Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 72/2022-T
Data da decisão: 2022-11-03  IRS  
Valor do pedido: € 4.998,18
Tema: IRS - Não Residente. Revogação do ato. Inutilidade superveniente da lide.
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Sumário:

  1. Tendo sido revogado pela AT o ato tributário que é objeto do pedido de pronúncia arbitral, o que ocorreu durante a tramitação do processo e em fase de apresentação de alegações, a respetiva consequência é a extinção da instância por impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, desde que a pretensão do Requerente tenha sido integralmente satisfeita com a revogação, como sucedeu nos presentes autos.
  2. Se no decorrer do processo arbitral, a Requerida, em fase de apresentação de alegações, vem aos autos juntar despacho de revogação proferido no seguimento de informação obtida junto do Direção de Serviço de Relações Internacionais (DSIRS) da AT, satisfazendo o pedido do Requerente, estão verificados os pressupostos da inutilidade superveniente da lide e consequente extinção da instância.

 

DECISÃO ARBITRAL

I – Relatório

1. A..., com o NIF ..., residente em...,  ..., ..., França, requereu a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade da liquidação de IRS nº 2021..., referente ao exercício de 2017, no montante global de €4.998,18.

2. Fundamenta o pedido nos seguintes termos:

  1. O Autor é residente em França, pelo menos desde 2015;
  2. O Autor não era, em 2017, nos termos do artigo 16º do CIRS, a contrario, residente em território português;
  3. O Autor não auferiu no período em causa qualquer rendimento em território português, pelo que nos termos do disposto no artigo 13º conjugado com o artigo 16º, ambos do CIRS, não pode ser considerado sujeito passivo de IRS;
  4. Por isso não era obrigado, nos termos do artigo 57º do CIRS, a apresentar declaração de rendimentos;
  5. Nos termos do artigo 16º, nº1 da CDT celebrada entre Portugal e França, os rendimentos obtidos na França pelo ora impugnante apenas podem ser tributados em França e não em Portugal, sendo o contrário uma grave violação do princípio da legalidade.

 

Com os fundamentos expostos solicita a anulação da liquidação impugnada.

 

  1. O pedido arbitral foi apresentado em 10-02-2022. Após aceitação e notificação à requerida AT, esta não revogou o ato no prazo previsto no artigo 13º do RJAT, pelo que o processo prosseguiu para tramitação. Assim, em 01-04-2022 foi nomeada a ora subscritora como Árbitro único do Tribunal arbitral singular a constituir.

 

  1. As partes foram devidamente notificadas desta nomeação, não suscitaram reserva ou oposição, pelo que aceitaram esta nomeação. Nesta conformidade, o tribunal arbitral ficou constituído em 20-04-2022.

 

  1. Em 26-04-2022 foi proferido despacho arbitral, nos termos do disposto no artigo 17º do RJAT, notificado à Requerida para exercer o seu direito de resposta. A AT apresentou a sua resposta em 30-05-2022, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, concluindo pela improcedência do pedido arbitral formulado pelo Requerente. Em 14-06-2022 foi proferido despacho arbitral convidando as partes a se pronunciarem sobre a possibilidade de dispensa de realização da reunião prevista no artigo 18º do RJAT, dado que a matéria em discussão se afigura como sendo exclusivamente de direito, com a cominação de a ausência de pronúncia expressa ser equivalente a aceitação da proposta de dispensa. No prazo fixado as partes nada disseram em contrário, pelo que aceitaram a proposta de dispensa nos termos enunciados.

 

  1. Nesta conformidade, foi proferido despacho em 27-06-2022 a dispensar a reunião e a estabelecer a tramitação subsequente, incluindo a fixação do prazo de quinze dias para alegações escritas. O Requerente apresentou alegações escritas em 2-09-2022.

