Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 364/2022-T
Data da decisão: 2022-10-10  Selo  
Valor do pedido: € 85.500,00
Tema: Imposto do Selo. Isenção. Prestação de garantia em processo de insolvência. Interpretação da lei.
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Decisão Arbitral

 

 

         Os árbitros Cons. Jorge Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Dr. David Nunes Fernandes e Dr. João Marques Pinto (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 24-08-2022, acordam no seguinte:

 

        

         1. Relatório

 

A..., UNIPESSOAL, LDA, contribuinte fiscal n.º..., com sede na ..., n.º ..., ..., sala ..., freguesia de ..., ...-... Lisboa (em diante abreviadamente designada de “Requerente”), apresentou pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”), tendo em vista a anulação do indeferimento tácito da reclamação graciosa apresentada (acto imediato do presente pedido arbitral) e da liquidação de Imposto do Selo n.º... .

A Requerente pede ainda a restituição da quantia de € 85.500,00, que pagou, acrescida de juros indemnizatórios.

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por “AT” ou simplesmente “Administração Tributária”).

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 14-06-2022.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 04-08-2022, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados das alíneas a) e) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 24-08-2022.

A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta, em que defendeu a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.

Por despacho de 03-10-2022, foi decidido dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e alegações.

O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado na alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º, e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT e é competente.

As partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades.

 

2. Matéria de facto

2.1. Factos provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

 

 

