Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 111/2022-T
Data da decisão: 2022-10-17  IVA  
Valor do pedido: € 46.896,60
Tema: IVA – Art.º 14 RITI, transmissões intracomunitárias de bens, prova da saída dos bens de território nacional, isenção de imposto.
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SUMÁRIO:

  1. A isenção de IVA da alínea a) do n.º 1 do art.º 14 do RITI depende, entre outros requisitos, de comprovação da saída dos bens de território nacional, com destino a outro Estado-Membro.
  2. Durante a vigência do ofício-circulado n.º 30009, de 10/12/1999, da Direção de Serviços do IVA, a AT estava vinculada a aceitar as declarações de expedição CMR como meio de prova suficiente da saída dos bens do território nacional.

 

DECISÃO ARBITRAL

A Árbitra do Tribunal Singular, Dra. Raquel Montes Fernandes, designada pelo Conselho Deontológico do CAAD – Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o presente Tribunal Arbitral, constituído em 04.05.2022, decide o seguinte:

 

  1. RELATÓRIO

A A..., Lda., doravante designada por “Requerente”, com o número de identificação fiscal ... e sede no Lugar ..., em ..., tendo sido notificada da decisão de indeferimento da reclamação graciosa deduzida contra os atos tributários de liquidação adicional de IVA e de juros compensatórios e moratórios infra identificados, no valor total de € 46.896,60, apresentou, em 24.02.2022, pedido de constituição de Tribunal Arbitral Singular, ao abrigo do disposto no art.º 2, n.º 1, alínea e) e art.º 10, ambos do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, conjugado com o art.º 99, alínea a) do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), sendo Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada por “AT” ou “Requerida”).

 

As liquidações adicionais objeto do presente pedido de pronúncia arbitral são as seguintes:

 

A Requerente peticiona (i) a declaração de ilegalidade da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, (ii) a declaração de ilegalidade das liquidações de IVA e de juros compensatórios e moratórios acima identificadas e (ii) a condenação da AT à restituição à Requerente da quantia paga por conta das mesmas, acrescida de juros indemnizatórios contados desde a data da compensação e do pagamento até à data da emissão da correspondente nota de crédito.   

 

A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, de acordo com os art.ºs 5, n.º 2, alíneas a) e b) e 6, n.º 1 do RJAT, o Conselho Deontológico do CAAD designou como árbitra singular deste Tribunal Arbitral a signatária, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

Em 13.04.2022 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do art.º 11 do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído, em 04.05.2022, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD.

 

Notificada para o efeito, a Requerida apresentou Resposta em 08.06.2022, defendendo por impugnação que o pedido de pronúncia arbitral sub judice devia ser julgado improcedente. Na mesma data foi junto o respetivo processo administrativo.

 

Em 17.06.2022 foi proferido despacho arbitral a solicitar à Requerente a indicação dos factos sobre os quais pretendia apresentar prova testemunhal, o que veio a suceder em 27.06.2022. Nessa sequência, em 04.07.2022, foi designado o dia 07.09.2022, pelas 10h, para a inquirição de testemunhas. Por motivos médicos e de impossibilidade de agenda, a referida sessão de inquirição de testemunhas foi, posteriormente, reagendada para o dia 21.09.2022, às 14h30. Nesta audiência houve lugar à inquirição de 2 testemunhas, tendo a Requerente prescindido da declaração de parte do seu Gerente.

 

Tendo sido concedido prazo de 20 dias para alegações simultâneas, foram as mesmas apresentadas pelas partes em 11.10.2022 (Requerente) e 12.10.2022 (Requerida).

 

 

  1. SANEAMENTO

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do RJAT.

 

O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, contado a partir dos factos previstos no artigo 102.º n.º 1, alínea b) do CPPT.

 

As Partes estão devidamente representadas, têm personalidade e capacidade judiciárias e mostram-se legítimas.

 

Face ao exposto, importa delimitar a questão a decidir, a qual versa sobre os requisitos constantes da alínea a) do n.º 1 do art.º 14 do RITI para aplicação da isenção de IVA em transmissões intracomunitárias de bens e, em concreto, averiguar se resulta provado que os bens em causa saíram do território nacional com destino a outro Estado-Membro (in casu, de Portugal para Espanha).   

 

 

 

  1. MATÉRIA DE FACTO

 

  1. Factos provados

 

