Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 59/2022-T
Data da decisão: 2022-10-30  Selo  
Valor do pedido: € 50.153,28
Tema: IS - Contratos de cash pooling. Violação do princípio da livre circulação de capitais.
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SUMÁRIO:

O n.º 2 do artigo 7.º do CIS, redação em vigor em 2020 e 2021, na parte em que excluía da isenção de imposto do Selo prevista na alínea h) do n.º 1 do mesmo artigo a concessão de crédito no âmbito de um contrato de gestão centralizada de tesouraria, celebrado entre devedor residente em França e credor residente em Portugal, violava o princípio da livre circulação de capitais garantido pelo artigo 63.º do TFUE.

DECISÃO ARBITRAL

  1. RELATÓRIO

 

 

1. O Pedido

 

A... LDA, pessoa colectiva n.º..., com sede em ...–..., ..., ...-..., ... (doravante Requerente ou Impugnante), vem requerer, ao abrigo dos art.º 2.º, n.º 1 al. a) e 10.º, n.º 1 al. a) do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (D.L. n.º 10/2011, de 20 de Janeiro), a constituição de tribunal arbitral para apreciação da legalidade do indeferimento da reclamação graciosa, notificado em 10/11/2021, e das liquidações de imposto de Selo, referentes aos meses de abril, maio, junho, julho, agosto, setembro, outubro, novembro e dezembro de 2020, efetuados através da Declaração de Retenção na Fonte de IRS/IRC e Imposto do Selo n.º ..., n.º ..., n.º ..., n.º ..., n.º..., n.º ..., n.º ..., n.º ..., n.º..., respetivamente, e bem assim, dos atos de autoliquidação de Imposto do Selo referentes aos meses de janeiro, fevereiro, março e abril de 2021, efetuados através das Declarações Mensais de Imposto do Selo n.º ..., n.º..., n.º ... e n.º..., respectivamente, no total global de € 50.153,28 (cinquenta mil cento e cinquenta e três euros e vinte e oito cêntimos),

A Requerente pede também que a AT seja condenada no pagamento de juros indemnizatórios e em custas de parte.

2. É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante AT ou Requerida)

 

3. Tramitação processual

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi apresentado e aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 07.02.2022 e de seguida notificado à AT e à Requerente;

 

Em 25.03.2022 o Senhor Presidente do CAAD informou as Partes da designação, pelo Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico, do Árbitro singular signatário da presente decisão arbitral, nos termos e para os efeitos do disposto nos n.ºs 1 e 7 do artigo 11.º do RJAT.

Assim, em conformidade com o preceituado no n.º 8 artigo 11.º do RJAT, decorrido o prazo previsto no n.º 1 do artigo 11.º sem que as Partes se tivessem oposto, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 12.04.2022.

 

Por despacho arbitral de 26.04.2022 foi determinada a notificação do dirigente máximo da AT para, no prazo de 30 dias, apresentar Resposta.

 

A Requerida apresentou Resposta em 30.05.2022 e no dia seguinte apresentou o Processo Administrativo.

 

Por despacho arbitral de 18.06.2022 foi dispensada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e, pelo mesmo despacho, foi determinada a notificação das Partes para, querendo, apresentarem alegações escritas no prazo simultâneo de 20 dias

Pelo mesmo despacho foi determinado que a Requerente deveria proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente.

 

A Requerente apresentou alegações escritas em 15.07.2022.

 

Por despacho arbitral de 10.10.2022 foi prorrogado o prazo para proferir a decisão arbitral, tendo sido fixado o dia 31 de outubro como data limite para esse efeito.

 

4. Resumo da fundamentação invocada pelas partes, no PPA e na Resposta

 

4.1. Pela Requerente

4.1.1. A Requerente dá conta que foi notificada do despacho de indeferimento da reclamação graciosa que oportunamente havia deduzido contra 13 liquidações de Imposto do Selo, referentes aos meses de abril de 2020 a abril de 2021, e dos fundamentos que a Direção de Finanças de Lisboa invocou para tal despacho, considerando, em síntese, que as operações financeiras que estiveram na base das liquidações estão sujeitas a imposto do Selo e não beneficiam do regime de isenção previsto na alínea h) do n.º 1 do artigo 7º do CIS, uma vez que não estão preenchidos os requisitos constantes no n.º 2 do mesmo artigo.

Dizendo desde logo que discorda da decisão de indeferimento, a Requerente começa por apresentar os dados sobre a sua natureza jurídica, sobre o seu objeto social e sobre a titularidade do seu capital social, que é totalmente detido por entidades não residentes em Portugal, informando que o grupo B..., onde se integra, implementou um acordo de gestão de tesouraria, destinado a assegurar a gestão centralizada de tesouraria das diferentes entidades do Grupo residentes em diferentes países (comumente designado por acordo/estrutura de “cash-pooling”), ao qual aderiu em 20 de outubro de 2008, sendo que a contraparte C..., S.A. (C... França, denominada D..., S.A. à data de celebração do acordo), entidade residente, para efeitos fiscais, em França, é detentora, a título indireto, de cerca de 92% do seu capital social.

Mais acrescenta que o referido acordo de gestão centralizada de tesouraria foi baseado no princípio de saldo nulo (“Zero Balance Scheme”), no âmbito do qual, sempre que aplicável, o saldo positivo da sua conta bancária deverá ser automaticamente transferido para a conta bancária da C... França, numa base diária, reduzindo assim a zero o saldo da sua conta bancária, salientando que nos períodos a que os atos de autoliquidação de Imposto do Selo respeitam, a mesma se encontrou numa situação de excesso de fundos/tesouraria, circunstância que determinou, ao abrigo do mencionado acordo, a transferência dos fundos para a C... França.

Ora, continua a Requerente, em sede de Imposto do Selo, as transferências de fundos da impugnante para a C... França foram tratadas enquanto concessões de crédito da primeira à segunda, uma vez que face à alínea b) do artigo 2.º do CIS, o sujeito passivo é a entidade concedente do crédito (a ora impugnante), devendo proceder à liquidação do imposto e repercuti-lo no titular do interesse económico, isto é, no titular do encargo do imposto, que na concessão de crédito corresponde ao utilizador do crédito (cf. alínea f) do n.º 2 do artigo 3.º do CIS). Consequentemente a Requerente tem vindo a liquidar Imposto de Selo, mensalmente, à taxa de 0,04% prevista na verba 17.1.4 da Tabela Geral.