 

  1. Em 28-09-2022 a AT apresentou requerimento com o seguinte teor:

«1.º - No dia de hoje, recebeu a Requerida a seguinte comunicação da Direção de Serviços de Relações Internacionais: “Por e-mail, de 18/02/2022, encaminhado para a Direção de Serviços do IRS (DSIRS), que por sua vez o reencaminhou, em 23/02/2022, para a Direção de Serviços das Relações Internacionais (DSRI), veio a Direção de Serviços de Consultadoria Jurídica e Contencioso (DSCJC), informar que A..., com o NIF..., apresentou um pedido de constituição do tribunal arbitral, no CAAD, ao qual foi atribuído o número de processo 72/2022 -T, tendo aquela unidade orgânica tomado conhecimento do pedido em 17/02/2022. Todavia, da leitura de tal pedido, concluiu-se o seguinte: Em suma, o requerente vem alegar que não está sujeito a tributação em Portugal em virtude de, no ano de 2017, ter residido e trabalhado em França, e não ter auferido quaisquer rendimentos em Portugal. Centrando-se a questão controvertida no local a considerar para efeitos de residência fiscal do recorrente, em 2017, e sabendo-se que o mesmo, constava, à data dos factos, como residente fiscal em Portugal no ano em causa, (só alterou o seu domicílio para França em 01/02/2018) torna-se imperioso observar o disposto no artº19º da Lei Geral Tributária (LGT). Ora, conforme dispõe o nº3 do artº19º da LGT, é obrigatória, nos termos da lei, a comunicação do domicílio do sujeito passivo à administração tributária. Acrescendo o nº4 da mesma norma, que é ineficaz a mudança de domicílio enquanto não for comunicada à administração tributária. Por outro lado, também não deixa de ser verdade que, ao abrigo do nº11 do mesmo artº19º da LGT, a administração tributária poderá rectificar oficiosamente o domicílio fiscal dos sujeitos passivos se tal decorrer dos elementos ao seu dispor. Assim, não obstante, a reconhecida falta de comunicação de alteração do domicílio fiscal do recorrente, caso a AT tenha ao seu dispor elementos que permitam confirmar a alegação deste – de que em 2017 foi residente em território francês – deve ser efetuada a respetiva correção. Consultada a base de dados da AT, nomeadamente a aplicação SITI (Sistema Integrado de Trocas de Informação), constata-se que as autoridades fiscais francesas comunicaram à AT que o contribuinte A..., com o NIF..., auferiu rendimentos de trabalho dependente naquele território durante o ano de 2017. O que faz pressupor que aquelas autoridades o consideraram residente em território português, caso contrário, não teriam enviado a dita informação (o mecanismo de troca automática de informação prevê que o Estado da fonte dos rendimentos envie as respetivas informações para o Estado de residência do beneficiário dos rendimentos). Todavia, e em paralelo, as mesmas autoridades fiscais francesas emitiram um certificado de residência fiscal no seu território, nos termos da Convenção para evitar a Dupla Tributação celebrada entre Portugal e França, válido para o ano de 2017. Ora, tais factos são claramente contraditórios. Assim, foi proposto que fosse despoletado o mecanismo de troca de informação a pedido com as autoridades francesas para que estas esclareçam se o contribuinte A..., com o NIF..., e nascido em 04/05/1962, foi, de facto, residente em França no ano de 2017, e, em caso afirmativo, qual o motivo do envio da informação referente a rendimentos auferidos pelo mesmo em território francês nesse ano. Tal pedido foi efetuado pela Divisão de Cooperação Internacional da DSRI, com caráter de urgência, em virtude de estarmos perante prazos judiciais. Todavia, até à presente data, ainda não foi rececionada qualquer resposta.”

2.º - Estes esclarecimentos da DSRI, foram prestados ao representante da Requerida, na sequência da comunicação da Requerente, endereçada àqueles serviços e, que se transcreve:

 

3.º Entende o Representante da Requerida que, ao abrigo dos princípios, da boa fé e, da colaboração, é seu dever, juntar a presente informação aos autos, informação esta que por só na presente data ter ficado no seu dispor, apenas nesta data pôde juntar aos autos e, que salvo melhor opinião, atento o princípio da autonomia do Tribunal na condução do processo previsto no RJAT, deverá ora ser admitido.

4.º Conforme resulta do informado pela DSRI, a informação prestada pelas autoridades francesas, são contraditórias, porquanto, por um lado emitiram um certificado de residência ao Requerente, mas, por outro lado, incluíram os seus rendimentos, numa comunicação que só é feita por aquelas autoridades, relativamente a pessoas que não são consideradas residentes em França.

