Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 808/2021-T
Data da decisão: 2022-11-02  IVA  
Valor do pedido: € 972.862,84
Tema: IVA – locação financeira – pro rata - afetação real – art. 23º do CIVA e ofício-circulado nº 31108, de 30-01-2009.
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Sumário:

 

1. Nos termos do disposto no artigo 23.º, n.º 2, do CIVA, conjugado com a alínea b) do seu n.º 3, não padece de ilegalidade a dedução do imposto suportado na aquisição de bens e serviços que sejam utilizados na realização de operações que conferem o direito a dedução e  em operações que não conferem esse direito através da afetação real de todos ou parte dos bens ou serviços, quando a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza ou possa conduzir a distorções significativas na tributação, designadamente quando a utilização dos bens e serviços de utilização mista seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação financeira.

2. Cabe ao sujeito passivo o ónus de alegar e provar que a utilização de bens ou serviços mistos não é sobretudo determinada pela gestão e financiamento dos contratos de locação financeira.

 

 

Decisão Arbitral

 

I. Relatório

 

1. A..., S.A., anteriormente denominada A..., com o número de identificação fiscal ... e sede na Rua ..., n.º ..., ...-... Lisboa, veio, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos n.os 1 e 2 do artigo 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária ou “RJAT”) e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, requerer a constituição de Tribunal Arbitral com vista à pronúncia sobre a legalidade da decisão de indeferimento do Recurso Hierárquico que teve por objeto a decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa apresentada pela Requerente visando a anulação parcial do ato tributário de autoliquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”) respeitante a  dezembro de 2018, no montante de € 972.862,84, e a consequente declaração de (i)legalidade daquele ato de (auto)liquidação de IVA, pedindo a restituição da quantia que considera indevidamente paga e respetivos juros indemnizatórios. Subsidiariamente, requer, ainda, reenvio prejudicial para o TJUE.

 

2. O pedido de constituição foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD, tendo seguido a sua normal tramitação.

O Tribunal foi constituído no dia 8 de fevereiro de 2022.

A AT, respondeu, por impugnação, defendendo que o pedido deve ser julgado improcedente.

Foi determinado o aproveitamento da prova produzida no Processo n.º 58/2020-T.

A reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT foi realizada no dia 4 de outubro de 2022, tendo sido inquiridas as testemunhas arroladas pela Requerente e dispensada a produção de alegações finais.

O tribunal arbitral foi regularmente constituído, ex vi o disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 4.º e 10.º, n.º 1, do RJAT.

As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas, como determinado pelos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, não enfermando o processo de quaisquer nulidades, nem existindo obstáculo à apreciação do mérito da causa.

 

 

 

II. Fundamentação

 

4. Matéria de facto

4.1. Factos Provados

Com interesse para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:

            4.1.1. A Requerente é uma instituição de crédito, cujo objeto social consiste na realização das operações descritas no artigo 4.º, n.º 1 do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro.

            4.1.2. No âmbito da sua atividade, a Requerente realiza operações financeiras enquadráveis na isenção constante da alínea 27 do artigo 9.º do Código do IVA, que não conferem o direito à dedução deste imposto, designadamente operações de financiamento/concessão de crédito e das operações relativas a pagamentos.

            4.1.3. A Requerente realiza também operações que conferem o direito à dedução deste imposto, nomeadamente operações de locação financeira mobiliária, locação de cofres e custódia de títulos.

            4.1.4. Relativamente às situações em que a Requerente identificou uma conexão direta e exclusiva entre determinadas aquisições de bens e serviços (inputs) e operações ativas (outputs) por si realizadas, aplicou, para efeitos de exercício do direito à dedução, o método da imputação direta, ao abrigo do preceituado no n.º 1 do artigo 20.º do Código do IVA.

            4.1.5. Nos casos em que a Requerente identificou uma conexão direta, mas não exclusiva, entre determinadas aquisições de bens e serviços (inputs) e operações ativas (outputs) por si realizadas, e conseguiu determinar critérios objetivos do nível/grau de utilização efetiva, aplicou o método da afetação real, de harmonia com o disposto no n.º2 do artigo 23.º do Código do IVA.

            4.1.6. Para determinar a medida (quantum) de IVA dedutível relativamente às demais aquisições de bens e serviços, afetos indistintamente às diversas operações por si desenvolvidas (recursos de “utilização mista”), a Requerente aplicou o método geral e supletivo da percentagem de dedução, conforme previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º do Código do IVA.

4.1.7. A referida percentagem de dedução foi determinada com cálculo do coeficiente de imputação específico definitivo do ano 2018, em consonância com o preceituado no ponto 9 do Ofício-Circulado n.º 30.108, de 30 de janeiro de 2009, da Área de Gestão Tributária do IVA.

4.1.8. Nas aquisições de bens e serviços utilizados exclusivamente na realização de operações que não conferem o direito à dedução, a Requerente não deduziu qualquer montante de IVA.

4.1.9. Em 5 de fevereiro de 2019, a Requerente apresentou a autoliquidação de IVA respeitante ao mês de Dezembro de 2018, com a declaração periódica n.º..., cujo teor se dá como reproduzido (Documento 2, junto pela Requerente).

4.1.10.  Com base no entendimento da Autoridade Tributária e Aduaneira vertido no Ofício-Circulado n.º 30108, a Requerente não incluiu no cálculo da referida percentagem de dedução os montantes respeitantes às amortizações financeiras do leasing, tendo apurado uma percentagem definitiva de dedução para o ano de 2018 (pro rata) de 3% (três por cento).