4.1.2. A Requerente passa de seguida a aludir à Lei do Orçamento do Estado para 2020 (“Lei OE 2020”), de 1 de abril de 2020, que aprovou uma “nova” isenção prevista na alínea h) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS, abrangendo “[o]s empréstimos, incluindo os respetivos juros, por prazo não superior a um ano, quando concedidos por sociedades, no âmbito de um contrato de gestão centralizada de tesouraria, a favor de sociedades com a qual estejam em relação de domínio ou de grupo”, estando este conceito definido no n.º 8 do mesmo artigo 7.º.

Porém, continua a Requerente, esta isenção é limitada pelo n.º 2 do mencionado artigo 7.º do CIS [inalterado pela referida Lei OE 2020], nos termos do qual tal isenção apenas se aplica às concessões de crédito ao abrigo de contrato de gestão centralizada de tesouraria quando o credor tiver sede ou direção efetiva noutro Estado membro da União Europeia.

Assim, uma vez que a Requerente assume a posição de entidade credora no contrato de gestão centralizada de tesouraria e é residente para efeitos fiscais em Portugal, não se verificando o requisito da isenção previsto no n.º 2 do artigo 7.º do CIS, a A... Portugal decidiu adotar uma posição “prudente” e, neste sentido, tem vindo a liquidar Imposto do Selo no âmbito do contrato de gestão de tesouraria em apreço, na qualidade de credora, tendo por base a posição creditícia que se tem verificado em relação à C... França.

4.1.3. A Requerente alega que, mais recentemente, revisitou a sua posição quanto ao enquadramento fiscal da operação sub judice, porque entende que a restrição imposta pelo n.º 2 do artigo 7.º do CIS não parece coadunar-se com a flexibilidade conferida pelos contratos de gestão centralizada de tesouraria aos grupos multinacionais, com presença em diversas jurisdições.

A Requerente passa assim a censurar o referido n.º 2 do artigo 7.º do CIS por não ser consentâneo com o intuito de promover e flexibilizar, também em termos tributários, a implementação de um instrumento de gestão centralizada de tesouraria que tem vindo a ser cada vez mais adotado por grupos económicos, portugueses e internacionais, a operar em território nacional, acrescentando que o mesmo é discriminatório à luz dos princípios que norteiam o funcionamento da União Europeia, em concreto por consubstanciar uma restrição injustificada à liberdade de movimentos de capitais garantida pelo artigo 63.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (“TFUE”), sendo tal restrição impedida no normativo interno português ao abrigo do n.º 4 do artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa (“CRP”).

Em apoio deste seu entendimento a Requerente invoca jurisprudência do TJUE e também os Acórdãos do CAAD de 6/10/2020 proferido no processo n.º 277/2020-T, e de 18/04/2021 proferido no processo 171/2020-T, onde também se reconheceu incompatibilidade do n.º 2 do artigo 7.º do CIS com o Direito da União Europeia.

Depois de analisar os termos e condições em que o TFUE, mormente nos seus artigos 63.º e 65.º, prevê a livre circulação de capitais, a Requerente conclui que o princípio da primazia do direito da união europeia sobre o direito nacional, conforme previsto no n.º 4 do artigo 8.º da CRP, deve levar ao afastamento do regime previsto no citado n.º 2 do artigo 7.º do CIS, relativamente à isenção prevista na alínea h) do n.º 1 do mesmo artigo, nas situações em que o devedor não tem sede ou direção efetiva em Portugal, mas sim num Estado membro da União Europeia, dado que tal regime resulta numa restrição à liberdade de movimentos de capitais prevista no artigo 63.º do referido Tratado.

4.1.4. A Requerente apresentou alegações escritas onde, em síntese, chama a atenção para a alteração introduzida no n.º 2 do artigo 7.º do CIS, através da Lei OE para 2022 que, em linha com a jurisprudência produzida nesta matéria, compatibilizou o referido preceito legal com o Direito Europeu.

Por outro lado, a Requerente contesta também a alegação da Requerida, apresentada na Resposta, segundo a qual é ao contribuinte que reivindica o direito à isenção que caberia provar que, por não ser possível deduzir em França o Imposto do Selo suportado em Portugal pelas operações financeiras realizadas, houve violação do princípio da livre circulação de capitais e discriminação em razão da residência.

Opondo-se, a Requerente considera que a Requerida está a apresentar uma fundamentação a posteriori sobre a qual o Tribunal está impedido de valorar quaisquer razões de facto e de direito por não constarem da fundamentação contextual do ato tributário em crise.

Quanto ao pedido de juros, a Requerente aduz que está em causa a denegação de uma isenção, violando o direito da União Europeia tal como ele tem sido interpretado pelo TJUE, pelo que, nos termos do artigo 43.º n.º 3 da LGT, são devidos juros indemnizatórios.

 

4.2. Pela Requerida

4.2.1. A Requerida defende, em resumo, que a transferência dos fluxos financeiros operados pela Requerente para a C... França, no âmbito do acordo de “cash pooling”, não beneficia da isenção de imposto do Selo, face ao que dispõe o n.º 2 do artigo 7.º do CIS, redação em vigor na data das liquidações, o que não representa qualquer violação do princípio do Direito da União Europeia da liberdade de circulação de capitais consagrado no artigo 63.º do TFUE.

Em abono da sua posição a Requerida alega que o CAAD já se pronunciou sobre esta questão na decisão arbitral proferida no processo 279/2020-T, de 03-11-2020, a cuja fundamentação afirma aderir na íntegra.

4.2.2. De seguida, a Requerida transcreve e analisa os artigos 63.º e 65.º do TFUE, chamando a atenção que o princípio da proibição das restrições aos movimentos de capitais, entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros, previsto no artigo 63.º, não é uma proibição absoluta, uma vez que o artigo 65.º do mesmo Tratado prevê que tal proibição não prejudica o direito dos Estados-Membros “aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência (…)” (cf. alínea a) e para “tomarem todas as medidas indispensáveis para impedir infrações às suas leis e regulamentos, nomeadamente em matéria fiscal (…)” (cf. alínea b).

