Sumário:
I – A possibilidade de apresentação de um pedido arbitral a todo o tempo com base em arguição de nulidade, apenas opera quanto aos atos tributários que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental, conforme o disposto no artigo 161.º, n.º 2, alínea d), do CPA;
II - A norma do artigo 93.º, n.º 5, do CIEC, que prevê para o proprietário ou o titular da exploração dos postos de venda ao público de gasóleo colorido e marcado, o pagamento do montante de imposto, resultante da diferença entre o nível de tributação aplicável ao gasóleo rodoviário e a taxa aplicável ao gasóleo colorido e marcado, em relação às quantidades para as quais não sejam emitidas as correspondentes faturas com a identificação do titular de cartão, não enferma de inconstitucionalidade por violação do princípio da liberdade de iniciativa económica;
III - Afastada a inconstitucionalidade da norma legal por violação de direitos fundamentais, afastada fica a ofensa ao conteúdo essencial desses direitos e a aplicação do regime de nulidade dos atos administrativos do artigo 161.º, n.º 2, alínea d), do CPA.
DECISÃO ARBITRAL
Acordam em tribunal arbitral
I – Relatório
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A..., Lda., NIPC..., com sede em ..., ...-... ...– ..., vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade do ato de liquidação nº..., com um valor a pagar de € 73.039,95, requerendo ainda a condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira no reembolso do imposto indevidamente pago acrescido de juros indemnizatórios.
Fundamenta o pedido nos seguintes termos.
A liquidação impugnada foi efetuada ao abrigo do disposto no artigo 93.º, n.º 5, do Código dos Impostos Especiais de Consumo (CIEC), correspondendo o imposto a pagar à diferença entre o imposto sobre produtos petrolíferos e energéticos (ISP) aplicável ao gasóleo rodoviário e o imposto sobre produtos petrolíferos e energéticos (ISP) aplicável ao gasóleo colorido e marcado, relativamente às quantidades vendidas em 2015, num total de 75.237,33 litros, em 2016, num total de 70.388,75 litros, e em 2017, num total de 64.142,85 litros.
Nos termos dessa disposição, o gasóleo colorido e marcado só pode ser adquirido pelos titulares de cartão de microcircuito para efeito de controlo da afetação do produto aos destinos de consumo que se encontram previstos no n.º 3 do artigo 93.º
No entanto, na situação do caso, só um total de 96,11 litros foram vendidos, nesse período de tempo, a não titulares de cartão de microcircuito de acesso ao gasóleo colorido e marcado, sendo que a quantidade restante foi vendida, não a quem não fosse titular de cartão de microcircuito de acesso, mas mediante emissão de fatura sem menção do nome de adquirente titular do cartão.
A liquidação e cobrança de imposto neste condicionalismo viola os direitos fundamentais de liberdade de empresa e de iniciativa económica e o princípio da proporcionalidade previstos nos artigos 18.º, n.º 2, e 61.º, n.º 1, da Constituição, e no artigo 16.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
Acresce que a Requerente, com base nos mesmos factos, foi punida com coima, nos termos das disposições conjugadas dos n.ºs 2, alínea p), e 6, do artigo 109.º do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), na redação anterior à Lei n.º 114/2017, de 29/12, por incumprimento das regras do artigo 93.º, n.º 5, do CIEC.
A exigência de pagamento do diferencial de imposto por incumprimento das regras do artigo 93.º, n.º 5, do CIEC, quando os mesmos factos são sancionados com coima nos termos do Regime Geral das Infrações Tributárias, viola o princípio da tipicidade das medidas sancionatórias, e os princípios ne bis in idem e da presunção de inocência, previstos nos artigos 2.º, 29.º, n.º 5, e 32.º, n.ºs 2 e 10.º, da Constituição, e nos artigos 50.º e 48.º, n.º 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
Autoridade Tributária, na sua resposta, suscita a exceção da caducidade do direito de ação, porquanto, nos termos do artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), em conjugação com o artigo 102.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), o prazo para apresentação do pedido arbitral é de 90 dias, contados a partir do termo do prazo para pagamento da prestação tributária, verificando-se que o termo inicial do prazo ocorreu em 6 de julho de 2018 ao passo que o pedido de constituição de tribunal arbitral só foi apresentado 6 de maio de 2022.
