Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 114/2022-T
Data da decisão: 2022-11-25  IRC  
Valor do pedido: € 643.776,05
Tema: Organismos de Investimento Coletivo. IRC. Retenção na fonte. Estatuto dos Benefícios Fiscais. Direito da União Europeia.
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SUMÁRIO:

O artigo 22.º, n.º 1, do Estatuto dos Benefícios Fiscais, na parte em que limita o regime nele previsto a organismos de investimento coletivo constituídos segundo a legislação nacional, excluindo organismos de investimento coletivo constituídos segundo a legislação de outros Estados-Membros da União Europeia, viola o princípio da liberdade de circulação de capitais consagrado no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.

 

DECISÃO ARBITRAL

Os árbitros Professora Doutora Rita Correia da Cunha (Presidente), Dr. Francisco Melo e Dr. João Taborda da Gama (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 09-05-2022, acordam no seguinte:

 

  1. Relatório

 

A..., Organismo de Investimento Coletivo (“OIC”) constituído de acordo com o direito alemão, atualmente com o número de identificação fiscal português ..., com sede em ... ..., ... ..., Alemanha (doravante “Requerente”), representado por B... GmbH, na qualidade de sociedade gestora, com sede na mesma morada, requereu a constituição de Tribunal Arbitral Tributário e apresentou pedido de pronúncia arbitral (“PPA”) em 25-02-2022, nos termos e para efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e no artigo 10.º, ambos do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (“RJAT”), contra (1) os atos tributários de retenção na fonte de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) dos anos de 2019 e 2020 (doravante “atos de retenção na fonte contestados”), consubstanciados nas guias de pagamento n.ºs ... (2019-05), ... (2019-06), ... (2020-05), ... (2020-07) e ... (2020-12), no montante total de € 643.776,05, que respeitam a dividendos distribuídos nesses períodos (objeto mediato do PPA), e (2) a decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada pelo Requerente em 14-06-2021 (objeto imediato do PPA), requerendo (a) a respetiva anulação, com fundamento em violação do Direito da União Europeia, (b) a restituição da quantia de € 643.776,05, acrescida de juros indemnizatórios nos termos do artigo 43.º da LGT, e (c) a condenação no pagamento das custas de arbitragem da Autoridade Tributária e Aduaneira, ora requerida (doravante “AT” ou “Requerida”).

O Requerente peticiona a eventual suspensão do processo arbitral até à decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) no processo n.º C-545/19, relativamente às questões prejudiciais formuladas no âmbito do processo arbitral n.º 93/2019-T e, subsidiariamente, requer o reenvio prejudicial para o TJUE do presente processo quanto à questão relativa à incompatibilidade do artigo 22.º do EBF com o Direito da União Europeia, ao abrigo do disposto no artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (“TFUE”).

O Requerente fundamenta o PPA, em síntese, nos seguintes termos:

  1. O artigo 22.º, n.º 1, do EBF viola o princípio da não discriminação em razão da nacionalidade consagrado no artigo 18.º do TFUE e a liberdade de circulação de capitais consignada no artigo 63.º do TFUE, ao prever uma isenção para os dividendos auferidos em Portugal por OIC constituídos de acordo com a legislação nacional, quando os OIC constituídos ao abrigo da lei de outro Estado-Membro da União Europeia permanecem sujeitos a uma tributação liberatória e definitiva em sede de IRC, à taxa de 25%, sobre os dividendos auferidos em Portugal (cf. artigos 94.º, n.º 1, alínea c), 94.º, n.º 3, alínea b), 94.º, n.º 4, e 87.º, n.º 4, do Código do IRC).
  2. À luz da jurisprudência do TJUE, os OIC constituídos ao abrigo da lei de outro Estado-Membro da União Europeia (como é o caso do Requerente) e os OIC estabelecidos segundo a lei portuguesa estão em situações comparáveis, decorrendo do artigo 22.º do EBF um tratamento discriminatório relativamente à liberdade de circulação de capitais e ao próprio acesso ao mercado de capitais.
  3. Tal discriminação é arbitrária, não se encontrando abrangida por qualquer cláusula de salvaguarda, nem sendo objetivamente justificada.
  4. O TJUE já se pronunciou expressamente sobre regimes nacionais de tributação de dividendos auferidos por OIC residentes e não residentes (de outros Estados Membros), semelhantes ao previsto no ordenamento fiscal português, tendo concluído pela sua desconformidade com o Direito da União Europeia. Os tribunais arbitrais constituídos sob a égide do CAAD também já se pronunciaram no sentido ora sustentado pelo Requerente, anulando expressamente os atos de retenção na fonte de IRC, por violação do Direito da União Europeia.

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 28-02-2022.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo os ora signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

O Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído em 09-05-2022.

Em 14-06-2022, a AT juntou o processo administrativo e apresentou Resposta, defendendo a improcedência do PPA por remissão para os fundamentos de direito constantes do processo administrativo, e acrescentando, em síntese, o seguinte:

  1. A opção legislativa de “aliviar” os OIC da tributação em IRC concretiza-se na subtração à base tributável dos rendimentos típicos dos OIC, isto é, dos rendimentos de capitais (artigo 5.º do Código do IRS), dos rendimentos prediais (artigo 8.º do Código do IRS) e das mais-valias (artigo 10.º do Código do IRS), conforme previsto no n.º 3 do artigo 22.º do EBF, e ainda prevendo a isenção de derrama municipal e de derrama estadual, nos termos do n.º 6 do artigo 22.º do EBF, e na deslocação da respetiva tributação para a esfera do Imposto do Selo. Com efeito, foi aditada a Verba 29 à TGIS, da qual resulta uma tributação, por cada trimestre, à taxa de 0,0025%, do valor líquido global dos OIC aplicado em instrumentos do mercado monetário e depósitos, e à taxa 0,0125%, sobre o valor líquido global dos restantes OIC, sendo que, neste caso, a base tributável pode incluir dividendos distribuídos. A tributação em Imposto do Selo apenas recai sobre os OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF, o que significa que dela são excluídos os OIC constituídos e que operem ao abrigo de uma legislação estrangeira.
  2. Os regimes fiscais aplicáveis aos OIC constituídos ao abrigo da legislação nacional e aos OIC constituídos na Alemanha não são genericamente comparáveis. Um OIC constituído e estabelecido em Portugal, embora isento de retenção na fonte, está sujeito a uma tributação autónoma sobre os dividendos, à taxa de 23%, se as correspondentes partes sociais não forem detidas, de modo ininterrupto, pelo período de um ano (cf. o n.º 11 do artigo 88.º do Código do IRC e o n.º 8 do artigo 22.º do EBF). Além disso, esses rendimentos, quando forem parte integrante do valor líquido global do OIC, em cada trimestre, sofrem a incidência do Imposto do Selo. Já os dividendos distribuídos por uma sociedade residente em Portugal a um Fundo de Investimento constituído ao abrigo da legislação da Alemanha apenas é objeto de retenção na fonte a título definitivo.
  3. Contrariamente ao afirmado pelo Requerente, não pode afirmar-se que se esteja perante situações objetivamente comparáveis, porquanto a tributação dos dividendos opera segundo modalidades diferentes, e nada indica que a carga fiscal que onera os dividendos auferidos pelos OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF possa ser mais reduzida do que a que recai sobre os dividendos auferidos em Portugal pelo Requerente, antes, pelo contrário.
  4. Para se avaliar se o tratamento fiscal aplicado aos dividendos obtidos em Portugal por OIC não abrangidos pelo artigo 22.º do EBF é menos vantajoso do que o tratamento fiscal atribuído aos dividendos obtidos pelos OIC abrangidos pelo artigo 22.º do EBF, e se tal diferenciação é suscetível de afetar o investimento em ações emitidas por sociedades residentes em Portugal, teria de ser colocado em confronto o imposto retido na fonte, com carácter definitivo, sobre os primeiros, e os impostos – IRC e Imposto do Selo - que incidem sobre os segundos, que, em conjunto, podem, em certos casos, exceder 23% do valor bruto dos dividendos.
  5. A jurisprudência do TJUE não autoriza o intérprete a extrair a conclusão, em abstrato, de que a mera existência de uma retenção na fonte de IRC incidindo apenas sobre os dividendos pagos por uma sociedade residente a um Fundo de Investimento estabelecido noutro Estado-Membro constitui por si só uma restrição à livre circulação dos fluxos de capital no espaço europeu, sem que seja feita uma apreciação global do regime fiscal aplicável aos Fundos de Investimento constituídos e estabelecidos em Portugal.
  6. Não se vislumbrando qualquer ilegalidade que acometa as retenções na fonte contestadas, fica prejudicada a possibilidade de pagamento de juros indemnizatórios. Ainda que se considere que a ilegalidade da decisão da reclamação graciosas é imputável à AT, que a indeferiu por sua iniciativa, deverá, no caso sub judice, considerar-se a contagem de juros apenas a partir data do indeferimento da reclamação graciosa.