Assim, continua a Requerida, ainda que se deva atender ao n.º 3 do referido artigo 65.º que estabelece que “as medidas e procedimentos a que se referem os n.ºs1 e 2 não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.º”, importa considerar o que o TJUE tem dito sobre esta matéria no sentido de que é necessário aferir se a desigualdade de tratamento respeita a situações não comparáveis (sendo assim uma desigualdade justificada) ou se se justifica por razões imperiosas de interesse geral.

Ora, segundo a Requerida, a invocada diferença de tratamento no acesso à isenção estabelecida do n.º 2 do artigo 7.º do CIS, que atinge a beneficiária francesa do crédito concedido pela Requerente, não constitui uma restrição da liberdade de circulação de capitais nem uma discriminação arbitrária entre residentes e não residentes, porquanto a limitação estabelecida no referido n.º 2 do artigo 7.º do CIS só se aplica ao Imposto do Selo incidente sobre empréstimos realizados entre sociedades. É o que decorre da sua conjugação com a alínea h) do n.º 1 e o n.º 8 do mesmo preceito legal.

E a Requerida acrescenta que, nestes termos, estando restringida a tributação a fluxos financeiros realizados entre sociedades, o Imposto do Selo suportado sobre o mesmo, como o do caso subjudice, pode ser neutralizada pela devedora/mutuária ao abrigo de uma norma equivalente à do n.º 1 do artigo 23.º do nosso CIRC e que, continua a Requerida, embora não conhecendo em concreto o sistema fiscal francês, nomeadamente o método de dedução de todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos ao “l’impôt sur les sociétés”, quer-nos parecer que o mesmo não andará longe do que vigora em Portugal, na medida que estamos perante um país que, para além de fazer parte da União-Europeia, pertence também à OCDE.

Assim, alega a Requerida, só se estaria perante uma situação suscetível de constituir uma violação da livre circulação de capitais se o Imposto do Selo devido em Portugal pela obtenção do crédito não pudesse ser neutralizado pela C... FRANÇA, entidade gestora/mutuária, ao abrigo das leis francesas.

Ora, continua a Requerida, no caso concreto, impendia sobre a Requerente, de acordo com as regras do ónus da prova previsto no n.º 1 do artigo 74.º da LGT, demonstrar que o Imposto do Selo repercutido à C... FRANÇA, pela utilização de crédito concedido em Portugal, não era dedutível ao abrigo das leis fiscais francesas, nomeadamente as que regulam o imposto sobre as sociedades (l’impôt sur les sociétés), imposto equivalente ao nosso IRC, anotando que a Requerente não fez essa prova.

4.2.3. Assim, conclui a Requerida, em face do exposto, que o n.º 2 do artigo 7.º do CIS, ao impor uma limitação ao benefício da isenção prevista na alínea h) do n.º 1 do mesmo preceito legal, não constitui uma restrição da liberdade de circulação de capitais e uma discriminação arbitrária entre residentes e não residentes, porquanto, tratando-se de uma isenção exclusivamente aplicada a empresas, os gastos e custos suportados a título de Imposto do Selo devido pela concessão de crédito podem, em condições normais e análogas ao nosso IRC, ser dedutíveis pela C... FRANÇA ao lucro tributável do imposto sobre as sociedades (l’impôt sur les sociétés) vigente em França.

E em abono desta conclusão, a Requerida afirma que tem sido esse o entendimento constante do STA, apoiando-se na jurisprudência do TJUE, sobre matérias relacionadas com a livre circulação de capitais.

Com efeito, diz a Requerida, a propósito da tributação de dividendos retidos na fonte em Portugal em sede de IRC, tem entendido o STA (a Requerida cita o Acórdão de 12-09-2018, processo n.º 0884/17) que a transferência destes rendimentos para outro país da União Europeia só implicará uma restrição à livre circulação de capitais e uma discriminação arbitrária entre residentes e não residentes quando o sujeito passivo beneficiário da transferência não conseguir neutralizar, por exemplo, por beneficiar de um regime de isenção (e.g., participation exemption) que vigore nesse Estado, o imposto que foi suportado em território nacional, situação que carece sempre de prova e averiguação.

Termos em que, continua a Requerida, apesar de estarmos perante o Imposto do Selo, e com as devidas adaptações, não se vislumbra que, numa interpretação sistemática e coerente com a jurisprudência que vem sendo emanada pelos tribunais superiores sobre esta temática, o mesmo racional não deva ser seguido em situações como a em apreço.

Isto é, que o contribuinte que reivindica o direito à isenção tenha de provar, como legalmente lhe incumbe, nos termos do n.º 1 do artigo 74.º da LGT, que há violação do princípio da livre circulação de capitais e discriminação em razão da residência, por não lhe ser possível deduzir ao seu lucro tributável o Imposto do Selo suportado em Portugal pelas operações financeiras realizadas.

4.2.4. De onde, conclui finalmente a Requerida, não existe qualquer desconformidade entre o n.º 2 do artigo 7.º do CIS com o regime da liberdade de circulação de capitais consagrado no TFUE, soçobrando assim qualquer pretensão em torno de uma alegada inconstitucionalidade decorrente da violação do primado do direito europeu deste preceito legal do CIS, quando interpretado no sentido de excluir do beneficio da isenção as sociedades não residentes beneficiárias de empréstimos concedidos por sociedades residentes no âmbito da execução de um acordo de gestão centralizada de tesouraria e que por isso também não se verifica qualquer ilegalidade ou inconstitucionalidade das autoliquidações impugnadas, devendo as mesmas manter-se na ordem jurídica.

4.2.5. No que concerne aos juros indemnizatórios, sem conceder quanto à defesa da improcedência do pedido, alega a Requerida que inexiste qualquer direito ao pagamento de quaisquer juros indemnizatórios, citando o Acórdão do Pleno do STA, de 30 de janeiro de 2019 (Proc. n.º 0564/18.2BALSB), uma vez que, conforme consta no dito Acórdão, não estava na sua disponibilidade decidir de modo diferente daquele que decidiu por estar sujeita ao princípio da legalidade (cfr. art. 266.º, n.º 2, da CRP e art. 55.º da LGT).

 

II. SANEAMENTO

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas (artigos 4º e 10º, n.º 2, do RJAT, e 1º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente (art.º 2º, n.º 1, a), do RJAT).

