Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 160/2022-T
Data da decisão: 2022-11-03  IUC  
Valor do pedido: € 2.120,84
Tema: Imposto Único de Circulação – Incidência subjetiva.
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DECISÃO ARBITRAL

 

REQUERENTE: A...

 

REQUERIDA: AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA

 

I – RELATÓRIO                                                                                                              

A. – PARTES

 

A..., S.A. -  SUCURSAL EM PORTUGAL, a seguir designada por Requerente, pessoa colectiva nº ..., com sede na Rua ..., ..., ...-... ..., veio requerer em 11 de Março de 2022 a constituição do tribunal arbitral singular em matéria tributária, ao abrigo do prescrito no art. 2º, nº 1, alínea a) do Decreto – Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico de Arbitragem Tributária - RJAT) e nos arts. 1º, alínea a) e 2º da Portaria nº 112 – A/2011, de 22 de Março, com a finalidade de ser dirimido o litígio que a opõe à Autoridade Tributária e Aduaneira, que doravante será designada por Requerida.

 

B. – CONSTITUIÇÃO DO TRIBUNAL

 

  1. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD em 14/03/2022 e automaticamente notificado à Requerente e à Requerida Autoridade Tributária e Aduaneira nesta data, tendo a Requerente juntado documentos em 15/03/2022 e a Requerida designado juristas para a representar, por despacho de 18/03/2022, comunicado em 04/04/2022.

 

  1. Em 24/05/2022, o Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o signatário como árbitro do Tribunal Arbitral Singular, ao abrigo do disposto no art. 6º, nº 1, do RJAT, encargo este que foi aceite, nos termos legalmente estabelecidos.

 

       3. Em 24/05/2022, as Partes foram notificadas dessa designação, nos termos das             disposições combinadas do art. 11º, nº 1, alínea b) do RJAT e dos artigos 6º e 7º do Código Deontológico, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro.

 

        4. Nestas circunstâncias, o Tribunal foi constituído em 24/05/2019, nos termos do preceituado na alínea c), do nº 1, do art. 11º do Decreto – Lei nº 10/2011, o que foi notificado às Partes nessa data.

 

                                          

C. – PRETENSÃO

 

     A Requerente pretende que o Tribunal Arbitral proceda à anulação, por ilegalidade, de 24 actos tributários de liquidação de IUC, referentes a 24 veículos automóveis, identificados nos autos, relativos ao ano de 2020, bem como a declaração de ilegalidade do acto de indeferimento do recurso hierárquico nº ...2021... e da reclamação graciosa nº ...2021..., que lhes subjazem e, em consequência

     Determine a restituição do imposto que foi pago pela Requerente, no montante de 2.120,48 euros, acrescido de juros indemnizatórios, calculados à taxa legal e contados desde a data das liquidações.

 

D. – TRAMITAÇÃO DO PROCESSO

 

     Após a comunicação da data da constituição do Tribunal Arbitral, em 24/05/2022, seguiram-se os posteriores termos processuais na forma seguinte:

 

- Em 24/05/2022 – Foi notificada a Requerida para, nos termos dos nºs 1 e 2 do art. 17º do RJAT, apresentar Resposta no prazo de 30 dias e, querendo, solicitar produção de prova adicional e juntar o processo administrativo.

 

- Em 22/06/2022 – A Requerida apresentou Resposta ao Pedido de Pronúncia Arbitral, defendendo-se por impugnação e requerendo a dispensa da inquirição de testemunhas e da reunião a que alude o art. 18º do RJAT, e juntou o processo administrativo, tendo sido, de tudo, notificada a Requerente.

 

- Em 23/06/2022 – O Tribunal exarou um despacho arbitral, que foi notificado às Partes, visando:

    - Dispensar a realização da reunião prevista no art. 18º do RJAT, em aplicação dos princípios da autonomia do tribunal arbitral na condução do processo, da celeridade e da simplificação e das informalidades processuais (arts. 19, nº 2 e 29, nº 2 do RJAT), tendo em conta que a matéria de facto relevante para a decisão poderá ser fixada com base na prova documental.

    - Determinar o prosseguimento do processo, mediante a notificação das Partes, para apresentarem alegações escritas, facultativas, no prazo sucessivo de dez dias;

    - Solicitar, ao abrigo do princípio da colaboração, a remessa das peças processuais em formato word.

    - Determinar que a decisão arbitral e sua notificação será proferida até ao termo do prazo previsto no art. 21º, nº 1 do RJAT.

 

- As Partes não apresentaram alegações escritas.

 

 - Em 03/11/2019 – Prolação da decisão arbitral.

 

E. – PRETENSÃO DA REQUERENTE E SEUS FUNDAMENTOS

 

      A fundamentar o Pedido de Pronúncia Arbitral, a Requerente alegou, em síntese, o seguinte:

 

- A Requerente apresenta o pedido de pronúncia arbitral sobre a ilegalidade de 24 atos de liquidação de IUC identificados numa listagem, que junta, emitidos pela Requerida, relativamente a 24 veículos automóveis, igualmente discriminados, respeitantes ao ano de 2020, no montante global de € 2.120,48; e, bem assim, sobre a ilegalidade do ato de indeferimento total do recurso hierárquico n.º ...2021..., resultante do indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2021... contra aqueles atos tributários;

 

- A requerente refere que, muito embora os atos de liquidação tenham sido dirigidos ao «Banco B..., S.A.», com o número de pessoa coletiva..., é a Requerente («A..., S.A. – Sucursal em Portugal»), com o número de pessoa coletiva ... que detém legitimidade para apresentar o presente pedido de pronúncia arbitral;

- Pois, em resultado de uma reorganização societária intra-grupo, o Banco B... S.A., fundiu-se com a sociedade A... S.A., através de uma fusão sem liquidação, adquirindo, por sucessão universal, a totalidade dos seus direitos e obrigações, com efeitos a 01-10-2021;

- Assim, a partir da referida data, passou a ser uma sucursal do C..., S.A., ..., ... Madrid, Espanha, registada junto do Registo Mercantil de Madrid F. (hoja) M-..., L. (tomo) ..., F. (folio) ..., CIF A-..., e a utilizar a designação de  A... S.A. - Sucursal em Portugal, com sede em Rua ... ..., Portugal, com o NIPC..., registada no Banco de Portugal com o número ...  e junto da Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões com o número OV...;

- Alega, ainda, que o presente Pedido de Pronúncia Arbitral tem como objeto mediato um conjunto dos referidos atos tributários;

- E que, por não concordar com o entendimento da AT que subjaz àqueles atos tributários, deduziu a competente reclamação graciosa, tendo sido a mesma parcialmente indeferida, motivo pelo qual foi apresentado o competente recurso hierárquico, o qual veio a ser totalmente indeferido;