4.1.11. Tendo verificado que, se no cálculo da referida percentagem de dedução tivesse incluído os montantes respeitantes às amortizações financeiras do leasing – em sentido oposto ao sustentado pela Autoridade Tributária e Aduaneira no Ofício-circulado n.º 30108, e 30 de Janeiro de 2009, da Área de Gestão Tributária do IVA -, a percentagem de dedução definitiva apurada para o ano em causa seria de 9% (nove por cento) em lugar de 3% (três por cento), a Requerente deduziu pedido de reclamação graciosa em 16 de dezembro de 2019, pretendendo ver reconhecido o seu direito à dedução do valor de € 1.459.294 relativo a bens de utilização mista, correspondente de 9% (nove por cento).

4.1.12. Tal reclamação foi indeferida por despacho do Chefe de Divisão de Justiça Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes, com data de 17 de março de 2020.

4.1.13. No dia 2 de maio de 2020, a Requerente interpôs recurso hierárquico desse indeferimento, o qual foi indeferido por despacho de 6 de agosto de 2021, cujos fundamentos aqui se dão por reproduzidos (Documento 1, junto pela Requerente).

4.1.14.  No âmbito da atividade de locação financeira, a Requerente incorre em custos com a contratação e gestão destes contratos e com a disponibilização das viaturas.

4.1.15. No que concerne ao leasing automóvel, o banco realiza um conjunto heterogéneo de ações entre as quais constam as seguintes: ação comercial, negociação do contrato, registo da propriedade do veículo, emissão de faturas e recibos mensais relativos à cobrança de rendas, controlo da manutenção de seguro válido pelo cliente, nos termos em que a Requerente entende que ele tem de ser mantido ao longo da vigência do contrato, tratamento de cessões da posição contratual, interações com entidades terceiras (como autoridades policiais ou concessionárias de autoestradas) em caso de existência de contraordenações ou dívidas de portagens, manutenção de serviço de call center, tratamento da documentação relativa à venda do veículo no final do contrato e alteração do registo de propriedade.

4.1.16. A atividade de locação financeira é desenvolvida pela Requerente através da sua rede de cerca de 324 balcões em funcionamento em 2018, das suas direções/serviços centrais (v.g., Direção Jurídica, Direção de Contabilidade, Direção de Marketing, Direção de Comunicação e Gestão de Marca e Direção de Recuperação de Crédito) e de call centers.

4.1.17. Tanto os diversos balcões da rede comercial da Requerente, como as suas direções/serviços centrais intervêm no decurso das diversas fases dos contratos de locação financeira, quer em aspetos relacionados com a disponibilização dos bens locados, quer em aspetos relativos ao financiamento e gestão daqueles contratos, a fim de resolverem vicissitudes várias (v.g., aquisição dos bens locados, resolução de questões relacionadas com pagamentos de tributos, coimas ou taxas administrativas, resolução de  situações de incumprimento contratual).

4.1.18. Os aludidos recursos gerais de funcionamento da Requerente foram utilizados/consumidos quer para a disponibilização dos bens locados, quer para o financiamento e gestão dos contratos de locação financeira.

4.1.19. A atividade posterior à fase inicial de aquisição e formalização do contrato e registo da aquisição, pode incluir um número superior de tarefas do que as realizadas naquela fase.

4.1.20. Encontram-se previstas no preçário da Requerente diversas comissões para a remuneração direta de cada um dos tipos de atividade, tais como: Comissão de Contratação / Montagem da Operação; Comissão de reembolso antecipado parcial, Comissão mensal de processamento / prestação, Comissão pela recuperação de valores em dívida, comissões relativas a alterações contratuais, comissões de 2.ª vias de documentos, comissão de transmissão da posição jurídica do locatário, comissão de requerimentos e autorizações diversas, comissão para tratamento de multas, comissão para processamento de impostos e taxas, comissão de alteração de registos, comissão de gestão de contratos, comissão de processamento/prestação.

4.1.21. As comissões referidas não são suficientes para compensar todos os custos suportados pela Requerente, sendo o seu valor apenas o dos custos que a Requerente consegue prever e quantificar com as atividades a que se reportam.

4.1.22. Foi emitida, pela área de gestão tributária do IVA — Gabinete do subdiretor-geral dos impostos, instrução administrativa, correspondente ao ofício n° 30108, de 30.01.2009, da qual consta o seguinte:

“1. O ofício circulado n° 30103, de 2008.04.23, do Gabinete do Subdirector-Geral da área de Gestão do IVA, procedeu à divulgação de instruções genéricas no sentido de uniformizar a interpretação a dar às alterações introduzidas ao artigo 23° do Código do IVA (CIVA), de assegurar o correcto enquadramento das várias actividades face aos novos preceitos, de estabelecer os procedimentos a serem seguidos na determinação da dedução do imposto e, ainda, de clarificar os critérios a utilizar, quando haja recurso à afectação real na determinação do quantum do imposto a deduzir e sempre que esteja em causa bens e serviços de utilização mista.

2. De acordo com as referidas instruções e seguindo as regras do artigo 23° do CIVA, para apurar o imposto dedutível contido em bens e/ou serviços de utilização mista, aplica-se supletivamente o método da percentagem ou pro rata, excepto quando estejam em causa operações não decorrentes de uma actividade económica, caso em que é obrigatória a afectação real. Nos demais casos, a afectação real é facultativa podendo, no entanto, a Administração Tributária impor esse método de imputação quando a aplicação do pro rata conduza a distorções significativas na tributação (n° 3 art. 23°).