O processo não enferma de nulidades.

 

 

III. MATÉRIA DE FACTO

 

1. Factos dados como provados

1.1. Dá-se por provado que:

1.1.1. A Requerente assume a forma jurídica de uma sociedade por quotas, com sede e direção efetiva em Portugal e aqui sujeita a IRC, tendo por objeto a produção, importação, exportação, armazenagem, distribuição e comercialização de medicamentos de uso humano, produtos químicos, produtos cosméticos e de higiene corporal, produtos de saúde, nomeadamente dispositivos médicos e para diagnóstico "in vitro", CAE 46460, integrando o Grupo internacional denominado B... .

1.1.2. O seu capital social é detido (i) pela E... B.V., entidade residente, para efeitos fiscais, nos Países Baixos, em aproximadamente 82% (quota de € 21.992.515); e (ii) pela C... (C... França), entidade residente, para efeitos fiscais, em França, em aproximadamente 18% (quota de € 4.822.500).

1.1.3. O Grupo B... implementou um acordo de gestão de tesouraria, baseado no princípio de saldo nulo (“Zero Balance Scheme”), ao nível das suas subsidiárias – sediadas em mais do que uma jurisdição – destinado a assegurar a gestão centralizada de tesouraria das diferentes entidades do Grupo, comumente designado por acordo/estrutura de “cash-pooling”, ao qual a Requerente aderiu em 20 de outubro de 2008 (cfr. Cópia do acordo de adesão junto ao PA como doc.5).

Nos termos do referido acordo, o saldo positivo da conta bancária da ora Requerente deverá ser automaticamente transferido para a conta bancária da C... França, numa base diária, reduzindo assim a zero o saldo da conta bancária da primeira.

Nos períodos a que as liquidações de imposto do Selo impugnadas respeitam, a ora Requerente encontrou-se numa situação de excesso de fundos/tesouraria, circunstância que determinou, ao abrigo do mencionado acordo, a transferência dos fundos da sua conta bancária local para a da C... França (registado contabilisticamente como saldo devedor sobre a referida C... França).

1.1.4. As transferências dos referidos fundos foram tratadas como concessões de crédito da ora Requerente para a C... França, tendo sido liquidado o imposto do Selo nos termos da verba 17.1.4 da TGIS, cujo valor deu entrada nos cofres do Estado.

1.1.5. Em 25-05-2021 a ora Requerente deduziu Reclamação Graciosa (instaurada sob o n.º ...2021...), a contestar a legalidade desses atos de autoliquidação de Imposto do Selo referentes a 13 períodos mensais – ou seja, de abril de 2020 a abril de 2021 – que incidiram sobre uma mesma operação de financiamento, mais precisamente dos atos de autoliquidação referentes aos meses de abril, maio, junho, julho, agosto, setembro, outubro, novembro e dezembro de 2020, efetuados através da Declaração de Retenção na Fonte de IRS/IRC e Imposto do Selo n.º ..., n.º..., n.º ..., n.º ..., n.º ..., n.º ..., n.º..., n.º..., n.º ..., respetivamente, e bem assim, dos atos de autoliquidação referentes aos meses de janeiro, fevereiro, março e abril de 2021, efetuados através das Declarações Mensais de Imposto do Selo n.º ..., n.º ..., n.º ... e n.º ..., respetivamente – no total global de Euro 50.153,28 (cinquenta mil cento e cinquenta e três euros e vinte e oito cêntimos) (que se juntaram na reclamação graciosa como Documento n.º 1).

A Reclamação Graciosa foi indeferida, por despacho notificado à Requerente (ofício..., de 10.11.2021, da DF de Lisboa junto ao PA), com o fundamento, em síntese, de a Sociedade que utiliza o crédito (Art.º 3º, n.º 3, al. f) do CIS) não ter sede ou direção efetiva no território nacional, pelo que, nos termos do artigo 7.º, n.º 2, do CIS, não se aplica a isenção prevista na alínea h) do n.º 1 do mesmo artigo.

A este fundamento o despacho de indeferimento acrescenta também que a Autoridade Tributária e Aduaneira encontra-se vinculada ao Princípio da Legalidade, não podendo deixar de aplicar as normas legais em vigor a este caso concreto com fundamento em inconstitucionalidade, excepto quando o Tribunal Constitucional já declarou a norma inconstitucional com força obrigatória geral, o que não é o caso.

1.1.6. Não concordando com a decisão de indeferimento da reclamação graciosa, em 26.11.2021 a Requerente deduziu Recurso Hierárquico (instaurado sob o n.º ...2021...) que, até à data de apresentação do pedido de pronúncia arbitral, ocorrida em 03-02-2022, não tinha sido objecto de decisão expressa.

1.1.7. É, pois, neste contexto factual que a Requerente vem contestar a fundamentação invocada para indeferir a reclamação graciosa e impugnar a legalidade dos atos de autoliquidação de IS acima identificados.

 

2. Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto

Os factos dados como provados baseiam-se no processo administrativo, no PPA e nos documentos juntos pela Requerente cuja correspondência à realidade não é contestada pela Requerida.

Não há, pois, controvérsia sobre os factos relevantes para a decisão da causa

 

IV. MATÉRIA DE DIREITO

 

1. Questões a decidir

Não havendo qualquer controvérsia sobre os pressupostos da sujeição objetiva e subjetiva, em imposto do Selo previsto na verba 17.1.4 da Tabela Geral, referentes à operação de crédito concedido pela ora Requerente no âmbito de um contrato de gestão centralizada de tesouraria a favor de uma sociedade sedeada em França com a qual aquela está em relação de domínio ou de grupo, as questões controvertidas que ao tribunal cumpre decidir são, em síntese, as seguintes:

  1. Se deve proceder o fundamento invocado no despacho de indeferimento da reclamação graciosa, mantido na Resposta da Requerida, de que a isenção prevista na alínea h) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS, face ao n.º 2 do mesmo artigo, redação em vigor à data dos factos tributários, só se aplica quando o credor tiver sede ou direção efetiva noutro Estado membro da União Europeia ou num Estado em relação ao qual vigore uma convenção para evitar a dupla tributação sobre o rendimento e o capital, e não quando, como é o caso, esse credor estiver sedeado em Portugal.
  2. Ou se deve prevalecer o entendimento da Requerente segundo a qual, uma tal restrição, por consubstanciar uma limitação injustificada à liberdade de movimentos de capitais garantida pelo artigo 63.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (“TFUE”), não pode proceder no ordenamento tributário nacional.