  1. A Requerente é uma sociedade comercial por quotas, registada desde 09.10.2017, que exerce a atividade principal de comércio por grosso não especificado de produtos alimentares, bebidas e tabaco (CAE 46390).
  2. A Requerente é sujeito passivo de IRC e de IVA, enquadrada, no que respeita a este último, no regime normal de periodicidade mensal desde 01.01.2020, e trimestral em data anterior (incluindo à data dos factos).
  3. Os sócios gerentes da Requerente são B... (NIF...) e C... (NIF...).
  4. A Requerente exerce a atividade no ..., em ..., utilizando, para o efeito, as instalações que são propriedade da sociedade D... S.A., NIPC..., estando em construção o pavilhão que, de futuro, servirá de sede à Requerente.
  5. Em 27.01.2020 e em 30.01.2020 foram emitidas pela Direção de Finanças de Braga as ordens de serviço n.º OI2020... e OI2020..., respetivamente, tendo em vista o desenvolvimento de ações de controlo declarativo (código de atividade 1222110228) à Requerente.
  6. Nessa sequência, a Requerente foi notificada, por carta registada, do procedimento externo de inspeção, o qual teve início em 23.09.2020, com a assinatura da ordem de serviço pelo sócio gerente, a qual visou a recolha e análise dos registos da contabilidade e demais elementos com ela relacionados como sejam: faturas, recibos, meios de pagamento, guias de remessa, guias de transporte ou outras, referentes aos exercícios de 2018 e 2019, e cujo prazo foi prorrogado por três meses, por força da pandemia de covid-19 (conforme relatório de inspeção tributária, pág. 2).
  7. A equipa inspetiva concluiu que (i) a contabilidade da Requerente se encontra informatizada e organizada de acordo com as normas comerciais e fiscais, sendo possível a extração de diários, balancetes e extratos de conta corrente, e que (ii) as obrigações declarativas da Requerente em sede de IRC e IVA tinham sido devidamente cumpridas.  
  8. O procedimento inspetivo teve origem numa proposta de inspeção dos serviços de inspeção tributária da Direção de Finanças de Braga, na sequência de pedido de informação ao abrigo do Convénio Portugal – Espanha, relativo à sociedade E..., SOCIEDADE LIMITADA (ES ...), no âmbito das ordens de serviço n.ºs OI2019... e OI201... da Direção de Finanças de Braga, emitidas para a sociedade F... – UNIPESSOAL, LDA. (“F...”).
  9. A equipa inspetiva solicitou à Requerente diversos documentos respeitantes às transmissões de bens ao cliente espanhol E..., SL, em 2018 e 2019 (extratos de contas e extratos bancários, cópias de faturas, notas de créditos, guias de transporte, etc.), os quais lhe foram disponibilizados.
  10. A Requerente emitiu, em 2018 e 2019, as seguintes faturas e notas de crédito à E... SL, as quais foram registadas na contabilidade como transmissões intracomunitárias de bens, isentas de IVA nos termos do art.º 14 do RITI e declaradas ao sistema VIES:

 

  1. Os extratos bancários e os talões que foram solicitados e apresentados pela Requerente referem que os pagamentos das faturas foram efetuados por transferência bancária, ordenados pela E... SL, conta ordenante n.º ES... . 
  2. Juntamente com as faturas, foram disponibilizadas à equipa de inspeção as guias de transporte emitidas à E... SL e cópia do exemplar 3 dos CMR emitidos pela transportadora G..., LDA. (“G...”), NI..., a saber:

 

  1. Os CMR (exemplar 3) disponibilizados à inspeção pela Requerente não tinham qualquer indicação no quadro 24 (campo inferior direito) relativo à receção da mercadoria no local de descarga (conforme Anexo I do relatório de inspeção).
  2. De acordo com o relatório de inspeção (pág. 7), o sistema VIES identifica os seguintes dados para o n.º de IVA espanhol ES ...:

 

  • Na sequência do pedido de informação ao abrigo do Convénio Portugal – Espanha relativo à sociedade espanhola E... SL, no âmbito das ordens de serviço acima referidas, foi obtida da Agência Tributária Espanhola a seguinte informação (páginas 7 e seguintes do relatório de inspeção):

   

 

 

  1. Em contactos diretamente estabelecidos com a transportadora G..., a equipa inspetiva solicitou a esta os seguintes elementos:
    1. CMR n.ºs 39389, 39394, 39938, 39939, 40585, 40634, 41203 (de novembro e dezembro de 2018) e n.ºs 41058, 41350, 41071 e 42189 (de janeiro de 2019);
    2. Documentos de expedição emitidos pela G... no âmbito da sua atividade de recolha e transporte de bens, para a C... SL;
    3. Explicações adicionais sobre a identificação (i) do local de descarga das mercadorias transportadas e (ii) do responsável pela receção das mercadorias.
  2. A G... respondeu, em 16.10.2020, enviando por correio eletrónico à Requerida os documentos que integram o anexo n.º 2 do relatório de inspeção, cujo resumo se apresenta no quadro seguinte:

 

  1. Do anexo n.º 3 do relatório de inspeção constam os documentos disponibilizados pela transportadora G..., por endereço eletrónico, em momento posterior (i.e., em 22.10.2020), cujo resumo aqui se apresenta:

 

  1. Da análise da documentação disponibilizada pela transportadora G..., a Requerida concluiu:
    1. Que o CMR 42189 foi substituído pelo CMR 46551;
    2. Que o CMR 46651 está incompleto, porquanto não tem identificação do expedidor nem faz referência à receção da mercadoria;
    3. Que a fatura n.º 914 referente ao transporte de 29.01.2019 refere-se ao CMR 46551 e foi emitida em 29.07.2019, no valor de € 380 e o recibo n.º 93 foi emitido em 03.03.2020 com a indicação de pagamento em numerário.
  2. No que respeita ao local de descarga das mercadorias e pessoa responsável pelas entregas, a transportadora G... confirmou o seguinte à Requerida:

 

  1. Os locais de descarga identificados pela G... correspondem aos seguintes concelhos em território nacional:

 

  1. Como tal, concluiu a AT o seguinte (conforme páginas 11 e 12 do relatório de inspeção):

 

 

  1. A Requerente exerceu, em 12.03.2021, direito de audição por escrito (conforme anexo n.º 5 do relatório de inspeção), no âmbito do qual contestou as conclusões da AT, entendendo não ser responsável por IVA eventualmente não liquidado, porquanto entende ter atuado de acordo com as normas legais e com a diligência que lhe era exigida; em particular, a Requerente salientou os seguintes aspetos:

 

 

  1. Tendo por referência o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) de 27.09.2007, no processo C-409/04, quanto ao ónus da prova que compete ao fornecedor de bens objeto de transmissões intracomunitárias (i.e., prova de que os respetivos bens foram expedidos para outro Estado-Membro, tendo, portanto, saído fisicamente do território do estado de entrega), a Requerida concluiu (páginas 15 e 16 do relatório de inspeção):

 

 