3. No caso de utilização da afectação real, obrigatória ou facultativa, e segundo o n° 2 do artigo 23°, o sujeito passivo para determinar o grau de afectação ou utilização dos bens e serviços à realização de operações que conferem direito a dedução ou de operações que não conferem esse direito, deve recorrer a critérios objectivos devendo, em qualquer dos casos, a determinação desses critérios objectivos ser adaptada à situação e organização concretas do sujeito passivo, à natureza das suas operações no contexto da actividade global exercida e aos bens ou serviços adquiridos para as necessidades de todas as operações, integradas ou não no conceito de actividade económica relevante.

4. Os critérios adoptados podem ser corrigidos ou alterados pela DGCI, com os devidos fundamentos de facto e de direito, ou, se for caso disso, fazer cessar a utilização do método, se se verificar a ocorrência de distorções significativas na tributação.

5. No caso específico das entidades financeiras que desenvolvem igualmente actividades de Leasing ou de ALD, a prática conjunta de operações de concessão de crédito e de locação tributada, incluindo a locação financeira, implica, quando houver bens e serviços adquiridos que sejam conjuntamente utilizados em ambas, a necessidade de recorrer às disposições do artigo 23° do CIVA para apuramento da parcela do imposto suportado, que é passível de direito a dedução.

6. Face à anterior redacção do artigo 23° do CIVA, no âmbito da aplicação do método da afectação real, sempre que não fosse viável a aplicação da afectação no cálculo do IVA dedutível relativamente a bens de utilização mista, a solução encontrada e seguida pelos Serviços como sendo a que mais se aproximava da neutralidade desejada, foi no sentido de ser aplicada uma proporção entre os dois tipos de operações, de forma a determinar, o mais aproximadamente possível, a afectação dos inputs a cada uma delas.

No entanto, não estava aqui em causa a aplicação do n° 4 do artigo 23° do IVA mas do apuramento do imposto dedutível mediante a aplicação de um pro rata específico, uma vez que previamente o método utilizado fora o da afectação real.

7. Face à actual redacção do artigo 23°, a afectação real é o método que, tendo por base critérios objectivos de imputação, mais se ajusta ao apuramento do IVA dedutível nos bens e serviços de utilização mista.

8. Nesse sentido, considerando que o apuramento do IVA dedutível segundo a aplicação do pro rata geral estabelecido no n° 4 do artigo 23º do CIVA é susceptível de provocar vantagens ou prejuízos injustificados pela falta de coerência das variáveis nele utilizadas, ou seja, pode conduzir a “distorções significativas na tributação”, os sujeitos passivos que no âmbito de actividades financeiras pratiquem operações de Leasing ou de ALD, devem utilizar, nos termos do n° 2 do artigo 23° do CIVA, a afectação real com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços, de modo a determinar o montante de IVA a deduzir relativamente ao conjunto das actividades.

9. Na aplicação do método da afectação real, nos termos do número anterior e sempre que não seja possível a aplicação de critérios objectivos de imputação dos custos comuns, deve ser utilizado um coeficiente de imputação específico, tendo em conta os valores envolvidos, devendo ser considerado no cálculo da percentagem de dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à actividade de Leasing ou de ALD.

Neste caso, a percentagem atrás referida não resulta da aplicação do n° 4 do artigo 23° do CIVA” .

 

4.1.23. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi entregue no dia 2 de dezembro de 2021.

 

4.2. Factos não provados

4.2.1. Não se provou, em termos quantitativos, a medida de utilização dos recursos de utilização mista com as operações de leasing e se tal afetação desses recursos fora primordialmente determinada pelo financiamento e gestão dos contratos de locação financeira ou pela disponibilização dos veículos.

4.2.2. Não se provou que os custos incorridos durante o período de vigência do contrato com a disponibilização da viatura e não ressarcidos pelo pagamento de “comissões” sejam muito superiores quando comparados com os custos inerentes à fase de formalização e gestão contratual.

4.2.3. Não se provou e existência de um efetivo e maioritário consumo pela Requerente de recursos de utilização mista em prestações relacionadas com a disponibilização/gestão dos bens objeto de locação.

 

            4.3. Fundamentação da matéria de facto

  Considerando o disposto nos artigos 596.º, n.º 1 e 607.º, n.os 2 a 4, ambos do Código de Processo Civil (por remissão do disposto no artigo 29.º, n.º 1, do RJAT), incumbe ao Tribunal o dever de selecionar a matéria de facto pertinente para a decisão judicativa, tomando em consideração a causa de pedir que sustenta a pretensão dos Requerentes.

No caso sub judice, a decisão sobre os factos provados e não provados radicou, segundo o princípio da livre apreciação da prova, no acervo documental presente nos autos e na prova testemunhal produzida, salientando-se que as testemunhas depuseram com isenção, revelando conhecimento direto dos factos que relataram. Relativamente às comissões cobradas, teve-se em conta o preçário invocado pela Requerida na sua resposta e disponível on-line, tendo sido a existência daquelas sido confirmada pela prova testemunhal.

Para além disso, a decisão da matéria de facto baseou-se no alegado pelos Requerentes que não foi questionado ou controvertido pela Autoridade Tributária e Aduaneira.

