Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 184/2022-T
Data da decisão: 2022-11-11  IRS  
Valor do pedido: € 164.912,79
Tema: IRS. Mais-Valias. Regime transitório da categoria G. Rendimentos da categoria B. Ónus da prova.
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SUMÁRIO:

I – O regime transitório da Categoria G, tal como definido pelo artigo 5.º, do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de novembro, que aprovou o Código do IRS, determina a exclusão da tributação, neste imposto, dos ganhos que não eram sujeitos ao imposto de mais-valias, designadamente os decorrentes da alienação onerosa de prédios que não fossem qualificados como terrenos para construção ou os que não constituíssem elementos do ativo imobilizado das empresas ou de bens ou valores por elas mantidos como reserva ou para fruição (cfr. o artigo 1.º, do Código do Imposto de Mais-Valias). Em qualquer dos casos, fica a cargo do contribuinte provar que os bens alienados foram por si adquiridos em data anterior à entrada em vigor do Código do IRS, “através de qualquer meio de prova legalmente aceite”.

II – Dos elementos de prova oferecidos pelo Requerente não decorre, com suficiente grau de probabilidade que, para efeitos fiscais, a fração autónoma objeto de tributação tivesse sido por si adquirida, por tradição ou entrega, em 1988, recaindo os rendimentos obtidos com a sua alienação onerosa em 2020, no âmbito de sujeição dos rendimentos de mais-valias, nos termos do artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do Código do IRS.

III – O ponto de partida para a determinação do lucro tributável das empresas, pessoas coletivas ou singulares que, por opção ou por determinação legal, disponham de contabilidade organizada, é precisamente a sua contabilidade, que permite o registo de todos os factos que provocam alterações no património e resultados da empresa, embora com as correções previstas no Código do IRC, segundo o modelo da dependência parcial do balanço acolhido pelo n.º 1 do artigo 17.º desse Código. 

IV – No que respeita ao prédio rústico, não dispõe a AT de elementos que lhe permitam confirmar a sua afetação à atividade empresarial do Requerente; no entanto, cabia a este exercer a atividade probatória dos factos que servem de fundamento ao pedido de pronúncia arbitral, o que não logrou fazer com base na sua contabilidade, prova documental idónea a demonstrar a realidade dos factos económicos com relevância fiscal na vida das empresas.

V – Não tendo o Requerente produzido tal prova, não podem os rendimentos provenientes da alienação do prédio rústico identificado nos autos ser tributados como rendimentos da Categoria B, reconduzindo-se à previsão da norma de incidência do artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do Código do IRS.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

Os árbitros, Prof. Doutor Nuno Cunha Rodrigues (árbitro presidente), Dr.ª Ana Rita do Livramento Chacim e Dr.ª Mariana Vargas (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 31 de maio de 2022, acordam no seguinte:

 

 

I.    RELATÓRIO

 

Em 18 de março de 2022, A..., com o NIF..., residente na Rua ..., n.º ..., ..., ...-..., Lisboa (doravante designado por Requerente), veio, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), requerer a constituição de Tribunal Arbitral, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante AT ou Requerida), informando não pretender utilizar a faculdade de designar árbitro.

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Ex.mº Senhor Presidente do CAAD em 21 de março de 2022 e automaticamente notificado à AT, e, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral coletivo, tendo estes comunicado a aceitação do encargo no prazo aplicável, sem oposição das Partes.

 

A. Objeto do pedido:

O Requerente pretende a declaração de ilegalidade e a consequente anulação parcial da liquidação oficiosa de IRS n.º 2021..., referente ao ano de 2020 e com data limite de pagamento em 11 de janeiro de 2022, no valor global de € 165 023,24, que se encontra em fase de cobrança coerciva no processo de execução fiscal n.º ...2022..., suspenso com dispensa parcial de prestação de garantia.

Cumulativamente, pede o Requerente reembolso do montante pago, pela quantia de € 164.912,79, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos do n.º 1 do artigo 43.º, da LGT.

O Requerente atribui ao pedido o valor económico de € 164 912,79, equivalente ao valor do imposto cuja anulação pretende.

 

Síntese da posição das Partes

 

a)  Do Requerente:

 

O Requerente fundamenta o pedido nos factos e razões que, sucintamente, se descrevem:

 

i)    A liquidação de IRS do ano de 2020, que impugna por ilegal, teve por base a errada inclusão no anexo G da declaração oficiosa elaborada pela AT, da alienação onerosa de dois imóveis de sua propriedade – uma fração autónoma em Lisboa e um prédio rústico no concelho de ... .

 

ii)  Quanto ao prédio urbano:

(1)       A fração autónoma sita em Lisboa foi por si adquirida em 1988, embora a escritura pública de compra e venda apenas tivesse sido formalizada em 24 de maio de 1990;

(2)       Em 30 de março de 1988 foi celebrado contrato promessa de compra e venda sobre o imóvel entre o pai do Requerente e os promitentes-vendedores, sendo que o pai do Requerente estava a agir em nome do Requerente, verdadeiro futuro adquirente do imóvel);

(3)       Neste contrato foi determinando que a escritura pública seria obrigatoriamente celebrada até, no máximo, ao dia 30 de maio de 1988 e que o remanescente do preço seria pago até essa data, quer a escritura se celebrasse ou não;

(4)       Mais ficou estabelecido que caso não conviesse ao promitente vendedor celebrar a escritura até à referida data, emitiria esse mesmo promitente vendedor procuração irrevogável ao promitente comprador para celebrar a escritura, mandato que foi constituído em 11 de maio de 1988;

(5)       O preço de aquisição do imóvel ficou integralmente saldado em 16 de maio de 1988;

(6)       Em qualquer caso, o Requerente ficou logo após a celebração do contrato promessa de compra e venda com a posse do imóvel, nele tendo efetuado obras e dado o mesmo para arrendamento;

(7)       Ao verificar-se a tradição do imóvel considera-se que existiu aquisição ou alienação, conforme os casos, consubstanciando um facto tributável, quer em sede de IRS, quer em sede de IMT;

(8)       Por entender que a alienação do imóvel está excluída de IRS, nos termos do n.º 1 do artigo 5.º, do Decreto-Lei n.º 442-A/88 de 30 de novembro, o Requerente não incluiu a alienação na declaração Modelo 3 de IRS referente a 2020;

(9)       Porém, não restam dúvidas de que a aquisição do imóvel pelo Requerente se verificou em março de 1988, tendo o Requerente cumprido na totalidade o ónus do artigo 5.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 442-A/88 de 30 de novembro, de provar a aquisição dos bens em data anterior à entrada em vigor do Código do IRS.