  1. Nessa sequência, as liquidações adicionais de IVA e de juros acima identificadas foram emitidas pela Requerida, as quais foram objeto de reclamação graciosa pela Requerente, com os seguintes argumentos:
    1. Preterição de formalidades essenciais por omissão do dever de fundamentação material ou substantiva e violação do princípio da descoberta da verdade material;
    2. Ilegalidade por erro sobre os pressupostos de facto e de direito;
    3. Inexistência de facto tributário.
  2. A Requerente alega, em sede de reclamação graciosa, a seguinte situação factual e os argumentos de direito que aqui se resumem:
    1. Transmitiu bens ao sujeito passivo espanhol E..., SL, registado para efeitos de IVA em Espanha e, à data dos factos, com o respetivo número de IVA válido no VIES;
    2. Os bens fornecidos foram transacionados sob o regime ex works; como tal, nos termos acordados, a Requerente disponibilizou os referidos bens à porta do seu armazém e emitiu as guias de transporte e faturas, sendo a  E... SL responsável pelo transporte dos mesmos para Espanha;
    3. A E..., SL informou a Requerente da data do carregamento, do transportador contratado e do camião a utilizar no transporte para Espanha;
    4. Os respetivos CMR foram assinados e carimbados pela Requerente e pela transportadora G..., indicando Pontevedra (em Espanha) como local de descarga e o armazém da Requerente como local de expedição;
    5. A E..., SL remeteu à Requerente cópia dos CMR por si assinados e carimbados;
    6. As faturas emitidas pela transportadora à E..., SL também indicam tratar-se de um serviço de transporte de bens entre ... (local de carga) e Pontevedra (local de descarga);
    7. As faturas emitidas pela Requerente à E..., SL foram pagas por transferência bancária ordenada pelo gerente desta (H...), a partir de uma conta bancária espanhola;
    8. A Requerente desconhece as instalações do seu cliente em Espanha;
    9. A Requerente possui, como meio de prova das expedições de bens para Espanha:
      1. Cópia dos CMR emitidos pela transportadora e assinados e carimbados por esta e pela Requerente;
      2. Cópia dos CMR assinados e carimbados pelo adquirente das mercadorias.
    10. A informação prestada por email pela transportadora à equipa de inspeção – confirmando que os bens foram, afinal, transportados para diversas localidades em território nacional, ao invés de terem como destino Pontevedra em Espanha, apesar de não existir qualquer averbamento, nos CMR, de alteração do destino de descarga – contrariam a informação constante dos CMR e das faturas emitidas e não constituem meio de prova suscetível de abalar as declarações compromissórias de que as mercadorias carregadas no armazém da Requerente foram transportadas de ... para Pontevedra;
    11. A Requerente atuou de boa fé e emitiu e recolheu os meios de prova exigidos para suportar a isenção de IVA do art.º 14 do RITI, pelo que, tendo existido algum comportamento desviante por parte da transportadora e/ou do seu cliente, dele não teve conhecimento ou suspeita;
    12. Nem a lei portuguesa, nem a Diretiva 2006/112/CE, do Conselho, de 28/11/2006 (“Diretiva IVA”) definem os meios de prova da saída dos bens do território nacional, os quais foram, no entanto, objeto de instruções pela AT no ofício-circulado n.º 30009, de 10.12.1999 da DSIVA; e tendo a Requerente apresentado as provas consideradas exigíveis a um fornecedor de boa fé e diligente pelo referido ofício-circulado e, portanto, tendo cumprido todas as obrigações formais exigíveis por lei, estão verificadas as condições para aplicação da isenção de IVA do art.º 14 do RITI;
    13. A jurisprudência comunitária (da qual cita alguns exemplos na reclamação graciosa) não permite que o sujeito passivo que efetua transmissões intracomunitárias de bens seja sobrecarregado com exigências formais de prova quando age de boa fé, não participa em fraude fiscal e não tem meios para dela tomar conhecimento, não podendo, nestes casos, ser-lhe recusada a isenção de IVA nas suas expedições.   
  3. A reclamação graciosa foi indeferida pela Direção de Finanças de Braga, em 26.11.2021, com os seguintes fundamentos aqui resumidos:
    1. Não se verifica violação do dever de fundamentação, porquanto o relatório de inspeção identificou os factos irregulares, fundamentou o enquadramento fiscal dos mesmos e procedeu à respetiva correção fiscal, tendo a Requerente entendido claramente a decisão e a fundamentação expostas nesse documento;
    2. A E..., SL não estava válida no sistema VIES para efetuar aquisições intracomunitárias à data das faturas emitidas pela Requerente, nem foi por esta feita prova de que os bens saíram do território nacional, pelo que não estamos perante transmissões intracomunitárias de bens, mas, sim, transmissões efetuadas em território nacional, sujeitas a IVA português, não havendo lugar à isenção de imposto do art.º 14 do RITI.
  4. Em 24.02.2022 a Requerente apresentou o pedido de pronúncia arbitral que deu origem a este processo, o qual tem por objeto imediato o despacho de indeferimento da reclamação graciosa e por objeto mediato as liquidações adicionais de IVA e de juros acima identificadas.

 

 

  1. Factos não provados

O Tribunal considera que não foram provados os seguintes factos alegados pelas partes:

  • Que os bens transmitidos pela Requerente à E..., SL entre novembro de 2018 e janeiro de 2019 não tenham saído do país;
  • Que as expedições de bens efetuadas ao abrigo dos CMR n.ºs 39939 e 40634 tenham sido realizadas pela Requerente e não pela D..., Lda.;
  • Que o CMR 42189 tenha sido substituído pelo CMR 46651.