5.º Ora , a dúvida resultante das contraditórias comunicações das autoridades francesas, podem determinar que não seja feita prova da residência do Requerente em França, mesmo que esta de facto tivesse ocorrido, o que, para já se desconhece e, cabendo nos termos do art.º 74.º da LGT, o ónus da prova dos factos constituintes dos seus direitos a quem os invoque, ou seja, no caso, a residência do requerente em França, com o consequente, eventual, prejuízo para o Requerente.

6.º Resulta assim que, para que o presente PPA possa ser julgado com a segurança jurídica exigível à boa decisão da causa e, sem prejudicar a Requerente (ou a requerida), salvo melhor opinião, dever-se-á aguardar pela resposta ao referido pedido de troca de informações.

7.º Sendo certo que no Processo Arbitral, se aplica o princípio da celeridade, tendo em conta que o pedido de troca de informações, tal como referido, foi formulado com menção de urgência, tudo indica que não porá em causa a celeridade dos autos, nomeadamente quando esta se pondere, com a segurança jurídica a que também deve obedecer uma Decisão Arbitral como a em apreço.

8.º Pelo que, Requer a Requerida que, os presentes autos aguardem a resposta a obter das autoridades francesas e, que obtida tal resposta, a mesma seja admitida aos autos.»

 

  1. Por despacho arbitral de 03/10/2022 foi aceite a junção aos autos do requerimento apresentado pela Requerida AT e notificado o Requerente para se pronunciar. Em 7-10-2022 veio a requerida AT juntar aos autos Despacho da DSRI, nº ..., de 30/05/2022, nos termos do qual resulta a revogação da liquidação impugnada. Em consequência, em 17-10-2022 foi proferido despacho arbitral com o seguinte teor:

«Conforme Requerimentos antecedentes apresentados pela AT, respetivamente, em 28/09/2022 e 7/10/2022, constata-se que:

- por despacho de 3/10 foi admitido o requerimento apresentado pela AT nos termos do qual se pedia a suspensão da instância a fim dos autos aguardarem pela informação dos Serviços de Relações Internacionais da AT;

- por requerimento de 7/10/2022 veio a AT juntar aos autos despacho de revogação da liquidação de imposto impugnada nos autos, o que terá efeitos na decisão arbitral a proferir.

Nestes termos fixa-se o prazo de cinco dias para o Requerente se pronunciar sobre a eventual inutilidade superveniente da lide, entendendo-se que nada terá a opor, caso não se pronuncie no prazo agora fixado.  Retoma-se a instância na presente data.

Considerando que o prazo para proferir a decisão arbitral, nos termos previstos no nº 1 do artigo 21º do RJAT, terminaria no próximo dia 21 de outubro, mas se encontrou suspenso entre 3/10 e 17/10, o prazo para prolação da decisão arbitral passou para 4-11-2022. Mas, para que não subsista qualquer dúvida quanto ao prazo para prolação da decisão arbitral, prorroga-se por dois meses, nos termos previstos no nº 2 do artigo 21º do RJAT, o prazo para proferir a decisão. (…)»

  1. Em 17-10-2022 o Requerente pronunciou-se no sentido de nada ter a opor a uma decisão que considere a inutilidade superveniente da lide, e requereu que, atento o despacho de revogação proferido pala AT, seja desconsiderado o pedido de condenação em litigância de má-fé, por si formulado no pedido arbitral.

 

II – Saneamento

 

  1.  O tribunal arbitral foi regularmente constituído nos termos do artigo 2º, nº 1 alínea a), 5º e 6º todos do RJAT.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

O processo não enferma de nulidades e foram invocadas exceções.

Tendo-se suscitado a questão prévia da inutilidade superveniente da lide, será apreciada de seguida.