 

iii)  Quanto ao prédio rústico:

 

(1)       O Requerente explorou por mais de 30 anos o terreno rústico sito em Vila Velha de Ródão, no âmbito da sua atividade agrícola;

(2)       O referido imóvel integrou a herança indivisa aberta por óbito de sua mãe, ocorrido em 2001, apenas partilhada em 2019, tendo então sido adjudicado ao Requerente;

(3)       Ora, a alienação de um imóvel afeto a uma atividade agrícola deve ser tributada como mais-valia no âmbito dessa mesma atividade, na categoria B, e nunca na esfera individual do contribuinte, em categoria G, como pretende a AT;

(4)       A tributação dessas mais-valias é operada no conjunto dos restantes ganhos e perdas que constituem o resultado líquido do exercício, determinado com base na contabilidade do Requerente, sendo sujeitas às regras do Código do IRC, nos termos do artigo 32.º do Código do IRS;

(5)       Tendo o Requerente perdas a reportar, transitadas de 2019, no valor de € 316 125,55, as mesmas teriam sempre que ser consideradas, o que consome a totalidade da mais-valia resultante da alienação do imóvel.

 

O Requerente juntou ao pedido de pronúncia arbitral (adiante PPA) prova documental (constituída por 9 documentos), requerendo a produção de prova testemunhal.

 

 

b)  Da Requerida:

Notificada nos termos e para os efeitos previstos no artigo 17.º, do RJAT, a AT apresentou, em 1 de julho de 2022, a sua resposta e fez juntar o processo administrativo (PA), vindo defender a legalidade e a manutenção do ato tributário impugnado, com os fundamentos seguintes:

 

i)    O Requerente, sem lhe assistir razão, pretende que a transmissão onerosa do imóvel urbano sito no concelho de Lisboa não se encontra sujeita a tributação, por ter sido adquirido em 1988 e estar abrangida pelo regime transitório do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de novembro, que aprovou o Código do IRS, mais pretendendo que as mais-valias obtidas com a alienação do imóvel rústico inscrito na matriz da freguesia e concelho de ... não deveriam ser tributadas em sede de categoria G, mas sim, alegando que o mesmo se encontrava afeto à atividade agrícola, tributados no âmbito da referida atividade;

 

ii)  Quanto ao prédio urbano:

 

(1)       O contrato promessa de compra e venda do imóvel foi assinado pelo pai do Requerente na qualidade de promitente comprador, em seu próprio nome e não no uso de poderes que lhe hajam sido conferidos, poisem nenhum ponto desse contrato vem referido que o pai do Requerente atuou em nome e em representação deste;

(2)       Os recibos de quitação foram emitidos a favor do pai do Requerente, promitente comprador, assim como a procuração irrevogável foi outorgada a favor e no interesse do pai do Requerente;

(3)       Os ganhos obtidos com a alienação do imóvel, tendo a sua aquisição pelo Requerente ocorrido em 24.05.1990, já após a entrada em vigor do Código do IRS, não se mostram excluídos de tributação, por não lhes ser aplicável o disposto no artigo 5º do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de novembro;

(4)       Nos termos do disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 10º do Código do IRS, constituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem de alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis, rendimentos que se consideram obtidos no momento da alienação, ou seja, no momento da celebração da escritura de compra e venda (n.º 3 do artigo 10º do Código do IRS);

iii)  Quanto ao prédio rústico: 

 

(1)       O requerente alega que este prédio está afeto à sua atividade agrícola, juntando aos autos cópia da “situação fiscal integrada”, onde constam as atividades exercidas, os códigos de atividade (um principal e dois secundários), o tipo de contabilidade (organizada por opção informatizada), documento que não prova a afetação daquele imóvel rústico em concreto às atividades exercidas;

(2)       Caso o imóvel estivesse afeto à atividade, a sua alienação deveria estar refletida na contabilidade; porém, na declaração de rendimentos entregue em 20.06.2021 pelo requerente, essa situação não está expressa no anexo C;

(3)       Cabe ao Requerente a prova de que este prédio se encontrava afeto ao exercício da sua atividade, reconhecido contabilisticamente como ativo;

(4)       Ainda que o prédio estivesse afeto à atividade prosseguida pelo Requerente, a fatura junta ao PPA como documento n.º 6 não concorre igualmente para os seus interesses, pois não indica nem os serviços fornecidos, nem os materiais aplicados, nem em que local os mesmos seriam entregues;

(5)       Acresce que, sendo o Requerente possuidor de vários terrenos rústicos na freguesia e concelho de ..., podendo em qualquer deles (ou em todos) exercer as atividades agrícolas, não fica demonstrado que aquelas despesas, em concreto, foram realizadas no terreno alienado em 2020 (e não em algum dos outros terrenos de que era proprietário);

(6)       Pelo que, não estando demonstrado nos autos que o terreno rústico estava afeto à atividade do requerente, a tributação dos ganhos com a sua alienação deverá ser feita nos termos gerais, que o mesmo é dizer, no âmbito da categoria G do IRS;

(7)       Tendo o apuramento do imposto sido o correto, da liquidação não resultou montante de imposto superior ao legalmente devido, nem o Requerente pagou ainda, total ou parcialmente, o valor apurado em sede da liquidação controvertida, resultando inoportuno o pedido de juros indemnizatórios.

 

*

Pelo Despacho Arbitral de 4 de julho de 2022, foi o Requerente notificado para, no prazo de 10 dias, informar se mantinha a pretensão de audição das testemunhas arroladas e, em caso afirmativo, referir a que matéria de facto, em concreto, pretendia a recolha de depoimentos testemunhais.

 

Na mesma data anterior foi registada a entrada de requerimento do Requerente comunicando a constituição de novo Mandatário, com junção da respetiva procuração forense, motivada pelo falecimento do Mandatário anteriormente constituído no processo.