 

2. Legislação aplicável

Fazendo uma breve referência às disposições legais que regem a situação tributária trazida à apreciação deste tribunal arbitral, constata-se que a Lei n.º 2/2020, de 31 de março, conferiu uma nova redação à alínea h) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS, que passou a abranger “[o]s empréstimos, incluindo os respetivos juros, por prazo não superior a um ano, quando concedidos por sociedades, no âmbito de um contrato de gestão centralizada de tesouraria, a favor de sociedades com a qual estejam em relação de domínio ou de grupo”, estando este conceito definido no n.º 8 do mesmo artigo 7.º.

Porém, constata-se igualmente que esta isenção é limitada pelo n.º 2 do referido artigo 7.º do mesmo Código, segundo o qual a isenção prevista na dita alínea h) apenas se aplica “nas situações em que o credor tenha sede ou direção efetiva noutro Estado membro da União Europeia ou num Estado em relação ao qual vigore uma convenção para evitar a dupla tributação sobre o rendimento e o capital acordada com Portugal”.

Ora, face à redação das referidas disposições legais, vigentes à data dos factos tributários, ocorridos em 2020 e 2021, que deram origem às autoliquidações impugnadas, tem que se concluir que a isenção prevista na alínea h) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS só seria aplicável, face ao disposto no n.º 2 do mesmo artigo, aos casos em que o credor tivesse residência noutro Estado membro da União Europeia ou num Estado em relação ao qual vigorasse uma convenção para evitar a dupla tributação sobre o rendimento e o capital, e não quando esse credor, como era o caso da Requerente, fosse residente em Portugal.

 Assim, como suscitado pela Requerente no PPA e foi contraditado pela Requerida na sua Resposta, haverá que averiguar se o referido n.º 2 do artigo 7.º do CIS afronta ou não normas de direito comunitário de hierarquia superior que imponham solução diferente daquela que decorre da sua literalidade

Considera a Requerente que a restrição prevista no citado n.º 2 não só não se coaduna com a flexibilidade conferida pelos contratos de gestão centralizada de tesouraria aos grupos multinacionais, como por não ser consentâneo com o intuito de promover e flexibilizar, também em termos tributários, a implementação de um instrumento de gestão centralizada de tesouraria que tem vindo a ser cada vez mais adotado por grupos económicos, portugueses e internacionais, a operar em território nacional, deve ser considerada como uma restrição discriminatória à luz dos princípios que norteiam o funcionamento da União Europeia, em concreto por consubstanciar uma limitação injustificada à liberdade de movimentos de capitais garantida pelo artigo 63.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE), sendo também proibida pela CRP.

A Requerente reforça a sua argumentação com a alteração introduzida no referido n.º 2 do artigo 7.º, através da Lei n.º 12/2022, de 27 de junho (Lei OE/2022), que pôs em pé de igualdade a componente da residência do devedor e do credor, compatibilizando o direito nacional com o Direito Europeu, em linha com a jurisprudência produzida nesta matéria.

Por seu lado, a Requerida defende e conclui que não foi provada e que não existe qualquer desconformidade entre o n.º 2 do artigo 7.º do CIS com o regime da liberdade de circulação de capitais consagrado no TFUE, sendo por isso inconsistente a alegada inconstitucionalidade decorrente da violação do primado do direito europeu, por este preceito legal, ao excluir do benefício da isenção as sociedades não residentes beneficiárias de empréstimos concedidos por sociedades residentes, no âmbito da execução de um acordo de gestão centralizada de tesouraria.

 

3. Da proibição da fundamentação a posteriori e a questão da neutralização do encargo do imposto

3.1. Quanto à fundamentação a posteriori.

Afirma expressamente a Requerida que, em seu parecer, a C... França certamente poderia deduzir o imposto do Selo que lhe foi repercutido no lucro tributável do seu “Impôt sur les Societés”, equivalente ao IRC português, partindo desta suposição para concluir que só se estaria perante uma violação da livre circulação de capitais se essa dedução não fosse possível. 

Ora, acrescenta a Requerida, tal prova é um ónus da Requerente e esta não logrou apresentar essa demonstração.

O presente tribunal arbitral não acompanha esta nova fundamentação apresentada pela Requerida na sua Resposta que, como se dá por provado, não tinha sido considerada no despacho de indeferimento da reclamação

Com efeito, como a jurisprudência vem considerando (vd. Acórdão do STA de 27 de junho de 2016, processo 043/16), replicada, por exemplo, nos processos arbitrais 57/2021-T e 818/2021-T, onde a Requerida apresentou a mesma argumentação, não é admissível a fundamentação a posteriori

Com efeito, foi aí considerado que no contencioso de mera legalidade, como é o caso do processo de impugnação judicial, funciona o princípio da proibição da fundamentação a posteriori, isto é, o tribunal tem de limitar-se à formulação do juízo sobre a legalidade do ato sindicado tal como ele ocorreu, apreciando a respetiva legalidade em face da fundamentação contextual integrante do próprio ato, estando impedido de valorar razões de facto e de direito que não constam dessa fundamentação.

 

3.2. Quanto à neutralização do encargo do imposto do Selo suportado pela C... França

O presente tribunal arbitral também não concorda com a afirmação da Requerida de que a eventual dedução do imposto do Selo, no lucro tributável do imposto sobre o rendimento das sociedades francês, afastaria a violação do princípio da livre circulação de capitais garantida pelo artigo 63.º do TFUE. 

Para suportar a sua tese, a Requerida cita o Acórdão de 12-09-2018, processo n.º 0884/17, de onde extraiu a conclusão que a transferência de rendimentos de Portugal para outro país da União Europeia só implicará uma restrição à livre circulação de capitais e uma discriminação arbitrária entre residentes e não residentes quando o sujeito passivo beneficiário da transferência não conseguir neutralizar, por exemplo, por beneficiar de um regime de isenção (e.g., participation exemption) que vigore nesse Estado, o imposto que foi suportado em território nacional.