  1. A Requerente é uma sociedade comercial cujo objeto social consiste, na compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim, recuperação e manutenção de imóveis, arrendamento, promoção e gestão imobiliária, consultoria com os negócios imobiliários, projetos e avaliação imobiliária e construção civil, bem como a gestão e exploração de estabelecimentos / empreendimentos turísticos (documento n.º3 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
  2. No dia 31 de Outubro de 2016, foi proferida sentença declaratória da insolvência da B..., processo corria os seus termos na 1.ª Secção de Comércio - J5, da Instância Central do Tribunal de Comarca de Lisboa sob o n.º .../16...T8LSB, que transitou em julgado (documento n.º 4 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
  3. No dia 8 de Janeiro de 2019 realizou-se a reunião da Comissão de Credores constituída no âmbito do processo de insolvência da B... tendo sido discutidos e objeto de deliberação os termos e a modalidade de venda dos prédios devidamente identificados na Acta (verbas 5, 6, 7, 8, 9 e 10 do auto de apreensão) da titularidade da Insolvente (documento n.º 6 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
  4. No contexto da referida deliberação, o Presidente da Comissão de Credores sugeriu que, caso o vencedor fosse credor hipotecário, deveriam ser aceites outras garantias autónomas à primeira solicitação e não unicamente garantias bancárias, na medida em que o objetivo daquelas garantias é que “(...) o pagamento dos restantes 95% do preço [seja] efectivamente assegurado por uma entidade idónea, com comprovada solidez financeira, que proceda ao pagamento do remanescente do preço se isso for efectivamente necessário” (documento n.º 6);
  5. O Senhor Presidente da Comissão de Credores colocou ainda à consideração do Senhor Administrador de Insolvência e da Comissão de Credores a minuta de uma carta de conforto “(...) nos termos da qual: C... e a A..., Unipessoal, Lda. (sociedade portuguesa detida a 100% pela C...), se comprometem a pagar, à primeira solicitação, se e na medida do necessário, os remanescentes 9% do preço que a D..., S.A. (assumindo que será esta a proponente vencedora) venha a oferecer nos presentes autos pela aquisição dos E...” tendo aqueles manifestado a sua concordância com o texto da minuta e com a apresentação da carta de conforto, com exceção do representante da F... que decidiu abster-se (documento n.º 6);
  6. No dia 12 de Abril de 2019 foi publicado o anúncio de venda dos imóveis, na modalidade de propostas em carta fechada (documento n.º 7 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
  7. No dia 30 de Abril de 2019, a D..., S.A., contribuinte fiscal n.º ... apresentou a sua proposta de aquisição da totalidade dos bens que compõem o «Lote» nele identificado, composto pelos imóveis correspondentes aos indicados nas verbas 5 a 10 do Auto de Apreensão (LOTE) pelo valor global de quinze milhões de euros, “sendo que o referido montante visa a aquisição da globalidade dos imóveis que compõem o “LOTE” e que corresponde ao empreendimento “E...” (documento n.º 8 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
  8. No dia 30 de Abril de 2019, às 12h, o Senhor Administrador de Insolvência da B... procedeu à abertura de propostas em carta fechada, tendo apenas sido apresentada a proposta feita pela D..., no sentido de aquisição do Empreendimento E... pelo preço de € 15.000.000, a qual foi devidamente acompanhada de um cheque bancário no valor de € 750.000 (documento n.º 9 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
  9.  A referida proposta de aquisição foi confirmada e aceite pela maioria dos membros da Comissão de Credores, tendo ficado estabelecido, no auto de abertura de propostas, que a escritura pública seria outorgada “(...) em data a acordar entre o comprador e o Administrador Judicial, no mais curto espaço de tempo possível (documento n.º 9);
  10. No dia 23 de Outubro de 2019, a Requerente prestou, no contexto da liquidação da massa insolvente da B... e “(...) no âmbito do processo de Insolvência da B... (processo n.º .../16...T8LSB que se encontra pendente no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo de Comércio de Lisboa - J5”)”, uma carta de conforto / garantia autónoma à primeira solicitação para garantia de até 95% do preço de compra devido pela D... relativo à aquisição dos imóveis que compõem o Empreendimento E... (em diante abreviadamente designada de “Garantia”) (documento n.º 10 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
  11. De acordo com os termos da Garantia: “(v) (...) a D... apresentou uma proposta no montante global de 15.000.000,00 (“PREÇO”), para aquisição dos E..., no âmbito do PROCESSO DE INSOLVÊNCIA; (vi) Com a proposta, a D... entregou um cheque bancário no montante de 750.000,00, correspondente a 5% do Preço, o qual foi descontado pelo Administrador de Insolvência; (vii) O pagamento dos remanescentes 95% (ou qualquer montante inferior conforme determinado pelo tribunal de acordo com o ponto 2 abaixo desta carta de conforto) do PREÇO serão garantidos, solidariamente, pela C... e pela A..., de acordo com os termos e condições aqui estabelecidos (documento n.º 10);
  12. No dia 15 de Novembro de 2019, a Requerente autoliquidou o Imposto do Selo relativo à garantia prestada no contexto da liquidação da massa insolvente da B... (Declaração de Retenções na Fonte IRS / IRC e Imposto do Selo n.º ... apresentada em 15 de Novembro de 2019, por referência ao período de outubro de 2019), no valor  de € 85.500,00, que resulta da aplicação da taxa de Imposto do Selo constante da verba 10.3 da Tabela Geral do Imposto do Selo (0,6%) ao valor máximo garantido (95% do preço de aquisição do Empreendimento E... de € 15.000.000) = € 14.250.000*0,6% (documento n.º 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
  13. No dia 19 de Novembro de 2019, a Requerente pagou o Imposto do Selo autoliquidado (documento n.º 1 e acordo das Partes);
  14. Após a autoliquidação do imposto, a Requerente apresentou reclamação graciosa  necessária no dia 16 de Novembro de 2021 com vista a obter a anulação total da autoliquidação, por entender que beneficiava de isenção de imposto do selo (documento n.º 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido e processo administrativo);
  15. A reclamação graciosa não foi decidida até 13-06-2022, data em que a Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.

 

2.2. Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto

 

Não há factos relevantes para a decisão da causa que não se tenham provado.

Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos pela Requerente e afirmações por esta feitas que não são questionadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira.

Não há controvérsia sore a matéria de facto…

 

3. Matéria de direito

 

A questão que é objecto do presente processo é a de saber se a constituição de garantia pela Requerente beneficia da isenção de Imposto do Selo prevista na alínea g) do artigo 269.ºç do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).

 

3.1. Posições das Partes

 

A Requerente defende, em suma, que

– a garantia foi oi constituída no contexto da liquidação da massa insolvente, em benefício exclusivo desta;

– A isenção abrange qualquer ato que revista a forma de constituição ou prorrogação de uma garantia desde que prevista em plano de insolvência, de pagamentos ou de recuperação ou prestada no âmbito da liquidação da massa insolvente;

– da alínea g) do artigo 269.º do CIRE não é possível extrair qualquer outro requisito adicional para que a referida isenção de IS seja aplicada à constituição (ou prorrogação) da garantia, sendo, por conseguinte, irrelevante se a garantia é prestada por um credor ou terceiro a favor da insolvente ou pela insolvente a favor de um credor ou de um terceiro;