 

Por requerimento de 15 de julho de 2022, o Requerente informou manter a pretensão de audição das testemunhas arroladas, indicando a matéria de facto sobre que pretendia a recolha dos respetivos depoimentos tendo, pelo Despacho Arbitral de 18 de julho de 2022, sido designado o dia 23 de setembro de 2022 para realização da reunião a que se refere o artigo 18.º, do RJAT.

 

Em 7 e 20 de setembro de 2022, o Requerente apresentou pedido de junção de documentos, bem como da produção de prova por declarações de parte, nos termos do artigo 466.º, do Código de Processo Civil. 

 

Nos termos do Despacho Arbitral datado de 20 de setembro de 2022, foi deferido o pedido de prestação de declarações de parte, remetendo-se a apreciação do pedido de junção de documentos para a reunião a que se refere o artigo 18.º, do RJAT.

 

No dia 23 de setembro de 2022, teve lugar na sede do CAAD, em Lisboa, a reunião do Tribunal Arbitral, na qual a Representante da Requerida participou por videoconferência, estando presentes os demais participantes e em que, perante a anuência da Representante da AT, foi admitida a junção do documento apresentado pelo Requerente em 7 de setembro de 2022 e foram recolhidos os depoimentos de uma das testemunhas arroladas e do Requerente, tendo o Representante deste declarado prescindir da inquirição da outra testemunha inicialmente indicada.

O Representante do Requerente requereu a junção aos autos da escritura de compra e venda e certidão predial do prédio urbano identificado no pedido de pronúncia arbitral, tendo sido, com a concordância da Representante da Requerida, notificado para o fazer, no prazo de 5 dias.

 

            O Tribunal Arbitral notificou as partes para apresentarem alegações escritas pelo prazo sucessivo de 10 dias a contar da notificação de junção da escritura pública e certidão antes mencionadas e com início no Requerente, sendo o prazo de vista pela Requerida coincidente com o prazo para as suas alegações escritas.

 

As partes foram ainda notificadas de que a Decisão Arbitral seria proferida até ao dia 29 de novembro de 2022, advertindo-se o Requerente para o oportuno cumprimento do disposto no n.º 4 do artigo 4.º, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

Dentro dos prazos designados, o Requerente remeteu aos autos os documentos para cuja junção havia sido notificado e ambas as partes produziram alegações escritas, nas quais reiteraram as respetivas posições iniciais.

 

 

II. SANEAMENTO

1.   O Tribunal Arbitral Coletivo foi regularmente constituído em 31 de maio de 2022, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro.

2.   As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

3.   O processo não padece de vícios que o invalidem.

4.   Não foram invocadas exceções.

III.         FUNDAMENTAÇÃO

III.1 MATÉRIA DE FACTO

Na sentença, o juiz discriminará a matéria provada da não provada, fundamentando as suas decisões (artigo 123.º, n.º 2, do CPPT, subsidiariamente aplicável ao processo arbitral tributário, nos termos do artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.

 

A matéria factual relevante para a compreensão e decisão da causa, após exame crítico da prova documental junta ao pedido de pronúncia arbitral (PPA) e do processo administrativo (PA), fixa-se como segue:

 

A.  Factos Provados:

1.   O Requerente iniciou a sua atividade empresarial em janeiro de 1987, exercendo desde 30 de julho 2010 as atividades a que correspondem o CAE (principal) 1500 – Agricultura e Produção Animal Combinadas e o CAE (secundário) 74900 – Outras Atividades de Consultadoria, Científicas, Técnicas e Similares, N. E. e, desde 2 de janeiro de 2019, a atividade com o CAE (secundário) 01610 – Atividades de Serviços Relacionados com a Agricultura, com sede em...–..., dispondo de contabilidade organizada, por opção, com efeitos a partir de 1 de janeiro de 2015 (cfr. Doc. n.º 4 junto ao PPA);

2.   Em 30 de março de 1988, entre B... e outras na qualidade de promitentes vendedoras e C... na qualidade de promitente comprador, foi celebrado um contrato promessa de compra e venda da fração autónoma designada pela letra “I”, correspondente ao quarto andar direito do prédio urbano sito na Avenida ..., n.º ..., em Lisboa, então inscrito sob o artigo ... da freguesia de..., concelho de Lisboa, pelo preço de nove milhões e quinhentos mil escudos (Cfr. Doc. n.º 1 junto ao PPA);

3.   Em 11 de maio de 1988, as promitentes vendedoras outorgaram procuração irrevogável a favor do promitente comprador da fração autónoma identificada no ponto anterior, ao qual atribuíram poderes para “outorgar a necessária escritura; Para requerer quaisquer actos de Registo Predial, efectuar quaisquer contratos de promessa de compra e venda; para requerer praticar e assinar tudo o que necessário se torne aos actos atrás mencionados”, “podendo o mandatário fazer o negócio consigo próprio” (cfr. Doc. n.º 2 junto ao PPA);

4.   Em 30 de março de 1988 e em 16 de maio de 1988, as promitentes vendedoras emitiram recibos de quitação a favor do promitente comprador, a título de “Reforço de Sinal” e de “Reforço de Sinal e Último Pagamento”, respetivamente (cfr. Doc. n.º 3 junto ao PPA);

5.   No dia 2 de maio de 1990, entre o Requerente na qualidade de comprador e C..., seu Pai, na qualidade de procurador das vendedoras, foi celebrada escritura pública de compra e venda, pelo preço de sete milhões de escudos, da fração autónoma identificada em 2., exarada a folhas 31 a 32 verso, do livro de notas de escrituras diversas Quatro I do então Vigésimo Cartório Notarial de Lisboa (cfr. Doc. junto pelo Requerente em 28 de setembro de 2022);

6.   Em 31 de agosto de 2019, pela escritura de partilha dos bens da herança da mãe do Requerente, lavrada no Cartório Notarial de ..., foi a este adjudicado, entre outros, o prédio rústico “composto por olival, cultura arvense em olival, construções rurais, oliveiras, sobreiros, mato, montado de sobro ou sobreiral, pinhal, com a área de setecentos e doze mil, trezentos e vinte metros quadrados sito em ..., freguesia e concelho de ... (…) inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo..., secção CL-CL1 (…)” (cfr. Doc. n.º 5 junto ao PPA);

