Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 801/2021-T
Data da decisão: 2022-11-22  IMT  
Valor do pedido: € 20.593,88
Tema: IMT- Partilha – Renúncia a tornas
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DECISÃO ARBITRAL

SUMÁRIO:

  1. No caso do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (IMT), para que haja sujeição a imposto, necessário se torna que a situação de facto configure não só uma transmissão do direito de propriedade ou de figuras parcelares desse direito, sobre bens imóveis situados no território nacional, mas também que essa transmissão seja efetuada a título oneroso, conforme o disposto no artigo 2.º, n.º 1, do Código do IMT.
  2. Tendo a herdeira renunciado expressamente às tornas e tendo tal sido aceite na escritura de partilha, da qual não resulta que, com a renúncia, o outro herdeiro tenha pretendido eximir-se de qualquer encargo, era sobre a AT que recaía o ónus da prova da onerosidade da transmissão, nos termos do n.º 1 do artigo 74.º, da LGT.
  3. Não tendo sido efetuada prova da onerosidade da transmissão por parte da AT, como lhe incumbia, e apontando o exercício interpretativo no sentido de que a transmissão em causa foi realizada a título gratuito, a mesma encontra-se como tal, excluída da incidência de IMT.

***

Carla Almeida Cruz, árbitro das listas do CAAD, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral singular, constituído em 08-02-2022, elabora nos seguintes termos a decisão arbitral no processo identificado.

1. RELATÓRIO

A…, casado, contribuinte fiscal número …, residente na Avenida …, em Algés (doravante, abreviadamente designado de “Requerente), veio, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, constante do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, (doravante, abreviadamente designado de “RJAT”), requerer a constituição de Tribunal Arbitral, visando a declaração de ilegalidade e consequente anulação da liquidação de Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (“IMT”) nº… de 2021, no valor de 17.875,31 € e da liquidação de Imposto de Selo (“IS”), nº…de 2021, no valor de 2.718,57€.

O Requerente peticiona a anulação dos referidos atos de liquidação de IMT e de IS, peticionando também a restituição dos montantes pagos, acrescido de juros legais.

É Requerida nestes autos a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (“Requerida” ou “AT”).

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 02-12-2021 e foi notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) em 07-12-2021.

Nos termos do disposto no artigo 6.º, n.º 1 e do artigo 11.º, n.º 1, alínea b) do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitro do Tribunal Arbitral, com árbitro singular, a signatária, que manifestou a aceitação do encargo, no prazo legal.

Em 20-01-2022 as partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado intenção de recusar a designação do árbitro, nos termos previstos nas normas do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e nas normas dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, e em conformidade com a disciplina constante do artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 08-02-2022.

A Requerida, através de despacho arbitral proferido em de 14-02-2022, foi notificada para os efeitos previstos no artigo 17.º da RJAT.

Em 16-03-2022, a Requerida, apresentou a sua Resposta, na qual se defende por impugnação e pugna pela improcedência e consequente absolvição dos pedidos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido. Requereu também a dispensa da apresentação do processo administrativo (“PA”), na medida em que inexiste qualquer procedimento subjacente às liquidações impugnadas.

Por despacho de 21-03-2022, tendo o Tribunal entendido que as questões suscitadas pelas partes, se configuram como questões exclusivamente de direito e que a prova documental junta aos autos pelo Requerente e não contestada pela Requerida, se afigura ser suficiente para a boa decisão da causa, foi determinada a notificação do Requerente para informar, se mantinha interesse na produção da prova testemunhal e nas declarações de parte que requereu na sua petição inicial.

Por requerimento de 01-04-2022, o Requerente exerceu o direito ao contraditório quanto à Resposta apresentada pela AT.

Por requerimento de 06-04-2022, o Requerente informou o Tribunal que prescinde da produção de prova testemunhal assim como das declarações de parte indicadas na petição inicial.

Por despacho de 20-04-2022, foi dispensada a realização da reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT e determinada a notificação das partes para produzirem alegações escritas. Foi também deferido o pedido da Requerida de dispensa da apresentação do processo administrativo.

Em 10-05-2022, o Requerente apresentou alegações escritas, nas quais reiterou a posição anteriormente assumida na petição inicial.

A AT não apresentou alegações escritas.