 

 

 

  1. Fundamentação da decisão da matéria de facto

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas Partes, cabendo-lhe, ao invés, o dever de (i) selecionar os factos que importam para a decisão e (ii) discriminar a matéria provada da não provada [cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT].

 

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis das questões de Direito [cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT].

 

Os factos foram dados como provados ou não provados com base (i) nos documentos juntos aos autos, (ii) no processo administrativo apresentado e (iii) na prova testemunhal em audição realizada em 21.09.2022, pelas 14h30, nas instalações do CAAD. Neste âmbito, foram ouvidas as seguintes testemunhas:

  1. I... (responsável pela relação com os clientes)
  2. J... (fiel de armazém)

As testemunhas aparentaram depor com isenção e conhecimento dos factos que relataram.

Todas as provas deste processo foram criticamente analisadas por este Tribunal.

 

 

  1. MATÉRIA DE DIREITO

 

  1. Questão decidenda

É solicitado a este Tribunal que decida se a Requerente fez prova adequada para legitimar a isenção de IVA aplicada ao abrigo do art.º 14 do RITI, no que respeita aos bens transmitidos à E..., SL, sua cliente, no quarto trimestre de 2018 e no primeiro trimestre de 2019, que tinham, segundo a Requerente, como local de carga ...s (em Portugal), e como local de destino Pontevedra (em Espanha).

 

  1. Apreciação do Tribunal

 

  1. Da isenção de IVA prevista no art.º 14 do RITI - enquadramento

 

O art.º 138 da Diretiva IVA, inserido na secção I (isenções das entregas de bens) do seu capítulo 4 (isenções relacionadas com as operações intracomunitárias), determina que os Estados–Membros isentam as entregas de bens expedidos ou transportados, para fora do respetivo território mas na Comunidade, pelo vendedor, pelo adquirente ou por conta destes, efetuadas a outro sujeito passivo ou a uma pessoa coletiva que não seja sujeito passivo agindo como tal num Estado-Membro diferente do Estado de partida da expedição ou do transporte dos bens.

 

Nessa sequência, dispõe a alínea a) do n.º 1 do art.º 14 do RITI que estão isentas de imposto as transmissões de bens, efetuadas por um dos sujeitos passivos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, expedidos ou transportados pelo vendedor, pelo adquirente ou por conta destes, a partir do território nacional para outro Estado-Membro com destino ao adquirente, quando este seja uma pessoa singular ou coletiva registada, para efeitos do imposto sobre o valor acrescentado, em outro Estado-Membro, que tenha utilizado e comunicado ao vendedor o respetivo número de identificação para efetuar a aquisição e aí se encontre abrangido por um regime de tributação das aquisições intracomunitárias de bens.

 

In casu, e conforme se refere na pág. 15 do relatório de inspeção, está apenas em causa o cumprimento do requisito respeitante à prova da saída dos bens da Requerente do território nacional para o território de outro Estado-Membro (Espanha), porquanto os restantes requisitos do art.º 14 do RITI se encontram preenchidos[1].

 

A questão da prova documental inequívoca, a obter pelo fornecedor de bens para aplicação da isenção de IVA constante do art.º 14 do RITI, de que os bens foram expedidos de um Estado-Membro para outro, tem sido um tema controvertido ao longo dos anos e, como tal, está na origem de intensa litigância junto dos tribunais, quer ao nível nacional, quer ao nível europeu. Tendo em vista clarificar este aspeto, os Estados-Membros acordaram um conjunto de medidas – incluídas num pacote que ficou conhecido por quick fixes – aprovadas pela Diretiva 2018/1910 do Conselho, de 04.12.2018 (que altera a Diretiva IVA), transposta para o ordenamento jurídico nacional pela Lei n.º 49/2020, de 24 de agosto, que entrou em vigor a 01.01.2020, e pelo Regulamento de Execução (UE) 2018/1912 do Conselho, de 04.12.2018 [que altera o Regulamento de Execução (UE) 282/2011], que entrou em vigor igualmente em 01.01.2020[2].

 

No que respeita à prova documental exigível para efeitos de comprovação da expedição intracomunitária de bens, os Estados-Membros acordaram a aprovação de uma presunção (ilidível por parte das administrações fiscais) de transporte de bens entre Estados-Membros, a qual serve de safe harbour para os sujeitos passivos, assentando numa combinação de diferentes documentos a obter pelo fornecedor dos bens, consoante o transporte seja organizado por si / por sua conta, ou pelo comprador / por conta deste, e cuja lista consta do (novo) art.º 45-A do Regulamento de Execução (UE) 282/2011.

 

Conforme supra mencionado, estas normas de clarificação / harmonização ao nível europeu apenas entraram em vigor em 2020, i.e., em data posterior às operações controvertidas, cujas faturas foram emitidas entre novembro de 2018 e janeiro de 2019. Nesse período temporal, o direito português não previa obrigações concretas para efeitos da aplicação da isenção de IVA do art.º 14 do RITI. Sem prejuízo, existiam, à data, instruções emitidas pela AT sobre o tema da prova exigível para comprovação de transmissões intracomunitárias, em particular o ofício-circulado n.º 30009, de 10.12.1999, da Direção de Serviços do IVA, que foi posteriormente revogado pelo ofício-circulado n.º 30218/2020, de 03.02.2020, na sequência da aprovação do pacote de medidas acima referido.

