveis: “um imposto sobre os automóveis assente numa regra de equivalência será igual apenas se aqueles que provoquem o mesmo desgaste viário e o mesmo custo ambiental paguem o mesmo imposto; e aqueles que provoquem desgaste e custo ambiental diverso, paguem imposto diverso também.