Em sede de impugnação, a Autoridade Tributária refere que, por efeito do disposto no artigo 93.º, n.º 5, do CIEC e nos diplomas regulamentares, o gasóleo colorido marcado é tributado com taxa de imposto reduzida, o que corresponde a um benefício fiscal, tendo sido impostas aos comercializadores regras de comercialização específicas com o objetivo de assegurar que o produto apenas é vendido aos titulares de cartão eletrónico atribuído após o reconhecimento do beneficio, estando tais vendas sujeitas, obrigatoriamente, a um registo no terminal informático através do cartão de acesso e à emissão de fatura emitida em nome e/ou número de identificação fiscal do adquirente devidamente habilitado (Portaria n.º 361-A/2008, de 12 de maio).
Neste contexto, a exigência da emissão de fatura com a identificação do titular do cartão a que se refere o n.º 5 do artigo 93.º do CIEC, na redação dada pela Lei n.º 82-B/2014, não constitui um requisito puramente formal, mas uma causa de responsabilização pelo pagamento do IEC relevante, em relação às quantidades para as quais não sejam emitidas as correspondentes faturas em nome do titular do cartão.
E, desse modo, a aplicação da taxa reduzida, sob pena de introdução irregular no consumo, pressupõe que a transação do gasóleo colorido marcado seja efetuada com observância de todas as disposições relativas ao benefício da redução da taxa, incluindo a emissão de fatura com identificação do beneficiário.
Conclui no sentido da extinção da instância por caducidade do direito de ação e, caso assim não se entenda, pela improcedência do pedido de pronúncia arbitral.
2. A Requerente respondeu à matéria de exceção, dizendo que o prazo a considerar para a apresentação do pedido arbitral é, não o dos artigos 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e 102.º, n.º 1, do CPPT, mas o dos artigos 102.º, n.º 3, do CPPT e 162.º, n.º 1, do CPA, subsidiariamente aplicáveis, porquanto no pedido arbitral foi requerida a nulidade do ato de liquidação impugnado com fundamento em violação de direitos fundamentais e dos princípios constitucionais da proporcionalidade.
No seguimento do processo, por despacho de 21 de outubro de 2022, o tribunal dispensou a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, bem como a apresentação de alegações escritas por considerar não existirem quaisquer novos elementos sobre que as partes se devessem pronunciar, e relegou para final o conhecimento da matéria de exceção.
3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 12 de Julho de 2022.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades.
Cabe apreciar e decidir
II - Saneamento
Caducidade do direito de ação
4. Autoridade Tributária, na sua resposta, suscita a exceção da caducidade do direito de ação por considerar que o pedido arbitral foi apresentado para além do prazo de 90 dias, contado a partir do termo do prazo para pagamento da prestação tributária, conforme o previsto nas disposições conjugadas dos artigos 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e 102.º, n.º 1, alínea a), do CPPT
Em contraposição, a Requerente alega que, no pedido arbitral, requereu a declaração de nulidade do ato tributário impugnado, por violação dos direitos fundamentais de liberdade de iniciativa económica e o princípio de proporcionalidade, bem como por violação do princípio da tipicidade das sanções e dos princípios ne bis in idem e da presunção de inocência, pelo que o prazo aplicável é o dos artigos 102.º, n.º 3, do CPPT e 162.º, n.º 2, do CPA, que, em caso de nulidade, permitem que a impugnação possa ser deduzida a todo o tempo.
Com relevo para a apreciação da matéria de exceção interessa considerar a seguinte factualidade:
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A Requerente foi objeto de uma ação inspetiva credenciada pela Ordem de Serviço n.º OI2018... tendo em vista apurar a regularidade da comercialização do gasóleo colorido e marcado nos anos de 2015, 2016 e 2017.