 

III – Decisão da Matéria de facto

 

  1.  Com relevância para a decisão resulta provado nos autos que:

a) A Autoridade Tributária e Aduaneira foi notificada da apresentação do pedido de pronúncia arbitral, por correio eletrónico de 14-02-2022;

b) Por despacho de 30-05-2022, a Autoridade Tributária e Aduaneira revogou o ato impugnado em conformidade com o Parecer e proposta de decisão emitida pela DSRIS;

c) Em 20-04-2022 foi constituído o Tribunal Arbitral;

d) Em 30-05-2022, a Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou a sua resposta nos autos, pugnando pela legalidade da liquidação e pela improcedência do pedido arbitral;

e) Em 03-10-2022 informou no processo que aguardava por informação da DSRI e requereu que os autos aguardassem por esta pronúncia;

f) Em 07/10/2022 a AT veio aos autos informar que foi proferido o referido despacho de revogação conforme ofício que juntou.

 

  1. Considerando a especificidade dos autos não há outros factos a mencionar como provados ou não provados, relevantes para a decisão

 

IV. Da inutilidade superveniente da lide

 

  1. O objeto do processo arbitral é um ato de liquidação de tributos do tipo dos referidos no artigo 2.º, n.º 1, do RJAT, concretamente uma liquidação oficiosa de IRS. Resulta demonstrado nos autos que a AT, após informação e proposta de decisão da DSRIS, revogou integralmente o ato de liquidação, conforme reivindicado pelo Requerente. Esta revogação resulta do Despacho proferido em 30-05-2022, junto aos autos em 07-10-2022 pela AT, quando o processo já havia sido tramitado até à fase de alegações escritas. Ainda assim, o despacho de revogação foi junto aos autos antes de ser proferida a decisão arbitral, pelo que, verificando-se que a revogação satisfaz plenamente a pretensão do Requerente, verificam-se os pressupostos para a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide.

Acresce que o Requerente, chamado a pronunciar-se sobre a informação prestada pela Requerida e do respetivo despacho de revogação, pronunciou-se no sentido de nada ter a opor à extinção da instância por inutilidade superveniente da lide.

Ora, resulta da alínea e) do artigo 277º do CPC, aplicável ao processo arbitral por força do disposto no artigo 29º do RJAT, que uma das causas de extinção da instância é “a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide”.

 

  1. Ocorre “impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objeto do processo, ou encontra satisfação fora do esquema da proveniência pretendida. Num e noutro caso, a proveniência deixa de interessar- além, por impossibilidade de atingir o resultado visado; aqui, por ele ter sido atingido por outros meios.” (Cfr.: Lebre de Freitas, in Código de Processo Civil Anotado, vol. 1º, Almedina, Coimbra, 4ª edição, reimpressão 2021, página 561).

 

  1.  Assim, tendo sido revogado pela AT o despacho impugnado, nos termos em que o foi, está totalmente satisfeita a pretensão do Requerente, dispensando-se o conhecimento do mérito da questão fundamento do pedido arbitral, já reconhecido na fundamentação do próprio despacho de revogação.

 

  1.  Por último, aceita-se a desistência do pedido de condenação por litigância de má-fé, apresentado pelo Requerente nos autos.

 

  1. Por último, constata-se que a causa de extinção da instância que ocorreu nos presentes autos é imputável à Autoridade Tributária e Aduaneira. Na verdade, a revogação ocorre após a apresentação do pedido arbitral pelo Requerente e, notificada deste, a AT contestou o pedido e não comunicou a sua revogação nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 13.º do RJAT, tendo o processo seguido a sua tramitação integral até à fase de decisão final. Pelo que, a causa de extinção da instância é imputável à AT, não podendo o Requerente ser onerado com as custas do processo, devendo estas ser pagas pela parte que deu origem ao processo, no caso, a AT.

 

V. Decisão

Nestes termos, decide este Tribunal Arbitral em:

i)               Julgar extinta a instância por inutilidade superveniente;

ii)             Absolver da instância a Autoridade Tributária e Aduaneira;

iii)           Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagar as custas do presente processo.

 

VI. Valor da causa

A Requerente indicou como valor da causa o montante de €4.998,18, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

VII. Custas

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 612,00, que fica a cargo da Requerida.

Notifique.

Lisboa, 03-11- 2022

  

A Árbitro,

 

 

Maria do Rosário Anjos