Ora, há que observar, desde logo, que o dito Acórdão do STA, além de não ter conhecido de mérito, versou uma questão diferente daquela que está em causa nos presentes autos, ou seja, o que aí estava em causa tinha a ver com a tributação do rendimento entre sociedades mães e afiliadas, e não em impostos com a natureza do imposto do Selo.

Por outro lado, não obstante a diferente natureza dos impostos em causa e o diverso enquadramento legal da situação tributária objeto do referido Acórdão do STA, se alguma conclusão haveria a extrair desse Acórdão seria a de que só quando o contribuinte do Estado da residência conseguir deduzir integralmente o imposto suportado no Estado da fonte é que essa neutralização seria considerada relevante para determinar se há ou não violação do princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE.

Com efeito, nesse Acórdão foi determinado que se deveria apurar se o sistema fiscal do país de residência da sociedade que suportou o imposto (holanda), por retenção no país da fonte dos rendimentos (Portugal), previa a neutralização integral de tal tributação para, deste modo e como consignado em diversa jurisprudência do STA e do TJUE, concluir se estava respeitado o princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE.

Sobre esta temática, remetendo para a referida jurisprudência, foi escrito que importaria apurar, de acordo com legislação fiscal holandesa, como são tratados os dividendos em causa, nomeadamente se beneficiam de alguma isenção e, em caso negativo, se a mesma podia deduzir esse imposto pago em Portugal no imposto holandês sobre os rendimentos das pessoas colectivas.

Acrescentando-se que estava em causa saber se, não obstante da legislação nacional decorrer, em abstracto, uma restrição à livre circulação de capitais, consubstanciada em maior tributação da entidade não residente, essa restrição vem a ser neutralizada, em concreto, por via da Convenção celebrada entre os Estados para evitar a dupla tributação.

Na verdade, se o imposto retido na fonte sobre os dividendos distribuídos por entidade com sede em Portugal à sua acionista não residente puder ser recuperado no país de residência, isto é, pudesse ser imputado no imposto sobre o rendimento devido pela sociedade ora Recorrida nos Países Baixos até ao montante da diferença de tratamento, não se verificará discriminação e restrição da livre circulação de capitais; mas se o imposto retido em Portugal não puder ser imputado no imposto devido pela ora Recorrida nos Países Baixos, em qualquer percentagem, por virtude de a lei holandesa não permitir a dedução, compensação ou recuperação do imposto pago em Portugal aquando da distribuição de dividendos – designadamente por estes beneficiarem aí de isenção de imposto –, verificar-se-á a violação dos invocados princípios da não discriminação e da livre circulação de capitais.

Assim, para que se pudesse concluir no sentido da restrição da livre circulação de capitais e do carácter discriminatório do regime que sujeita a retenção na fonte as sociedades não residentes, no caso teria que ficar demonstrado que por via da retenção na fonte efetuada em Portugal e da taxa de imposto neerlandês incidente sobre os rendimentos obtidos globalmente resultou uma tributação mais gravosa para as entidades não residentes do que a aplicável às sociedades residentes.

Face aos termos acabados de transcrever, o presente tribunal considera, em primeiro lugar que, como é do conhecimento geral, o Imposto do Selo é um imposto interno e indireto para o qual não existem regras de harmonização ao nível da União Europeia nem convenções específicas.

Ora, não se vê em que base se poderia sustentar a suposição da Requerida, de que a C... França poderia deduzir o imposto do Selo no imposto sobre o rendimento das sociedades francês, tomando esta suposição como adquirida para concluir que não há violação do princípio da livre circulação de capitais.

É que, mesmo que tal dedução do imposto do Selo pudesse ser deduzido do lucro tributável do IRC francês, como alvitra a Requerida, essa dedução não seria integral, imposto a imposto, sendo apenas uma dedução à matéria tributável e por isso parcial.

Assim, a invocação do Acórdão do STA de 12-09-2018, processo n.º 0884/17, se alguma conclusão permite extrair para a situação tributária subjudice essa conclusão vai no sentido oposto ao pretendido pela Requerida com tal invocação.

Não procede assim a referida argumentação da Requerida.

4. Questão da incompatibilidade do n.º 2 do artigo 7.º do CIS com o Direito da União Europeia

O artigo 8.º, n.º 4, da CRP, estabelece que as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático.

É, pois, pacificamente reconhecido que desta norma decorre a primazia do Direito da União Europeia sobre o Direito Nacional, quando não estão em causa os princípios fundamentais do Estado de direito democrático.

Por sua vez, os artigos 63.º e 65.º do TJUE, na parte aplicável, estabelecem o seguinte:

Artigo 63.º

1. No âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre EstadosMembros e países terceiros.

Artigo 65.º

1. O disposto no artigo 63.º não prejudica o direito de os Estados-Membros:

a) Aplicarem as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido;

b) Tomarem todas as medidas indispensáveis para impedir infrações às suas leis e regulamentos, nomeadamente em matéria fiscal e de supervisão prudencial das instituições financeiras, preverem processos de declaração dos movimentos de capitais para efeitos de informação administrativa ou estatística, ou tomarem medidas justificadas por razões de ordem pública ou de segurança pública.

2. O disposto no presente capítulo não prejudica a possibilidade de aplicação de restrições ao direito de estabelecimento que sejam compatíveis com os Tratados.

3. As medidas e procedimentos a que se referem os n.ºs 1 e 2 não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.º.

 

A propósito da aplicação dos preceitos transcritos, a decisão arbitral proferida no Processo 277/2020-T, em que também foi apreciada a compatibilidade do n.º 2 do artigo 7.º do CIS com o direito comunitário, invoca o acórdão do TJUE de 14-10-1999, proferido no processo n.º C-439/97 (Sandoz GmbH), onde, em resumo, se consignou o seguinte (com atualização dos números dos artigos aí citados):

  1. A proibição do artigo 63.º, n.º 1, do TFUE (anteriores artigo 73.º-B, n.º 1, e 56.º do  Tratado CE) abrange quaisquer restrições aos movimentos de capitais entre os Estados-Membros e entre os Estados-Membros e países terceiros (n.º 18);
  2. Uma legislação que priva os residentes num Estado-Membro da possibilidade de beneficiarem de uma eventual não tributação dos mútuos contraídos fora do território nacional, é uma medida de molde a dissuadi-los de contraírem mútuos com pessoas estabelecidas noutros Estados-Membros (n.º 19 daquele acórdão, citando o acórdão de 14 de Novembro de 1995, Svensson e Gustavsson, C-484/93, Colect., p. I-3955, n.º 10).
  3. Tal legislação constitui por isso uma restrição aos movimentos de capitais no sentido do artigo 63.º, n.º 1 do TFUE (anteriores artigos 73.º-B, e 56.º) (n.º 20).