 

O ponto 4 do ofício-circulado n.º 30009, de 1999, dispunha o seguinte quanto à comprovação das transmissões intracomunitárias de bens:

“Perante a falta de norma que, na legislação do IVA, indique expressamente os meios considerados idóneos para comprovar a verificação dos pressupostos da isenção prevista na alínea a) do artigo 14º do RITI, será de admitir que a prova da saída dos bens do território nacional possa ser efectuada recorrendo aos meios gerais de prova, nomeadamente através das seguintes possibilidades alternativas:

 -os documentos comprovativos do transporte, os quais, consoante o mesmo seja rodoviário, aéreo ou marítimo, poderão ser, respectivamente, a declaração de expedição (CMR), a carta de porte ("Airwaybil I"-AWB) ou o conhecimento de embarque ("Bill of landing"-B/L);

-os contratos de transporte celebrados;

-as facturas das empresas transportadoras;

-as guias de remessa; ou

-a declaração, no Estado membro de destino dos bens, por parte do respectivo adquirente, de aí ter efectuado a correspondente aquisição intracomunitária”.

 

Conforme refere o Tribunal Central Administrativo Norte no acórdão proferido em 13.12.2018 no processo 00927/15.5BEPNF, “[a] existência deste ofício circulado vincula a Autoridade Tributária e Aduaneira ao reconhecimento dos requisitos de isenção de uma transmissão intracomunitária de um contribuinte que tenha documentado a transmissão nesses termos, conferindo, assim, segurança jurídica às transacções, tal como exige a jurisprudência do TJ, dando concretização ao princípio da protecção da confiança legítima. Nessa medida, as regras administrativas não merecem qualquer censura, bem pelo contrário, pois o contribuinte poderá adoptar os procedimentos previstos naquele ofício circulado assegurando-se, assim, que não serão levantadas questões de prova pela AT relacionadas com a expedição ou transporte para outro Estado-Membro, o que confere segurança às transacções das empresas”.

 

Face ao exposto, é de concluir que, à data dos factos, a AT estava vinculada a aceitar as declarações de expedição CMR como meio de prova suficiente e idóneo da saída dos bens do território nacional, ao abrigo do disposto no n.º 1 do art.º 68-A da Lei Geral Tributária.

 

No mesmo sentido, decidiu o Tribunal Arbitral no processo 25/2022-T, de 06.07.2022:

“Estas declarações de expedição (CMR), cuja autenticidade não é questionada, são um meio de prova que a própria Autoridade Tributária e Aduaneira publicitou que considerava idóneo para demonstrar a saída dos bens do território nacional, no Ofício-Circulado n.º 30009, de 10-12-1999, da Direção de Serviços do IVA ( [3] ).

 

E, embora aquele Ofício-Circulado tenha sido revogado pelo Ofício-circulado n.º 30218/2020, de 03-02-2020, aquela orientação genérica estava em vigor em 2014 e 2015, pelo que a Autoridade Tributária e Aduaneira estava vinculada a aceitar essas declarações de expedição CMR como meio de prova suficiente da saída dos bens do território nacional, pois, por força do preceituado no n.º 1 do artigo 68.º-A da LGT, «a administração tributária está vinculada às orientações genéricas constantes de circulares, regulamentos ou instrumentos de idêntica natureza, independentemente da sua forma de comunicação, visando a uniformização da interpretação e da aplicação das normas tributárias».

 

Por outro lado, os factos que levaram a Autoridade Tributária e Aduaneira a concluir que as mercadorias não tinham saído do território nacional, que são as informações das autoridades fiscais espanholas sobre a não localização das instalações das empresas referidas nos locais indicados nas facturas, não se afiguram suficientemente consistentes para prova de que não se realizaram as transacções com essas empresas.

 

Na verdade, relativamente à empresa B... SL, as autoridades espanholas apenas apuraram que, em 31-03-2016, não tinha as instalações no local indicado nas facturas, o que, obviamente, não demonstra que não as tivesse aí em 2015, nas datas indicadas nas facturas e nas declarações de expedição (CMR).

 

Quanto à empresa C... SL, as autoridades fiscais espanholas referem que uma pessoa de nome H..., que invocou ser o proprietário das instalações indicadas nas facturas, lhes disse que estas nunca estiveram arrendadas àquela empresa. Mas, por um lado, esta prova não se afigura suficientemente sólida, pois aquelas autoridades não referem qualquer diligência que tenham efectuado para comprovar que aquela pessoa tinha essa qualidade de proprietário das instalações referidas e, de qualquer forma, a realidade das transacções referidas nas facturas é comprovada, com mais clara consistência, pelas declarações de expedição (CMR) assinadas e carimbadas pela empresa transportadora e confirmada pelos cheques e transferências a favor da Requerente emitidos pela referida C... SL, bem como pelas transferências efectuadas e cheque emitido pela Requerente a favor da empresa Rota Direta, que nas referidas declarações de expedição (CMR) é indicada como transportadora  (documento n.º 9 junto com o pedido de pronúncia arbitral).

 

Assim, é convicção do Tribunal Arbitral, baseada na valoração dos elementos de prova referidos e na presunção legal referida, que ocorreram as transmissões da Requerente para as empresas B... SL e C... SL e que as mercadorias saíram de território nacional, pois a generalidade da prova documental que consta do processo [facturas, declarações de expedição (CMR) assinadas e carimbadas pelo transportador e documentos comprovativos do pagamento de transacções entre a Requerente e as empresas referidas] aponta no sentido de terem sido realizadas essas transmissões e as mercadorias terem saído do território nacional para Espanha.

 

Conclui-se, assim, que se verificavam os requisitos da isenção prevista no artigo 14.º, alínea a) do RITI, pois as mercadorias saíram de território nacional para Espanha (Estado-Membro da União Europeia) e as empresas destinatárias eram, às datas das transacções, sujeitos passivos de IVA que comunicaram à Requerente os respectivos números de identificação fiscal para efectuarem  as transacções e estavam abrangidas em Espanha por um regime de tributação das aquisições intracomunitárias de  bens, como se vê pelo seu registo no VIES, nessas datas.”