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No relatório da ação inspetiva, que constitui o documento n.º 2 junto ao pedido arbitral, que aqui se dá como reproduzido, foram apuradas vendas de gasóleo colorido e marcado em incumprimento das regras de comercialização, nas quantidades de 75.237,33 litros, em 2015, 70.388,75 litros, em 2016, e 64.142,85 litros, em 2017, por se terem verificado vendas a não titulares de cartão de acesso ao consumo e vendas relativamente às quais não foi emitida fatura em nome do titular do cartão, tendo-se determinado a liquidação de ISP, nos termos do n.º 5 do artigo 93.º do CIEC, no montante global de € 68.751.36, acrescido de juros compensatórios no montante de € 4.288.59.
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No âmbito da ação inspetiva foi ainda lavrado auto de notícia para procedimento contraordenacional, e, no âmbito desse procedimento, foi aplicada uma coima de
€ 6.000,00, acrescida de custas no valor de € 89,25.
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A Requerente foi notificada do ato de liquidação n.º..., no montante a pagar de € 73.039,95, por ofício datado de 20 de junho de 2018 enviado por carta registada com aviso de receção.
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A Requerente procedeu ao pagamento do imposto em dívida e juros compensatórios em 26 de junho de 2018.
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O termo do prazo para pagamento voluntário da prestação tributária ocorreu em 6 de julho de 2018.
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O pedido arbitral foi apresentado em 6 de maio de 2022.
Não se põe em dúvida que o prazo para a constituição do tribunal arbitral é de 90 dias, contado a partir dos factos previstos no n.º 1 do artigo 102.º do CPPT, por efeito da remissão constante do artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT. Estando em causa um ato tributário que deu a origem a liquidação, e não se verificando qualquer das situações elencadas nas alíneas b), c), d), e) e f) do n.º 1 do artigo 102.º, o prazo de 90 dias inicia-se no termo do prazo para pagamento da prestação tributária legalmente notificada ao contribuinte.
Prevê, no entanto, o artigo 102.º, n.º 3, do CPPT que, se o fundamento for a nulidade, a impugnação pode ser deduzida a todo o tempo, regra que está em sintonia com o regime de nulidade dos atos administrativos, tal como resulta do artigo 161.º, n.º 2, do CPA.
Embora o artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT fixe expressamente um prazo de 90 dias e se limite a remeter para o n.º 1 do artigo 102.º do CPPT quanto ao modo de contagem do prazo, sem qualquer alusão à possibilidade de apresentação do pedido arbitral a todo o tempo, nada parece obstar, mesmo no domínio da arbitragem tributária, à aplicação do regime de nulidade dos atos administrativos enquanto princípio geral de direito, tendo sobretudo em consideração, como determinam os n.ºs 1 e 2 do artigo 162.º do CPA, que o ato nulo não produz quaisquer efeitos jurídicos, independentemente da declaração de nulidade, e a nulidade é invocável não apenas por qualquer interessado como também pode ser conhecida por qualquer autoridade e declarada pelos tribunais administrativos ou pelos órgãos administrativos competentes para a anulação (cfr. neste sentido, “Comentário ao Regime Jurídico da Arbitragem Tributária”, in Guia de Arbitragem Tributária, 3.ª edição, Coimbra, págs. 166-168).
Admitindo, nestes termos, que o pedido arbitral possa ser apresentado a todo o tempo com base em arguição de nulidade, cabe fazer notar que, nesse contexto, a nulidade dos atos administrativos, incluindo os atos tributários, não resulta da mera inconstitucionalidade por violação de disposições constitucionais, mas da ofensa do conteúdo essencial de um direito fundamental, como prevê o artigo 161.º, n.º 2, alínea d), do CPA.
Deve começar por dizer-se que o conceito de “conteúdo essencial” foi recortado do artigo 18.º, n.º 3, da Constituição quando aí é utilizado a propósito da restrição de direitos, liberdades e garantias por via legislativa, discutindo-se a praticabilidade de a mesma expressão ser adotada para a proteção de direitos fundamentais dos cidadãos perante a Administração (cfr. Marcelo Rebelo de Sousa/André Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral, Tomo III, Publicações Dom Quixote, 2006, pág. 163).