Por despacho de 17-06-2022, o Tribunal Arbitral (i) indeferiu o pedido do Requerente de suspensão da instância contido no PPA, na medida em que o TJUE já proferiu decisão no processo C-545/19; (ii) dispensou a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, por considerar a mesma desnecessária; e (iii) notificou as partes para, querendo, apresentarem alegações finais escritas no prazo simultâneo de 10 dias.

Apenas o Requerente apresentou alegações, o que fez em 29-06-2022, pronunciando-se sobre a relevância do Acórdão do TJUE no processo C-545/19 para a resolução do caso em apreço, e alegando, resumidamente, que:

  1. Para efeitos da análise da comparabilidade da tributação sobre o rendimento, é irrelevante a especulação abstrata sobre a eventual incidência de outros impostos, taxas ou tributos incidentes sobre os investimentos efetuados pelos OIC. A taxa de Imposto do Selo referida pela Requerida incide sobre o valor líquido global do OIC português, e não sobre o rendimento que por este é auferido.
  2. Ademais, e como oportunamente assinala o TJUE, o Imposto do Selo, ao incidir sobre o valor global de um OIC, poderá incidir também sobre rendimentos de capitais (entre os quais, os dividendos por este recebidos), mas somente na medida em que não ocorra a sua distribuição, i.e., apenas na medida em que seja tomada a decisão de acumulação dos rendimentos auferidos pelo OIC, integrando estes o património do OIC. Mesmo que se pretendesse considerar que o Imposto do Selo é uma forma alternativa de tributação sobre o rendimento, sempre se concluiria que “um OIC residente pode escapar a tal tributação dos dividendos procedendo à sua distribuição imediata, ao passo que esta possibilidade não está aberta a um OIC não residente” (cf. AllianzGI-Fonds AEVN, C-545/19, parágrafo 55). Assim, em caso algum poderia um imposto como o Imposto do Selo ser equiparado a um imposto sobre o rendimento e, por essa via, justificar a diferença de tratamento fiscal resultante da legislação ora em análise.
  3. No que em particular diz respeito à tributação autónoma prevista no artigo 88.º, n.º 11, do Código do IRC, importa recordar que a mesma não integra o regime fiscal específico dos OIC previsto no artigo 22.º do EBF, tratando-se de uma norma de caráter geral, dirigida (i) ao combate a práticas abusivas e (ii) a todos os sujeitos passivos de IRC residentes em Portugal que beneficiem de uma isenção total ou parcial de IRC.
  4. A tributação autónoma a que alude a Requerida não se aplica em alternativa à retenção na fonte que incide sobre os dividendos distribuídos ao Requerente, porquanto só haverá lugar a tributação autónoma sobre os dividendos pagos a OIC residentes quando verificados um conjunto de situações específicas que tornam esta uma norma especial.
  5. Por estarem em causa impostos de natureza e com objetos diferentes – rendimento, no caso do IRC, e património, no caso do Imposto do Selo – não é lícito, legítimo, ou mesmo adequado, que a análise de comparabilidade dos OIC residentes e OIC não residentes (como é o caso do Requerente) tenha em consideração outros impostos que não estritamente os que incidem sobre o rendimento – in casu, o IRC.

O Requerente juntou ao autos comprovativo do pagamento da taxa arbitral subsequente em 04-07-2022.

 

  1. Saneamento

 

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente em face do preceituado na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT e do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

O PPA apresentado pelo Requerente em 25-02-2022 é tempestivo, porque apresentado no prazo de 90 dias a contar da notificação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa (que ocorreu em 29-11-2021), conforme os artigos 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, e 102.º do CPPT.

O Tribunal admite a cumulação de pedidos, nos termos do artigo 3.º, n.º 1, do RJAT, visto que, in casu, a procedência dos pedidos depende essencialmente da “apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito”.

As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias, e têm legitimidade (cf. artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º do RJAT, e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

O processo não enferma de nulidades. Não foram invocadas exceções que cumpra apreciar e decidir.

 

  1. Matéria de facto

 

  1. Factos provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

 

  1. O Requerente é uma entidade jurídica de direito alemão, mais concretamente, um OIC em Valores Mobiliários, constituído sob a forma contratual e não societária, com residência fiscal na Alemanha nos anos de 2019 e 2020 – cf. Documentos n.ºs 1 e 5 juntos ao PPA cujo teor se dá como reproduzido.
  2. O Requerente é gerido por uma entidade gestora de fundos de investimento, a B... GmbH, entidade com sede na Alemanha – cf. Documento n.º 2 junto ao PPA cujo teor se dá como reproduzido.
  3. Nos anos de 2019 e 2020, o Requerente era um sujeito passivo de IRC não residente, e sem estabelecimento estável no território nacional português – cf. alegado no artigo 1.º do PPA e não contestado pela Requerida.
  4. Nesses anos, o Requerente era detentor de lotes de participações sociais nas seguintes sociedades residentes em Portugal – cf. alegado no 15.º do PPA e não contestado pela AT:

 

 

 

  1. Na qualidade de acionista de sociedades residentes em Portugal, o Requerente recebeu dividendos sujeitos a retenção na fonte, à taxa liberatória de 25%, no montante total a seguir discriminado – cf. Documentos n.ºs 7 a 9 juntos ao PPA cujo teor se dá como reproduzido:

 

 

  1. Em 14-06-2021, o Requerente apresentou reclamação graciosa para apreciação da legalidade das retenções na fonte contestadas, na qual solicitou a anulação das mesmas com fundamento em violação do Direito da União Europeia, bem como o reconhecimento do seu direito à restituição do imposto indevidamente suportado em Portugal – cf. Documento n.º 10 junto ao PPA cujo teor se dá como reproduzido.
  2. Do ofício de 26-10-2021 do Diretor de Finanças Adjunto da Direção de Finanças de Lisboa consta o projeto de decisão de indeferimento desta reclamação graciosa, bem como a respetiva informação (cf. Documento 11 junto ao PPA cujo teor se dá como reproduzido), na qual se pode ler:

 

V-ANÁLISE DO PEDIDO E PARECER

13. A reclamante, não residente fiscal e sem estabelecimento estável em Portugal, é sujeito passivo de IRC, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 2.º do Código de IRC, incindindo o imposto apenas sobre os rendimentos obtidos em território nacional (país da fonte), nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 3.º e n.º 2 do artigo 4.º, ambos do Código de IRC, à taxa de 25% (n.º 4 do artigo 87º do Código de IRC), objeto de retenção na fonte a título definitivo ou liberatório, na data da verificação do facto tributário (pagamento ou colocação à disposição dos rendimentos), cujas importâncias retidas devem ser entregues nos cofres do Estado até ao dia 20 do mês seguinte àquele em que forem deduzidas, nos termos da alínea c) do n.º 1, da alínea b) do n.º 3, do n.º 5 e n.º 6, todos os artigo 94.º do Código de IRC.

14. No entanto, esta taxa pode ser afastada por aplicação de uma Convenção para evitar a dupla tributação e prevenir a evasão fiscal em matéria de impostos sobre o rendimento (CDT), através da entrega do formulário Modelo 21-RFI. Da análise ao invocado nos presentes autos, conclui-se que o mesmo não consubstancia um pedido desta natureza.

15. Quanto à desconformidade das normas legais internas com o Direito da União Europeia, mais precisamente a não consideração destes rendimentos para efeitos do apuramento do lucro tributável, prevista no n.º 3 do artigo 22.º do EBF e a sua impossibilidade de aplicação aos rendimentos distribuídos aos OIC's com sede fora de Portugal, cumpre dizer o seguinte:

16. Através do Decreto-Lei n.º 7/2015 de 13 de janeiro (2), procedeu-se à reforma do regime de tributação dos OIC, alterando, com interesse para o caso em apreço, a redação do artigo 22.º do EBF, aplicável aos rendimentos obtidos por fundos de investimento mobiliário e imobiliário e sociedades de investimento mobiliário e imobiliário, que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional (3), conforme resulta do n.º 1 do artigo 22.º do EBF e Circular n.º 6/2015 (4).