– não existe igual limitação no que diz respeito ao âmbito subjetivo, pelo que a conclusão inequívoca face à redação da norma é justamente a de que a delimitação de um escopo objetivo de incidência e o alargamento do campo subjetivo foi precisa e intencional;

– não cabe ao aplicador do direito e ao intérprete criar reservas ou limitações na lei para além daquilo que o legislador enunciou de forma expressa, precisa e intencional;

– a lei prevê, no mesmo diploma, outras isenções aplicáveis exclusivamente aos credores  ou a outros terceiros e fá-lo sempre expressamente (e.g. as isenções de IMT e de Imposto do Selo  aplicáveis na aquisição de imóveis estabelecidas no artigo 270.º do CIRE);

– da alínea a) do artigo 270.º do CIRE é possível extrair, com relevância para a interpretação do artigo 269.º, alínea g), do CIRE à luz do elemento sistemático, que, sempre que necessário, o legislador diferencia o alcance das normas quanto ao âmbito subjetivo e fá-lo de forma inequívoca e expressa;

– em parecer emitido pela Direcção Geral dos Impostos (“DGI”) em 16 de Julho de 2008, a DGI analisou a  referida alínea e) do artigo 269.º do CIRE e concluiu que as isenções em causa aplicam-se, porque a lei não diferencia, independentemente de quem seja o sujeito passivo do imposto: a entidade devedora, os seus credores ou alguns deles ou terceiros, desde que os actos estejam previstos em planos de insolvência ou de pagamentos ou sejam praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente;

– a aplicação de uma isenção de Imposto do Selo às garantias que estejam previstas em planos ou que devam ser prestadas no âmbito da liquidação da massa insolvente contribui sobremaneira para a retoma do normal funcionamento do mundo empresarial na medida em que elimina um ónus que, de outra forma, impenderia sobre os credores ou terceiros obrigados a prestar tal garantia nos termos legais;

– a concessão de uma isenção fiscal pelo legislador visa, acima de tudo, fomentar e até mesmo favorecer determinadas operações económicas em prol do normal funcionamento do mundo empresarial e do tráfego comercial, podendo ademais contribuir para a recuperação de empresas;

– este raciocínio é válido tanto para as situações em que o sujeito passivo é a empresa devedora que foi declarada insolvente ou a massa insolvente, mas, mais ainda quando o sujeito passivo é um credor ou um terceiro obrigado a prestar uma garantia a favor da insolvente ou da massa insolvente, justamente porque a isenção em Imposto do Selo aligeira os custos inerentes, designadamente, à aquisição de imóveis no contexto de processos de insolvência (maxime, por credores hipotecários que não raras vezes adquirem bens imóveis de valor já largamente inferior ao valor dos créditos detidos e reconhecidos no contexto do processo de insolvência);

– seria, no mínimo, incoerente que um diploma que prevê a reestruturação e recuperação das empresas concedesse um benefício fiscal sem ter em vista a referida finalidade de maximização da satisfação dos credores através da minimização dos prejuízos que a insolvência do devedor necessariamente acarreta aos agentes económicos que com ele se relacionam (maxime, dos credores);

– a alínea g) ao artigo 269.º do CIRE, foi aditada pela Lei do Orçamento do Estado para 2018 e terá surgido no contexto da discussão em torno da questão de saber se a prestação de garantias de qualquer tipo no contexto de processos de insolvência deveria ou não ser tributada em Imposto do Selo.

 

 

A Autoridade Tributária e Aduaneira defende, em suma, o seguinte:

– funcionando o processo especial de revitalização (PER) como um processo pré-insolvencial (no sentido de preventivo de uma potencial insolvência), onde os credores acabam por sacrificar os seus direitos para viabilizarem aquele, levou o legislador a prever expressamente no artigo 17.º-H do CIRE que as garantias convencionadas entre a empresa e os seus credores durante o processo especial de revitalização, com a finalidade de proporcionar àquela os necessários meios financeiros para o desenvolvimento da sua atividade, mantêm-se mesmo que, findo o processo, venha a ser declarada, no prazo de dois anos, a sua insolvência;

– existindo esta preocupação expressa para com a proteção dos credores seria de todo compreensível e espetável que as garantias prestadas pelo devedor nestas circunstâncias não fossem elas mesmas oneradas com a liquidação do imposto do selo da respectiva verba da TGIS, apenas se podendo estranhar a demora no aditamento da nova alínea no artigo 269.º;