7.   Em 20 de junho de 2021, o Requerente apresentou a declaração modelo 3 de IRS referente aos rendimentos do ano de 2020, registada sob o n.º ...-2020-... -..., composta pelo respetivo rosto, por um Anexo A (rendimentos de pensões), um Anexo C e um Anexo H (cfr. cópia junta ao PA);

8.   No Anexo C à referida declaração modelo 3 de IRS, referente a rendimentos agrícolas, silvícolas e pecuários – CAE 1500, o Requerente declarou o prejuízo fiscal de - € 411 285,53 e, no quadro 7 do mesmo Anexo, não ter havido, no exercício de 2020, alienação ou desafetação de imóveis (cfr. cópia junta ao PA);

9.   Na sequência da entrega da primeira declaração de IRS do ano de 2020, foi emitida, em 23 de junho de 2021, a liquidação n.º 2021..., que apurou imposto a pagar, relativo a tributações autónomas da Categoria B, da quantia de € 110,45 e perdas a reportar da Categoria B, no valor de € 742 122,80 (cfr. cópia da demonstração da liquidação junta ao PA);

10.              No âmbito de um procedimento de gestão de divergências relativas a alienação de imóveis, a Requerida elaborou em 12 de novembro de 2021 a declaração oficiosa ... - 2020 -..., constituída por um Anexo A, um Anexo C e um Anexo H, a que foi acrescido um Anexo G (cfr. cópia junta ao PA);

11.              No Quadro 4 do anexo G da declaração oficiosa, foram inscritos os seguintes elementos:

12.              Tendo por base a declaração oficiosa elaborada pela AT, foi emitida, em 24-11-2021, a liquidação de IRS n.º 2021..., pelo valor global de € 165 023,24, objeto dos presentes autos, na qual foram apuradas perdas a reportar da Categoria B, no valor de € 742 122,80 (cfr. cópias da demonstração da liquidação e acerto de contas juntas ao PA);

13.              Em 16 de novembro de 2021, o Requerente procedeu à entrega da declaraçao modelo 3 de substituição ...-2020-..., integrando os Anexos A, C, G1 e H, em que (cfr. cópia junta ao PA):

a.   No Quadro 7 do Anexo C, o Requerente declarou a alienação do prédio rústico inscrito sob o artigo ... da Secção CL-CL1, da freguesia com o código ..., pelo valor de € 340 000,00;

b.   No Quadro 5 do Anexo G1 – Mais-Valias não Tributadas, foi declarado:

14.              A declaração de substituição entregue em 16 de novembro de 2021 foi, em 10 de dezembro de 2021 e a pedido do Requerente, convolada na reclamação graciosa n.º ...2021..., permanecendo na situação de “não liquidável” (cfr. PA);

15.              Em 27 de janeiro de 2022, foi instaurado o processo de execução fiscal n.º ...2022..., para cobrança coerciva do valor da liquidação de IRS do ano de 2020, suspenso com dispensa parcial de prestação de garantia, em que, à data da Resposta da Requerida, não tinha sido anulada ou regularizada qualquer quantia (cfr. PA e Doc. n.º 7 junto ao PPA);

16.              Por requerimento de 7 de setembro de 2022, o Requerente pediu a junção aos autos a fatura FT 2020/80, emitida em seu nome em 14 de agosto de 2020 pela sociedade D..., Ld.ª, com sede em Penamacor, referente a trabalhos efetuados na “Propriedade ... CL-CL01” de “Limpeza de mata”, “Drenagem em 22ha de terreno”, “Ripagem” e “Arranjo/reparação de cercas em 8 Km”, no valor global de € 25 970,00, junção admitida após pronúncia da Requerida, na reunião realizada em 23 de setembro de 2022.

 

 

B. Factos não provados:

Com interesse para a decisão da causa, não se provou:

a.   A aquisição pelo Requerente da fração autónoma identifica no PPA, em data anterior à da entrada em vigor do Código do IRS;

b.   A afetação do prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo...da Secção CL-CL1, freguesia e concelho de ..., à atividade agrícola prosseguida pelo Requerente.

 

 

C. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada:

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada. 

 

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. o artigo 596.º, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

Os factos dados como provados e como não provados resultaram da análise crítica dos documentos juntos ao PPA e ao PA, bem como da posição assumida pelas Partes nos respetivos articulados e nos depoimentos recolhidos no âmbito da reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT.

 

A motivação para dar como não provados os factos identificados supra será desenvolvidamente exposta em sede de apreciação, por se encontrar estreitamente conexionada com a qualificação jurídica dos factos a que se reportam.

 

 

 

III.2 DO DIREITO

Apreciação

2.1. As questões decidendas

 

O Requerente contesta a legalidade da liquidação oficiosa referente aos rendimentos obtidos no ano de 2020, por discordar do enquadramento jurídico-tributário, na Categoria G de IRS, atribuído pela Requerida à alienação de dois bens imóveis de sua propriedade.

 

Por um lado, entende o Requerente que os rendimentos provenientes da alienação onerosa de uma fração autónoma que sustenta ter adquirido em data anterior à entrada em vigor do Código do IRS beneficiariam da exclusão de tributação prevista no artigo 5.º, do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de novembro​, que aprovou aquele Código e que estabelece um “Regime transitório da categoria G”.

 

Por outro lado, defende o Requerente que os rendimentos obtidos com a venda do prédio rústico identificado nos autos não podem ser tributados como rendimentos da Categoria G, porquanto se trata de um prédio afeto à sua atividade empresarial, devendo as mais-valias realizadas ser enquadradas na Categoria B de rendimentos.

 

Por se tratar de realidades distintas a que a AT deu idêntico tratamento, contrário à pretensão do Requerente, procederá o Tribunal Arbitral à sua análise em separado, a fim de aferir da invocada ilegalidade da liquidação impugnada, por vício de violação de lei.

 

 

2.1.1. Enquadramento dos rendimentos obtidos com a alienação onerosa do prédio urbano

 

O regime transitório da Categoria G, tal como definido pelo artigo 5.º, do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de novembro[1], que aprovou o Código do IRS, determina a exclusão da tributação, neste imposto, dos ganhos que não eram sujeitos ao imposto de mais-valias, criado pelo código aprovado pelo Decreto-Lei n.º 46 373, de 9 de junho de 1965, designadamente os decorrentes da alienação onerosa de prédios que não fossem qualificados como terrenos para construção ou os que não constituíssem elementos do ativo imobilizado das empresas ou de bens ou valores por elas mantidos como reserva ou para fruição (cfr. o artigo 1.º, do Código do Imposto de Mais-Valias).