17. Com a nova redação estabeleceu o legislador, para esses sujeitos passivos de IRC, uma exclusão na determinação do lucro tributável dos rendimentos de capitais, prediais e mais-valias referidos nos artigos 5.º, 8.º e 10.º, todos do Código de IRS, conforme resulta o n.º 3 do artigo 22.º do EBF, e uma isenção das derramas municipal e estadual, nos termos do n.º 6 desta norma.

18. No entanto, contrariamente ao que sucede aos OIC's que operem ao abrigo de uma legislação estrangeira, serão tributados em sede de Imposto de Selo (verba 29 da Tabela Geral de IS) e sujeitos a tributação em sede de IRC relativamente a lucros distribuídos, nos termos do n.º 11 do artigo 88.º do Código de IRC.

19. Tal exclusão não é aplicável à reclamante - pessoa coletiva de direito alemão - por falta de enquadramento no disposto no n.º 1 do artigo 22.º do EBF, o que é por si contestado no presente pedido.

20. Ora, se dúvidas houvesse quanto a esta interpretação, as mesmas ficariam dissipadas atendendo ao elemento teleológico, i.e., aos objetivos que o legislador pretendeu alcançar com tal previsão normativa, in casu, o aumento da captação de capital estrangeiro e da competitividade dos OIC's portugueses no plano internacional - leia-se o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 7/2015, de 13 de janeiro.

21. A consagração da liberdade de circulação dos capitais e, consequentemente, a proibição de adoção de medida restritiva da mesma encontra-se no artigo 63.º e seguintes do TFUE, concretização do artigo 18.º do mesmo, e é aplicável tanto entre Estados-Membros como entre Estados-Membros e Estados-terceiros (que não integrem a UE).

22. Não obstante, pela alínea a) do n.º 1 do artigo 65.º do TFUE, é permitido que os Estados-membros apliquem "(...) as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido", tendo em conta a sua soberania fiscal, desde que verificado o n.º 3 da mencionada disposição legal.

23. Evidenciando-se que, ao contrário do que se verifica com o IVA, não existe no TFUE uma previsão quanto à harmonização de impostos sobre o rendimento ou tributação direta (5); embora, numa tentativa de aproximação de legislações dos Estados-membros, a mesma encontre alguma expressão nos artigos 114.º e 115.º, ambos do referido Tratado.

24. Cumpre ainda referir que não compete à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) avaliar a conformidade das normas internas com as do TFUE, nem tão pouco apreciar da sua constitucionalidade, realçando-se que, na senda do entendimento acolhido pela recente jurisprudência emanada do Supremo Tribunal Administrativo (STA) (6), atendendo ao disposto no artigo 266.º da CRP e artigo 55.º da LGT, a AT deve atuar em conformidade com a lei, não podendo, por regra, deixar de aplicar uma norma tributária constante de diploma legal, por alegada inconstitucionalidade, a não ser quando o Tribunal Constitucional já tenha declarado a inconstitucionalidade com força obrigatória geral, nos termos do artigo 281.º da CRP.

25. Ademais, por outro lado, não pode a AT aceitar de forma direta e automática as orientações interpretativas do TJUE quando estas não têm, na sua origem, a apreciação da compatibilidade entre as disposições do direito interno português e o direito europeu.

26. Sendo que a jurisprudência trazida à colação pela reclamante respeita a normas legais de outros ordenamentos jurídicos, não se conhecendo até à data quaisquer decisões do TJUE que tenham concluído pela desconformidade do artigo 22.º do EBF, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 7/2015 de 13 de janeiro, com o TFUE.

27. De salientar que a referida decisão arbitral proferida no processo 90/2019-T apenas produz efeitos inter partes e no âmbito do caso concreto, e não em quaisquer outros procedimentos administrativos.

28. Porém, sempre se dirá que, de acordo com PAULA ROSADO PEREIRA (7),"(...) no Caso Schumacker, o Tribunal de Justiça aceitou que o tratamento fiscal diferenciado de residentes e não residentes não é discriminatório, desde que uns e outros se encontrem em situações diferentes !(...)" considerando a Autora que "[a] análise da jurisprudência do Tribunal de Justiça revela, assim, que na perspetiva deste órgão, em termos genéricos, o uso da residência como elemento de conexão, bem como a diferenciação fiscal entre sujeitos passivos residentes e não residentes, tanto na legislação interna dos Estados como nas CDT, é aceitável e não contraria as liberdades de circulação consagradas no TFUE".

29. Pelo exposto, é de indeferir o presente pedido.

30. Acrescenta-se, ainda, que, por não se verificarem in casu os pressupostos do n.º 1 do artigo 43.º da LGT, não assiste à reclamante o direito a juros indemnizatórios.”

 

  1. Em 29-11-2021, o Requerente foi notificado da decisão definitiva de indeferimento da reclamação graciosa (ofício de 26-11-2021), que mantém a fundamentação contida no projeto de decisão de 26-10-2021 – cf. Documento n.º 11 junto ao PPA cujo teor se dá como reproduzido.
  2. Em 25-02-2022, o Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral e o PPA que deram origem ao presente processo.

 

  1. Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto

 

Não há factos relevantes para a decisão da causa que não se tenham provado. O Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe antes o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada.

Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos com o PPA e que também constam do processo administrativo.

Dado não existir controvérsia sobre a matéria de facto, o Tribunal dispensa o Requerente de juntar a tradução para língua portuguesa dos documentos juntos ao PPA.

 

  1. Matéria de direito

 

O Requerente é um OIC de direito alemão, sem residência fiscal ou estabelecimento estável em território português. Na qualidade de detentor de lotes de participações sociais em sociedades residentes em Portugal, o Requerente recebeu dividendos em 2019 e 2020 relativamente aos quais foi efetuada retenção na fonte a título liberatório, à taxa de 25% prevista no artigo 87.º do Código do IRC.

O Requerente questiona a legalidade destes atos de retenção na fonte à luz do Direito da União Europeia. Mais especificamente, o Requerente defende, em suma, que o artigo 22.º do EBF concede expressamente aos OIC constituídos em Portugal a possibilidade de beneficiarem de um regime que lhes permite receber os dividendos distribuídos por sociedades com residência fiscal em Portugal totalmente isentos de tributação, bastando, para tal, que sejam constituídos de acordo com a legislação nacional, ao passo que os OIC constituídos noutros Estados-Membros da União Europeia não são passíveis de beneficiar de idêntica isenção (ficando sempre sujeitos a uma tributação efetiva e liberatória em sede de IRC, à taxa de 25%, sobre os dividendos auferidos em Portugal), o que consubstancia uma violação da liberdade de circulação de capitais consignada no artigo 63.º do TFUE.

A questão decidenda é a de saber se o regime especial de tributação previsto no artigo 22.º do EBF para os OIC constituídos de acordo com a legislação nacional, interpretado no sentido de excluir desse regime os OIC constituídos de acordo com a legislação de outro Estado-Membro da União Europeia, viola o princípio da liberdade de circulação de capitais consagrado no artigo 63.º do TFUE.

O artigo 22.º do EBF, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 7/2015, de 31 de janeiro, estabelece o seguinte:

 

Artigo 22.º

Organismos de Investimento Coletivo

1 – São tributados em IRC, nos termos previstos neste artigo, os fundos de investimento mobiliário, fundos de investimento imobiliário, sociedades de investimento mobiliário e sociedades de investimento imobiliário que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional.

2 – O lucro tributável dos sujeitos passivos de IRC referidos no número anterior corresponde ao resultado líquido do exercício, apurado de acordo com as normas contabilísticas legalmente aplicáveis às entidades referidas no número anterior, sem prejuízo do disposto no número seguinte.

3 – Para efeitos do apuramento do lucro tributável, não são considerados os rendimentos referidos nos artigos 5.º, 8.º e 10.º do Código do IRS, exceto quando tais rendimentos provenham de entidades com residência ou domicílio em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável constante de lista aprovada em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, os gastos ligados àqueles rendimentos ou previstos no artigo 23.º-A do Código do IRC, bem como os rendimentos, incluindo os descontos, e gastos relativos a comissões de gestão e outras comissões que revertam para as entidades referidas no n.º 1.

4 – Os prejuízos fiscais apurados em determinado período de tributação nos termos do disposto nos números anteriores são deduzidos aos lucros tributáveis, havendo - os, de um ou mais dos 12 períodos de tributação posteriores, aplicando -se o disposto no n.º 2 do artigo 52.º do Código do IRC.