Cumpre referir, quanto aos factos não provados, que a prova produzida não permitiu determinar minimamente qualquer quantificação relativa aos recursos de utilização mista que são utilizados em cada uma das atividades desenvolvidas no âmbito dos contratos de locação financeira. Não obstante se ter concluído que durante a vigência do contrato podem ser realizadas mais tarefas do que as desenvolvidas na fase de contratualização, não se logrou comprovar que o consumo de recursos gerais da Requerente é aí primordialmente determinado pela disponibilização da viatura face aos gastos relacionados com a gestão do contrato de locação financeira, sendo que também na fase de vigência do contrato são suportados custos relativos que apenas são relativos à gestão do mesmo (v.g., processamento de rendas, tratamento de cessões da posição contratual, extinção do contrato).

 

5. Matéria de direito

5.1. Questão decidenda

O tema a decidir prende-se com o método de dedução (parcial) do IVA nos recursos de utilização mista das instituições de crédito que desenvolvem simultaneamente atividades de leasing, sendo que a questão nuclear presente nos autos é a de saber se, face ao regime do Código do IVA e às normas europeias, deverá considerar-se, ou não, a componente de amortização de capital, para efeitos da determinação do critério de dedução – coeficiente de imputação específico – referente ao IVA incorrido pela Requerente nos recursos de utilização mista.

Na perspetiva da Requerente, a resposta é afirmativa, invocando em seu abono um conjunto de argumentos para concluir pela ilegalidade e inconstitucionalidade do regime vertido no Ofício-Circulado n.º 30082 de 17 de novembro de 2005, bem como pela sua dissonância com o direito europeu.

Por seu turno, a Requerida pugna pela manutenção da legalidade da autoliquidação, rejeitando que esta padeça de qualquer vício.

Vejamos.

 

5.2.  A requerente sustenta o pedido de anulação da autoliquidação num conjunto de diferentes vícios. Quando tal ocorre, o disposto no artigo 124.º do CPPT, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, determina que o julgador deve conhecer prioritariamente dos vícios cuja procedência determine, segundo o seu prudente critério, uma mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos e não exista uma relação de subsidiariedade entre os vícios invocados. Apesar de a tutela mais estável e eficaz dos interesses da Requerente impor, em princípio, o conhecimento prioritário dos vícios substanciais ou de fundo em relação aos vícios de forma, designadamente do vício de falta de fundamentação (que não impede a renovação do ato), deve considerar-se que a falta ou vício de fundamentação pode acarretar um equívoco enquadramento factual e jurídico, afetando a correção da análise dos vícios substanciais, razão pela qual se considera primeiramente o vício de apontado à fundamentação.

 

5.2.1. De acordo com a Requerente, “a Autoridade Tributária e Aduaneira apenas alegou de forma vaga uma distorção significativa, sem indicar os factos em que esta se concretizava e sem demonstrar a sua existência, o que deixa claro o vício de errónea fundamentação de que enferma a sua decisão”.

As exigências de fundamentação dos atos e decisões tributárias constam do artigo 77.º da LGT, que corresponde a uma densificação normativa da injunção constitucional proclamada no art.º 268.º, n.º 3 da CRP, sendo de acentuar que a fundamentação, na sua expressão nuclear, tem de ser “expressa e acessível quando afete(m) direitos e interesses legalmente protegidos”. É pela função que cumpre, ou pelos objetivos que deve satisfazer, que se afere, em cada tipo de situação jurídico-factual, a exigência e grau de densidade da “enunciação contextual, expressa, dos motivos de facto e de direito com base nos quais a administração se decidiu praticar o concreto ato administrativo nos precisos termos em que o fez” e a sua apreensibilidade cognitiva por parte do titular dos direitos afetados (Cfr. neste sentido, Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 594/2008, disponível no respetivo website).

A fundamentação é consubstanciada pelo discurso verbalizado pela administração como suporte constituinte da decisão administrativa. Nesta perspetiva, estamos perante uma externação formal das razões de facto e de direito ser contemporâneas ou coetâneas da decisão administrativa e constituintes da mesma, não podendo considerar-se como legítimas todas aquelas que, ainda que porventura, com um propósito integrador do sentido da sua anterior declaração, apenas sejam produzidas e invocadas posteriormente. Numa formulação que traduz apenas a síntese do que a doutrina mais autorizada escreveu sobre a matéria, pode repetir-se que a fundamentação se consubstancia num discurso funcional externado pela administração, expresso, formal, explícito, contextual, com capacidade para dar a um destinatário normal, colocado na situação concreta do destinatário do ato as razões “justificantes” e “justificativas” - sob o ponto de vista formal - da concreta decisão administrativa. Consequentemente, para estarmos em face de um discurso normativo-racionalmente justificativo, este não poderá deixar de expressar, no mínimo exigível, os factos apreendidos, o modo como foi efetuada essa prognose, os critérios adotados e as valorações efetuadas, devendo ser apenas tido como suficiente naqueles casos onde se revele uma sustentada aptidão comunicativa ou compreensividade para revelar inteiramente o juízo do autor do ato administrativo, de modo que possa permitir ao seu destinatário e ao tribunal o controlo da sua validade substancial, aceitando-o, reclamando, recorrendo hierarquicamente ou sindicando-o contenciosamente.

Compulsando o teor da fundamentação da decisão em crise, constata-se que o referido vício não existe. A administração explicou de forma desenvolvida as razões que a levaram a concluir que a aplicação do pro rata geral estabelecido no n.º 4 do artigo 23.º do Código do IVA é suscetível de provocar vantagens ou prejuízos injustificados pela falta de coerência das variáveis nele utilizadas.

Refere-se naquela:

“(...)