- Os atos de liquidação assentam nos mesmos factos e, bem assim, nos mesmos fundamentos de Direito – tal como os atos de indeferimento do recurso hierárquico e da respetiva reclamação graciosa;-

Com efeito, todos eles pressupõem o mesmo entendimento jurídico-tributário, o de que a Requerente, que já foi proprietária e entidade locadora dos veículos automóveis, continua a ser responsável pelo pagamento dos IUC em causa depois de já se ter operado a sua transmissão para os novos proprietários, porquanto tais transmissões não se encontravam – nos anos em que os impostos eram supostamente devidos – registadas em nome dos atuais proprietários;

- O apuramento da (i)legalidade dos atos controvertidos implica a análise dos mesmos fundamentos de facto e a interpretação e a aplicação das mesmas regras e princípios de Direito, pelo que, considerando esta identidade de factos tributários, de factualidade relevante e da fundamentação jurídica, assim como do Tribunal competente para a decisão, é legítima a cumulação de pedidos;

- A Requerente apresenta-se como uma instituição de crédito e é, atualmente, um dos maiores bancos especializado a operar no financiamento ao setor automóvel, na área dos bens de consumo, cartões de crédito, co branded e empréstimos pessoais;

- Nessa medida, uma parte substancial da sua atividade reconduz-se à celebração de – entre outros – contratos de locação financeira ou de aluguer de longa duração, destinados à aquisição, por empresas e particulares, de veículos automóveis;

- De acordo com cada um destes contratos, o financiamento concedido ao locatário pela Requerente é restituído (dito de outro modo, recuperado) em prestações mensais, sob a forma de rendas;

 

- E, uma vez liquidadas as rendas, e assim alcançado o termo do correspondente contrato, o locatário tem o direito de adquirir o bem locado mediante o pagamento do valor residual da viatura automóvel, acrescido de despesas e IVA;

- Os veículos automóveis em causa, foram dados, sem excepção, em contratos de aluguer de longa duração («ALD») ou de locação financeira («LSG») pela Requerente aos clientes identificados – conforme resulta dos respectivos contratos;

- Quase todos estes clientes adquiriram, no termo de cada contrato, o veículo automóvel sobre o qual o mesmo incidia, mediante o pagamento do valor residual do bem locado, acrescido de despesas e IVA – tal como atestam os documentos comprovativos das correspondentes transmissões (designadamente, faturas de venda);

- Pelo que a propriedade de cada um dos veículos automóveis havia sido transmitida para os seus anteriores locatários ou, em casos pontuais, por ter ocorrido um sinistro ou cedência da posição contratual foi transmitida para terceiros.

- Não obstante, a Requerente foi notificada para proceder ao pagamento dos IUC, o que fez tempestivamente;

- Em suma, nas datas respeitantes aos factos tributários que originaram estas liquidações, a Requerente já não era locadora nem proprietária daqueles veículos automóveis e, por conseguinte, não pode assumir a qualidade de sujeito passivo dos impostos que lhe foram erroneamente liquidados;

- A Requerente tem vindo a proceder à apresentação dos competentes pedidos de registo da propriedade de todas as viaturas automóveis, em nome dos atuais proprietários, que têm sido instruídos com os correspondentes documentos comprovativos das transmissões, designadamente as faturas de venda, servindo tal documento como meio de prova válido e suficiente para efeitos de registo da propriedade em nome dos novos proprietários;

- O fundamento invocado pela AT nos procedimentos graciosos assenta, sinteticamente, na seguinte linha de argumentação: a de que – nos anos em que se tornaram exigíveis aqueles IUC – a propriedade dos veículos automóveis ainda estava registada na CRA em nome da Requerente;

- Quando, aquele registo – ou a sua falta – não pode ser em momento algum considerado elemento decisivo da responsabilidade tributária da Requerente, razão pela qual se encontram irremediavelmente feridos de ilegalidade quer os atos de indeferimento do recurso hierárquico, quer os atos tributários subjacentes;

- Segundo a Requerente a vexata quaestio subjacente a este Pedido de Pronúncia Arbitral reside, essencialmente, em saber se a circunstância de a transmissão dos veículos automóveis aos seus anteriores locatários, findo o contrato de LSG, não ter sido registada junto da CRA, torna essa transmissão inoponível à AT, sobretudo, para efeitos de cobrança do imposto ao seu anterior proprietário;

- Pelo que não deve ser atribuída a incidência subjetiva deste imposto quando – após o término do contrato – o locatário exerce o seu direito a adquirir o bem locado pelo valor residual, acrescido de despesas e IVA, tornando-se, nestas circunstâncias, o (novo) proprietário do veículo automóvel outrora locado, passando a aplicar-se-lhes integralmente o disposto no n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC;

- No término destes contratos de leasing, a entidade locadora cessa definitivamente os seus vínculos para com aqueles veículos automóveis;

- Vínculos esses eram (nem nunca foram), de maneira alguma, suficientes para comprometer a sua responsabilidade tributária, nem para ditar a incidência subjetiva do imposto;

- Quer isto dizer que a partir do momento em que os anteriores locatários adquirem os veículos automóveis (ou até terceiros em casos pontuais), em virtude das consequências obrigacionais, é apenas a estes – já na qualidade de (novos) proprietários dos mesmos –, que incumbe pagar os IUC e demais encargos associados, pelo menos só assim fará sentido à luz do princípio da equivalência, como fundamento e limite deste regime;

- Pelo que os atos de liquidação remetidos à Requerente apenas se compreenderiam se, por força da falta de registo atempado da transmissão dos veículos automóveis para os seus novos proprietários, os mesmos não devessem produzir os seus efeitos perante a AT;

- Assentando tal entendimento, na tese da presunção inilidível advogada pela AT de que a falta de registo da transmissão operada entre a Requerente e os adquirentes dos veículos a torna inoponível perante a AT;

- Coloca-se, então, a questão de saber quem é, afinal, o sujeito passivo do IUC: se quem aparenta ser o proprietário por constar como tal no registo automóvel à data do facto tributário do imposto ou, pelo contrário, se o titular que consta do registo pode demonstrar que essa circunstância não traduz a realidade de facto, na medida em que, por exemplo, tinha vendido o veículo automóvel em data anterior à data de aniversário da matrícula?;

- É por demais evidente que a Requerente não subscreve quaisquer argumentos que insinuam que o n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC estabelece uma «presunção ilidível de incidência subjetiva» do imposto com base tão só no registo automóvel, desde logo, porque os efeitos do registo automóvel e o princípio da equivalência não apontam nessa direção, mas também porque esta proposta hermenêutica não se coaduna com os elementos gerais da interpretação das leis, nos termos dos artigos 11.º da Lei Geral Tributária («LGT») e 9.º do Código Civil («CC»);