Os direitos fundamentais suscetíveis de serem afetados no seu conteúdo essencial são os direitos, liberdades e garantias, a que se refere o Título II da Parte I da Constituição, e os direitos análogos, em que pode incluir-se a liberdade de iniciativa económica reconhecida no artigo 61.º da Constituição.
Na perspetiva da limitação imposta, no artigo 18.º, n.º 3, da Constituição, à restrição de direitos fundamentais, o conteúdo essencial é identificado como o núcleo que em nenhum caso pode ser invadido pela restrição legislativa, assegurando que a restrição deixa algum sentido útil ao direito fundamental de modo a que este possa ainda desempenhar a sua finalidade e manter utilidade constitucional (cfr. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª edição, Coimbra, pág. 395, e ainda, quanto ao conteúdo principal dos direitos de liberdade, Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 5.ª edição, Coimbra, págs. 165-167).
Por outro lado, o princípio da proporcionalidade, nas suas vertentes de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido restrito, e enquanto pressuposto material para a restrição legítima de direitos, liberdades e garantias, não é um princípio que, em si mesmo, possa ser afetado no seu conteúdo essencial, mas é antes um índice da ofensa do núcleo essencial do direito, liberdade e garantia que está em causa, podendo dizer-se que há um excesso de restrição quando esta seja arbitrária ou desproporcionada (cfr. Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. e loc cit.).
Transpondo estas ideias básicas para a definição de conteúdo essencial a que se reporta o artigo 161.º, n.º 2, alínea d), do CPA, haverá de concluir-se que a violação do "conteúdo essencial” de um direito fundamental só gera a nulidade do ato administrativo tributário, tornando-o impugnável a todo o tempo, quando, em consequência, seja afetado o mínimo sem o qual esse direito não pode subsistir (cfr. acórdãos do TCA Norte de 17 de novembro de 2017, Processo n.º 00014/16, e do TCA Sul de 10 de fevereiro de 2022, Processo n.º 53/13).
5. Na situação do caso, a Requerente alega que a liquidação e cobrança de imposto, ao abrigo do disposto no artigo 93.º, n.º 5, do CIEC, apenas porque a venda de certas quantidades de gasóleo colorido e marcado foi realizada mediante a emissão de fatura sem menção do nome de adquirente titular do cartão eletrónico de acesso viola o direito de liberdade de iniciativa económica e o princípio da proporcionalidade.
O artigo 93.º do CIEC, sob a epígrafe “Taxas reduzidas”, na parte que mais interessa considerar, e na redação dada pela Lei n.º 82-B/2014, de 31 de dezembro, dispõe nos seguintes termos:
“1 - São tributados com taxas reduzidas o gasóleo, o gasóleo de aquecimento e o petróleo coloridos e marcados com os aditivos definidos por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças.
2 - O petróleo colorido e marcado só pode ser utilizado no aquecimento, iluminação e nos usos previstos no n.º 3.
3 - O gasóleo colorido e marcado só pode ser consumido por:
a) Motores estacionários utilizados na rega;
b) Embarcações referidas na alínea c) do n.º 1 do artigo 89.º;
c) Equipamentos utilizados nas atividades agrícola, florestal, aquícola e na pesca com arte-xávega, aprovados por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças, do ambiente, da agricultura e do mar;
d) Veículos de transporte de passageiros e de mercadorias por caminhos de ferro;
e) Motores fixos;
f) Motores frigoríficos autónomos, instalados em veículos pesados de transporte de bens perecíveis, alimentados por depósitos de combustível separados, e que possuam certificação ATP (Acordo de Transportes Perecíveis), nos termos a definir em portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças, da agricultura e dos transportes.