 

Importa, agora, analisar a prova documental e testemunhal apresentada pela Requerente, para concluir pela sua suficiência ou insuficiência.

 

  1. Da prova apresentada pela Requerente

 

Constam dos autos os seguintes documentos, que foram valorados por este Tribunal:

  1. Faturas (incluindo algumas faturas proforma) e notas de crédito emitidas pela Requerente à E... SL para titular a venda de bens daquela a esta entre novembro de 2018 e janeiro de 2019, e respetivos comprovativos de pagamento pelo cliente (anexo I do relatório de inspeção);
  2. Comprovativos de consulta do n.º de IVA da E... SL no sistema VIES (anexos I e V do relatório de inspeção e documento n.º 5 do pedido de pronúncia arbitral);
  3. Guias de transporte emitidas pela Requerente à E... SL (anexo I do relatório de inspeção);
  4. Cópias do exemplar 1 dos CMR emitidos pela transportadora G... e disponibilizados pela Requerente (anexo I do relatório de inspeção);
  5. Cópias do exemplar 2 dos CMR emitidos pela transportadora G... e disponibilizados pela Requerente (documento n.º 6 do pedido de pronúncia arbitral);
  6. Cópias do exemplar 3 dos CMR emitidos pela transportadora G... e disponibilizados por esta entidade (anexos II e III do relatório de inspeção);
  7. Exemplar de um processo documental referente a uma transmissão intracomunitária de bens (documento n.º 7 do pedido de pronúncia arbitral);
  8. Faturas emitidas pela transportadora G... por conta dos serviços de transporte dos bens em causa (anexos II e III do relatório de inspeção);
  9. Comprovativos de pagamento dos serviços de transporte dos bens (anexos II e III do relatório de inspeção);
  10. Email de 22.10.2020 enviado pela transportadora G... à equipa de inspeção, a confirmar (i) os locais de descarga das mercadorias transportadas ao abrigo dos CMR apresentados e (ii) a pessoa de contacto pelas instruções das descargas (anexo III do relatório de inspeção);
  11. Declarações recapitulativas do 4º trimestre de 2018 e do 1º trimestre de 2019, disponibilizadas pela Requerente (documento n.º 4 do pedido de pronúncia arbitral).

 

Em primeiro lugar, importa salientar a quantidade significativa de documentação que foi disponibilizada à equipa inspetiva pela Requerente e pela transportadora G... sobre as operações em causa, a qual nos permite obter um quadro bastante completo da situação factual. Não estamos, portanto, perante um cenário de falta de colaboração do sujeito passivo com a AT, nem foi por esta apontada qualquer irregularidade aos registos contabilístico-fiscais ou faturas da Requerente, nem detetadas falhas nas suas obrigações fiscais nos períodos em causa, que justificasse o afastamento da aplicação da presunção de veracidade de que gozam as declarações, contabilidade e escrita da Requerente, ao abrigo do disposto no n.º 1 do art.º 75 da Lei Geral Tributária.

 

Em segundo lugar, no que respeita aos factos apurados pela AT que sustentam a conclusão de que os bens em causa não saíram do território nacional, verificamos que tais conclusões resultam, no essencial, de dois elementos:

 

  1. Informações prestadas pela administração tributária espanhola, ao abrigo do Convénio Portugal – Espanha, relativas à E... SL, que concluíram o seguinte:
    1. Esta entidade não exerce qualquer atividade na morada indicada como seu domicílio fiscal em Pontevedra, nem existe qualquer depósito ou armazém nessa morada, ou pessoal afeto à entidade espanhola em causa, razão pela qual se promoveu o cancelamento oficioso do seu registo intracomunitário com efeitos a 14.08.2019 (ou seja, em momento posterior às operações controvertidas nestes autos); 
    2. O sócio maioritário da E... SL –H...– está associado a uma outra sociedade (F...), a qual foi declarada pela E... SL como sua cliente, mas a administração fiscal espanhola não conseguiu obter qualquer cópia dos documentos subjacentes às operações declaradas entre estas duas entidades;    
    3. Transferências bancárias entre a E... SL e a F... suscitaram dúvidas da administração fiscal espanhola, tendo sido concluído pela existência de operações simuladas entre estas duas entidades.

 

  1. Informações prestadas pela transportadora G..., por email, sobre o destino dos bens (descargas em território nacional).

 

No que respeita aos elementos supra identificados em i., conclui-se que a administração fiscal espanhola recolheu, no âmbito de outro processo inspetivo (que não o processo inspetivo que teve por objeto as obrigações fiscais e declarativas da Requerente), factos relevantes para um eventual cenário de fraude fiscal (operação simulada) entre a E... SL e a F... . Não obstante, nem tais elementos respeitam diretamente às operações controvertidas nestes autos, nem a Requerida concluiu, in casu, pela existência de operações simuladas entre a Requerente e a E... SL – caso em que as normas potencialmente violadas não seriam o art.º 29 n.º 1 c) do Código do IVA e o art.º 14 do RITI aqui em discussão.

 

Ou seja, os elementos em causa não atentam, em concreto, às operações controvertidas nem à questão em discussão referente à confirmação se os bens transmitidos pela Requerente à E... SL entre novembro de 2018 e janeiro de 2019 saíram do território nacional com destino a Espanha (destino esse que tanto poderia ser um armazém da E... SL, como outras instalações por esta indicadas em território espanhol). Neste sentido, os elementos recolhidos pela administração fiscal espanhola e disponibilizados à AT ao abrigo do Convénio celebrado entre os dois países não permitem, por si só, concluir pela não saída dos referidos bens do território nacional (nem colocar em crise a prova produzida pela Requerente, e pela transportadora G..., neste domínio, com a disponibilização das cópias dos CMR). E, como tal, tais elementos não permitem afastar a presunção de veracidade de que gozam as declarações fiscais da Requerente, incluindo os CMR apresentados (que gozam da mesma presunção).