71. (...) Não podemos abstrair-nos do facto dessas operações de locação (Leasing e ALD) consubstanciarem uma modalidade de crédito (entre outras), pelo que a atividade da entidade locadora é, em substância, a concessão de financiamento, cuja contrapartida remuneratória é constituída essencialmente por juros e outros encargos incluídos nas rendas.

[...]

76. (...) A renda constitui o pagamento do serviço de concessão de financiamento ao locador, sendo composta por duas partes: capital ou amortização financeira, que mais não é que o reembolso da quantia “emprestada” e juros, acrescidos de eventuais encargos, que constituem a remuneração do locador.

77. Note-se que, na perspetiva da operação de locação enquanto operação de concessão de financiamento, o valor de aquisição do bem objeto de contrato de locação corresponde ao capital financiado que constitui a componente de amortização financeira na renda liquidada pelo locador ao locatário.

78. Sendo que, no momento da aquisição desse mesmo input, o sujeito passivo (locador) exerceu o direito à dedução integral do montante do IVA liquidado pelo fornecedor do bem objeto do contrato de locação, por via do método da imputação direta.

79. Razão pela qual, não pode deixar de ser excluída do cálculo da percentagem de dedução, sendo-lhe aplicável o método de afetação real com recurso a um critério de imputação objetivo, a parte da amortização financeira incluída na renda, uma vez que esta mais não é do que a restituição do capital financiado/investido para a aquisição do bem.

80. Logo, à luz do princípio da neutralidade em que assenta este imposto, fácil se torna perceber que a incidência do IVA sobre a totalidade da renda é a única forma de garantir que o Estado recupera o valor do imposto que foi deduzido pelo sujeito passivo.

81. Por outro lado, a inclusão no rácio entre operações com e sem direito à dedução da componente relativa à restituição do capital (amortização financeira), enquanto parte integrante da renda, provoca um aumento injustificado na percentagem de dedução definitiva, atendendo a que será significativa e positivamente influenciada, por via de uma mera restituição de um financiamento, cujo bem subjacente foi já objeto de liquidação e dedução de IVA no momento da aquisição.

82. Este facto gerará deduções acrescidas para o sujeito passivo, relativamente à generalidade do inputs de utilização mista, por via da utilização de um coeficiente, que nessa medida, se apresenta como exagerado, face à realidade das operações tributáveis.

83. A atividade principal da locadora não consiste na compra e venda de bens, mas tão só na concessão de créditos a terceiros para aquisição desses bens, ainda que se substitua aos destinatários dos bens na aquisição, reservando para si o direito de propriedade. E dessa atividade obtém, fundamentalmente, juros.

84. Deste modo, torna-se compreensível que no cálculo do mencionado coeficiente de imputação específico, aplicável ao caso objeto de análise, e em harmonia com o entendimento da AT, deve considerar-se, apenas, o montante que excede o valor dos custos utilizados nas operações tributadas, uma vez que, através do método de imputação direta o IVA da parte relativa ao capital é integralmente deduzido.

85. E é apenas aquele valor diferencial (que, genericamente, corresponde a juros) que se encontra conexo com os custos de aquisição de recursos utilizados indistintamente em operações com e sem direito à dedução.

86. Se assim não fosse, permitia-se um aumento artificial da percentagem de dedução do IVA incorrido com a generalidade dos bens ou serviços com utilização mista adquiridos pelo sujeito passivo.

(...)”.

E, posteriormente, são aduzidos mais argumentos que reforçam a posição administrativa, tais como aqueles relativos às componentes que integram a renda paga. Está, assim, suficientemente demonstrada a tese da administração que serve de base para afastar a aplicação do pro rata geral. É certo que a Requerente discorda dos argumentos invocados, mas o acerto das razões aduzidas no discurso fundamentador não é razão para o considerar viciado, sobretudo quando o seu destinatário logrou apreender as razões de facto e de direito que determinaram a decisão administrativa, como é o caso.

Como parece resultar da argumentação da Requerente, também o Ofício-Circulado 30108 padece de falta de fundamentação. Porém, tal como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (“STA”), de 20 de janeiro de 2021, tirado no processo n.º 0101/19[1], “ Porém, e não existindo – nem sendo invocada – nenhuma regra formal que imponha no lançamento dos ofícios o conteúdo cuja falta se assinala, a crítica só pode ter sido apontada à sua substância”. Ainda assim, no mesmo aresto se afirma “Não foi ali esclarecido – é certo – porque é que o método adotado era adequado. Mas foi defendido, claramente, que era mais adequado do que a aplicação do pro rata geral e que, por isso, seria menos suscetível de provocar vantagens ou prejuízos injustificados e de conduzir a distorções significativas na tributação.”

Improcede, pois, o alegado quanto a este vício.

 

5.2.2. Da legalidade da autoliquidação

A questão em análise foi já objeto de uma extensa e profunda reflexão neste CAAD e no STA, existindo também jurisprudência europeia sobre a matéria e que vem sendo argumentativamente mobilizada nas decisões pátrias na análise da questão.

No CAAD, prevaleceu desde cedo a tese da Requerente, tendo-se entendido em diversas decisões arbitrais que o método explanado no ponto 9 do citado Ofício-Circulado 30108 seria inadmissível face ao disposto no artigo 23.º do Código do IVA, o que se traduziria numa violação do princípio da legalidade fiscal previsto nos artigos 165.º, n.º 1, alínea i), e 103.º, n.º 2, da Constituição.