4 – (…)
5 - O gasóleo colorido e marcado só pode ser adquirido pelos titulares do cartão eletrónico instituído para efeitos de controlo da sua afetação aos destinos referidos no n.º 3, sendo responsável pelo pagamento do montante de imposto, resultante da diferença entre o nível de tributação aplicável ao gasóleo rodoviário e a taxa aplicável ao gasóleo colorido e marcado, o proprietário ou o responsável legal pela exploração dos postos autorizados para a venda ao público, em relação às quantidades que venderem e que não fiquem devidamente registadas no sistema eletrónico de controlo, bem como em relação às quantidades para as quais não sejam emitidas as correspondentes faturas com a identificação fiscal do titular de cartão.
6 - A venda, a aquisição ou o consumo dos produtos referidos no n.º 1 com violação do disposto nos n.ºs 2 a 5 estão sujeitos às sanções previstas no Regime Geral das Infrações Tributárias e em legislação especial.
7 – (…)
8 - (…).”
Entretanto, a Portaria n.º 361-A/2008, de 12 de maio, que estabelece as regras de comercialização do gasóleo colorido e marcado e respetivos mecanismos de controlo e manteve em vigor por efeito da norma transitória do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 73/2010, consigna no seu n.º 8 que “[O] registo no sistema informático, através dos terminais POS, de cada abastecimento efetuado, não dispensa a emissão da respetiva fatura ou documento equivalente, emitida em nome do titular do respetivo cartão de microcircuito”.
Resulta, com evidência, do n.º 5 do artigo 93.º do CIEC que o proprietário ou o responsável legal dos postos de venda ao público, respondem pelo pagamento do montante de imposto, resultante da diferença entre o nível de tributação aplicável ao gasóleo rodoviário e a taxa aplicável ao gasóleo colorido e marcado, em relação às quantidades que não fiquem registadas no sistema eletrónico de controlo e em relação às quantidades que tenham sido vendidas sem emissão da fatura com a identificação do titular de cartão.
O mesmo preceito esclarece que o gasóleo colorido e marcado só pode ser adquirido pelos titulares do cartão eletrónico instituído para efeitos de controlo da sua afetação aos destinos referidos no n.º 3 do artigo 93.º, significando que as exigências do registo no sistema eletrónico de controlo e da identificação do titular de cartão constituem mecanismos de controlo do consumo, destinando-se a evitar que o gasóleo colorido e marcado venha a ser utilizado para fins diversos dos previstos na lei.
A consequência legal, definida na mesma disposição, para a inobservância dos requisitos da venda ao público do gasóleo colorido e marcado é a eliminação da vantagem da tributação do produto à taxa reduzida, ficando o titular do posto de venda responsável pelo pagamento do diferencial do montante do imposto como se a venda não tivesse incidido sobre gasóleo colorido e marcado, mas sobre o gasóleo rodoviário.
Por outro lado, quer os mecanismos de controlo do consumo, quer a responsabilização pelo pagamento do montante do imposto em falta, mostram-se justificados, no plano da política legislativa, como meio de evitar que um benefício fiscal, que se traduz na redução da taxa de tributação, venha a ser aproveitado por adquirentes que não preenchem as condições previstas na lei para o acesso ao consumo.
Afirma a Requerente que a exigência da identificação, na fatura, do titular do cartão eletrónico viola a liberdade da iniciativa económica privada, consagrada no artigo 61.º da Constituição, e o princípio da proporcionalidade.
Já se viu que o princípio da proporcionalidade corresponde a um critério de aferição de uma medida legislativa restritiva de direitos, liberdades e garantias, nas suas diferentes vertentes de idoneidade, necessidade e justa medida, e, como tal, serve como mero indicador da preservação ou da eliminação do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.
A liberdade da iniciativa económica privada tem, por sua vez, um duplo sentido da liberdade de iniciar uma atividade económica, aí se incluindo a liberdade de criação de empresa, a liberdade de investimento e a liberdade de estabelecimento, e a liberdade de organização e de gestão da atividade da empresa, o que pode reconduzir-se à liberdade empresarial, sendo que as limitações à liberdade de iniciativa terão de ser justificadas à luz do princípio da proporcionalidade e com respeito pelo núcleo essencial (Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., pág.790).