- Em primeiro lugar, porque o registo de propriedade automóvel não é condição de eficácia do contrato de compra e venda do veículo, mas tem somente eficácia declarativa, conforme sufragado por doutrina e jurisprudência, que cita;

- Em segundo lugar, e socorrendo-nos dos elementos de interpretação de natureza racional ou teleológica, porque o princípio da equivalência está consubstanciado no artigo 1.º do CIUC – no atual e novo quadro da tributação automóvel – decorre daí que o sujeito do passivo do imposto deverá ser o real proprietário do veículo e não o proprietário registado, uma vez que será o primeiro que causa os custos ambientais e viários que este tributo comutativo visa compensar;

- Na incidência subjetiva do IUC este princípio manifesta-se não só na permissão por parte do legislador, no n.º 2 do artigo 3.º do CIUC, de que o imposto seja devido pelos presumíveis utilizadores dos veículos automóveis, como é o caso dos locatários financeiros, dos adquirentes com reserva de propriedade, bem como de outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação, sem que a existência do registo obrigatório, mas também, por igualdade de razão, na possibilidade da ilisão da presunção do n.º 1 do artigo 3.º do CIUC;

- A exclusão de tributação do real proprietário como sujeito passivo do imposto, traduzir-se-ia na oneração fiscal de quem não causava (com a viatura automóvel em causa) danos viários e ambientais, distorcendo a racionalidade da unidade do sistema e frustrando os fins visados pelo Código do IUC, desde logo, no seu artigo 1.º;

- Em terceiro lugar, através do recurso às regras elementares de hermenêutica jurídica (elemento histórico), extrai-se a observação preliminar de que, desde a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 59/72, de 30 de Dezembro, o primeiro a regular esta matéria, até ao Decreto-Lei n.º 116/94, de 3 de Maio, o último a anteceder o Código do IUC aprovado pela Lei n.º 22-A/2007, de 29 de Junho, o legislador consagrou (ou sempre quis consagrar) a presunção ilidível dos sujeitos passivos do imposto serem as pessoas em nome das quais os veículos automóveis se encontravam registados;

- Constata-se, portanto, que a legislação fiscal teve, desde sempre, o objetivo de tributar o verdadeiro e efetivo proprietário e utilizador do veículo, afigurando-se indiferente a utilização de uma outra expressão que, como vimos, têm no ordenamento jurídico português um sentido coincidente;

- Em quarto lugar, e recortando conceptualmente as presunções, o artigo 349.º do CC define-as como «ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido»;

- Nesta conformidade, para estarmos perante uma presunção não é estritamente necessário que seja usado o verbo «presumir» ou «considerar», basta que de um facto conhecido – a pessoa em nome da qual a propriedade do veículo automóvel se encontra registada – se retire um facto desconhecido – se considere proprietário da viatura – para asseverar, a final, a incidência subjetiva de um indivíduo;

 

- Pelo que as presunções – sobretudo em matéria de incidência tributária – podem ser explícitas ou implícitas, sem que tal signifique que as presunções implícitas sejam, por isso, inilidíveis;

- E o artigo 73.º da LGT ao prever que as presunções relativas a normas de incidência tributária são sempre ilidíveis – «admitem sempre prova em contrário» –, então, o único desfecho possível é o de que o n.º 1 do artigo 3.º do CIUC é uma presunção juris tantum, portanto, ilidível;

- Em quinto lugar, a conjugação do n.º 1 do artigo 3.º com o n.º 1 do artigo 6.º, ambos do CIUC, nos termos do qual «[o] facto gerador do imposto é constituído pela propriedade do veículo, tal como atestada pela matrícula ou registo em território nacional»;

- Levada ao extremo provocaria situações em que, por exemplo, o proprietário registado do veículo automóvel, depois de o ter destinado ao abate a sucateiros, a maior parte das vezes desapossado de quaisquer provas de que procedeu ao abate do veículo, muito menos do certificado de destruição ou de desmantelamento qualificado do mesmo, pelo facto da propriedade se encontrar registada junto da CRA e de estar legalmente impedido de promover o «cancelamento da matrícula», iria dever IUC por uma viatura automóvel já abatida há anos ad eternum,;

- Ou, em alternativa, em que quando estamos perante veículos não sujeitos a matrícula em Portugal e que permaneçam em território nacional por período igual ou inferior a 183 dias em cada ano civil, aceitar que não há qualquer norma de incidência subjetiva nos casos em que a AT não possa aceder ao registo da propriedade dos veículos automóveis no Estado da matrícula;

- A pedra-de-toque do facto gerador do IUC deixou de ser a circulação como acontecia com os seus antecessores e passou a ser tão-só a propriedade (atestada pela matrícula ou pelo registo), o que se, por um lado, poderá realmente permitir um controlo mais eficaz na liquidação e cobrança deste tributo comutativo, suscita, por outro lado, estando igualmente previsto que o imposto será devido pelo seu proprietário até ao «ao cancelamento da matrícula em virtude do abate efetuado nos termos da lei», nos termos do n.º 3 do artigo 4.º do Código do IUC, um problema no «saneamento» do registo de propriedade;

- Em contraponto, o próprio Código do IUC contém normas que apelam a realidades não registadas, designadamente o n.º 2 do artigo 2.º e o n.º 2 do artigo 6.º, ambos daquele diploma legal, não se baseiam na realidade «registral» para proceder, respetivamente, à determinação da incidência objetiva do facto gerador da tributação, mas sim numa realidade de facto, «a permanência em território nacional por período superior a 183 dias, seguidos ou interpolados, em cada ano civil, de veículos não sujeitos a matrícula em Portugal e que não sejam veículos de mercadorias de peso bruto igual ou superior a 12 toneladas»;

- Em sexto lugar, o artigo 215.º da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro que aprovou o Orçamento de Estado para 2015, que veio aditar o artigo 17.º-A do CIUC sob a epígrafe «[e]feitos fiscais da regularização da propriedade», apenas aplicável às transmissões de veículos automóveis ocorridas em ou após o dia 1 de Janeiro de 2015, mais não são do que uma «clarificação» das normas de incidência subjetiva do IUC;

- Quer com isto dizer a Requerente que o artigo 17.º-A não contempla uma regra de incidência subjetiva, mas versa sobre os «[e]feitos fiscais da regularização da propriedade» e principia com «[s]em prejuízo do disposto no artigo 3.º», inferindo-se da redação do artigo que, sem prejuízo da possibilidade de ilidir a presunção derivada do registo, «a alteração da titularidade do direito de propriedade efetuada ao abrigo do procedimento especial para registo de propriedade de veículos adquirida por contrato verbal de compra e venda releva para efeitos de imposto único de circulação, desde a data da transmissão, quando aquele pedido for apresentado pelo vendedor no prazo de um ano após o decurso do prazo para cumprimento do registo obrigatório referido no artigo 2.º daquele procedimento especial»;