 

Em qualquer dos casos, fica a cargo do contribuinte provar que os bens alienados foram por si adquiridos em data anterior à entrada em vigor do Código do IRS, “através de qualquer meio de prova legalmente aceite” (cfr. o n.º 2 do artigo 5.º, do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de novembro).

 

Para provar a aquisição da fração autónoma identificada nos autos em data anterior à entrada em vigor do Código do IRS, louva-se o Requerente no conceito fiscal de transmissão, diferente do civilístico, bem como na prova documental, testemunhal e por declarações de parte oferecida.

 

Argumenta o Requerente que, em sede de IRS, considera-se que, para efeitos de tributação de mais-valias da categoria G, existe um ganho resultante da alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis no momento da transmissão da posse (artigo 10.º, n.º 3, alínea a) do Código do IRS) e que, também na esfera do IMT se considera que existe transmissão de bem imóvel quando é celebrado contrato promessa de compra e venda com tradição para o promitente-adquirente ou quando este usufrua dos bens, nos termos do artigo 2.º, n.º 2, alínea a), do Código do IMT.

 

Conclui, assim, que tendo havido tradição do imóvel, do qual tomou imediatamente posse em 1988, não haveria lugar à tributação dos ganhos obtidos com a sua alienação onerosa.

 

Embora o n.º 2 do artigo 11.º, da Lei Geral Tributária (LGT) tenha vindo clarificar que os termos próprios de outros ramos do direito inseridos nas normas fiscais devem ser interpretados no mesmo sentido que aí têm, “salvo se outro decorrer diretamente da lei”, o certo é que antes da existência daquela norma já o legislador tributário, gozando de uma ampla independência qualificadora, procedia à adaptação de conceitos de outros ramos do direito, tendo sobretudo em conta a substância económica dos factos para a construção dos seus próprios institutos.

 

Assim é que, já em data anterior à entrada em vigor do Código do IRS (e, por maioria de razão, do Código do IMT), o artigo 2.º, § 1.º, regra 2.º, do Código da Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doações (Código da Sisa) sujeitava a este imposto “As promessas de compra e venda ou de troca de bens imobiliários, logo que verificada a tradição para o promitente comprador ou para os promitentes permutantes, ou quando aquele ou estes estejam usufruindo os bens”.

 

A tradição dos bens, enquanto “transmissão ou entrega de qualquer coisa por uma a outra pessoa”, que “Em relação a bens imóveis (…) é mais simbólica do que real”, pressupõe “o abandono do gozo da coisa ou do direito e ainda a prática de quaisquer actos sobre a mesma passando a ser exercidos pelo novo possuidor que, por sua vez, se há-de comportar como verdadeiro proprietário e com a intenção de fazer sua a coisa ou o direito possuído[2].

 

Não obstante a compra e venda de um imóvel, como forma de transmissão civil do direito de propriedade sobre o mesmo, seja um contrato formal que, à data da alegada aquisição da fração autónoma de que se trata, apenas seria válido se fosse celebrado por escritura pública (artigo 875.º, do Código Civil, na sua redação inicial), dado o conceito fiscal de transmissão, a provar-se a tradição do imóvel prometido vender e a sua posse pelo Requerente em 1988, estariam os ganhos obtidos com a respetiva venda excluídos de tributação em IRS.

 

Como resulta do probatório supra, a prova documental junta aos autos não aproveita à pretensão do Requerente, no que respeita à aquisição, para efeitos fiscais, da referida fração autónoma, em data relevante para a exclusão da tributação dos rendimentos de mais-valias.

 

Efetivamente, no contrato promessa de compra e venda daquele imóvel é o Pai do Requerente quem figura como promitente comprador, tendo os recibos de quitação do pagamento do sinal, reforço de sinal e último pagamento sido emitidos em nome do Pai do Requerente, nem consta de tal contrato e respetivos aditamentos, que aquele tivesse agido em representação do Requerente.

 

Deste modo, o único documento que titula a transmissão da propriedade do dito imóvel para o Requerente é a escritura de compra e venda celebrada em 2 de maio de 1990, data posterior à entrada em vigor do Código do IRS.

 

Porém, atendendo ao conceito de transmissão próprio do direito fiscal e traduzindo-se a tradição no exercício de poderes de facto sobre a coisa, não carece a mesma de ser provada por meio de escritura pública, tanto mais que, nos termos do artigo 115.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), aplicável ao processo arbitral tributário ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, em processo de impugnação judicial, de que o processo arbitral é meio alternativo, “São admitidos os meios gerais de prova”, entre os quais a prova testemunhal e a prova por declarações de parte (artigos 396.º do Código Civil e 466.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (CPC), respetivamente), segundo o princípio da universalidade dos meios de prova.

 

O Requerente, contrariando a prova documental, alega, em síntese, ser proprietário da fração autónoma já identificada desde 1988, porquanto, (i) embora tenha sido seu Pai a efetuar o pagamento do respetivo preço, o fez com o produto da venda de um apartamento em ..., que considera ter-lhe pertencido desde a data da construção num terreno da propriedade dos Pais, por estes adquirido à empresa construtora (ii) fez obras no apartamento, a cargo de um seu amigo arquiteto, para o que contraiu um financiamento no valor de 7 000 ou de 7500 contos junto do Banco ... de ... (iii) findas as obras que duraram cerca de dois anos, foi o prédio dado de arrendamento a um outro seu amigo, entre 1990 e 1991, quando o passou a habitar.

 

A testemunha inquirida, irmão do Requerente, fez igualmente alusão à venda do apartamento de ..., que os Pais sempre disseram pertencer ao Requerente embora estivesse em nome dos Pais (gravação – parte 1 – 6:32 a 7:03), pois a intenção destes era que dos três apartamentos então adquiridos à empresa construtora, ficasse um para cada um dos três filhos (gravação – parte 1 – 22:32), tendo sido a venda deste apartamento de ... a fonte de financiamento para a aquisição do apartamento de Lisboa. 