5 – Sobre a matéria coletável correspondente ao lucro tributável deduzido dos prejuízos fiscais, tal como apurado nos termos dos números anteriores, aplica -se a taxa geral prevista no n.º 1 do artigo 87.º do Código do IRC.

6 – As entidades referidas no n.º 1 estão isentas de derrama municipal e derrama estadual.

7 – Às fusões, cisões ou subscrições em espécie entre as entidades referidas no n.º 1, incluindo as que não sejam dotadas de personalidade jurídica, é aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 73.º, 74.º, 76.º e 78.º do Código do IRC, sendo aplicável às subscrições em espécie o regime das entradas de ativos previsto no n.º 3 do artigo 73.º do referido Código.

8 – As taxas de tributação autónoma previstas no artigo 88.º do Código do IRC têm aplicação, com as necessárias adaptações, no presente regime.

9 – O IRC incidente sobre os rendimentos das entidades a que se aplique o presente regime é devido por cada período de tributação, o qual coincide com o ano civil, podendo no entanto ser inferior a um ano civil: a) No ano do início da atividade, em que é constituído pelo período decorrido entre a data em que se inicia a atividade e o fim do ano civil; b) No ano da cessação da atividade, em que é constituído pelo período decorrido entre o início do ano civil e a data da cessação da atividade.

10 – Não existe obrigação de efetuar a retenção na fonte de IRC relativamente aos rendimentos obtidos pelos sujeitos passivos referidos no n.º 1.

11 – A liquidação de IRC é efetuada através da declaração de rendimentos a que se refere o artigo 120.º do Código do IRC, aplicando -se, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 89.º, no n.º 1 do artigo 90.º, no artigo 99.º e nos artigos 101.º a 103.º do referido Código.

12 – O pagamento do imposto deve ser efetuado até ao último dia do prazo fixado para o envio da declaração de rendimentos, aplicando -se, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 109.º a 113.º e 116.º do Código do IRC.

13 – As entidades referidas no n.º 1 estão ainda sujeitas, com as necessárias adaptações, às obrigações previstas nos artigos 117.º a 123.º, 125.º e 128.º a 130.º do Código do IRC.

14 – O disposto no n.º 7 aplica -se às operações aí mencionadas que envolvam entidades com sede, direção efetiva ou domicílio em território português, noutro Estado membro da União Europeia ou, ainda, no Espaço Económico Europeu, neste último caso desde que exista obrigação de cooperação administrativa no domínio do intercâmbio de informações e da assistência à cobrança equivalente à estabelecida na União Europeia.

15 – As entidades gestoras de sociedades ou fundos referidos no n.º 1 são solidariamente responsáveis pelas dívidas de imposto das sociedades ou fundos cuja gestão lhes caiba.

16 – No caso de entidades referidas no n.º 1 divididas em compartimentos patrimoniais autónomos, as regras previstas no presente artigo são aplicáveis, com as necessárias adaptações, a cada um dos referidos compartimentos, sendo -lhes ainda aplicável o disposto no Decreto -Lei n.º 14/2013, de 28 de janeiro.

 

Conforme decorre do n.º 1 do artigo 22.º do EBF, estabelece-se que o regime nele previsto é aplicável aos «fundos de investimento mobiliário, fundos de investimento imobiliário, sociedades de investimento mobiliário e sociedades de investimento imobiliário que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional». O Requerente é constituído ao abrigo da lei alemã e não da lei nacional, não lhe sendo aplicável o regime do artigo 22.º do EBF.

Interessa atentar ao disposto nas disposições do TFUE relevantes:

 

Artigo 63.º (ex-artigo 56.º TCE)

1. No âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros.

2. No âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos pagamentos entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros.

 

Artigo 65.º (ex-artigo 58.º TCE)

1. O disposto no artigo 63.º não prejudica o direito de os Estados-Membros:

a) Aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido;

b) Tomarem todas as medidas indispensáveis para impedir infrações às suas leis e regulamentos, nomeadamente em matéria fiscal e de supervisão prudencial das instituições financeiras, preverem processos de declaração dos movimentos de capitais para efeitos de informação administrativa ou estatística, ou tomarem medidas justificadas por razões de ordem pública ou de segurança pública.

2. O disposto no presente capítulo não prejudica a possibilidade de aplicação de restrições ao direito de estabelecimento que sejam compatíveis com os Tratados.

3. As medidas e procedimentos a que se referem os n.ºs 1 e 2 não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.º.

 

Regressando ao caso em apreço: entende este Tribunal que assiste razão ao Requerente quando defende que o artigo 22.º, n.º 1, do EBF, na parte em que limita o regime nele previsto a OIC constituídos segundo a legislação nacional, excluindo OIC constituídos segundo a legislação de outros Estados-Membros da União Europeia, viola o princípio da liberdade de circulação de capitais consagrado no artigo 63.º do TFUE. Antes de passarmos à análise do Acórdão do TJUE proferido no processo n.º C-545/19, importa sublinhar que a jurisprudência arbitral recente é unânime a este respeito (e.g., Decisão Arbitral de 26-04-2022, processo n.º 821/2021-T; Decisão Arbitral de 28-06-2022, processo n.º 129/2022-T; Decisão Arbitral de 13-07-2022, processo n.º 115/2022-T; Decisão Arbitral de 15-07-2022, processo n.º 121/2022-T; Decisão Arbitral de 08-08-2022, processo n.º 624/2022-T; Decisão Arbitral de 21-08-2022, processo n.º 83/2022-T).

No acórdão do TJUE de 17-03-2022, proferido no processo n.º C-545/19, pode ler-se que «O artigo 63.º TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado-Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um organismo de investimento coletivo (OIC) não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.»

Não havendo motivo para alterar esse entendimento, passa aqui a reproduzir-se a parte mais relevante da sua fundamentação.

 

“Quanto à existência de uma restrição à livre circulação de capitais

 

36 Resulta de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que as medidas proibidas pelo artigo 63.°, n.° 1, TFUE, enquanto restrições aos movimentos de capitais, incluem as que são suscetíveis de dissuadir os não residentes de investir num Estado‑Membro ou de dissuadir os residentes de investir noutros Estados (v., designadamente, Acórdão de 2 de junho de 2016, Pensioenfonds Metaal en Techniek, C‑252/14, EU:C:2016:402, n.° 27 e jurisprudência referida, e de 30 de janeiro de 2020, Köln‑Aktienfonds Deka, C‑156/17, EU:C:2020:51, n.° 49 e jurisprudência referida).

 

37 No caso em apreço, é facto assente que a isenção fiscal prevista pela legislação nacional em causa no processo principal é concedida aos OIC constituídos e que operam de acordo com a legislação portuguesa, ao passo que os dividendos pagos a OIC estabelecidos noutro Estado‑Membro não podem beneficiar dessa isenção.

 

38 Ao proceder a uma retenção na fonte sobre os dividendos pagos aos OIC não residentes e ao reservar aos OIC residentes a possibilidade de obter a isenção dessa retenção na fonte, a legislação nacional em causa no processo principal procede a um tratamento desfavorável dos dividendos pagos aos OIC não residentes.

 

39 Esse tratamento desfavorável pode dissuadir, por um lado, os OIC não residentes de investirem em sociedades estabelecidas em Portugal e, por outro, os investidores residentes em Portugal de adquirirem participações sociais em OIC e constitui, por conseguinte, uma restrição à livre circulação de capitais proibida, em princípio, pelo artigo 63.° TFUE (v., por analogia, Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C‑480/16, EU:C:2018:480, n.os 44, 45 e jurisprudência referida).

 

40 Não obstante, segundo o artigo 65.°, n.° 1, alínea a), TFUE, o disposto no artigo 63.° TFUE não prejudica o direito de os Estados‑Membros aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido.

 

41 Esta disposição, enquanto derrogação ao princípio fundamental da livre circulação de capitais, é de interpretação estrita. Por conseguinte, não pode ser interpretada no sentido de que qualquer legislação fiscal que comporte uma distinção entre os contribuintes em função do lugar em que residam ou do Estado‑Membro onde invistam os seus capitais é automaticamente compatível com o Tratado FUE. Com efeito, a derrogação prevista no artigo 65.º, n.º 1, alínea a), TFUE é ela própria limitada pelo disposto no artigo 65.º, n.º 3, TFUE, que prevê que as disposições nacionais a que se refere o n.º 1 desse artigo «não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.º [TFUE]» [Acórdão de 29 de abril de 2021, Veronsaajien oikeudenvalvontayksikkö (Rendimentos distribuídos por OICVM), C‑480/19, EU:C:2021:334, n.° 29 e jurisprudência referida].