Assim, considerando que os empréstimos de curto prazo são movimentos de capitais, como resulta da Directiva n.º 88/361/CEE, do Conselho, de 24-06-1988, o que não é objeto de controvérsia, e acompanhando a referida decisão arbitral, há que concluir que a restrição imposta no n.º 2 do artigo 7.º do CIS impede os residentes de um Estado-Membro (França, neste caso) da possibilidade de beneficiarem de uma não tributação dos mútuos contraídos fora do seu território nacional.

Por outro lado, o facto de o sujeito passivo do imposto ser o credor (ora Requerente) e não o devedor, não afasta esta conclusão.

Na verdade, embora não se esteja perante uma situação de substituição tributária em sentido próprio (que se efectua através de retenção na fonte do imposto liquidado pelo substituto, nos termos do artigo 20.º da LGT), está-se perante situação em que se admite (e legalmente se pretende) a repercussão económica do imposto em relação ao titular do interesse económico, que é o utilizador do crédito, que deve suportar o encargo do imposto, nos termos dos n.ºs 1 e 3 alínea f) do artigo 3.º do CIS. Aliás, no caso de não pagamento do imposto pelo sujeito passivo (credor), o imposto até poderá ser exigido directamente ao titular do interesse económico, designadamente nos casos de operações de cash pooling, como entendeu o Supremo Tribunal Administrativo no acórdão de 19-02-2020, proferido no processo n.º 2244/12.3BEPRT 0898/17.

É certo que o artigo 65.º do TFUE admite algumas restrições ao disposto no citado artigo 63.º. Com efeito, na alínea a) do n.º 1 do referido artigo 65.º permite-se que os Estados-Membros apliquem normas de direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido.

A propósito desta norma, o TJUE entendeu o seguinte, no acórdão de 22-11-2018, proferido no processo n.º C-575/17 (Sofina SA):

“Esta disposição, na medida em que constitui uma derrogação ao princípio fundamental da livre circulação de capitais, deve ser objeto de interpretação estrita.

Por conseguinte, não pode ser interpretada no sentido de que qualquer legislação fiscal que comporte uma distinção entre os contribuintes em função do lugar onde residam ou do Estado-Membro onde invistam os seus capitais será automaticamente compatível com o Tratado. Com efeito, a derrogação prevista no artigo 65.º, n.º 1, alínea a), do TFUE, é ela própria limitada pelo disposto no n.º 3 desse mesmo artigo, que prevê que as disposições nacionais a que se refere o n.º 1 não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.º [TFUE]».

Assim, há que distinguir as diferenças de tratamento autorizadas pelo artigo 65.º, n.º 1, alínea a), das discriminações proibidas pelo artigo 65.º n.3 do TFUE. Ora, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que, para que uma legislação fiscal nacional possa ser considerada compatível com as disposições do Tratado relativas à livre circulação de capitais, é necessário que a diferença de tratamento que daí resulta respeite a situações não comparáveis objetivamente ou se justifique por uma razão imperativa de interesse geral (Acórdão de 17 de setembro de 2015, Miljoen).

Vejamos se estas condições se verificam no caso subjudice.

Como se consignou na decisão arbitral proferida no processo 277/2020-T, que se vem acompanhando, “no caso em apreço, está-se perante um imposto de obrigação única, devido relativamente a cada acto de concessão de crédito, e os intervenientes num contrato de cash pooling encontram-se em situações idênticas, independentemente do local da sua residência ou do local onde o capital é investido, havendo mesmo possibilidade de frequentes inversões das posições de credor e devedor no âmbito do mesmo contrato, em função das disponibilidades e necessidades de tesouraria de cada um dos intervenientes.

Assim, tem de se concluir pela comparabilidade das situações entre residentes e não residentes, para efeitos da isenção em causa, em contratos do tipo do dos autos.

Neste contexto, a atribuição de uma vantagem fiscal aos devedores residentes em Portugal que é recusada aos devedores não residentes constitui, como defende a Requerente, uma diferença de tratamento entre estas duas categorias de contribuintes, que é de qualificar como discriminação, na acepção do Tratado, por não existir qualquer diferença objetiva de situação susceptível de justificar tratamento diferenciado.

Assim, a alínea a) do n.º 1 e o n.º 3 do artigo 65.º do TFUE não permitem o regime consubstanciado nas referidas normas do CIS, pois a diferença de tratamento não é justificada por uma diferença de situação objetiva.

Quanto à existência de razões imperiosas de interesse geral observa-se o seguinte.

A alínea b) do n.º 1 do artigo 65.º do TFUE admite que os Estrados Membros tomem «todas as medidas indispensáveis para impedir infrações às suas leis e regulamentos, nomeadamente em matéria fiscal e de supervisão prudencial das instituições financeiras, preverem processos de declaração dos movimentos de capitais para efeitos de informação administrativa ou estatística, ou tomarem medidas justificadas por razões de ordem pública ou de segurança pública».

Como se vê pelo n.º 46 do citado acórdão proferido no processo n.º C-575/17, o TJUE entende que, relativamente a situações comparáveis, a diferença de tratamento só pode ser justificada «por uma razão imperativa de interesse geral».

No caso em apreço, afigura-se ser manifesto que não existe qualquer razão de interesse geral que possa justificar a referida discriminação.

Assim, como se conclui no Acórdão arbitral proferido no processo 277/2020-T, não se vislumbra qualquer outra razão de interesse público que possa justificar o tratamento discriminatório referido, designadamente uma hipotética intenção legislativa de evitar fraudes e abusos no âmbito das operações de tesouraria de curto prazo entre empresas do mesmo grupo, pois a intenção geral que está ínsita na atribuição dos benefícios fiscais previstos nas alíneas g) a i) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS, não pode ser a de «impedir comportamentos que consistam em criar expedientes puramente artificiais, desprovidos de realidade económica, cujo objetivo é beneficiar indevidamente de uma vantagem fiscal», que podem justificar restrições à livre circulação de capitais (Acórdãos do TJUE de 05-07-2012, SIAT, processo C-318/16, EU:C:2017:415, n.º 40; de 07-09-2017, Eqiom e Enka, processo C6/16, EU:C:2017:641, n.º 30; e de 20-09-2018, EV, processo C-685/16, n.º 95), mas, será, pelo contrário, de admitir ou mesmo incentivar esses comportamentos, concedendo benefícios fiscais.