Esta posição não foi, porém, sufragada pelo STA que, no seu acórdão para uniformização de jurisprudência, de 20 de janeiro de 2021, tirado no processo n.º 0101/19, concluiu que “[n]os termos do disposto no artigo 23.º, n.º 2, do Código do IVA (conjugado com a alínea b) do seu n.º 3), a Administração Tributária pode obrigar o sujeito passivo que efetua operações que conferem o direito a dedução e operações que não conferem esse direito, a efetuar a dedução do imposto suportado na aquisição de bens e serviços que sejam utilizados na realização de ambos os tipos através da afetação real de todos ou parte dos bens ou serviços, quando a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza a distorções significativas na tributação” e que “na aplicação do método de afetação real nos termos do n.º anterior, a Administração Tributária pode obrigar o sujeito passivo que seja um banco que exerce atividades de ‘Leasing’ e de ‘ALD’ a incluir no numerador e no denominador que serve para o cálculo da percentagem da dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos a essa atividade, quando a utilização daqueles bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos respetivos”. Este entendimento foi reiterado no Acórdão de 24 de março de 2021, tirado no processo n.º 87/20, onde se procedeu à uniformização da jurisprudência no seguinte sentido: “nos termos do disposto no art. 23.º, n.º 2, do CIVA, conjugado com a alínea b) do seu n.º 3, a AT pode obrigar o sujeito passivo que efectua operações que conferem o direito a dedução e operações que não conferem esse direito a estruturar a dedução do imposto suportado na aquisição de bens e serviços que sejam utilizados na realização de ambos os tipos de operações através da afectação real de todos ou parte dos bens ou serviços, quando a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza ou possa conduzir a distorções significativas na tributação”, acrescentando-se ser improcedente a invocação da violação do princípio da legalidade tributária (art.103,n.º2 da CRP) e da reserva de lei da Assembleia da República (art. 165.º n.º1, alínea i) da CRP, porquanto o denominado “método de imputação específica” não se traduz num método inovador que não esteja previsto no artigo 23.º, “mas é ainda um método de afetação real com alguns ajustamentos (‘condições especiais’), motivo por que deve considerar-se subsumível à previsão daquela norma”.

            A jurisprudência do STA encontra-se alinhada com a decisão proferida no processo C-183/13, de 10 de julho de 2014 (“Banco Mais”), no qual o TJUE considerou que “os Estados-Membros podem obrigar um banco que exerce atividades de locação financeira a incluir no numerador e no denominador da fração que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar”.

Em consonância com o sentido emergente dos mencionados arestos, começa-se por afastar a incompatibilidade do regime de direito interno com o disposto nos artigos 173.º e 174.º da Diretiva do IVA. Com efeito, é o próprio TJUE que refere que a disposição do artigo 23.º, n.º 2, do CIVA, “conjugada com o artigo 23.°, n.° 3, do CIVA, no caso de se verificarem distorções significativas na tributação, um sujeito passivo pode ser obrigado a efetuar a dedução do IVA em função da afetação real da totalidade ou de parte dos bens e serviços utilizados (...) reproduz, em substância, a regra de determinação do direito à dedução enunciada no artigo 17.°, n.° 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Diretiva, que é uma disposição derrogatória da regra prevista nos artigos 17.°, n.° 5, primeiro parágrafo, e 19.°, n.° 1, dessa diretiva” e considerou, como se disse supra, ser compatível com o direito europeu o regime que se encontra espelhado no Ofício-Circulado n.º 30108 (parágrafos 17, 18 e 35 do Acórdão “Banco Mais”). Clarificou-se aí que, “embora a realização, por um banco, de operações de locação financeira para o setor automóvel, como as que estão em causa no processo principal, possa implicar a utilização de certos bens ou serviços de utilização mista, como edifícios, consumo de eletricidade ou certos serviços transversais, na maioria dos casos esta utilização é sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação financeira celebrados com os seus clientes, e não pela disponibilização dos veículos” e “nestas condições, o cálculo do direito à dedução em aplicação do método baseado no volume de negócios, que tem em conta os montantes relativos à parte das rendas que os clientes pagam e que servem para compensar a disponibilização dos veículos, leva a determinar um pro rata de dedução do IVA pago a montante menos preciso do que o resultante do método aplicado pela Fazenda Pública, baseado apenas na parte das rendas correspondente aos juros que constituem a contrapartida dos custos de financiamento e de gestão dos contratos suportados pelo locador financeiro, uma vez que estas duas atividades constituem o essencial da utilização dos bens e serviços de utilização mista destinada à realização das operações de locação financeira para o setor automóvel” (parágrafos 33 e 34 do Acórdão “Banco Mais”). Porém, a Requerente chama ainda à colação a decisão do TJUE no processo Volkswagen Financial Services, C-153/17, de 18 de Outubro de 2018. No entanto, tal como se assumiu no processo n.º 128/2021-T, não nos encontramos perante uma situação transponível para o caso concreto, já que, no nosso ordenamento jurídico, o IVA incide sobre a totalidade da renda (artigo 16.º, n.º 2, alínea h), do CIVA), abarcando a componente do juro, ao passo que no caso referido, o regime fiscal do Reino Unido obrigava à desagregação das rendas em duas operações, estando a componente juro isenta de IVA e sendo tributada a parte relativa à amortização, excluindo as autoridades fiscais deste país a componente de amortização do pro rata, não sendo tidas em conta as despesas com bens e serviços repercutidos na parte dos juros. Também o STA não retirou quaisquer consequências desta jurisprudência que determinassem a reversão das suas posições, mencionando-se no Acórdão de 20 de janeiro de 2021, “que o Tribunal de Justiça da União Europeia não pretendeu ali reformular o entendimento firmado no acórdão “Banco-Mais”, mas sublinhar que aquela jurisprudência não podia ser aplicada de maneira geral, abrangendo todos os tipos de operações de locação financeira para o setor automóvel. [§] Incluindo aquelas em que a aplicação de um método de repartição que não tenha em conta o valor do veículo aquando na sua entrega não seja adequada a garantir uma repartição mais precisa do que a baseada no volume de negócios. [§] O que sucedia naquele caso específico porque havia uma afetação real e significativa dos custos gerais a operações que conferiam o direito à dedução (§ 57). Porque esses custos eram efetuados tendo em vista a disponibilização de veículos (§ 44) e eram, apesar disso, imputados aos próprios custos de financiamento, em vez de serem imputados ao valor inicial do veículo aquando da sua entrega (§ 13). Em lado algum se conclui que, no caso dos autos, também havia uma afetação significativa dos custos gerais à disponibilização dos veículos, até porque o Tribunal Arbitral se absteve de indagar e analisar concretamente o sistema de negócio montando pelo sujeito passivo”.