 

42 O Tribunal de Justiça declarou igualmente que, por conseguinte, há que distinguir as diferenças de tratamento permitidas pelo artigo 65.°, n.° 1, alínea a), TFUE das discriminações proibidas pelo artigo 65.°, n.° 3, TFUE. Ora, para que uma legislação fiscal nacional possa ser considerada compatível com as disposições do Tratado FUE relativas à livre circulação de capitais, é necessário que a diferença de tratamento daí decorrente diga respeito a situações que não sejam objetivamente comparáveis ou se justifique por uma razão imperiosa de interesse geral [Acórdão de 29 de abril de 2021, Veronsaajien oikeudenvalvontayksikkö (Rendimentos distribuídos por OICVM), C‑480/19, EU:C:2021:334, n.° 30 e jurisprudência referida].

 

 Quanto à existência de situações objetivamente comparáveis

 

43 Para apreciar a comparabilidade das situações em causa, o órgão jurisdicional de reenvio interroga‑se, por um lado, sobre a questão de saber se a situação dos detentores de participações deve ser tida em conta do mesmo modo que a dos OIC e, por outro, sobre a eventual pertinência da existência, no sistema fiscal português, de certos impostos aos quais apenas estão sujeitos os OIC residentes.

 

44 O Governo português alega, em substância, que as respetivas situações dos OIC residentes e dos OIC não residentes não são objetivamente comparáveis uma vez que a tributação dos dividendos recebidos por estas duas categorias de organismos de investimento de sociedades residentes em Portugal é regulada por técnicas de tributação diferentes — a saber, por um lado, esses dividendos são objeto de retenção na fonte quando são pagos a um OIC não residente e, por outro, estão sujeitos ao imposto do selo e ao imposto específico previsto no artigo 88.°, n.° 11, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas quando são pagos a um OIC residente.

 

45 Este Governo indica igualmente que resulta do artigo 22.°‑A do EBF que os dividendos distribuídos por OIC residentes a detentores de participações sociais residentes em território português ou que sejam imputáveis a um estabelecimento estável situado neste território são tributados à taxa de 28 % (quando os beneficiários estão sujeitos ao imposto sobre o rendimento das pessoas singulares) ou de 25 % (quando os beneficiários estão sujeitos ao imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas), ao passo que os dividendos pagos a detentores de participações sociais que não residem no território português e que não têm estabelecimento estável neste último estão, em princípio, isentos do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares e do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (com algumas exceções destinadas essencialmente a prevenir abusos).

 

46 Segundo o referido Governo, há uma estreita coerência entre a tributação dos rendimentos dos OIC e dos detentores de participações sociais nestes organismos. Assim, o modelo português de tributação dos OIC, de natureza «compósita», conjuga estruturalmente os impostos incidentes, por um lado, sobre os OIC residentes, ou seja, o imposto do selo e o imposto específico previsto no artigo 88.°, n.° 11, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, bem como, por outro, os incidentes sobre os detentores de participações sociais em tais organismos, conforme referidos no número anterior. Estas diferentes tributações, muito bem integradas entre si, sendo cada uma delas imprescindível à coerência do sistema de tributação instituído, devem ser entendidas como um todo.

 

47 Além disso, este mesmo Governo acrescenta, em substância, que, no âmbito da apreciação da comparabilidade das situações em causa, não se deve abstrair dos efeitos da transparência fiscal que caracteriza a relação entre a recorrente no processo principal e os detentores de participações sociais na mesma, o que leva a que a retenção na fonte efetuada em Portugal possa ser imediatamente repercutida nos detentores de participações sociais que, não estando isentos de imposto, podem imputar ou, ainda, creditar a sua participação dessa retenção efetuada em Portugal sobre o imposto do qual são devedores na Alemanha.

 

48 Por último, o Governo português considera que, ao ter livremente optado por não operar em Portugal através de um estabelecimento estável, a recorrente no processo principal autoexcluiu‑se de qualquer comparação com os OIC estabelecidos em Portugal, sendo a sua situação, isso sim, comparável a todas as situações das demais entidades não residentes e cujos dividendos auferidos em Portugal são sempre tributados a taxas nunca inferiores a 25 %.

 

49 Resulta de jurisprudência constante que, a partir do momento em que um Estado, de modo unilateral ou por via convencional, sujeita ao imposto sobre o rendimento não só os contribuintes residentes mas também os contribuintes não residentes, relativamente aos dividendos que auferem de uma sociedade residente, a situação dos referidos contribuintes não residentes assemelha‑se à dos contribuintes residentes (Acórdão de 22 de novembro de 2018, Sofina e o., C‑575/17, EU:C:2018:943, n.° 47 e jurisprudência referida).

 

50 Quanto ao argumento do Governo português que figura no n.° 44 do presente acórdão, há que recordar que, nas circunstâncias que deram origem ao Acórdão de 22 de dezembro de 2008, Truck Center (C‑282/07, EU:C:2008:762), o Tribunal de Justiça admitiu a aplicação, aos beneficiários de rendimentos de capitais, de técnicas de tributação diferentes consoante esses beneficiários sejam residentes ou não residentes, uma vez que esta diferença de tratamento diz respeito a situações que não são objetivamente comparáveis (v., neste sentido, Acórdão de 22 de dezembro de 2008, Truck Center, C‑282/07, EU:C:2008:762, n.° 41).

 

51 Do mesmo modo, no processo que deu origem ao Acórdão de 2 de junho de 2016, Pensioenfonds Metaal en Techniek (C‑252/14, EU:C:2016:402), o Tribunal de Justiça declarou que o tratamento diferenciado da tributação dos dividendos pagos a fundos de pensões segundo a qualidade de residente ou de não residente destes últimos, resultante da aplicação, a esses fundos respetivos, de dois métodos de tributação diferentes, era justificado pela diferença de situação entre estas duas categorias de contribuintes à luz do objetivo prosseguido pela regulamentação nacional em causa nesse processo, bem como do seu objeto e do seu conteúdo.

 

52 No entanto, sob reserva da verificação pelo órgão jurisdicional de reenvio, a legislação nacional em causa no processo principal não se limita a prever diferentes modalidades de cobrança de imposto em função do local de residência do OIC beneficiário de dividendos de origem nacional, mas prevê, na realidade, uma tributação sistemática dos referidos dividendos que onera apenas os organismos não residentes (v., por analogia, Acórdão de 8 de novembro de 2012, Comissão/Finlândia, C‑342/10, EU:C:2012:688, n.° 44 e jurisprudência referida).

 

53 A este propósito, importa salientar, por um lado, no que respeita ao imposto do selo, que resulta tanto das observações escritas apresentadas pelas partes como da resposta do órgão jurisdicional de reenvio ao pedido de informações do Tribunal de Justiça que, pelo facto de a sua matéria coletável ser constituída pelo valor líquido contabilístico dos OIC, esse imposto do selo é um imposto sobre o património, que não pode ser equiparado a um imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas.

 

54 Além disso, como salientou a advogada‑geral no n.° 47 das suas conclusões, no processo principal, a legislação fiscal portuguesa distingue, no caso dos OIC residentes, entre o rendimento do capital acumulado e o que é imediatamente redistribuído, apenas o primeiro sendo englobado na matéria coletável do referido imposto do selo. Ora, este aspeto basta, por si só, para distinguir este processo do que deu origem ao Acórdão de 2 de junho de 2016, Pensioenfonds Metaal en Techniek  (C‑252/14, EU:C:2016:402).

 

55 Com efeito, mesmo considerando que esse mesmo imposto do selo possa ser equiparado a um imposto sobre os dividendos, um OIC residente pode escapar a tal tributação dos dividendos procedendo à sua distribuição imediata, ao passo que esta possibilidade não está aberta a um OIC não residente.

 

56 Por outro lado, no que se refere ao imposto específico previsto no artigo 88.°, n.° 11, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, resulta das indicações da Autoridade Tributária, contidas na decisão de reenvio, que, por força desta disposição, este imposto só incide sobre os dividendos recebidos por OIC residentes quando as partes sociais a que respeitam os lucros não tenham permanecido na titularidade do mesmo sujeito passivo, de modo ininterrupto, durante o ano anterior à data da sua colocação à disposição e não venham a ser mantidas durante o tempo necessário para completar esse período. Assim, o imposto previsto pela referida disposição só incide sobre os dividendos de origem nacional recebidos por um OIC residente em casos limitados, pelo que não pode ser equiparado ao imposto geral de que são objeto os dividendos de origem nacional recebidos pelos OIC não residentes.