Ora, não se vê em que termos é que a simples exigência da emissão de fatura com a identificação do titular de cartão de acesso ao consumo do gasóleo colorido e marcado, que constitui um requisito definido no artigo 93.º, n.º 5, do CIEC para a venda do produto à taxa de tributação reduzida, e igualmente consta da Portaria que estabelece as regras de comercialização, possa pôr em causa a liberdade de iniciativa económica, quando é certo que a Requerente não fica minimamente impedida, por efeito dessa imposição legal, de organizar e gerir livremente a sua atividade empresarial.
E, por outro lado, como se deixou exposto, as medidas de controlo do acesso ao consumo do gasóleo colorido e marcado, como a referida identificação do adquirente, não podem considerar-se como desproporcionadas, excessivas ou arbitrárias, quando se encontram justificadas pela necessidade de assegurar a correta afetação do produto aos destinos que beneficiam da aplicação de taxa reduzida.
Deve ter-se em conta que existe uma obrigação de faturação relativamente a cada transmissão de bens ou serviços, independentemente da qualidade do adquirente dos bens ou destinatário dos serviços (artigo 29.º n.º 1, alínea b), do Código do IVA) e só a fatura passada em forma legal confere o direito à dedução de IVA (artigo 19.º, n.º 2, alínea a)). O que implica que a fatura deve obedecer às formalidades previstas no artigo 36.º, n.º 5, do Código do IVA, que, na sua alínea a), refere especialmente, entre os elementos que devem constar obrigatoriamente das faturas, a menção dos “nomes, firmas ou denominações sociais e a sede ou domicílio do fornecedor dos bens ou prestador dos serviços e do destinatário ou adquirente, bem como os correspondentes números de identificação fiscal dos sujeitos passivos do imposto. Disposição essa que transpõe para o direito interno o artigo 226.º da Diretiva 2006/112/CE (sobre estes aspetos, Clotilde Celorico Palma, Introdução ao Imposto sobre o Valor Acrescentado, 6.ª edição, Coimbra, págs. 272 e segs.).
E, por outro lado, também os gastos dedutíveis para efeitos fiscais devem estar comprovados documentalmente, devendo o documento comprovativo, no caso de gastos incorridos com a aquisição de bens ou serviços, conter, entre outros, os elementos referentes ao nome ou denominação social do fornecedor dos bens ou prestador dos serviços e do adquirente ou destinatário e os números de identificação fiscal (cfr. Gustavo Lopes Courinha, Manual do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, 2019, Coimbra, págs. 105-106).
Todas essas imposições enquadram-se na margem de delimitação e configuração legislativa do direito de iniciativa económica, sendo que é o próprio artigo 61.º, n.º 1, da Constituição que estipula que a iniciativa económica privada se exerce livremente “nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral”.
Havendo uma obrigação genérica de faturação, não pode afirmar-se que a exigência específica, que consta do n.º 5 do artigo 93.º do CIEC, relativamente à emissão de fatura em nome do titular do cartão - que se encontra justificada por necessidade de controlo da afetação do produto – ofende a liberdade de iniciativa económica.
Não existe, por conseguinte, qualquer violação da liberdade de iniciativa económica e muito menos se pode considerar que a referida exigência legal, que é de fácil cumprimento, põe em causa o conteúdo essencial da garantia institucional a ponto de se entender que o simples cumprimento da formalidade, que é comum a toda a atividade empresarial, aniquila o direito fundamental e retira ao preceito constitucional toda a sua utilidade.
6. A Requerente alega ainda que, tendo sido aplicada uma coima, pelos mesmos factos, no âmbito de um procedimento contraordenacional, nos termos do n.º 2, alínea p), e n.º 6, do artigo 109.º do RGIT, houve ofensa do princípio da tipicidade das sanções, bem como do princípio ne bis in idem e da presunção de inocência.
Em linhas gerais, o princípio da tipicidade, como princípio básico do regime constitucional da lei criminal, que resulta do artigo 29.º da Constituição, abrange a suficiente especificação do tipo de crime, a proibição de analogia na definição de crimes e a determinação do tipo de pena que cabe a cada crime.