Por despachos de 26-07-2022 e de 28-09-2022, foi determinada, nos termos do disposto na norma do artigo 21º-2 do RJAT, a prorrogação, pelo período de dois meses, do prazo para ser proferida a decisão arbitral nestes autos.

 

2. SANEAMENTO

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, face ao preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.

O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.

As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT, e artigo 1.º, da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

O processo não enferma de nulidades, não tendo sido invocadas quaisquer exceções ou suscitadas questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito e de que cumpra conhecer.

 

3. FUNDAMENTAÇÃO

3.1. MATÉRIA DE FACTO

3. 1.1. Factos provados

Com relevância para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:

  1. Por escritura pública de partilha, outorgada em 14-07-2021, procedeu-se à partilha da herança aberta por óbito do pai do Requerente, B…, de que são únicos herdeiros, o cônjuge sobrevivo, C… com quem o falecido era casado sob o regime da separação de bens, e os seus filhos, B… e o aqui Requerente [cf. documento n.º 2 junto à P.I.[1]];
  2. Os bens a partilhar totalizavam o valor de 1.335.524,84 €, cabendo a cada um dos herdeiros o valor de 445.174,95 € [cf. documento n.º 2 junto à P.I.];
  3. À herdeira C…, mãe do Requente, foi adjudicado o usufruto de bens imóveis, que perfazem o valor de 106.857,90 € [cf. documento n.º 2 junto à P.I.];
  4. Ao herdeiro B…, irmão do Requente, foi adjudicada a nua propriedade de bem imóvel, que perfaz o valor de 445.174,95 €, levando exatamente o que lhe cabe [cf. documento n.º 2 junto à P.I.];
  5. Ao Requerente, foi adjudicada a nua propriedade e a propriedade plena de bens imóveis, que perfazem o valor de 783.492,00 € [cf. documento n.º 2 junto à P.I.];
  6. Por via das adjudicações identificadas nas alíneas antecedentes, a mãe do Requerente, a herdeira C…, levou a menos do que lhe cabe, o valor de 338.317,05 €, que competia ao Requerente entregar-lhe, em dinheiro, a título de tornas [cf. documento n.º 2 junto à P.I.];
  7. A mãe do Requente, C…, na mencionada escritura de partilha, declarou que “prescinde de receber o referido montante de trezentos e trinta e oito mil trezentos e dezassete euros e cinco cêntimos, que lhe é devido a título de tornas, em beneficio do terceiro outorgante – o aqui Requerente - e por conta da sua quota disponível”, o que o Requerente aceitou [cf. documento n.º 2 junto à P.I.];
  8. Em 19-07-2021, o Requerente através do E-Balcão, apresentou o Modelo 1 do Imposto de Selo das Transmissões Gratuitas, referente à renúncia ao recebimento das tornas feita pela sua mãe a seu favor, tendo pedido a respetiva liquidação e feito alusão a jurisprudência do CAAD que sustentava o seu entendimento de não haver lugar à liquidação de IMT e de IS da partilha [cf. documentos n.º 3 e 4 juntos à P.I.];
  9. Em 26-08-2021, a AT respondeu via E-Balcão e enviou os DUC´s relativos ao IMT e ao IS respeitantes à partilha por óbito do pai do Requerente, que consubstanciam os seguintes actos tributários de liquidação, objeto de pronúncia arbitral [cf. documentos n.ºs. 1, 2 e 5 juntos à P.I.]:
  1. Liquidação de IMT com o n.º …, emitida em 26-08-2021, com data limite de pagamento a 31-08-2021, no montante de 17.875,31 €;
  2. Liquidação de IS, verba 1.1. com o n.º …, emitida em 26-08-2021, com data limite de pagamento a 31-08-2021, no montante de 2.718,57 €.
  1. O Requerente em 06-09-2021, procedeu ao pagamento, das liquidações de IMT e IS identificadas no ponto antecedente [cf. documentos n.ºs. 6 e 7 juntos à P.I.];
  2. Em 30-11-2021, o Requerente apresentou o pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo [cf. sistema informático de gestão processual do CAAD].

 

3.1.2. Factos considerados não provados

Não foram considerados como não provados nenhuns dos factos alegados, com efetiva relevância para a boa decisão da causa.