5. Conclusão

Face ao exposto e acompanhando a jurisprudência arbitral dominante, há que concluir que a restrição do âmbito de aplicação da isenção prevista na alínea h) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS, que se previa no n.º 2 do mesmo artigo na redação vigente nos anos de 2020 e 2021, nas situações em que o devedor que suportou o imposto é residente em França e o credor é residente em Portugal, constitui uma restrição injustificada à livre de circulação de capitais garantida pelo artigo 63.º do TFUE, conforme interpretação da jurisprudência do TJUE, pelo que tal restrição não pode ser aplicada no ordenamento tributário nacional.

Assim, as liquidações impugnadas e o indeferimento da reclamação graciosa que as manteve não podem persistir na ordem jurídica porque se basearam numa norma incompatível com o Direito da União Europeia, justificando-se assim a sua anulação, com as demais consequências legais.

 

6. Pedido de condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios

 A Requerente pagou as quantias autoliquidadas e formula pedido de juros indemnizatórios.

Segundo a Requerida, invocando o Acórdão do Pleno do STA, de 30 de janeiro de 2019, processo 0564/18.2BALSB, não há lugar aos referidos juros uma vez que não estava na sua disponibilidade decidir de modo diferente daquele que decidiu por estar sujeita ao princípio da legalidade.

É certo que no Acórdão invocado, proferido para uniformização de jurisprudência sobre a matéria atinente aos pressupostos dos juros indemnizatórios, foi decidido que “nos termos do disposto no artigo 43.º da LGT, não pode ser assacado aos serviços da AT qualquer erro que, por si, tenha determinado o pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, se não estava na disponibilidade da AT decidir de modo diferente daquele que decidiu por estar sujeita ao princípio da legalidade (cfr. art. 266.º, n.º 2, da CRP e art. 55.º da LGT) e não poder deixar de aplicar uma norma com fundamento em inconstitucionalidade, a menos que o TC já tenha declarado a inconstitucionalidade da mesma com força obrigatória geral (cfr. art. 281.º da CRP) ou se esteja perante violação de normas constitucionais directamente aplicáveis e vinculativas, como as que se referem a direitos, liberdades e garantias (cfr. art. 18.º, n.º 1, da CRP)”.

Porém, a doutrina do douto Acórdão invocado pela AT não é aqui aplicável uma vez que a decisão proferida no presente processo arbitral não se traduz na desaplicação, por inconstitucionalidade, de qualquer norma do direito fiscal, mormente do n.º 2 do artigo 7.º do CIS. Ao contrário, como está afirmado, esta decisão arbitral fundamenta-se na consideração de que essa norma do CIS, na redação em vigor à data das autoliquidações impugnadas, era incompatível com o princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63.º do TFUE, tal como o mesmo tem sido interpretado pelo TJUE, cabendo ao tribunal arbitral desaplicar o direito nacional que contraria o direito da união europeia, declarando a sua ilegalidade.

Assim, atento o princípio da responsabilização do Estado pelos danos resultantes da violação do direito comunitário são, pois, devidos juros indemnizatórios ao abrigo ao artigo 43.º da LGT a partir da data em que se determine que houve erro imputável aos serviços da AT que corporizem tal ilegalidade.

Ora, como foi decidido no processo 277/2020-T, quanto aos actos de autoliquidação, não ocorreu erro imputável aos serviços, não havendo, consequentemente direito a juros indemnizatórios derivado da sua prática.

No entanto, o mesmo não sucede com a decisão da reclamação graciosa, pois deveria ter sido deferida a pretensão da Requerente e este erro é imputável a Autoridade Tributária e Aduaneira. Esta situação de a Autoridade Tributária e Aduaneira manter uma situação de ilegalidade, quando devia repô-la, deverá ser enquadrada, por mera interpretação declarativa, no n.º 1 do artigo 43.º da LGT, pois trata-se de uma situação em que há nexo de causalidade adequada entre um erro imputável aos serviços e a manutenção de um pagamento indevido.

Assim e em conclusão, no caso subjudice, os juros indemnizatórios deverão ser contados a partir da data em que expirou o prazo de 4 meses em que, conforme previsto no artigo 57.º, n.º 1, da LGT, o procedimento da reclamação graciosa, apresentado em 25 de maio de 2021 e instaurado sob o n.º ...2021..., deveria ter sido concluído.

7. Pedido de condenação da Requerida em custas de parte

Quanto ao pedido de custas de parte, o tribunal considera que não cabe na competência dos tribunais arbitrais em matéria tributária a apreciação da referida pretensão. De resto, o Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária estabelece o regime de custas não havendo lugar a reembolso, devolução ou compensação, a qualquer título, para além dos casos previstos no referido Regulamento e na legislação subsidiária aplicável (vd. artigo 6.º), na qual não está incluída a matéria atinente às custas de parte.

O que conduz à absolvição da Requerida nesta parte do pedido.

 

IV. DECISÃO

Face ao exposto, o presente tribunal arbitral singular decide:

a) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral anulando as autoliquidações de imposto do Selo impugnadas, referentes aos meses de abril de 2020 a abril de 2021, com o consequente reembolso da quantia total de € 50.153,28;

b) Anular o despacho de indeferimento da reclamação graciosa notificado à Requerente em 10/11/2021;

c) Julgar procedente o pedido de liquidação de juros indemnizatórios, que devem ser contados desde 26 de setembro de 2021 até à data do processamento do reembolso;

d) Julgar improcedente o pedido de condenação em custas de parte.

 

VALOR DO PROCESSO

De harmonia com o disposto nos artigos 296.º, n.º 1, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 50.153,28.

 

CUSTAS

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se em € 2.142,00 o montante das custas previstas no artigo 4.º da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Administração Tributária.

 

Lisboa, 30 de outubro de 2022

 

O Árbitro

(Joaquim Silvério Dias Mateus)