 

Quanto às informações prestadas pela transportadora G... sobre o destino dos bens (cfr. ii. supra), verificamos que tais elementos atentam, de facto, à questão controvertida in casu e são, como tal, de relevar para efeitos de decisão sobre os factos. Recorde-se que a G... confirmou à Requerida, por email datado de 22.10.2022, a seguinte informação sobre os locais de descarga das mercadorias transportadas ao abrigo dos CMR em análise no processo:

 

 

Não obstante, com exceção deste email, é de concluir que todos os outros elementos de prova documental e testemunhal que constituem parte integrante deste processo, incluindo os documentos disponibilizados pela transportadora G... (faturas dos seus serviços de transporte e CMR por si preenchidos, assinados e carimbados) apontam em sentido inverso, i.e., comprovam que o local acordado, e conhecido por todas as partes, de descarga das mercadorias era Pontevedra, em Espanha, e não Ponte Rol, Torres Vedras ou Famões em território nacional.

 

Tendo tido conhecimento, por via da receção deste email, da evidente contradição entre estes elementos e os dados constantes das faturas (incluindo as dos serviços de transporte) e dos CMR que foram igualmente disponibilizados à equipa de inspeção, competia à AT atuar ao abrigo do princípio da descoberta da verdade material e inquirir a transportadora G... sobre tal facto, procurando esclarecer em que contexto se verificou a alteração do destino de descarga, quem deu a ordem nesse sentido e que conhecimento desse facto tinha a Requerente – esclarecimentos esses que, sendo o caso, poderiam fundamentar o afastamento da presunção de veracidade dos documentos de transporte.

 

O mesmo se diga quanto à informação respeitante à pessoa responsável pelas instruções das descargas (sr. M...), que a equipa de inspeção não cuidou de confirmar de quem se tratava, onde trabalhava (é trabalhador da Requerente, da E... SL, ou de outra entidade?), e por que razão ou com que finalidade deu alegadas ordens de alteração do destino de descarga das mercadorias.

 

Estas averiguações adicionais, que se afiguravam necessárias à descoberta da verdade material, não foram efetuadas pela equipa de inspeção que, tendo recebido o email de 22.10.2022 da transportadora G..., se limitou a concluir pela inveracidade dos documentos de transporte das operações em causa, sem, reitera-se, apurar as contradições existentes ao nível da situação factual / documental ou fazer prova de que a Requerente tinha conhecimento de que os bens em causa não tinham saído do território nacional.

 

Por último, estando a AT vinculada, como vimos supra, por via do ponto 4 do ofício-circulado n.º 30009, de 1999, à aceitação do documento de transporte CMR para comprovação da saída de mercadorias do território nacional, importa analisar, em concreto, as cópias de CMR disponibilizadas, a fim de confirmar da sua idoneidade para efeitos da prova exigível à Requerente.

 

  1. CMRs n.º 46551 e 42189

O CMR 46551 não se encontra devidamente preenchido (em particular, faltam as assinaturas e carimbos de todas as partes envolvidas), pelo que não se afigura válido para comprovação da expedição de bens entre Portugal e Espanha. Sem prejuízo, importa, ainda, comprovar se este CMR corresponde, de facto, a alguma das expedições de bens em discussão neste processo.

 

Ora, alega a Requerida que este CMR substituiu o CMR 42189 (cfr. ponto 12 a. do relatório de inspeção tributária), facto que infere dos elementos disponibilizados pela transportadora G... no seu email de 22.10.2022 (supra referido), em particular da fatura n.º 914, de 29.07.2019, emitida à E..., SL pelos serviços de transporte associados ao CMR 46551. Ora, salvo o devido respeito, o Tribunal considera que tal facto não permite, por si só, retirar essa conclusão. Competia à AT, na posse dessa informação, diligenciar no sentido de confirmar a situação factual existente, em vez de se limitar a inferir uma conclusão de elementos aparentemente contraditórios, uma vez que a Requerente não havia indicado este CMR como documento de transporte das suas mercadorias nem dele disponibilizou cópia (contestando, aliás, a sua existência em sede de pedido de pronúncia arbitral). Como tal, não se considera provado que o CMR 46551 (documento inválido) tenha substituído o CMR 42189, devendo este (CMR 42189) ser considerado válido para comprovar a expedição à qual respeita e, como tal, deve ser anulada a respetiva correção efetuada pela Requerida.

 

 

  1. CMR 39939 e CMR 40634

Os CMR n.ºs 39939 e 40634 apresentam, quer no campo 1 (identificação do expedidor), quer no campo 22 (assinatura e carimbo do expedidor), o carimbo da D..., Lda., sobre os quais, (apenas) no exemplar 1 dos respetivos CMR, foi posteriormente aposto o carimbo da Requerente. Atendendo à coexistência destas duas entidades no mesmo espaço, à identidade comum dos seus sócios, ao facto de desenvolverem o mesmo tipo de negócio e, por último, à discrepância acima identificada entre o exemplar 1 de cada CMR e os restantes exemplares, não resulta provado inequivocamente que as expedições efetuadas ao abrigo destes CMR tenham sido realizadas pela Requerente, e não pela D..., Lda. Como tal, assiste razão à Requerida no que respeita às correções efetuadas por referência às operações de expedição tituladas por estes dois CMR.