 

3.1.3. Fundamentação da decisão da matéria de facto

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, à face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2, do CPPT e 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

Não há controvérsia sobre a matéria de facto, pelo que no tocante à matéria de facto dada como provada, a convicção do Tribunal fundou-se nos factos articulados pelas Partes, cuja aderência à realidade não foi posta em causa e, portanto, admitidos por acordo, bem como na análise crítica da prova documental que consta dos autos, designadamente os documentos juntos pelo Requerente, cuja correspondência à realidade não é contestada pela Autoridade Tributária e Aduaneira.

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, com natureza meramente conclusiva, ainda que tenham sido apresentadas como factos, por serem insuscetíveis de comprovação, sendo que o seu acerto só pode ser aferido em confronto com a fundamentação da decisão da matéria jurídica, constante do capítulo seguinte.

Finalmente, importa sublinhar que a questão essencial a decidir é de direito e assenta na prova documental junta aos autos pela Requerente, não contestada pela Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

3.2. MATÉRIA DE DIREITO

3.2.1 Objeto do litígio

A questão que importa decidir neste processo respeita à apreciação da legalidade das liquidações de IMT e de IS sindicadas nos presentes autos, provenientes da partilha de bens imóveis por mortis causa, em que um dos herdeiros (neste caso o Requerente) leva bens imóveis de valor superior à sua quota-parte e o outro herdeiro (neste caso a mãe do Requerente) prescinde das tornas a que tinha direito, importando verificar se no caso em apreço nos encontramos perante uma transmissão onerosa de direitos reais sobre imóveis, sujeita a IMT e a IS, como defende a AT ou se, pelo contrário, se trata de uma transmissão gratuita, sujeita às regras do Imposto do Selo (ainda que beneficiando de isenção) mas não a IMT, como sustenta o Requerente.

 

3.2.2 - Posição das partes

O Requerente defende para fundamentar a sua posição, em síntese, que:

a) No caso concreto, a partilha efetuada não configura uma transmissão onerosa de bens, nos termos do artigo 2º, nº 1 e nº 5, alínea c) do Código do IMT (“CIMT”), não estando, por isso, sujeita a tal imposto.

b) Embora resulte da operação de partilha que o Requerente leva bens imóveis a mais em relação à sua quota-parte, a verdade é que o outro herdeiro (a sua mãe) renunciou, a título gratuito, ao direito de receber a quantia a título de tornas que lhe era devida.

c) O outro herdeiro (a mãe do Requerente) efetuou atribuições patrimoniais ao Requerente sem qualquer contrapartida, o que configura uma doação, nos termos e para os efeitos do artigo 940º, nº 1, do Código Civil, por nessa adjudicação de bens ter existido mero espírito de liberalidade.

d) A partilha efetuada para além de não se encontrar sujeita a IMT, também não se encontra sujeita a IS, por se tratar de uma renúncia com natureza de doação entre ascendente e descendente, estando isenta de IS, por via do disposto na alínea e) do artigo 6º do Código do Imposto do selo (“CIS”).

A AT, por seu turno para sustentar a sua posição, defende em síntese, que:

a) Decorre do artigo 2º, nº 5, alínea c) do CIMT que fica sujeito a IMT quem, no âmbito de uma partilha, receber bens imóveis que excedam a sua quota-parte ideal no conjunto de bens imóveis objectos da partilha.

b) Por vontade expressa do legislador fiscal, estendeu-se o âmbito de incidência de IMT ao efeito que uma operação da partilha gera na esfera patrimonial de um dos seus sujeitos.

c) No quadro da lei fiscal, existe uma transmissão a título oneroso relativamente à diferença entre a quota do herdeiro e o valor que a ele cabe por receber, na partilha, dos bens imóveis. Esta diferença, sujeita a tornas, é suficiente para concretizar a onerosidade da transmissão nesta parte e a sujeitar a IMT.

d) O legislador fiscal, abstraindo da natureza jurídica da partilha, teve em vista com a norma da al c), do nº5, do art. 2º do CIMT, tributar o ingresso de bens imóveis na esfera patrimonial do sujeito passivo por via da adjudicação dos mesmos em excesso sobre a quota.