Da mesma sorte, não procede a alegação de que “a solução preconizada pelo Ofício-Circulado n.º 30108, para além de constituir um paradoxo, não tem fundamento legal face ao disposto nos n.os 1 a 5 do artigo 23.º do Código do IVA”. Trata-se de uma argumentação também já afastada pelo STA, que reconduz tal solução a uma expressão do método da afetação real, considerando que não existe apenas uma forma de proceder à afetação de bens ou de serviços e que a lei permite o ajustamento do “sistema de dedução às especificidades da atividade prosseguida pelo sujeito passivo”, dando à AT a possibilidade de impor condições especiais que permitam o “afinamento” do método de dedução,  (Ac. STA de 20 de janeiro de 2021, supra referido).

Tão pouco poderá considerar-se que a aplicação desse critério resulte prejudicada pela impossibilidade de “identificar critérios objectivos que com um mínimo de rigor e segurança conduzam a uma correcta concretização da mencionada afectação ou utilização efectiva”. Contrariamente ao alegado pela Requerente, e como se refere na decisão arbitral tirada no processo n.º 128/2021-T, de 30 de novembro de 2021, “o critério em análise é um critério de natureza objetiva embora aproximativo, característica que é, aliás, comum aos outros critérios objetivos comummente aceites e aplicados no método da afetação real, como o número de pessoas afetas às atividades, o número de horas homem incorridas, ou os metros quadrados ocupados, entre outros. Todos estes critérios, apesar de objetivos, não podem deixar de ser encarados como aproximativos da realidade e não como um espelho rigoroso. [§] Uma exigência de rigor milimétrico representaria a impossibilidade de aplicar a afetação real, pois nenhum dos referidos critérios garante a exata medida de consumo dos recursos por cada uma das atividades/operações, com e sem direito à dedução, e traduziria uma interpretação de um rigor formalista incompatível com o princípio da neutralidade do imposto. A pretexto de um alegado incumprimento de requisitos dificilmente alcançáveis, viabilizaria a dedução de imposto em montante consideravelmente superior ao que corresponde ao consumo (aproximado) dos bens e serviços pelas operações que conferem direito à dedução, transformando imposto não dedutível em imposto efetivamente deduzido pelo sujeito passivo (ou vice-versa)”. Este entendimento, que aqui se reitera, é também consonante com a jurisprudência do STA onde se aceita que “a validade do método da Administração Tributária não depende do facto de ser ajustável totalmente à atividade do sujeito passivo (o que, de qualquer modo, teria que ser analisado em concreto); depende, tão só, do facto de ser o mais ajustado”, o que considera acontecer “neste tipo de atividade se a utilização de bens ou serviços de utilização mista, como edifícios, consumo de eletricidade ou certos serviços transversais, for sobretudo determinada pelo financiamento e gestão dos contratos” (cf. o mencionado Acórdão do STA de 20 de janeiro de 2021).

            Face ao exposto, tal como decorre da jurisprudência comunitária e vem sendo reiterado nas decisões do STA, haverá que apurar se nas operações de locação financeira automóvel, que podem implicar a utilização de certos bens ou serviços de utilização mista, essa utilização é sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação ou pela disponibilização dos veículos, o que não deixa de ser reconhecido pela Requerente quando alega que no caso dos autos se está “perante uma situação em que uma parte significativa dos gastos tem relação directa e imediata com a disponibilização das viaturas ou equipamentos de leasing”.

            No caso concreto, a Requerente determinou o valor do IVA a deduzir “tendo em consideração as orientações genéricas emanadas pela AT”, procedendo ao “cálculo de um coeficiente de imputação específico definitivo do ano 2018, em estrita consonância com o preceituado no ponto 9 do Ofício-circulado n.º 30108, de 30 de Janeiro de 2009”, não estando aqui em causa a questão de saber se a tal estava obrigada pelo referido instrumento administrativo.

            Pretendendo ver alterada a percentagem de dedução, recaía sobre si o ónus da prova dos factos constitutivos do direito à dedução do imposto (artigo 74.º, n.º 1, da LGT), competindo-lhe demonstrar, face à realidade que vertera na sua declaração de autoliquidação de IVA, a verificação dos factos que determinam o aumento da percentagem do imposto dedutível de 3% para 9%. Ou seja: a demonstração de que a utilização de bens ou serviços mistos não foi sobretudo determinada pela gestão e financiamento dos contratos de locação financeira, mas pela disponibilização das viaturas.