 

A testemunha aludiu ainda às obras no apartamento de Lisboa, a cargo de um arquiteto amigo do Requerente, que terão sido custeadas por este, embora questionado sobre a forma do respetivo pagamento, tenha afirmado desconhecer como e quando havia sido efetuado (gravação – parte 1 – 27:33 a 28:00).

 

As provas, entendidas como instrumentos ou fontes de prova, têm por função demonstrar a realidade dos factos (artigo 341.º, do Código Civil); porém, a prova como resultado “não é certeza lógica, mas tão só um alto grau de probabilidade, suficiente para as necessidades práticas da vida (…)[3]”, vigorando no processo tributário o princípio da livre apreciação da prova, “segundo o qual o juiz aprecia livremente as provas conforme a sua prudente convicção acerca de cada facto (…) deve[ndo] ter presente que não se lhe exige uma convicção de absoluta certeza, basta que a sua convicção assente num juízo de suficiente probabilidade ou verosimilhança.”[4].

 

Ora, face aos depoimentos produzidos, em que são frequentemente utilizados pelos intervenientes o pronome pessoal “nós” e o pronome possessivo “nosso”, referindo-se ao conjunto familiar pais/filhos, à declaração do Requerente de que o pagamento do preço do apartamento de Lisboa foi efetuado pelo seu Pai através de cheque, “que era de dinheiro nosso” (gravação  parte 1 –  33:58), “com o nosso dinheiro” (gravação  parte 2 –  29:10),  não pode o Tribunal Arbitral dar como provada a tradição para o Requerente da fração autónoma alienada, em data anterior à entrada em vigor do Código do IRS, por não ser possível descortinar, com um grau de probabilidade suficiente, se tais depoimentos se reportam a factos (propriedade do Requerente sobre o apartamento de ... ou do dinheiro para aquisição do apartamento de Lisboa, em 1988), se a meras intenções (de doação pelos Pais de bens da sua titularidade para a um dos filhos).

 

Por um lado, não é identificado o imóvel sito em ... de que o Requerente alegadamente terá sido proprietário e com o produto de cuja venda terá procedido ao pagamento da fração autónoma de que tratam dos autos, ficando a dúvida sobre a titularidade do direito de propriedade daquele primeiro prédio – se do Requerente, se do Requerente em compropriedade com Pais e irmãos, se exclusivamente dos Pais do Requerente. 

 

A propriedade de um imóvel é provada através do registo predial, que tem por função “dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário”, conforme decorre do disposto no artigo 1.º, do Código do Registo Predial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 224/84, de 6 de junho, que entrou em vigor em 1 de outubro do mesmo ano. Estando sujeitos a registo os factos jurídicos que determinam a aquisição do direito de propriedade sobre imóveis, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do Código do Registo Predial), cabia ao Requerente oferecer aos autos prova da propriedade e posterior venda daquele prédio, sem que o tenha feito.

 

Também não resulta claro dos depoimentos prestados o motivo pelo qual, sendo o dinheiro para pagamento do preço do apartamento de Lisboa, cuja alienação está em causa nos autos, da titularidade do Requerente, à data maior de idade e exercendo uma atividade profissional remunerada, se encontrava depositado numa conta bancária movimentada por seu Pai e, eventualmente em nome deste, através de cheque.

 

Por outro lado, afirma o Requerente ter recorrido a um empréstimo bancário de cerca de 7000 contos (o que, à taxa de conversão de 200,482, equivale à quantia de € 34 915,85) para financiamento das obras efetuadas no apartamento de Lisboa entre 1988 e 1990, sem qualquer menção à modalidade de empréstimo contraído, garantia eventualmente prestada ou dispensa de prestação de garantia.

 

Contrariamente ao mútuo civil, o mútuo bancário é um mútuo consensual que se concretiza por crédito em conta e que, em regra, é acompanhado da prestação de garantia, pessoal ou real, a fim de minimizar o risco de incumprimento do mutuário[5].

 

No entanto, tratando-se de um empréstimo destinado à beneficiação ou recuperação de uma habitação, ainda que secundária ou para arrendamento, consubstanciaria um contrato bancário especialmente regulado, ao tempo pelo Decreto-Lei n.º 328-B/86, de 30 de setembro, em que a garantia a prestar seria a hipoteca da habitação a recuperar, conforme o artigo 23.º, do mencionado diploma.

 

Não tendo sido carreados para os autos elementos de prova da existência ou destino do empréstimo vindo de referir ou outro comprovativo da realização de obras na fração autónoma alienada, nas datas indicadas pelo Requerente, não é possível emitir, por esta via, juízo de probabilidade da tradição daquele imóvel para a sua esfera patrimonial, em data anterior à entrada em vigor do Código do IRS.

 

Nem serve tal escopo o alegado arrendamento da mencionada fração autónoma que, de acordo com a declaração do Requerente, vigorou entre 1990 e 1991, após a data da entrada em vigor do Código citado.

 

 

2.1.2. Enquadramento dos rendimentos obtidos com a alienação onerosa do prédio rústico

 

Constituem rendimentos de mais-valias enquadráveis na Categoria G de IRS os incrementos patrimoniais que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem da alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis (artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do Código do IRS).

 

Por seu turno, são atraídos para a Categoria B os ganhos obtidos com a alienação onerosa de bens imóveis afetos a uma atividade empresarial (artigo 3.º, n.º 2, alínea a), do Código do IRS).

 

O Requerente invoca a sua qualidade de empresário agrícola, atividade que desde 1986 exerce no prédio rústico acima melhor identificado, muito embora este apenas passasse a ser sua propriedade em 31 de agosto de 2019, data em que foi celebrada a escritura de partilha dos bens da herança de sua Mãe na qual o mesmo lhe foi adjudicado.

 

Defende o Requerente que estando o referido prédio rústico afeto à sua atividade empresarial, os rendimentos obtidos com a respetiva venda, em 2020, deveriam ser qualificados como rendimentos da Categoria B e como tal tributados, o que permitiria a compensação dos ganhos assim obtidos com a dedução das perdas a reportar de exercícios anteriores, não havendo, por isso, lugar a qualquer liquidação adicional de imposto.