 

57 Por conseguinte, a circunstância de os OIC não residentes não estarem sujeitos ao imposto do selo e ao imposto específico previsto no artigo 88.°, n.° 11, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas não os coloca numa situação objetivamente diferente em relação aos OIC residentes no que se refere à tributação dos dividendos de origem portuguesa.

 

58 Em seguida, quanto ao argumento do Governo português que figura no n.° 48 do presente acórdão, há que salientar que, como alegou a Comissão em resposta às perguntas escritas do Tribunal de Justiça, no domínio da livre prestação de serviços, ao abrigo do artigo 56.° TFUE, os operadores económicos devem ser livres de escolher os meios adequados para exercer as suas atividades num Estado‑Membro diferente do da sua residência, independentemente de se estabelecerem ou não de modo permanente nesse outro Estado‑Membro, não devendo esta liberdade ser limitada por disposições fiscais discriminatórias.

 

59 Além disso, na medida em que o argumento do Governo português se refere à pretensa necessidade de ter em conta a situação dos detentores de participações sociais, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que a comparabilidade de uma situação transfronteiriça com uma situação interna do Estado‑Membro em causa deve ser examinada tendo em conta o objetivo prosseguido pelas disposições nacionais controvertidas (v., designadamente, Acórdão de 30 de abril de 2020, Société Générale, C‑565/18, EU:C:2020:318, n.° 26 e jurisprudência referida), bem como o objeto e o conteúdo destas últimas (v., designadamente, Acórdão de 2 de junho de 2016, Pensioenfonds Metaal en Techniek, C‑252/14, EU:C:2016:402, n.° 48 e jurisprudência referida).

 

60 Por outro lado, apenas os critérios de distinção pertinentes estabelecidos pela legislação em causa devem ser tidos em conta para apreciar se a diferença de tratamento resultante dessa legislação reflete uma diferença de situação objetiva (v., neste sentido, Acórdão de 2 de junho de 2016, Pensioenfonds Metaal en Techniek, C‑252/14, EU:C:2016:402, n.° 49 e jurisprudência referida).

 

61 No caso em apreço, no que diz respeito, em primeiro lugar, ao objeto, ao conteúdo e ao objetivo do regime português em matéria de tributação dos dividendos, seja ao nível dos próprios OIC ou dos seus detentores de participações sociais, resulta tanto da resposta do órgão jurisdicional de reenvio ao pedido de informação do Tribunal de Justiça como da resposta do Governo português às perguntas escritas que lhe foram dirigidas no âmbito do presente processo que o referido regime foi concebido numa lógica de «tributação à saída», ou seja, os OIC que são constituídos e operam de acordo com a legislação portuguesa estão isentos do imposto sobre o rendimento, sendo o encargo que este último representa transferido para os detentores de participações sociais que têm a qualidade de residentes, estando os detentores de participações sociais não residentes dele isentos.

 

62 Com efeito, o Governo português precisou que o regime nacional em matéria de tributação dos dividendos visava alcançar objetivos como, nomeadamente, evitar a dupla tributação económica internacional e transferir a tributação na esfera dos OIC para a esfera dos respetivos participantes, procurando assim que a tributação incidente sobre estes rendimentos seja aproximadamente equivalente à que ocorreria caso esses rendimentos tivessem sido obtidos diretamente pelos participantes nesses mesmos OIC.

 

63 Caberá ao órgão jurisdicional de reenvio, que tem competência exclusiva para interpretar o direito nacional, tendo em conta todos os elementos da legislação fiscal em causa no processo principal e o conjunto dos elementos constitutivos desse mesmo regime de tributação, determinar o objetivo principal prosseguido pela legislação nacional em causa no processo principal (v., neste sentido, Acórdão de 30 de janeiro de 2020, Köln‑Aktienfonds Deka, C‑156/17, EU:C:2020:51, n.° 79).

 

64 Se o órgão jurisdicional de reenvio concluir que o regime português em matéria de tributação dos dividendos visa evitar a dupla tributação dos dividendos pagos por sociedades residentes, atendendo à qualidade de intermediário dos OIC face aos seus detentores de participações sociais, importa recordar que o Tribunal de Justiça já declarou que, relativamente às medidas previstas por um Estado‑Membro para evitar ou atenuar a tributação em cadeia ou a dupla tributação económica dos rendimentos distribuídos por uma sociedade residente, as sociedades beneficiárias residentes não se encontram necessariamente numa situação comparável à das sociedades beneficiárias não residentes (Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C‑480/16, EU:C:2018:480, n.° 53 e jurisprudência referida).

 

65 Todavia, como resulta do n.° 49 do presente acórdão, a partir do momento em que um Estado‑Membro, de modo unilateral ou por via convencional, sujeita ao imposto sobre o rendimento não só as sociedades residentes mas também as sociedades não residentes, relativamente aos rendimentos que auferem de uma sociedade residente, a situação das referidas sociedades não residentes assemelha‑se à das sociedades residentes.

 

66 Com efeito, é unicamente o exercício por esse mesmo Estado da sua competência fiscal que, independentemente de tributação noutro Estado‑Membro, cria um risco de tributação em cadeia ou de dupla tributação económica. Em tal caso, para que as sociedades beneficiárias não residentes não sejam confrontadas com uma restrição à livre circulação de capitais, proibida, em princípio, pelo artigo 63.° TFUE, o Estado de residência da sociedade distribuidora deve assegurar que, em relação ao mecanismo previsto no seu direito nacional para evitar ou atenuar a tributação em cadeia ou a dupla tributação económica, as sociedades não residentes sejam submetidas a um tratamento equivalente ao tratamento de que beneficiam as sociedades residentes (Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C‑480/16, EU:C:2018:480, n.° 55 e jurisprudência referida).

 

67 Tendo a República Portuguesa optado por exercer a sua competência fiscal sobre os rendimentos auferidos pelos OIC não residentes, estes encontram‑se, por conseguinte, numa situação comparável à dos OIC residentes em Portugal no que respeita ao risco de dupla tributação económica dos dividendos pagos pelas sociedades residentes em Portugal (v., por analogia, Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o.,  C‑480/16, EU:C:2018:480, n.° 56 e jurisprudência referida).

 

68 Caso o órgão jurisdicional de reenvio chegue à conclusão de que o regime português em matéria de tributação dos dividendos visa, no intuito de não renunciar pura e simplesmente à tributação dos dividendos distribuídos por sociedades residentes em Portugal, transferir essa tributação para a esfera dos detentores de participações sociais dos OIC, há que recordar que o Tribunal de Justiça já declarou que, se o objetivo da legislação nacional em causa for deslocar o nível de tributação do veículo de investimento para o acionista desse veículo, são, em princípio, as condições materiais do poder de tributação sobre os rendimentos dos acionistas que devem ser consideradas determinantes e não a técnica de tributação utilizada (Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C‑480/16, EU:C:2018:480, n.° 60).

 

69 Ora, um OIC não residente pode ter detentores de participações sociais que tenham residência fiscal em Portugal e sobre cujos rendimentos este Estado‑Membro exerce o seu poder de tributação. Nesta perspetiva, um OIC não residente encontra‑se numa situação objetivamente comparável à de um OIC residente em Portugal (v., por analogia, Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C‑480/16, EU:C:2018:480, n.° 61).

 

70 É certo que a República Portuguesa não pode tributar os detentores de participações sociais não residentes sobre os dividendos distribuídos por OIC não residentes, como aliás o Governo português admitiu tanto nas suas observações escritas como em resposta às perguntas que lhe foram submetidas pelo Tribunal de Justiça. Contudo, essa impossibilidade é coerente com a lógica de deslocação do nível de tributação do veículo para o detentor de participações sociais (v., por analogia, Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C‑480/16, EU:C:2018:480, n.° 62).

 

71 No que respeita, em segundo lugar, aos critérios de distinção pertinentes, na aceção da jurisprudência do Tribunal de Justiça referida no n.° 60 do presente acórdão, há que observar que o único critério de distinção estabelecido pela legislação nacional em causa no processo principal se baseia no lugar de residência dos OIC, sujeitando apenas os organismos não residentes a uma retenção na fonte dos dividendos que recebem.

 

72 Ora, como resulta de jurisprudência do Tribunal de Justiça, a situação de um OIC residente que beneficia de uma distribuição de dividendos é comparável à de um OIC beneficiário não residente, na medida em que, em ambos os casos, os lucros realizados podem, em princípio, ser objeto de dupla tributação económica ou de tributação em cadeia (v., neste sentido, Acórdão de 10 de abril de 2014, Emerging Markets Series of DFA Investment Trust Company, C‑190/12, EU:C:2014:249, n.° 58 e jurisprudência referida).