- Em face do exposto, acham-se reunidas as condições para se ssumir que o n.º 1 do artigo 3.º do CIUC configura uma presunção ilidível, que admite sempre prova em contrário, porquanto a pessoa que está inscrita no registo como proprietária do veículo automóvel e que, por essa razão é considerada – e bem – pela AT como sujeito passivo de IUC, pode, no entanto, apresentar elementos de prova com vista a demonstrar que o titular da propriedade é outrem, para quem a propriedade foi transferida antes do imposto se tornar exigível, sustentando esta posição em variada jurisprudência, que identifica;

- Quanto ao valor probatório das faturas, socorre-se, também de doutrina e jurisprudência para alegar que a prova em causa pode ser produzida por qualquer meio, uma vez que a lei não exige prova escrita para estes contratos;

- Concluindo que o valor probatório dos documentos comprovativos das transmissões e que, por conseguinte, que ilidem a presunção do registo automóvel junto da CRA, foi reconhecido, pois o artigo 29.º do CIVA (ou até mesmo o CIRC) sempre reconheceu a fatura como documento ao qual é legalmente atribuída relevância para documentar e comprovar ransações;

- Esses documentos que a Requerente juntou aos presentes autos afiguram-se mais do que suficientes para comprovar as transmissões dos veículos automóveis em causa, gozando, aliás, e não poderia deixar de ser, da presunção de veracidade supra abordada;

- E, assim sendo, atendendo à documentação suficientemente concludente anexada ao presente Pedido de Pronúncia Arbitral, há que concluir que a Requerente não era a real proprietária dos veículos automóveis a que respeitam os atos tributários postos mediatamente em crise e, por isso, não era o sujeito passivo dos IUC (i.e., não está verificada a incidência subjetiva do imposto), pelo que que os mesmos estão inquinados de insanável ilegalidade, por terem sido emitidos ao abrigo de um erro de facto sobre os pressupostos e, portanto, de uma violação flagrante da lei;

- Ilegalidade essa que contamina irremediavelmente os atos de indeferimento das reclamações graciosas por padecerem do mesmo vício, e, em consequência, devem ser todos anulados – o que, expressamente a Requerente peticiona;

- Após tecer considerações sobre a interpretação da Requerida maximalista da receita fiscal e cerceadora do princípio da equivalência termina alegando que mesmo que se pudesse interpretar o disposto no n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC como se de uma presunção inilidível se tratasse, não era possível, contudo, aplicar essa interpretação à situação vertente (entidade locadora), sob pena de manifesta inconstitucionalidade, ferindo os atos de indeferimento das reclamações graciosas e, em consequência, os atos de liquidação mediatamente impugnados – o que se invoca expressamente nesta sede – com apoio legal no artigo 13.º da CRP;

- A par da anulação das liquidações e consequente reembolso das importâncias pagas, a Requerente peticiona que lhe seja reconhecido o direito a juros indemnizatórios ao abrigo do artigo 43.º da LGT e que a AT seja condenada em custas arbitrais;

- Porquanto a AT já teve a possibilidade de revogar os atos de liquidação em apreço no âmbito do procedimento gracioso (reclamação graciosa e recurso hierárquico), algo que, caso tivesse vindo a ocorrer, inutilizaria a apresentação do presente Pedido de Pronúncia Arbitral;

- E, à luz do preceituado no artigo 13.º do RJAT, a AT tem ainda a possibilidade de – recebida a petição arbitral e analisados os argumentos e os documentos coligidos pela Requerente – proceder à revogação de todos os atos tributários cuja ilegalidade foi suscitada;

- Caso assim não se entenda os juros indemnizatórios serão devidos, pelo menos, a partir da reclamação graciosa;

- Em rigor, e em boa verdade, estes atos tributários em sentido lato são da única e exclusiva responsabilidade da AT, que, por conseguinte, não poderá deixar de ser devidamente responsabilizada pelo pagamento de juros indemnizatórios, calculados à taxa legal e, inevitavelmente, de assumir as custas arbitrais.

- Termos em que requer a admissão do presente Pedido de Pronúncia Arbitral, nos termos e para os efeitos do RJAT, aplicando-se os efeitos mencionados no artigo 13.º do RJAT e seguindo-se a tramitação prevista nos artigos 17.º e seguintes do mesmo diploma, tudo com as devidas consequências legais, concluindo‑se a final pela declaração de ilegalidade do ato de indeferimento do recurso hierárquico e anteriormente da reclamação graciosa, assim como dos 24 atos de liquidação de IUC que lhes subjazem, sob pena de consentirmos uma violação desproporcional do princípio da equivalência constitucionalmente consagrado no artigo 13.º da CRP.

- Requerendo, assim, o reembolso do montante de € 2.120,48 relativo ao imposto indevidamente pago pela Requerente, bem como o pagamento de juros indemnizatórios pela privação do montante de € 2.120,48, nos termos do artigo 43.º da LGT, calculados à taxa legal e contados desde a data de pagamento das liquidações.

 

- A Requerente juntou 3 anexos, vários documentos e 1 parecer e arrolou 2 testemunhas

 

F. – RESPOSTA DA REQUERIDA E SEUS FUNDAMENTOS

 

     Alegou, em síntese, a Requerida, defendendo-se por impugnação:

 

- Relativamente à incidência subjectva do IUC:-

 

- O artigo 3.º, n.os 1 e 2, do CIUC, tinha a seguinte redacção até à aprovação do Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de Agosto:

“                                              Artigo 3.º – Incidência Subjectiva

1 - São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

2 - São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação.”