 

De acordo com os elementos do probatório, o Requerente dispõe de contabilidade organizada, regime de determinação da matéria coletável pelo qual optou ao abrigo do disposto no artigo 28.º, do Código do IRS, com efeitos a partir de 1 de janeiro de 2015, ficando sujeito às obrigações contabilísticas a que aludem os artigos 117.º, do Código do IRS e 123.º, do Código do IRC[6], e sendo-lhe aplicáveis, por remissão do artigo 32.º, do Código do IRS, a generalidade das regras estabelecidas pelo Código do IRC para a determinação do lucro tributável.

 

Ora, o ponto de partida para a determinação do lucro tributável das empresas, pessoas coletivas ou pessoas singulares que, por opção ou por determinação legal, disponham de contabilidade organizada, é precisamente a sua contabilidade, que permite o registo sistemático de todos os factos que provocam alterações no património, das operações, resultados e situação financeira da empresa, embora com as correções previstas no Código do IRC, segundo o modelo da dependência parcial do balanço acolhido pelo n.º 1 do artigo 17.º desse Código.

 

Nesta senda, são definidas como mais-valias ou menos-valias realizadas da Categoria B, nos termos do artigo 46.º, n.º 1, do Código do IRC, “ (…) os ganhos obtidos ou as perdas sofridas mediante transmissão onerosa, qualquer que seja o título por que se opere e, bem assim, os decorrentes de sinistros ou os resultantes da afetação permanente a fins alheios à atividade exercida, respeitantes a: a) Ativos fixos tangíveis (…)”, sendo o seu valor apurado, nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, “pela diferença entre o valor de realização, líquido dos encargos que lhe sejam inerentes e o valor de aquisição, deduzido das depreciações e amortizações aceites fiscalmente, das perdas por imparidade e outras correções de valor previstas nos artigos 28.º-A, 31.º-B e ainda dos valores reconhecidos como gasto fiscal nos termos do artigo 45.º-A, sem prejuízo do disposto na parte final do n.º 3 do artigo 31.º-A”.

 

A definição de ativos fixos tangíveis é dada pela NCRF 7 como sendo “itens tangíveis que; a) sejam detidos para uso na produção ou fornecimento de bens ou de serviços, para arrendamento a outros ou para fins administrativos; e b) se espera que sejam usados durante mais do que um período”.

 

Ou seja, os ativos fixos tangíveis, cuja alienação é suscetível de gerar mais ou menos-valias da Categoria B de IRS, não são mais do que os bens afetos à atividade do sujeito passivo, como tal registados na sua contabilidade.

 

Pelos motivos já enunciados, a prova da afetação do prédio rústico à atividade empresarial exercida deverá ser feita com base nos registos contabilísticos atinentes a essa mesma atividade.

 

2.1.3. Da (i)legalidade da liquidação de IRS referente aos rendimentos de 2020

 

As liquidações de imposto são, em regra, efetuadas com base nos elementos constantes das declarações dos contribuintes e, na falta ou vícios destas, com base em todos os elementos ao dispor da AT (cfr. o artigo 59.º, n.º 1, do CPPT), assim como é, em princípio, com base nas declarações apresentadas que a AT procede à determinação da matéria tributável dos sujeitos passivos, desde que tais declarações sejam apresentadas nos termos da lei e forneçam à administração tributária os elementos indispensáveis à verificação da sua situação tributária.

 

No caso concreto em análise, a primeira declaração modelo 3 de IRS entregue pelo Requerente, relativa aos rendimentos do ano de 2020, revelou-se omissa quanto aos dois aspetos em discussão nos autos, pois, nem no Anexo C foi evidenciada a alienação do prédio rústico que pretende estar afeto à sua atividade agrícola, nem a mesma declaração integrou o Anexo G (ou G1) referente à alienação onerosa da fração autónoma de que foi proprietário.

 

Contudo, dispondo de elementos comprovativos das vendas daqueles imóveis (designadamente por via das obrigações de cooperação que impendem sobre os notários e de outras entidades estabelecidas pelo artigo 49.º, do Código do IMT), e entendendo não terem sido devidamente sanadas as irregularidades da declaração inicial com a entrega da declaração de substituição identificada no probatório supra, assim cessando a presunção de veracidade de que gozam as referidas declarações, nos termos do artigo 75.º, n.º 2, alínea a), da LGT, a AT viria a emitir a liquidação oficiosa ora impugnada.

 

Tal como já foi referido, o ónus da prova da aquisição de um imóvel em data anterior à entrada em vigor do Código do IRS, para efeitos de exclusão da tributação em mais-valias, cabe ao contribuinte.

Porém, conforme acima exposto, dos elementos de prova oferecidos pelo Requerente não decorre, com suficiente grau de probabilidade que, para efeitos fiscais, a fração autónoma objeto de tributação tivesse sido por si adquirida, por tradição ou entrega, em 1988, recaindo os rendimentos obtidos com a sua alienação onerosa em 2020, no âmbito de sujeição dos rendimentos de mais-valias, nos termos do artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do Código do IRS.

 

No que respeita ao prédio rústico, não dispõe a AT de elementos que lhe permitam confirmar a sua afetação à atividade empresarial do Requerente; no entanto, cabia a este exercer a atividade probatória dos factos que servem de fundamento ao pedido de pronúncia arbitral, o que não logrou fazer com base na sua contabilidade, prova documental idónea a demonstrar a realidade dos factos económicos com relevância fiscal na vida das empresas. 

 

            Não tendo o Requerente produzido tal prova, não podem os rendimentos provenientes da alienação do prédio rústico identificado nos autos ser tributados como rendimentos da Categoria B, reconduzindo-se à previsão da norma de incidência do artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do Código do IRS.

 

Concluindo-se não haver prova de que o prédio rústico alienado estivesse afeto à atividade empresarial do Requerente, desnecessária se torna a análise ou pronúncia sobre os encargos com a beneficiação do mesmo, constantes das faturas com cópias juntas ao PPA e por requerimento de 7 de setembro de 2022, que apenas teriam relevância para efeitos da determinação dos rendimentos da Categoria G, nos termos do artigo 51.º, do Código do IRS.

 

Não tendo sido formulado tal pedido, nem tão pouco a título subsidiário (ónus de alegação) e não se tratando de questão de conhecimento oficioso, não se pode o Tribunal Arbitral pronunciar sobre a mesma.

 

 

 

2.2. Do pedido de juros indemnizatórios

 

Nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT. “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.”.