 

  1. Restantes CMRs

Em relação aos restantes CMR em discussão nos autos, considera o Tribunal inexistirem razões válidas para afastar a presunção de veracidade de que estes gozam, pelo que devem ser aceites pela Requerida, por se encontrarem verificados os requisitos da isenção prevista no art.º 14 do RITI, sendo, consequentemente, de anular as correções efetuadas este âmbito.

 

 

  1. Liquidações de juros

As liquidações de juros compensatórios integram-se na própria dívida do imposto, tendo como pressuposto as respetivas liquidações de IVA (conforme dispõe o n.º 8 do art.º 35.º da LGT), pelo que enfermam dos mesmos vícios que afetam estas, justificando-se também a sua anulação nos mesmos termos, e na mesma proporção, que as liquidações de imposto. O mesmo deverá valer, no caso em apreço, para a liquidação de juros moratórios, que deverá ser anulada na proporção da anulação das respetivas liquidações de imposto.

 

 

 

  1. DOS JUROS INDEMNIZATÓRIOS E DO REEMBOLSO DE QUANTIAS INDEVIDAMENTE PAGAS

A Requerente peticiona, ainda, a condenação da AT na restituição das quantias indevidamente pagas por conta das liquidações de imposto e juros moratórios e compensatórios controvertidas (conforme comprovativo de pagamento junto como documento 3 do pedido de pronúncia arbitral), bem como o pagamento de juros indemnizatórios por erro imputável à AT.

 

O art.º 43 n.º 1 da LGT determina que são devidos juros indemnizatórios quando se apure, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, a existência de erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

 

No caso concreto, verifica-se, no que respeita às operações cujas respetivas expedições foram tituladas pelos CMR n.ºs 39389, 39394, 39938, 40585, 41203, 41058, 41350, 41071 e 42189, que a ilegalidade das liquidações adicionais controvertidas, por erro nos pressupostos de facto e consequente errónea aplicação do direito, é imputável à AT. Como tal, encontram-se verificados os requisitos legais para a condenação da AT:

  1. No pagamento de juros indemnizatórios na proporção dos montantes destas operações, nos termos do disposto nos artigos 43.º da LGT e 61.º do CPPT, calculados à taxa legalmente prevista no n.º 4 do referido art.º 43, até à data da respetiva nota de crédito em que são incluídos;
  2. Na restituição dos montantes indevidamente pagos pela Requerente na proporção dos montantes destas operações.

 

No que respeita às expedições de bens tituladas pelos CMR n.ºs 39939 e 40634, tendo sido concluído por este Tribunal inexistir erro imputável à Requerida, é de improceder o pedido de pagamento de juros indemnizatórios e o pedido de restituição dos montantes pagos para liquidação dos atos tributários em causa.

 

  1. DECISÃO

Nestes termos, este Tribunal Arbitral decide:

  1. Julgar parcialmente procedente o pedido arbitral e, em consequência:
    1. Julgar procedente o pedido de anulação das liquidações de IVA e de juros moratórios e compensatórios controvertidas, na parte correspondente às expedições de bens tituladas pelos CMR n.ºs 39389 (faturas n.ºs 437 e 438), 39394 (fatura n.º 446), 39938 (fatura n.º 449), 40585 (fatura n.º 496), 41203 (fatura n.º 526), 41058 (fatura n.º 527), 41350 (fatura n.º 28), 41071 (fatura n.º 32) e 42189 (fatura n.º 64), com o consequente recálculo dessas liquidações, em sede de execução de sentença, decorrente da improcedência parcial referida em b. infra;
    2. Julgar improcedente o pedido de anulação das liquidações de IVA e de juros moratórios e compensatórios controvertidas, na parte correspondente às expedições de bens tituladas pelos CMR n.ºs 39939 (fatura n.º 458) e 40634 (fatura n.º 507);
    3. Julgar parcialmente procedente o pedido de condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios sobre o IVA indevidamente pago, apurado de harmonia com o disposto nas alíneas anteriores, à taxa legalmente devida, desde a data da entrega das prestações tributárias até à data em que a Requerente for ressarcida desse imposto;
    4. Julgar parcialmente procedente o pedido de restituição do montante indevidamente pago pela Requerente, na proporção e em conformidade com o disposto nas alíneas anteriores;
    5. Condenar ambas as partes nas custas na proporção dos respetivos decaimentos, calculados com base no valor total do processo, cabendo à Requerente a percentagem de 19% e à Requerida a percentagem de 81%.

 

  1. VALOR DO PROCESSO

De harmonia com o disposto no art.º 97-A, n.º 1, do CPPT e art.º 3, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 46.896,60.

 

  1. CUSTAS

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 2.142,00 (dois mil, cento e quarenta e dois euros), nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente e da Requerida, na proporção do respetivo decaimento, sendo 81% da responsabilidade da Requerida, no montante de € 1.735,02, e 19% da responsabilidade da Requerente, no montante de € 406,98.

 

Notifique-se.

Lisboa, 17 de outubro de 2022.

 

(Raquel Montes Fernandes)

 



[1] Apesar de o despacho de indeferimento da reclamação graciosa (pág. 26, ponto 23) referir que a “sociedade E... não estava válida no sistema VIES para efetuar aquisições intracomunitárias na data das faturas emitidas pela reclamante", o relatório de inspeção confirmou, por consulta ao sistema VIES (cfr. print screen da pág. 7, ponto 6), que a E... SL esteve inscrita no VIES entre 18.06.2018 e 14.08.2019, abrangendo, portanto, todo o período em análise nos autos, uma vez que as faturas em causa foram emitidas pela Requerente entre novembro de 2018 e janeiro de 2019.

[2] Cfr. A prova dos nove do sistema do IVA, Estudos em Homenagem a Rui Pena, Raquel Montes Fernandes, Almedina, setembro 2019.