 

73 Por conseguinte, o critério de distinção a que se refere a legislação nacional em causa no processo principal, que tem por objeto unicamente o lugar de residência dos OIC, não permite concluir pela existência de uma diferença objetiva de situações entre os organismos residentes e os organismos não residentes.

 

74 Atendendo a todos os elementos precedentes, há que concluir que, no caso em apreço, a diferença de tratamento entre os OIC residentes e os OIC não residentes diz respeito a situações objetivamente comparáveis.

 

 Quanto à existência de uma razão imperiosa de interesse geral

 

75 Há que recordar que, segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, uma restrição à livre circulação de capitais pode ser admitida se se justificar por razões imperiosas de interesse geral, for adequada a garantir a realização do objetivo que prossegue e não for além do que é necessário para alcançar esse objetivo [Acórdão de 29 de abril de 2021, Veronsaajien oikeudenvalvontayksikkö (Rendimentos distribuídos por OICVM), C‑480/19, EU:C:2021:334, n.° 56 e jurisprudência referida].

 

76  No caso em apreço, há que constatar que, embora o órgão jurisdicional de reenvio não invoque essas razões no pedido de decisão prejudicial, uma vez que este se concentra na eventual comparabilidade das situações em causa no processo principal, o Governo português alega, tanto nas suas observações escritas como em resposta às perguntas que lhe foram submetidas pelo Tribunal de Justiça, que a restrição à livre circulação de capitais efetuada pela legislação nacional em causa no processo principal se justifica à luz de duas razões imperiosas de interesse geral, a saber, por um lado, a necessidade de preservar a coerência do regime fiscal nacional e, por outro, a de preservar uma repartição equilibrada do poder de tributar entre os dois Estados‑Membros em causa, ou seja, a República Portuguesa e a República Federal da Alemanha.

 

77 No que respeita, em primeiro lugar, à necessidade de preservar a coerência do regime fiscal nacional, o Governo português considera, como resulta do n.° 46 do presente acórdão, que o modelo de tributação português dos dividendos constitui um modelo «compósito». Assim, só seria possível garantir a coerência deste modelo se a entidade gestora dos OIC não residentes operasse em Portugal através de um estabelecimento estável, de modo a que essa entidade pudesse concretizar as retenções na fonte necessárias junto dos detentores de participações sociais residentes, bem como, em certos casos excecionais orientados por considerações ligadas ao facto de evitar a planificação fiscal, junto dos detentores de participações sociais não residentes.

 

78 A este respeito, há que recordar que, embora o Tribunal de Justiça tenha declarado que a necessidade de preservar a coerência de um regime fiscal nacional pode justificar uma regulamentação nacional suscetível de restringir as liberdades fundamentais (v., neste sentido, Acórdão de 10 de maio de 2012, Santander Asset Management SGIIC e o., C‑338/11 a C‑347/11, EU:C:2012:286, n.° 50 e jurisprudência referida, e de 13 de março de 2014, Bouanich, C‑375/12, EU:C:2014:138, n.° 69 e jurisprudência referida), precisou, contudo, que, para que um argumento baseado nessa justificação possa ser acolhido, é necessário que esteja demonstrada a existência de uma relação direta entre o benefício fiscal em causa e a compensação desse benefício por uma determinada imposição fiscal (v., neste sentido, Acórdão de 8 de novembro de 2012, Comissão/Finlândia, C‑342/10, EU:C:2012:688, n.° 49 e jurisprudência referida, e de 13 de novembro de 2019, College Pension Plan of British Columbia, C‑641/17, EU:C:2019:960, n.° 87).

 

79 Ora, no presente processo, como resulta do n.° 71 do presente acórdão, a isenção da retenção na fonte dos dividendos em benefício dos OIC residentes não está sujeita à condição de os dividendos recebidos pelos organismos serem redistribuídos por estes e de a sua tributação na esfera dos detentores de participações sociais permitir compensar a isenção da retenção na fonte (v., por analogia, Acórdão de 10 de maio de 2012, Santander Asset Management SGIIC e o., C‑338/11 a C‑347/11, EU:C:2012:286, n.° 52, e de 10 de abril de 2014, Emerging Markets Series of DFA Investment Trust Company, C‑190/12, EU:C:2014:249, n.° 93).

 

80 Consequentemente, não há uma relação direta, na aceção da jurisprudência referida no n.° 78 do presente acórdão, entre a isenção da retenção na fonte dos dividendos de origem nacional auferidos por um OIC residente e a tributação dos referidos dividendos enquanto rendimentos dos detentores de participações sociais nesse organismo.

 

81 A necessidade de preservar a coerência do regime fiscal nacional não pode, por conseguinte, ser invocada para justificar a restrição à livre circulação de capitais induzida pela legislação nacional em causa no processo principal.

 

82 No que diz respeito, em segundo lugar, à necessidade de preservar uma repartição equilibrada do poder de tributar entre a República Portuguesa e a República Federal da Alemanha, há que recordar que, como o Tribunal de Justiça declarou reiteradamente, a justificação baseada na preservação da repartição equilibrada do poder de tributar entre os Estados‑Membros pode ser admitida quando o regime em causa visa prevenir comportamentos suscetíveis de comprometer o direito de um Estado‑Membro exercer a sua competência fiscal em relação às atividades realizadas no seu território (v., neste sentido, Acórdão de 22 de novembro de 2018, Sofina e o., C‑575/17, EU:C:2018:943, n.° 57 e jurisprudência referida, e de 20 de janeiro de 2021, Lexel, C‑484/19, EU:C:2021:34, n.° 59).

 

83 No entanto, como o Tribunal de Justiça também já declarou, quando um Estado‑Membro tenha optado, como na situação em causa no processo principal, por não tributar os OIC residentes beneficiários de dividendos de origem nacional, não pode invocar a necessidade de garantir uma repartição equilibrada do poder de tributar entre os Estados‑Membros para justificar a tributação dos OIC não residentes beneficiários desses rendimentos (Acórdão de 21 de junho de 2018, Fidelity Funds e o., C‑480/16, EU:C:2018:480, n.° 71 e jurisprudência referida).

 

84 Daqui resulta que a justificação baseada na preservação de uma repartição equilibrada do poder de tributar entre os Estados‑Membros também não pode ser acolhida.

 

85 Atendendo a todas as considerações precedentes, há que responder às questões submetidas que o artigo 63.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação de um Estado‑Membro por força da qual os dividendos distribuídos por sociedades residentes a um OIC não residente são objeto de retenção na fonte, ao passo que os dividendos distribuídos a um OIC residente estão isentos dessa retenção.”

 

Como tem sido pacificamente entendido pela jurisprudência e é corolário da obrigatoriedade de reenvio prejudicial prevista no artigo 267.º do TFUE, a jurisprudência do TJUE tem carácter vinculativo para os Tribunais nacionais quando tem por objeto questões de Direito da União Europeia (neste sentido, por todos, Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 26-03-2003, proferido no âmbito do processo n.º 01716/02).

E, tal como se confirma no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 03-02-2016, proferido no processo n.º 01172/14, o Princípio do Primado do Direito da União Europeia sobre o Direito Nacional tem suporte no n.º 4 do artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa, em que se estabelece que «as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático». A consequência jurídica do Princípio do Primado do Direito da UE é a não aplicação, em caso de conflito entre leis, das disposições internas contrárias à disposição comunitária.

Nestes termos, face à incompatibilidade do artigo 22.º do EBF, ao excluir do seu âmbito os OIC constituídos segundo a legislação de outros Estados-Membros da União Europeia, com o artigo 63.º do TFUE, o Tribunal declara ilegais e anula as retenções na fonte contestadas e a decisão de indeferimento da reclamação graciosa contra eles apresentada pelo Requerente, de harmonia com o disposto no artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.

 

  1. Pedido de reembolso das quantias pagas e juros indemnizatórios

 

O Requerente peticiona a restituição da quantia de € 643.776,05, bem como o reconhecimento do direito ao pagamento de juros indemnizatórios.

Na sequência da anulação das retenções na fonte contestadas, o Requerente tem direito a ser reembolsado das quantias retidas, no valor total de € 643.776,05, o que é consequência da anulação.