 

- Contudo, com o referido Decreto-Lei n.º 41/2016, o n.º 1 do citado artigo 3.º passou a ter uma redação bem distinta:

“                                           Artigo 3.º – Incidência Subjectiva

 

1 - São sujeitos passivos do imposto as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais se encontre registada a propriedade dos veículos. “

 

- A alteração legislativa visa, claramente, passar a incidência subjectiva do IUC do proprietário do veículo para a pessoa em nome da qual está registada a propriedade do veículo, seja ela ou não o seu proprietário e/ou possuidor;

 

- No caso concreto, estão em causa liquidações de IUC do ano de 2020, pelo que se aplica esta alteração legislativa;

 

- E a nova redacção do n.º 1 do artigo 3.º do CIUC não contempla uma presunção. Estabelece que «São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados»;

 

- Ora, tal como é sabido, é no texto da lei que deve ser procurada a resposta para qualquer problema; é este o ponto de partida do processo hermenêutico e também um seu limite, na medida em que não é possível considerar aqueles sentidos que não tenham «(…) “Na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”.»;

 

- Note-se que o legislador não usou a expressão “presumem-se”, como poderia ter feito, por exemplo, nos seguintes termos: são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, presumindo-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados;

 

- Nestes termos, é imperativo concluir que, no caso dos presentes autos de pronúncia arbitral, o legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram como tais [como proprietários ou nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas] as pessoas em nome das quais os mesmos [os veículos] se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal;

 

- Entender que o legislador consagrou aqui uma presunção, seria inequivocamente efectuar uma interpretação contra legem;

 

- Pois, face a esta redacção não é manifestamente possível invocar que se trata de uma presunção, conforme defende a Requerente;

 

- Trata-se, sim, de uma opção clara de política legislativa acolhida pelo legislador, cuja intenção, adentro da sua liberdade de conformação legislativa, foi a de que, para efeitos de IUC, sejam considerados proprietários, aqueles que como tal constem do registo automóvel.

 

- É este o entendimento já adoptado por jurisprudência dos nossos tribunais, que cita;

 

- Entendimento diverso, poria em causa, inequivocamente, a segurança e a certeza jurídicas (na medida em que o instituto do registo automóvel deixaria de proporcionar a segurança e a certeza que constituem as suas finalidades principais), assim como o poder-dever de a Requerida liquidar impostos;

 

- Mesmo admitindo que, do ponto de vista das regras do direito civil e do registo predial, a ausência de registo não afecta a aquisição da qualidade de proprietário e que o registo não é condição de validade dos contratos com eficácia real, nos termos estabelecidos no CIUC (que no caso em apreço constitui lei especial, a qual, nos termos gerais de direito derroga a norma geral), o legislador tributário quis intencional e expressamente que fossem considerados como proprietários, locatários, adquirentes com reserva de propriedade ou titulares do direito de opção de compra no aluguer de longa duração, as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados;

 

- Também à luz de uma interpretação teleológica do regime consagrado em todo o CIUC, a interpretação propugnada pela Requerente no sentido de que o sujeito passivo do imposto é o proprietário efectivo, independentemente de não figurar no registo automóvel o registo dessa qualidade, é manifestamente errada;

 

- E é uma interpretação errada na medida em que é a própria ratio do regime consagrado no CIUC que constitui prova clara de que aquilo que o legislador fiscal pretendeu foi criar um imposto assente na tributação do proprietário do veículo tal como consta do registo automóvel;

 

- Note-se a este propósito desde logo que os casos taxativamente tipificados no artigo 3.º do CIUC, tanto no seu n.º 1, como no n.º 2, correspondem exactamente aos casos de registo automóvel obrigatório nos termos do Código do Registo Automóvel;

 

- Com efeito, o CIUC procedeu a uma reforma do regime de tributação dos veículos em Portugal, alterando de forma substancial o regime de tributação automóvel, passando os sujeitos passivos do imposto a ser os proprietários constantes do registo de propriedade, independentemente da circulação dos veículos na via pública;

 

- Neste sentido, refere o teor dos debates parlamentares em torno da aprovação do DL 20/2008, de 31 de Janeiro, dos quais resulta inequivocamente que o IUC é devido pelas pessoas que figuram no registo como proprietárias dos veículos, bem como a Recomendação do Provedor de Justiça de 2012/06/22, doutrina e jurisprudência;

 

- Todavia, ainda que assim não se entenda e aceitando-se ser admissível a ilisão da presunção à luz da jurisprudência já entretanto firmada neste centro de arbitragem, importará ainda assim, apreciar os documentos juntos pela Requerente e o seu valor probatório com vista a tal ilisão;

 

- Do acervo documental, a Requerente junta diversos contratos de locação financeira e contratos de aluguer de veículo sem condutor, sem se saber se os contratos foram cumpridos, se o preço foi pago, se existe litígio entre as partes;

- Os contratos que a Requerente junta não são prova suficiente de que houve transmissão de propriedade de um veículo da Requerente para terceiro numa determinada data, uma vez que a mesma não junta a cópia de um cheque ou de um extracto financeiro de onde conste o recebimento de um determinado valor respeitante à venda de veículo;

 

- A Requerente junta, ainda, um acervo de faturas/recibos e desses documentos consta a data de emissão e a data de vencimento, que não coincidem, para além de constar do lado inferior direito “Válido como recibo após boa cobrança”;

 

- Houve pagamento do valor da fatura? E qual a data de pagamento – a da emissão ou a de vencimento que consta da fatura? Em que data é que a fatura foi paga? E houve boa cobrança ou a Requerente está em situação de litígio?;

 

- Daqui decorre naturalmente a questão de saber se os documentos juntos pela Requerente constituem prova suficiente para abalar a (suposta) presunção legal estabelecida no artigo 3.º do CIUC;

 

- A Requerida entende que não, pelo que impugna os documentos juntos aos autos uma vez que os mesmos não provam de forma clara e inequívoca que ocorreu a transmissão do veículo e consequentemente da propriedade do mesmo;

 

- Com efeito, a Requerente não junta um único extracto financeiro ou cheque que prove que as faturas foram pagas ou que os contratos foram cumpridos, ou se, pelo contrário estão em contencioso;

 

- Acresce ainda dizer que relativamente às faturas, as mesmas não são aptas a comprovar a celebração de um contrato sinalagmático pois não revelam por si só uma imprescindível e inequívoca declaração de vontade (i.e., a aceitação) por parte dos pretensos adquirentes.

 

- A Requerida cita e transcreve jurisprudência neste sentido;

 

- As regras do registo automóvel não chegaram ao ponto de meras faturas poderem substituir o requerimento de registo automóvel, aliás documento aprovado por modelo oficial;

 

- Porém, a Requerente não juntou cópias do referido modelo oficial para registo da propriedade automóvel quando podia e devia tê-lo feito, ou seja, no requerimento do pedido de pronúncia arbitral, encontrando-se agora precludida a possibilidade de o fazer em momento ulterior;

 

- O que a Requerente apresenta é insuficiente para ilidir uma presunção legal decorrente do registo das viaturas em seu nome nas datas de exigibilidade dos impostos.