            No entanto, a Requerente, suportando-se na decisão arbitral tirada no processo n.º 780/2019-T, de 23 de abril, sustenta que «(...) a jusante do ónus da prova que incide sobre o contribuinte quanto aos factos que constituem o fundamento do seu direito à dedução, e a montante do ónus da prova que igualmente assiste àquele de demonstrar que o método da afetação real com “condições especiais” imposto pela AT não é adequado a evitar, ou agrava, as “distorções na concorrência”, situa-se o ónus da prova daquela de que, no caso, “a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza a distorções significativas na tributação”». Porém, também esta posição já foi posta de lado nos Acórdãos do STA de 20 de janeiro de 2021, já citado, e de 23 de março de 2022, tirado no processo n.º 066/21, onde se considera que «cabe ao sujeito passivo “alegar e demonstrar que, no seu caso concreto, a utilização de bens ou serviços mistos não é sobretudo determinada pela gestão e financiamento dos contratos” – cfr. Acórdão do Pleno de 20 de janeiro de 2021. Proc. n.º 0101/19.1BALSB -, sendo este o único ónus da prova que reconhece impor-se no caso dos autos, e mais nenhum outro». O que se compreende, visto que no caso concreto é o próprio sujeito passivo que pretende alterar o valor da dedução do IVA face ao valor também por si declarado. Destarte, considerando que a determinação inicial do imposto que apurou se encontrava viciada, caber-lhe-ia, tout court, fazer a prova dos factos constitutivos do seu direito.

            Ora, a prova produzida não permitiu determinar minimamente qualquer quantificação relativa aos recursos de utilização mista que são utilizados em cada uma das atividades desenvolvidas no âmbito dos contratos de locação financeira, nem se logrou comprovar que o consumo de recursos gerais da Requerente é aí primordialmente determinado pela disponibilização da viatura face aos gastos relacionados com a gestão do contrato de locação financeira.

            Consequentemente, não procede a pretensão da Requerente.

 

            5.2.3. Questões de inconstitucionalidade

A Requerente considera que o Ofício-Circulado n.º 30108 viola o artigo 103.º, n.º 2, da Constituição, por estabelecer uma imposição inovadora no domínio da incidência, face ao disposto nos n.os 1 a 5 do artigo 23.º do Código do IVA.

            Resulta do exposto que este Tribunal Arbitral não fez aplicação da dimensão normativa apodada de inconstitucional, nem decorre da posição assumida o reconhecimento de que o critério constante do instrumento administrativo tenha força jurídica suscetível de o converter em norma de aplicação geral e abstrata e de aplicação incondicional, pelo que, não tendo o critério sido aplicado como ratio decidendi na dimensão controvertida, o conhecimento do mérito da questão de constitucionalidade redundaria num puro exercício académico, o que está vedado a este tribunal.

            Por outro lado, considera-se manifestamente improcedente a alegação de violação do artigo 1.º do Protocolo adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem (“CEDH”) na parte em que dispõe que "qualquer pessoa singular ou colectiva tem direito ao respeito dos seus bens. Ninguém pode ser privado do que é sua propriedade a não ser por utilidade pública e nas condições previstas pela lei e pelos princípios gerais do direito internacional". O juízo da Requerente funda-se na existência de imposto entregue em excesso e de valor desproporcional. Porém, não se concluiu pela existência de tal pressuposto, o que leva à improcedência de tal alegação.

 

6. Pedido de Reenvio prejudicial

            A título subsidiário, a Requerente solicita, “na medida em que não seja claro para o presente Tribunal o alcance das normas da Diretiva IVA que possam, em seu juízo, interferir com a boa solução deste caso”, que se promova o reenvio prejudicial “relativamente à consideração do valor das amortizações financeiras relativas aos contratos de locação financeira do cálculo da percentagem de dedução aplicada ao IVA incorrido nos recursos de utilização mista”.

            Como se deixou explicitado, a questão fundamental discutida nos autos e que constitui ratio decidendi do juízo supra firmado foi já clarificada pelo próprio TJUE no caso “Banco Mais”, atrás referido, e encontra-se também consolidada na jurisprudência do STA, que por diversas vezes se vem pronunciando sobre a matéria, a questão de interpretação das pertinentes normas do direito europeu.

            Por estes motivos, considera-se desnecessário o reenvio prejudicial, indeferindo-se o requerido.

 

            7. Juros indemnizatórios

            Face à decisão de improcedência do pedido arbitral, improcede também, consequentemente, o pedido de condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios.

 

III. Decisão

           

8. Decisão

Face ao exposto, acordam os árbitros em:

  1. Julgar improcedente o pedido de anulação parcial da autoliquidação de IVA respeitante a dezembro de 2018, no montante de €972.862,84, mantendo na ordem jurídica a decisão de indeferimento do recurso hierárquico;
  2. Indeferir o pedido de reenvio prejudicial;
  3. Julgar improcedente o pedido de juros indemnizatórios;
  4. Condenar a Requerente nas custas do processo, nos termos infra determinados.

 

9. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 972.862,84.

 

10. Custas

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 13.464,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente por ter sido total o seu decaimento.

 

 

2 de novembro de 2022

 

Os Árbitros

 

Rui Duarte Morais

 

João Pedro Rodrigues (Relator)

 

 

Júlio Tormenta

 

 

 



[1] Disponível em www.dgsi.pt. Consulta em [30.10.2022].