e) Para efeitos da tributação em IMT do “excesso da quota-parte que ao adquirente pertencer nos bens imóveis, em acto de divisão ou partilhas’, não há que indagar do carácter oneroso ou gratuito da aquisição desse excesso (designadamente por o herdeiro que havia de receber as tornas do sujeito passivo ter prescindido das mesmas), nem sequer da natureza aquisitiva ou declarativa da partilha, sendo precisamente para afastar a discussão doutrinária sobre a natureza desse fenómeno e da sua subsunção, ou não, às demais regras de incidência objectiva que o legislador, querendo tributá-lo, consagrou expressamente a sujeição do mesmo ao IMT, na previsão da alínea c) do nº5 do art. 2º do Código desse imposto”.

f) Com a norma da alínea c), nº5, do art. 2º do CIMT], o legislador visa tributar a aquisição de bens imóveis (rectius, as transmissões do direito de propriedade ou de figuras parcelares desse direito, sobre bens imóveis situados no território nacional) na parte em que constitui excesso sobre a quota ideal do sujeito passivo nos bens a partilhar, abstraindo da questão de saber se esse fenómeno, em concreto, tem natureza meramente translativa ou aquisitiva e, neste último caso, tem natureza gratuita ou onerosa.

g) A renúncia às tornas consubstancia tão-só uma declaração unilateral produzida no seio da sucessão em que, por partilha, se determinam os bens a atribuir aos herdeiros legitimários pressupondo, não um direito de crédito que o cônjuge sobrevivo tem sobre o Requerente fruto de uma relação obrigacional estabelecida entre os dois, mas a compensação resultante da atribuição de um bem da herança que excede a quota-parte que o herdeiro legitimário tem nesta última.

h) Carece de sentido o recurso ao instituto da remissão para qualificar a transmissão como tendo natureza gratuita, porquanto, por um lado, mais não é do que uma causa de extinção da obrigação, e, por outro, não se aplica ao instituto sucessório da partilha pois pressupõe a ideia de uma dívida que em bom rigor nunca se chegou a constituir como tal precisamente em virtude de um direito de crédito que nunca se chegou a gerar por via da renúncia às tornas.

i) A obrigação de pagamento de tornas resulta não de uma dívida, mas do excesso que a transmissão daquele bem proveniente da herança produz, uma vez que a partilha procede à divisão dos bens do autor da herança e dessa divisão, o que há, é uma obrigação de pagamento de tornas que assegura, em termos patrimoniais, o preenchimento da quota-parte que cada herdeiro legitimário tem direito.

j) A renúncia a tornas, havida como uma compensação resultante da atribuição de um bem da herança que excede a quota-parte que o herdeiro legitimário tem, e não como uma transmissão gratuita de um direito de crédito, como entende o Requerente, está sujeita a tributação em sede de IS.

 

3.2.3. Apreciação da questão

O artigo 1.º, nº 1 do CIMT, estabelece as regras de incidência geral do IMT, estatuindo que “O imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT) incide sobre as transmissões previstas nos artigos seguintes, qualquer que seja o título por que se operem”.

Por seu turno, o artigo 2.º, n.º 1 do CIMT, estabelece as regras de incidência objetiva e territorial do IMT, estatuindo que: “O IMT incide sobre as transmissões, a título oneroso, do direito de propriedade ou de figuras parcelares desse direito, sobre bens imóveis situados no território nacional”.

Para além da sujeição a IMT das transmissões onerosas de direitos de propriedade (ou figuras parcelares deste direito), prevista no n.º 1 do artigo 2.º do CIMT, o legislador tipificou nos subsequentes nºs. 2 e 3 do mesmo artigo, outras situações que justificam a tributação em sede deste imposto, configurando todas elas situações que integram o conceito de “transmissão de bens imóveis” e que têm como requisito subjacente a onerosidade da transmissão.

No que ao caso dos autos interessa, importa olhar para a norma da alínea c) n.º 5 do artigo 2.º do Código do IMT que dispõe que: “Em virtude do disposto no n.º 1, são também sujeitas ao IMT, designadamente (…) o excesso da quota-parte que ao adquirente pertencer, nos bens imóveis, em ato de divisão ou partilhas, bem como a alienação da herança ou quinhão hereditário ou do direito à meação”.

Analisando a norma em questão, e por via da remissão que o corpo do nº 5 faz para o disposto no n.º 1 do artigo 2º do CIMT, impõe-se concluir que nas situações aí previstas, para que exista sujeição a imposto é necessário que as transmissões tenham carácter oneroso.