 

- Ainda que por hipótese o Tribunal Arbitral venha a concluir pela procedência do pedido de pronúncia arbitral deduzido pela Requerente, importa salientar o seguinte:

 

- O IUC visa tributar o proprietário do automóvel, sendo que a propriedade é revelada através do seu registo, o qual constitui a pedra angular de todo o edifício em que assenta o IUC;

 

- No entanto, a competência para o registo automóvel não se encontra na esfera da Requerida, mas sim atribuída a várias entidades exteriores, designadamente ao Instituto dos Registos e do Notariado a quem cabe transmitir à Requerida as alterações que se venham a verificar quanto à propriedade dos veículos automóveis;

 

- Por outro lado, a transmissão da propriedade de veículos automóveis não é suscetível de ser controlada pela Requerida, pois inexiste qualquer obrigação acessória declarativa quanto a esta matéria, contrariamente ao controlo que é passível de ser realizado, por exemplo, por via do prévio pagamento de Imposto Municipal Sobre Transmissão de Imóveis em matéria de transmissão de prédios;

 

- Significa isto, portanto, que o IUC é liquidado de acordo com a informação registral oportunamente transmitida pelo Instituto dos Registos e Notariado, e não de acordo com informação gerada pela própria Requerida;

 

- Ora, não tendo a Requerente cuidado da atualização do registo automóvel, como aliás podia

e competia [artigo 5.º/1-a) do Decreto-Lei 54/75, de 12 de fevereiro, e artigo 118.º/4 do Código da Estrada], e não tendo mandado cancelar as matrículas dos veículos aqui em apreço, forçoso é concluir que a Requerente não procedeu com o zelo que lhe era exigível;

 

- E ao não ter procedido com o zelo que lhe era exigível, levou inexoravelmente a Requerida a limitar-se a dar cumprimento às obrigações legais a que está adstrita e, paralelamente, a seguir a informação registral que lhe foi fornecida por quem de direito;

 

- Não foi a Requerida quem deu azo à dedução do pedido de pronúncia arbitral, mas sim a própria Requerente, pelo que não são devidos juros indemnizatórios, nem deverá a Requerida ser condenada ao pagamento das custas arbitrais decorrentes do presente pedido de pronúncia arbitral,

 

- Com efeito, à luz dos artigos 43.º da LGT e 61.º do CPPT, o direito a juros indemnizatórios depende da verificação dos seguintes pressupostos:

  1. estar pago o imposto;
  2. ter a respetiva liquidação sido anulada, total ou parcialmente, em processo gracioso ou judicial;
  3. determinação, em processo gracioso ou judicial, que a anulação se funda em erro imputável aos serviços;

 

- Conclui peticionando a improcedência do Pedido de Pronúncia Arbitral, considerando que os atos tributários em crise são válidos e legais, porque conformes ao regime legal em vigor à data dos factos tributários, pelo que, não ocorreu, in casu, qualquer erro imputável aos serviços, não se encontram reunidos os pressupostos legais que conferem o direito aos juros indemnizatórios;

 

– A Requerida juntou cópia do processo administrativo, não arrolou testemunhas e requereu a dispensa da reunião a que alude o art. 18º do RJAT e produção de prova testemunhal.

 

 

G. – QUESTÕES A DECIDIR

 

     Face às posições assumidas pelas Partes conforme os argumentos apresentados, são as seguintes questões que cabe apreciar e decidir:

 

 1 - Saber se o art. 3º do CIUC, após a alteração da sua redação operada pelo Decreto-lei nº 41/2016, de 1 de Agosto, contém uma presunção juris tantum.

 

2 - Apurar qual o valor jurídico do registo automóvel em sede de IUC, designadamente para efeitos de incidência subjectiva do imposto.

 

3 – Apurar se a documentação junta aos autos, designadamente as facturas, são aptas para provar as alienações.

 

4 – Juros indemnizatórios – Existência, ou não, do direito a juros indemnizatórios, ao abrigo do art. 43º da LGT, no caso de serem anuladas as liquidações e determinado o reembolso da importância peticionada e a partir de que momento.

 

 5 – Responsabilidade pelo pagamento das custas arbitrais.

 

 

H. – PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS

 

     1. O Tribunal Arbitral está regularmente constituído e é material competente, de acordo com o disposto na alínea a), do nº 1, do art. 2º do RJAT (Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro).

 

     2. As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se regularmente representadas, nos termos dos arts. 4º e 10º, nº 2 do RJAT e art. 1º da Portaria nº 112/2011, de 22 de Março.

 

3. Considerada a identidade do facto tributado, do tribunal competente para a decisão e dos fundamentos de facto e de direito invocados, o Tribunal admite a cumulação de pedidos de declaração de ilegalidade dos actos tributários que são objecto deste processo, uma vez que estão cumpridos os requisitos estabelecidos no art. 3º, nº 1 do RJAT.

 

 4. O processo não enferma de vícios que afectem a sua validade.

 

 

  1. – MATÉRIA DE FACTO

 

I. 1 – FACTOS PROVADOS

 

     Com relevância para a apreciação das questões suscitadas, o Tribunal dá como provados os seguintes factos:

 

1 – A Requerente é uma instituição financeira em que uma parte substancial da sua actividade reconduz-se à celebração de, entre outros, contratos de locação financeira ou de aluguer de longa duração de veículos automóveis, com empresas e particulares.

 

2 – No exercício da sua actividade, a Requerente celebrou com os clientes identificados na documentação junta aos autos contratos de aluguer de longa duração, ou de locação financeira, relativamente a 24 veículos automóveis, conforme discriminação e identificação constantes dessa documentação.

 

3 – Relativamente a estes veículos, a Requerida emitiu 24 liquidações de IUC, respeitantes ao ano de 2020, no montante global de 2.120,48 euros.

 

4 – A Requerente pagou tempestivamente este valor.

 

5 – A Requerente apresentou uma relação graciosa contra estes actos tributários, que tomou o nº ...2021... e foi indeferida.

 

6 – A Requerente apresentou um recurso hierárquico deste indeferimento, que tomou o nº ...2021... e que foi igualmente indeferido.

 

7 –À data das referidas liquidações de IUC, a Requerente já não era proprietária dos veículos em causa, embora continuasse a figurar no registo automóvel como tal.

 

8 – Em 11 de Março de 2022, a Requerente apresentou o Pedido de Pronúncia Arbitral.

 

 

 

I. 2 – FUNDAMENTAÇÃO DOS FACTOS PROVADOS

 

     Os factos dados como provados estão baseados nos documentos indicados relativamente a cada um deles, e nos elementos factuais carreados para o processo pelas Partes, na medida em que a sua adesão à realidade não foi questionada.

 

     Relativamente aos contratos configuram-se como documentos particulares que, quando devidamente assinados pelos seus outorgantes, revestem força probatória, uma vez que o requisito legal para o efeito de lhe atribuir força probatória formal é a assinatura do seu autor, considerando-se esta verdadeira quando reconhecida, ou não impugnada, pela parte contra quem o documento é apresentado (C. Civil arts. 373º e 374º, nº 1).