No que respeita ao direito a juros indemnizatórios, o TJUE tem decidido que a cobrança de impostos em violação do direito da União tem como consequência não só direito ao reembolso mas também o direito a juros, como pode ver-se pelo Acórdão de 18-04-2013, proferido no processo n.º C-565/11 (e outros nele citados), em que se refere, além do mais, o seguinte:

 

21 Há que lembrar ainda que, quando um Estado‑Membro tenha cobrado impostos em violação do direito da União, os contribuintes têm direito ao reembolso não apenas do imposto indevidamente cobrado mas igualmente das quantias pagas a esse Estado ou por este retidas em relação direta com esse imposto. Isso inclui igualmente o prejuízo decorrente da indisponibilidade de quantias de dinheiro, devido à exigibilidade prematura do imposto (v. acórdãos de 8 de março de 2001, Metallgesellschaft e o., C‑397/98 e C‑410/98, Colet., p. I‑1727, n.os 87 a 89; de 12 de dezembro de 2006, Test Claimants in the FII Group Litigation, C‑446/04, Colet., p. I‑11753, n.° 205; Littlewoods Retail e o., já referido, n.° 25; e de 27 de setembro de 2012, Zuckerfabrik Jülich e o., C‑113/10, C‑147/10 e C‑234/10, n.° 65).

 

22 Resulta daí que o princípio da obrigação de os Estados‑Membros restituírem com juros os montantes dos impostos cobrados em violação do direito da União decorre desse mesmo direito da União (acórdãos, já referidos, Littlewoods Retail e o., n.° 26, e Zuckerfabrik Jülich e o., n.° 66).

 

23 A esse respeito, o Tribunal de Justiça já decidiu que, na falta de legislação da União, compete ao ordenamento jurídico interno de cada Estado‑Membro prever as condições em que tais juros devem ser pagos, nomeadamente a respetiva taxa e o modo de cálculo. Essas condições devem respeitar os princípios da equivalência e da efetividade, isto é, não devem ser menos favoráveis do que as condições relativas a reclamações semelhantes baseadas em disposições de direito interno, nem organizadas de modo a, na prática, impossibilitar ou dificultar excessivamente o exercício dos direitos conferidos pelo ordenamento jurídico da União (v., neste sentido, acórdão Littlewoods Retail e o., já referido, n.os 27 e 28 e jurisprudência referida).

 

Como se retira do n.º 23 do Acórdão ora vindo de citar, cabe a cada Estado-Membro prever as condições em que tais juros devem ser pagos, nomeadamente a respetiva taxa e o modo de cálculo.

No caso português, o regime substantivo do direito a juros indemnizatórios vem regulado no artigo 43.º da LGT, que estabelece, no que aqui interessa, o seguinte:

 

Artigo 43.º

Pagamento indevido da prestação tributária

1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

2 – Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar da liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.

3. São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias:

a) Quando não seja cumprido o prazo legal de restituição oficiosa dos tributos;

b) Em caso de anulação do acto tributário por iniciativa da administração tributária, a partir do 30.º dia posterior à decisão, sem que tenha sido processada a nota de crédito;

c) Quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.

d) Em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução.

4. A taxa dos juros indemnizatórios é igual à taxa dos juros compensatórios.

5. No período que decorre entre a data do termo do prazo de execução espontânea de decisão judicial transitada em julgado e a data da emissão da nota de crédito, relativamente ao imposto que deveria ter sido restituído por decisão judicial transitada em julgado, são devidos juros de mora a uma taxa equivalente ao dobro da taxa dos juros de mora definida na lei geral para as dívidas ao Estado e outras entidades públicas.

 

No caso sub judice, assiste razão à Requerida quando defende que os erros que afetam as retenções na fonte contestadas não lhe são imputáveis, visto que não foram por ela praticadas. No entanto, o mesmo não sucede com o indeferimento da reclamação graciosa apresentada pelo Requerente. Na verdade, não estando exonerada do dever de aplicação do Direito da União Europeia, a AT deveria ter deferido a pretensão do Requerente em sede de reclamação graciosa. Não o tendo feito, a AT manteve uma situação de ilegalidade, sendo-lhe assim imputável erro de direito enquadrável no n.º 1 do artigo 43.º da LGT. Neste sentido, pode ler-se no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido no âmbito do processo n.º 0890/16, em 18-01-2017: “[e]m caso de retenção na fonte e havendo lugar a impugnação administrativa (reclamação graciosa ou recurso hierárquico) o erro passa a ser imputável à AT depois de eventual indeferimento da pretensão deduzida pelo contribuinte”. Nestes termos, conclui-se que não poderá deixar de proceder o pedido de condenação quanto aos juros indemnizatórios, com fundamento em erro imputável aos serviços (no mesmo sentido, v. Decisão Arbitral de 14-05-2019, processo n.º 637/2018-T, Decisão Arbitral de 27-05-2019, processo n.º 678/2018-T; Decisão Arbitral de 13-07-2022, processo n.º 115/2022-T; Decisão Arbitral de 28-07-2022, processo n.º 816/2021-T). 

Relativamente ao momento a partir do qual são devidos os juros indemnizatórios, pronunciou-se o Supremo Tribunal Administrativo no Acórdão proferido no âmbito do processo n.º 0360/11.8BELRS, de 07-04-2021:

 

“(…) afigura-se-nos justo e equitativo que a indemnização ao contribuinte (decorrente do pagamento de juros indemnizatórios, pela AT) não retroaja ao momento da prática do ato de retenção na fonte (da responsabilidade do substituto tributário), porquanto, tratando‑se de uma situação de autoliquidação, só com a competente impugnação administrativa, atempada, os serviços da AT ficam em condições de conhecer e reparar uma cometida ilegalidade, sendo, a partir do momento em que não assumem a respetiva reparação, justificado o ressarcimento do sujeito passivo, decorrente de não receber e passar a dispor desde esse momento (que podia ter sido de viragem) do imposto indevidamente entregue ao Estado, através do mecanismo da substituição tributária.

 

Neste ponto, apenas, resta problematizar se, na situação versada (ou equiparáveis), o dies a quo deve corresponder ao da data da apresentação da impugnação administrativa (reclamação graciosa e/ou recurso hierárquico) ou ao do momento em que os competentes serviços da AT se pronunciam/comunicam o resultado da pronúncia ao contribuinte.

 

(…) julgamos, justo, adequado e seguro, assumir como marco, para identificar e fixar o disputado dies a quo, o prazo, fixado por lei, para a decisão do procedimento de reclamação graciosa (...), isto é, o período, atualmente, de 4 meses”.

 

O mesmo entendimento foi acolhido na Decisão Arbitral de 01-02-2022, processo n.º 345/2020-T; Decisão Arbitral de 23-05-2022, processo n.º 558/2020-T; Decisão Arbitral de 13-07-2022, processo n.º 115/2022-T; Decisão Arbitral de 28-07-2022, processo n.º 816/2021-T.

No caso em apreço, o Requerente apresentou reclamação graciosa para apreciação da legalidade das retenções na fonte contestadas em 14-06-2021. A AT deveria ter-se pronunciado sobre a mesma no prazo de quatro meses (cf. artigo 57.º, n.º 1, da LGT), ou seja, até 14-10-2021. Assim sendo, o Tribunal determina que os juros indemnizatórios sobre o montante de € 643.776,05 deverão contar desde o dia 15-10-2021 até ao integral reembolso do referido montante ao Requerente (nos termos dos artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, do artigo 61.º do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de abril).

 

  1. Decisão

 

De harmonia com o exposto acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

  1. Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e anular as retenções na fonte contestadas, no montante de € 643.776,05, incluído nas guias de retenção na fonte n.ºs ... (2019-05), ... (2019-06), ... (2020-05), ... (2020-07) e ... (2020-12), bem como a decisão de indeferimento da reclamação graciosa contra elas deduzida;

 

  1. Julgar procedente o pedido de reembolso do montante de € 643.776,05 e condenar a AT a pagar este montante ao Requerente;

 

  1. Julgar procedente o pedido de juros indemnizatórios sobre o montante de € 643.776,05, contados desde 15-10-2021 até ao integral reembolso do respetivo montante ao Requerente, e condenar a AT a pagá-los ao Requerente.

 

  1. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto nos artigos 296.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 643.776,05, indicado pelo Requerente e sem oposição da Requerida.

 

  1. Custas

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 9.486,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.

 

  1. Comunicação ao Ministério Público

 

Comunique-se ao Ministério Público, nos termos do artigo 17.º, n.º 3, do RJAT.

 

Lisboa, 4 de novembro de 2022

 

Os Árbitros

 

(Rita Correia da Cunha)

 

(Francisco Melo)

(Relator)

 

(João Taborda da Gama)