Tal como referido na decisão arbitral proferida no âmbito processo n.º 348/2017 - T, de 17 de novembro de 2017, invocada pelo Requerente e cujo teor acompanhamos de perto: “No caso do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (IMT), para que haja sujeição a imposto, necessário se torna que a situação de facto configure não só uma transmissão do direito de propriedade ou de figuras parcelares desse direito, sobre bens imóveis situados no território nacional (abrangendo ainda, nos termos do artigo 2.º, n.º 5, alínea c), do Código do IMT, “O excesso da quota-parte que ao adquirente pertencer, nos bens imóveis, em ato de divisão ou partilhas, bem como a alienação da herança ou quinhão hereditário), mas também que essa transmissão seja efetuada a título oneroso, conforme o disposto no artigo 2.º, n.º 1, do Código do IMT”.

Não existindo no Código do IMT um conceito de “transmissão onerosa”, o mesmo deverá ser preenchido com recurso às regras de interpretação constantes do n.º 1 do artigo 11.º da Lei Geral Tributária (“LGT”), havendo que ter em consideração que “na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis” e à norma do artigo 9.º, nº 1 do Código Civil que estabelece que “A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”.

A Lei não define a noção de “transmissão gratuita” ou de “transmissão onerosa”, mas se recorrermos à doutrina esta distingue os contratos gratuitos dos contratos onerosos, “consoante originem, de acordo com a intenção das partes, vantagens para uma só delas ou para as duas[2].

No caso em apreço, a AT sustenta que existiu uma transmissão a título oneroso relativamente à diferença entre a quota do herdeiro e o valor que lhe cabia receber em sede de partilha dos bens imóveis, considerando que esta diferença, sujeita a tornas, é suficiente para concretizar a onerosidade nesta parte e a sujeitar a IMT.

Para a AT, a onerosidade da transmissão fundamenta-se assim na existência de (contra)prestação e essa (contra)prestação existe, mesmo que os restantes herdeiros venham a prescindir das referidas tornas.  Na ótica da AT a renúncia às tornas consubstancia tão-só uma declaração unilateral produzida no seio da sucessão em que, por partilha, se determinam os bens a atribuir aos herdeiros legitimários pressupondo, não um direito de crédito que o cônjuge sobrevivo tem sobre o Requerente fruto de uma relação obrigacional estabelecida entre os dois, mas a compensação resultante da atribuição de um bem da herança que excede a quota-parte que o herdeiro legitimário tem nesta última, considerando assim que a obrigação de pagamento de tornas resulta não de uma dívida, mas antes do excesso que a transmissão daquele bem proveniente da herança produz.

Chegados aqui, importa fazer a destrinça entre os conceitos de obrigação e de prestação.

Nos termos do disposto na norma do artigo 397º, do Código Civil, “Obrigação é o vínculo jurídico por virtude do qual uma pessoa fica adstrita para com outra à realização de uma prestação.”Face ao que dispõe esta norma, há assim que concluir que a prestação não equivale à obrigação enquanto vínculo jurídico, antes constituindo o seu objeto.

E se, em regra, as obrigações se extinguem pelo cumprimento, i.e., pela realização da prestação, ou por outro meio de satisfação do interesse do credor (designadamente, por dação em cumprimento, consignação, compensação ou novação), a figura da remissão prevista na norma do artigo 863º do Código Civil tem um recorte funcional bastante diferente.

Efetivamente, como a este propósito refere Antunes Varela[3] “[m]uito diferente desse é o recorte funcional (…) da remissão (art. 863.º)” em que, embora com a aquiescência do devedor, “o direito de crédito não chega a funcionar; o interesse do credor a que a obrigação se encontra adstrita não chega a ser satisfeito, nem sequer indireta ou potencialmente. A obrigação extingue-se sem chegar a haver prestação.” Daí que o legislador tenha admitido a natureza contratual da remissão, estatuindo na norma do artigo 863.º, nº 2 do Código Civil que, quando tiver o caráter de liberalidade, ou seja, quando não houver vantagem para o remitente, mas apenas para o seu beneficiário, a remissão por negócio entre vivos é havida como doação, em conformidade com os artigos 940.º e seguintes, do Código Civil.

Ora, tendo a declaração de renúncia a tornas por parte da mãe do Requerente sido expressa na escritura pública de partilha, o que o Requerente aceitou, importa concluir que a mesma foi contratualmente estabelecida.