 

Como decorre de quanto fica exposto, o pedido de pronúncia arbitral improcede na sua totalidade, devendo a liquidação de IRS do ano de 2020 manter-se na ordem jurídica por não enfermar de qualquer erro, dela não resultando pagamento de imposto em montante superior ao legalmente devido.

 

IV. DECISÃO: 

Com base nos fundamentos enunciados supra, decide-se em, julgando o pedido de pronúncia arbitral totalmente improcedente, dele absolver a Requerida e manter na ordem jurídica a liquidação de IRS n.º 2021..., referente aos rendimentos do ano de 2020, impugnada nos autos.

 

V. VALOR DO PROCESSO: De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 164 912,79 (cento e sessenta e quatro mil, novecentos e doze euros e setenta e nove cêntimos).

 

 

 

VI. CUSTAS: Calculadas de acordo com o artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I a ele anexa, no valor de € 3 672,00 (três mil, seiscentos e setenta e dois euros), a cargo do Requerente.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 11 de novembro de 2022.

Os Árbitros,

 

 

Nuno Cunha Rodrigues

(Presidente)

 

 

Ana Rita do Livramento Chacim

(Vogal)

 

 

Mariana Vargas

(Vogal)

 

Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º, do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º, do D.L. n.º 10/2011, de 20 de janeiro.

A redação da presente decisão rege-se pelo acordo ortográfico de 1990.

 



[1] Cuja redação originária estatuía:

Artigo 5.º - Regime transitório da categoria G

1 - Os ganhos que não eram sujeitos ao imposto de mais-valias, criado pelo código aprovado pelo Decreto-Lei n.º 46373, de 9 de junho de 1965, só ficam sujeitos ao IRS se a aquisição dos bens ou direitos de cuja transmissão provêm se houver efetuado depois da entrada em vigor deste Código.

2 - Cabe ao contribuinte a prova de que os bens ou valores foram adquiridos em data anterior à entrada em vigor deste Código, devendo a mesma ser efetuada, quanto aos valores mobiliários, mediante registo nos termos legalmente previstos, depósito em instituição financeira ou outra prova documental adequada e através de qualquer meio de prova legalmente aceite nos restantes casos.

[2] Cfr. F. Pinto Fernandes e Nuno Pinto Fernandes, “Código do Imposto Municipal da Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doações” – anotado e comentado, Lisboa, Rei dos Livros, 3.ª Edição 1993, págs. 41 e 42.

[3] Cfr. Manuel de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, Limitada, 1956, pág. 180.

[4] Cfr. Cristina Flora “A Prova no Processo Tributário” [Em linha], Centro de Estudos Judiciários, 2017, disponível em https://cej.justica.gov.pt/LinkClick.aspx?fileticket=wmHi2vB6wfM%3D&portalid=30. ISBN: ...[Consultado em 10.11.2022].

 

[5] A este respeito, escreve L. Miguel Pestana de Vasconcelos, in “Direito Bancário”, Almedina, Coimbra, 2019 – Reimpressão, pág. 185: “No âmbito bancário, a instituição de crédito concede empréstimos que obteve, em particular através de depósitos, mas não só, para esse fim. Tem que se colocar numa posição em que os seus créditos venham com forte probabilidade a ser satisfeitos, limitando a sua vulnerabilidade face ao incumprimento do creditado e, em particular, à sua insolvência. Pelo que exigirá garantias. Pode mesmo condicionar a concessão do crédito à prestação prévia da garantia.

Sublinhe-se que exigência de garantias é imposta por um dever de boa gestão por parte das instituições de crédito. A concessão de mútuos (ou créditos de outra natureza) avultados sem garantias que sejam adequadas a cobrir de forma eficaz os riscos é, em princípio, atendendo ao critério do art. 75º RGICSF, um ato de má gestão.”.

[6] À data da aquisição do prédio rústico identificado nos autos, era a seguinte a redação do artigo 123.º, do Código do IRC:

“Artigo 123.º - Obrigações contabilísticas das empresas

1 — As sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, as cooperativas, as empresas públicas e as demais entidades que exerçam, a título principal, uma atividade comercial, industrial ou agrícola, com sede ou direção efetiva em território português, bem como as entidades que, embora não tendo sede nem direção efetiva naquele território, aí possuam estabelecimento estável, são obrigadas a dispor de contabilidade organizada nos termos da lei que, além dos requisitos indicados no n.º 3 do artigo 17.º, permita o controlo do lucro tributável.

2 — Na execução da contabilidade deve observar-se em especial o seguinte:

a) Todos os lançamentos devem estar apoiados em documentos justificativos, datados e suscetíveis de serem apresentados sempre que necessário;

b) As operações devem ser registadas cronologicamente, sem emendas ou rasuras, devendo quaisquer erros ser objeto de regularização contabilística logo que descobertos.

3 — Não são permitidos atrasos na execução da contabilidade superiores a 90 dias, contados do último dia do mês a que as operações respeitam.

4 — Os livros, registos contabilísticos e respetivos documentos de suporte devem ser conservados em boa ordem durante o prazo de 10 anos. 

5 — A obrigação de conservação referida no número anterior é extensiva à documentação relativa à análise, programação e execução dos tratamentos informáticos. 

6 — Os documentos de suporte previstos no n.º 4 que não sejam documentos autênticos ou autenticados podem, decorridos três períodos de tributação após aquele a que se reportam e obtida autorização prévia do diretor-geral dos Impostos, ser substituídos, para efeitos fiscais, por microfilmes que constituam sua reprodução fiel e obedeçam às condições que forem estabelecidas. 

7 - É ainda permitido o arquivamento em suporte eletrónico das faturas ou documentos equivalentes, dos talões de venda ou de quaisquer outros documentos com relevância fiscal emitidos pelo sujeito passivo, desde que processados por computador, nos termos definidos no n.º 7 do artigo 52.º do Código do IVA. 

8 — As entidades referidas no n.º 1 devem dispor de capacidade de exportação de ficheiros nos termos e formatos a definir por portaria do Ministro das Finanças. 

9 — Os programas e equipamentos informáticos de faturação dependem da prévia certificação pela Direcção-Geral dos Impostos, sendo de utilização obrigatória, nos termos a definir por portaria do Ministro das Finanças.