O princípio ne bis in idem, corporizado no artigo 29.º, n.º 5, da Constituição, proíbe o duplo julgamento pela prática do mesmo crime, garantindo ao cidadão o direito a não ser julgado pelo mesmo facto e obrigando o legislador a conformar o direito processual de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto. Nada obsta, à luz desse princípio, que uma conduta seja sancionada como crime e infração disciplinar (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 263/94) ou como crime e contraordenação (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 244/94).
O princípio da presunção de inocência constitui uma garantia de defesa do processo penal, significando, como resulta do n.º 2 do artigo 32.º da Constituição, que “todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa”.
Essencialmente, a presunção de inocência exige que ao arguido sejam asseguradas todas as garantias de defesa antes de ser condenado, incluindo a informação sobre as provas que foram coligidas para que possa preparar a defesa, e encontra-se associada ao princípio in dubio pro reo em matéria de apreciação da prova, implicando que o juiz se pronuncie em sentido favorável ao réu quando se verificar um non liquet probatório, ou seja, quando não houver a certeza quanto aos factos relevantes para a decisão da causa.
Todos estes princípios constitucionais respeitam ao direito penal e ao direito processual penal e não têm qualquer aplicação ao caso dos autos.
O artigo 93.º, n.º 5, do CIEC é uma norma de incidência tributária, que, em caso de inobservância das formalidades legalmente previstas para o consumo do gasóleo colorido e marcado, determina sujeição do proprietário ou titular da exploração de postos de venda à tributação que seria exigível por inaplicação da taxa reduzida. E, como resulta do princípio geral do artigo 10.º da LGT, o carácter ilícito da obtenção de rendimentos ou da aquisição, titularidade ou transmissão de bens não obsta à sua tributação quando esses atos preencham os pressupostos das normas de incidência tributária.
Nada impede, por conseguinte, que o mesmo facto tributário, que origina o pagamento de imposto, seja qualificado como crime tributário ou contraordenação tributária à luz do Regime Geral das Infrações Tributárias. E a circunstância de a lei fiscal ser objeto também de tutela fiscal ou contraordenacional, não significa que a norma de incidência tributária deva ser considerada, ela própria, como uma norma penal ou contraordenacional para efeitos da aplicação dos princípios da constituição criminal (cfr. Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, Coimbra, 2015, págs. 83-84).
É, assim, manifesto que não há qualquer violação dos invocados princípios constitucionais, e, por maioria de razão, não poderia estar em causa a violação do conteúdo essencial de direitos fundamentais.
E, como se refere, no acórdão do STA de 9 de janeiro de 2020 (Processo n.º 01846/17), afastada a inconstitucionalidade da norma legal por violação de qualquer dos direitos fundamentais ou princípios constitucionais alegados, afastada fica a ofensa ao conteúdo essencial desses direitos ou princípios.
Não sendo aplicável o regime de nulidade dos atos administrativos do artigo 161.º, n.º 2, alínea d), do CPA, o ato tributário que constitui objeto do pedido arbitral encontra-se sujeito ao regime regra da anulabilidade, só podendo ser impugnado nos prazos previstos na lei (artigo 163.º, n.º 4, do CPA).
Fixando a lei um prazo de 90 dias a contar do termo do prazo para pagamento voluntário da prestação tributária, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e 102.º, n.º 1, alínea a), do CPPT, e verificando-se que o termo a quo, na situação do caso, ocorreu em 6 de julho de 2018, a apresentação do pedido arbitral em 6 de maio de 2022 é manifestamente intempestiva.
III – Decisão
Termos em que se decide julgar procedente a exceção dilatória da caducidade do direito de ação e julgar extinta a instância.
Valor da causa
A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 73.007,06, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.
Custas
Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 2.448,00, que fica a cargo da Requerente.
Notifique.
Lisboa, 31 de outubro de 2022
O Presidente do Tribunal Arbitral
Carlos Fernandes Cadilha
O Árbitro vogal
Alberto Amorim Pereira
A Árbitro vogal
Sílvia Oliveira