Perante tal conclusão, e não havendo qualquer prova de que nessa renúncia tenha havido contraprestação, i.e. vantagem para a herdeira, mãe do Requerente, cremos que não assiste razão à AT ao ter considerando que o valor adjudicado ao Requerente, na parte que excede a sua quota-parte, configura uma transmissão onerosa, sujeita a IMT e a IS.

No caso em análise, tendo a herdeira, mãe do Requerente, renunciado expressamente às tornas e tendo tal sido aceite na escritura de partilha, da qual não resulta que, com a renúncia, o outro herdeiro tenha pretendido eximir-se de qualquer encargo, era sobre a AT que recaía o ónus da prova da onerosidade da transmissão, pois, nos termos do n.º 1 do artigo 74.º, da LGT, “O ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque”.

Não tendo sido efetuada prova da onerosidade da transmissão por parte da AT, como lhe incumbia, e apontando o exercício interpretativo no sentido de que a transmissão em causa foi realizada a título gratuito e, como tal, excluída da incidência de IMT, não poderá manter-se a liquidação impugnada, dado o erro sobre os pressupostos de direito em que assentou.

O mesmo sucedendo relativamente à liquidação do IS, que também não se poderá manter, uma vez que nos encontramos perante situação que consubstancia doação de ascendente a descendente, isenta de Imposto de Selo, nos termos da alínea e) do artigo 6º do CIS.

Nestes termos, há que concluir pela ilegalidade das liquidações impugnadas, pelo que se julga procedente o pedido de anulação dos atos tributários sub judice de liquidação de IMT (liquidação de IMT com o n.º …, no montante de 17.875,31 €) e de liquidação de IS (liquidação de IS, com o n.º …, no montante de 2.718,57 €), no valor total de 20.593,88 € formulado pelo Requerente.

 

3.2.4. Do reembolso do imposto pago e do pagamento de juros indemnizatórios

Quanto ao pedido de reembolso do imposto pago, acrescido de juros indemnizatórios, formulado pelo Requerente, o artigo 43.º, n.º 1, da LGT estabelece que são devidos juros indemnizatórios quando se determine, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

No caso em apreço, o erro que afeta as liquidações anuladas é de considerar imputável à Autoridade Tributária e Aduaneira, que o praticou sem o necessário suporte factual e legal.

Assiste assim, direito ao Requerente a ser reembolsado da quantia de € 20.593,88, que pagou indevidamente (nos termos do disposto nos artigos 100.º da LGT e 24.º, n.º 5, do RJAT) por força do ato anulado e ainda a ser indemnizado do pagamento indevido através de juros indemnizatórios, desde a data daquele pagamento, até ao seu reembolso, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 1 e 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, artigo 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.

 

4. DECISÃO

Nos termos expostos, o Tribunal Arbitral decide:

  1. Julgar integralmente procedente o pedido formulado pelo Requerente, e em consequência:
  1. Anular os actos tributários de liquidação do IMT e IS, melhor identificados em I) dos factos provados (liquidação de IMT com o n.º …, no montante de 17.875,31 € e liquidação de IS, com o n.º …, no montante de 2.718,57 €), no montante total de 20.593,88 €;
  2. Condenar a Requerida no reembolso ao Requerente do imposto pago, no montante de 20.593,88€;
  3. Condenar a Requerida no pagamento ao Requerente de juros indemnizatórios, calculados sobre o montante de 20.593,88€ por este pago.
  1. Condenar a Requerida no pagamento das custas do processo.

 

 

5. VALOR DO PROCESSO

Fixa-se o valor do processo em € 20.593,88 (vinte mil, quinhentos e noventa e três euros e oitenta e oito cêntimos), nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e do artigo 306.º, n.º 2, do CPC, aplicáveis ex-vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

6. CUSTAS

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 1.224,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 22 de novembro de 2022

              O Árbitro

 

 

    ___________________________

                   (Carla Almeida Cruz)



[1] Petição inicial do Requerente.

[2] Cf. Mário Júlio de Almeida Costa, in Direito das Obrigações, 5.ª Edição, Almedina, 1991, p. 295.

[3] Cf. Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral – Vol. II, 7.ª Edição, Almedina, 1997, págs. 242 e ss