 

     Assim sendo, encontrando-se os contratos devidamente assinados e não tendo sido impugnadas as assinaturas neles apostas, nem tendo os mesmos sido objecto de arguição e prova de falsidade pela Requerida, fazem prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor (C. Civil, art. 376º, nº 1).

 

       Relativamente às facturas, o Tribunal entende que as mesmas são aptas a comprovar a celebração de contratos de compra e venda.

 

       Com efeito, não estando prevista na lei forma específica para a celebração de contrato de compra e venda de veículo automóvel e não tendo a Requerida arguido a falsidade das facturas juntas, tendo-se limitado a pôr em causa a sua força probatória, o Tribunal não poderá deixar de as aceitar como prova dos contratos, sendo irrelevante que conste nas mesmas que apenas servem de recibo após boa cobrança e não estar demonstrado o pagamento de respectivo valor.

 

       Na verdade, o que está em causa é saber se as facturas têm aptidão para demonstrar a alienação do veículo e não a sua capacidade de recibo ou quitação do recebimento do preço.

 

      Pois, mesmo que o preço não tivesse sido pago, nem por isso deixaria de haver um contrato de compra e venda, cujo efeito essencial é a transmissão da propriedade, uma vez que o pagamento do preço não é um elemento do contrato, nos termos do disposto no art. 879º do Código Civil.

 

J. – MATÉRIA DE DIREITO

 

     Fixada a matéria de facto, procede-se, de seguida, à sua subsunção jurídica e à determinação do Direito a aplicar, tendo em conta as questões a decidir que foram enunciadas.

 

     No Pedido de Pronúncia Arbitral, a Requerente alega que, à data em que ocorreram os factos tributários que originaram as liquidações de IUC, já não era proprietária dos veículos em causa, os quais tinham sido objecto de contratos de aluguer de longa duração ou de locação financeira, e, consequentemente, não era sujeito passivo do imposto que lhe foi liquidado.

 

     A Requerida Autoridade Tributária assume uma posição oposta relativamente a esta questão da incidência subjectiva do IUC, defendendo que:

 

     Nos termos do art. 3º, nº 1 do CIUC, é sujeito passivo do IUC a pessoa em nome da qual o veículo se encontre registado na Conservatória do Registo Automóvel, facto este que ocorria com a Requerente, no período em causa.

 

     Ora, estabelece o art. 3º do CIUC, sob a epígrafe “Incidência subjectiva”, no seu número 1: São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares e colectivas, de direito público ou privado, em nome dos quais os mesmos se encontrem registados.

 

     As orientações arrogadas pela Requerente e pela Requerida quanto a esta matéria e a sua fundamentação estão expostas, em síntese, ou com parcial transcrição, em E. e F. do Relatório desta Decisão.

 

     Cumpre, então, decidir:

 

     Conforme ficou provado, à data das liquidações do IUC, a Requerente não era proprietária dos veículos, embora figurasse como tal na Conservatória do Registo Automóvel, e, consequentemente, no seu entender, não seria o sujeito passivo destes impostos.

 

      Relativamente à questão de figurar no registo a Requerente como proprietária dos veículos, haverá que dizer o seguinte:

 

      A Requerida considerou que o disposto no artigo 3.º, n.º 1, do Código do IUC, não estabelece uma presunção, pelo contrário, preceituou expressa e intencionalmente que se consideram como proprietários as pessoas em nome das quais os veículos estão registados, ao invés da posição assumida pela Requerente.

 

       Assim, cumpre, agora, tomar posição sobre se a norma de incidência subjectiva referida, estabelece uma presunção legal, susceptível de ilisão, conforme defendido pela Requerente, ou consagra, como sustentado pela Requerida, de forma expressa e inilidível, que as pessoas em nome das quais os veículos estão registados como proprietários, para efeitos de incidência subjectiva do IUC, conforme defendido pela Requerida.

 

      Com vista à apreciação desta matéria deve ter-se presente o disposto no Decreto-lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, no artigo 1.º, na medida em que considera quanto ao registo de veículos que este “tem essencialmente por fim dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor e respectivos reboques, tendo em vista a segurança do comércio jurídico”. Por outro lado, o artigo 7.º do Código do Registo Predial, aplicável ex vi artigo 29.º, do Decreto-lei n.º 54/75, que “o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito nos precisos termos em que o registo define”.

 

      Parece, pois, segura a conclusão de que o registo definitivo é uma presunção da existência do direito, que pode ser ilidida, ou seja, admite a prova em contrário. Acrescendo que, no Código do IUC não existe qualquer disposição que exija o registo, enquanto condição de validade dos contratos.

 

      Todavia, antes de expor a posição que nos parece mais correcta no que diz respeito à interpretação do disposto no artigo 3.º, n.º 1, do Código do IUC, é relevante ter presente o artigo 11.º da Lei Geral Tributária, na medida em que as normas tributárias devem ser interpretadas de acordo com os princípios gerais de interpretação e, bem assim, o preceito do artigo 9.º do Código Civil que estabelece as regras e elementos para a interpretação das normas.

 

      Para que possamos concluir, se:

 

  1. O artigo 3.º, n.º 1, do Código do Imposto Único de Circulação consagra uma presunção ilidível de quem deve ser considerado sujeito passivo do Imposto Único de Circulação com base no Registo Automóvel, ou se,

 

      2) O legislador pretendeu expressa e intencionalmente determinar, com base no registo automóvel, quem deve ser considerado o sujeito passivo do Imposto Único de Circulação.

 

 

     Atentemos na letra da lei:

 

     “Artigo 3.º Incidência subjectiva

 

      1- São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.”

 

      Ora, de acordo com o elemento literal da norma referida, a problemática centra-se na expressão “considerando-se” utilizada pelo legislador. De facto, a letra da lei não refere a expressão “presumindo-se”, conforme constava nos diplomas antecedentes ao presente Código.

 

 Assim, é questionável se a natureza de presunção está ou não em causa na presente norma em análise.

 

      Sobre a consagração no artigo 3.º, n.º 1, do Código do Imposto Único de Circulação de uma presunção ilidível pronunciaram-se já diversas decisões arbitrais.

 

      Seguindo, nesta sede, anteriores decisões arbitrais sobre esta matéria, designadamente proferidas pelo signatário,  parece que devemos concluir que, de facto, o artigo 3.º, n.º 1, do Código do IUC consagra uma presunção, pois, não é a substituição da expressão “presumindo-se” pela expressão “considerando-se” que faz com que esta norma deixe de consagrar uma presunção, pois que, ambas as expressões têm sido utilizadas pelo legislador de forma equivalente. Assim, o argumento semântico referido pela Requerida não nos parece merecer provimento.

 

      No que se refere ao elemento racional e teleológico, importa fazer notar que o Imposto Único de Circulação tem subjacente o princípio da equivalência consagrado no artigo 1.º, do Código do Imposto Único de Circulação.

 

      Ora, ao não admitir que a presunção constante do artigo 3.º, n.º 1, do Código do Imposto Único de Circulação é ilidível, estar-se-ia a desrespeitar o princípio da equivalência. Assim sendo, também de acordo com este elemento, o artigo 3.º, n.º 1, do Código do IUC é interpretado no sentido de estar em causa uma verdadeira presunção juris tantum.

 

      Em face do exposto fica claro o entendimento de que o artigo 3.º do Código do IUC prevê uma presunção ilidível pelo que, a questão semântica em nada altera o sentido interpretativo desta norma.

 

      Por outro lado, no que respeita à importância do registo automóvel, enquanto argumento invocado pela Requerida, para efeitos de considerar como proprietária e sujeito passivo de imposto a Requerente, importa também referir que o registo permite publicitar a situação jurídica dos bens e, bem assim, presumir que existe o direito sobre esses e que o mesmo pertence ao titular, conforme consta do registo. Com isto, podemos considerar que o registo não tem natureza constitutiva do direito, mas sim, natureza declarativa, pelo que o registo não constitui condição de validade da transmissão do veículo do vendedor para o comprador.

 

      Concluindo-se que o artigo 3.º, n.º 1, do Código do Imposto Único de Circulação consagra uma presunção ilidível, cumpre ainda analisar se esta presunção foi efectivamente ilidida por parte da Requerente, conforme resulta do disposto no artigo 73.º, da Lei Geral Tributária que “as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário, pelo que são ilidíveis”. Assim, deve a pessoa que está inscrita no registo como proprietária do veículo e, nesse sentido, que foi considerada pela Requerida como sujeito passivo de imposto, demonstrar mediante elementos de prova disponíveis que não é o real proprietário do veículo e, bem assim, que a propriedade foi transferida para outrem.

 

      Ora, no caso em apreço, a Requerente produziu prova documental suficiente da alienação dos veículos, conforme consta e se justifica nos “Factos Provados”, e, consequente, perda da propriedade, ficando, assim ilidida a presunção que resulta das liquidações, de acordo com o disposto no artigo 75.º da Lei Geral Tributária.

 

      Neste sentido, considera-se que a Requerida ao não ter tido em consideração a prova documental junta pela Requerente, se encontra em erro sobre os pressupostos de facto e de direito, o que determina a anulação dos correspondentes actos de liquidação.                        

     

      Razão pela qual, as mencionadas liquidações devem ser anuladas e, consequentemente restituído à Requerente pela Autoridade Tributária o imposto que indevidamente lhe foi cobrado e por esta pago na sua totalidade.

 

     Quanto aos juros indemnizatórios, esta matéria está regulada no art. 24º do RJAT, o qual expressamente determina no seu nº 1, alínea b) que a decisão arbitral obriga a administração tributária, nos casos aí consignados, a “Restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessárias, para o efeito”, e preceitua, ainda, no seu nº 5, que “É devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza nos termos previstos na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”.

 

     Também o art. 100º da LGT, cuja aplicação é autorizada pelo disposto no art. 29º, nº 1, alínea a) do RJAT, preceitua de modo idêntico, no sentido da imediata reconstituição da legalidade, compreendendo a mesma o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso.

 

     Por seu lado, o art. 43º, nº 1 da LGT condiciona o direito a juros indemnizatórios aos casos em que “houve erro imputável aos serviços de que resulta pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.

     Nesta conformidade, coloca-se a questão de, face ao teor do disposto no art. 3º, nº 1 do CIUC, se poder considerar ter havido, ou não, um erro imputável aos serviços na situação vertente.

 

     Analisada a situação, verifica-se que a Autoridade Tributária ao liquidar o IUC nos termos em que o fez, deu cumprimento ao ditame legal estabelecido no referido normativo, uma vez que a Requerente se encontrava registada na Conservatória do Registo Automóvel como proprietária dos veículos em apreço, desconhecendo a Requerida que os veículos tinham sido alienados.

 

     Razão pela qual se conclui não existir erro imputável aos serviços no momento da liquidação, pois a Autoridade Tributária tinha o direito de liquidar o imposto na forma em que o fez.

 

       No entanto, após tomar conhecimento da existência dessas alienações e, consequente perda da propriedade, face à documentação junta à Reclamação Graciosa, persistiu na liquidação nos termos em que tinha sido efectuada, incorrendo, a partir de então, em erro imputável aos serviços, pelo que são devidos juros indemnizatórios desde a data da decisão da Reclamação Graciosa.

 

     Quanto à responsabilidade pelas custas arbitrais, alega a Requerida que não é responsável pelo seu pagamento, uma vez que procedeu às liquidações do imposto com os elementos de que dispunha, não podendo ser responsabilizada por o que apelida de “falta de zelo” da Requerente.

 

      Não pode proceder, porém, este argumento, porquanto a lei é taxativa na imputação da responsabilidade pelo pagamento das custas à parte que for condenada, face ao disposto nos nºs 1 e 2, do art. 527 do Código do Processo Civil, aplicável por força do art. 29º, nº 1, alínea e) do RJAT.

 

     Assim sendo, a responsabilidade pelo pagamento das custas arbitrais é da Requerida.

 

L. – DECISÃO

 

     Atento o exposto, o presente Tribunal Arbitral decide:

 

  1. Julgar procedente, com fundamento em vício de violação de lei, o pedido de declaração de ilegalidade dos despachos de indeferimento das reclamações graciosas e das 24 liquidações de IUC, que lhe subjazem, respeitantes ao ano de 2020, relativamente aos veículos cujas matrículas estão identificadas nos autos.

 

  1. E, em consequência, anular os actos tributários de liquidação correspondentes e determinar a restituição do imposto pago pela Requerente, no montante total de 2.120,84.
  2. Julgar procedente o pedido do reconhecimento do direito a juros indemnizatórios a favor da Requerente a partir da data do indeferimento da Reclamação Graciosa.
  3. Condenar a Requerida a pagar as custas do presente processo (art. 527º, nºs. 1 e 2 do Código do Processo Civil, ex vi art. 29º, nº 1, alínea e) do RJAT).

 

      Valor do processo: Em conformidade com o disposto nos artigos 306º, nº 2 do CPC (ex. 315º, nº 2) e 97º - A, nº 1 do CPPT e no artigo 3º, nº 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de 2.120,48 euros.

 

     Custas: De harmonia com o nº 4 do art. 22º do RJAT, fixa-se o montante das custas em 612,00 euros, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

 

Notifique-se.

Lisboa, 3 de Novembro de 2022

 

O Árbitro

 

José Nunes Barata

 

 (Redacção pela ortografia antiga)