– não resulta em momento algum do diploma em apreço que o legislador quisesse alargar a previsão do preceito a outras garantias para além daquelas prestadas pela empresa insolvente a favor de credores ou terceiros e que se encontram previstas no âmbito do processo especial de revitalização (PER) e no plano de insolvência (excetuam-se, naturalmente, as garantias previstas no n.º 1 do artigo 222-º-H);

– a Estrutura de Missão para a Capitalização de Empresas (EMCE),  criada no decurso da Resolução do Conselho de Ministros n.º 100/2015, e invocada na Resolução do Conselho de Ministros n.º 81/2017, foi criada com (i) o propósito de propor o desenvolvimento das linhas orientadoras fixadas pelo Governo com vista à redução do (i) elevado nível de endividamento e a melhoria de condições para o investimento das empresas, nomeadamente através da eliminação ou mitigação dos constrangimentos com que estas atualmente se deparam no acesso ao financiamento por capitais próprios ou alheios e ii) a identificação das iniciativas a prosseguir;

– em Junho de 2016 foi apresentado ao Governo um relatório no qual se identificava um conjunto de 131 medidas enquadradas em cinco eixos estratégicos de intervenção: Simplificação Administrativa e Enquadramento Sistémico, Fiscalidade, Reestruturação Empresarial, Alavancagem de Financiamento e Investimento e, por último, Dinamização do Mercado de Capitais. O aditamento ao artigo 269.º do CIRE da alínea g) acabaria por ser uma das medidas legislativas adotadas na sequência desse trabalho, e tem, nas palavras da própria EMCE, o objetivo de “isentar ou reduzir o Imposto do Selo sobre a utilização de crédito ou prestação de garantias POR EMPRESAS EM PROCESSO DE REESTRUTURAÇÃO”.

 

 

3.2. Apreciação da questão

 

O artigo 269.º, na redacção resultante da Lei n.º 114/2017, de 29 de Dezembro (vigente à data da autoliquidação), estabelece o seguinte:

 

Artigo 269.º

Benefício relativo ao imposto do selo

 

Estão isentos de imposto do selo, quando a ele se encontrem sujeitos, os seguintes atos, desde que previstos em planos de insolvência, de pagamentos ou de recuperação ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente:

a) As modificações dos prazos de vencimento ou das taxas de juro dos créditos sobre a insolvência;

b) (Revogada.)

c) A constituição de nova sociedade ou sociedades;

d) A dação em cumprimento de bens da empresa e a cessão de bens aos credores;

e) A realização de operações de financiamento, o trespasse ou a cessão da exploração de estabelecimentos da empresa, a constituição de sociedades e a transferência de estabelecimentos comerciais, a venda, permuta ou cessão de elementos do activo da empresa, bem como a locação de bens;

f) A emissão de letras ou livranças.

g) A constituição ou prorrogação de garantias.

 

Como refere a Requerente, não se divisa no texto deste artigo qualquer elemento de natureza subjectiva relativo ao beneficiário da isenção.

Na verdade, em termos literais, como ressalta dos pontos sublinhados, os Requerentes desta isenção

– que os actos, neste caso de constituição ou prorrogação de garantias, esteja sujeito a Imposto do Selo («... quando a ele se encontrem sujeitos ...»;

– que os actos estejam «previstos em planos de insolvência, de pagamentos ou de recuperação ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente» (...desde que ...»

 

Assim, é inquestionável que a letra desta norma não prevê qualquer requisito de natureza subjectiva fixando como condições da isenção apenas a sujeição a Imposto do Selo e a previsão do acto em planos dos tipos referidos ou a sua prática no âmbito de liquidação da massa insolvente.

Na falta de outros elementos que induzam à eleição do sentido menos imediato do texto, o intérprete deve optar em princípio por aquele sentido que melhor e mais imediatamente  corresponde ao significado natural das expressões verbais  utilizadas, na pressuposição (imposta pelo n.º 3 do artigo 9.º do  Código Civil, que vale até que se demonstre que não é correcta) de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados ( [1] )

É certo que as palavras comportam ou podem comportar diversos pensamentos, situação em que se deve optar pelo «entendimento natural imediato,  espontâneo dos dizeres legais», «salvo se os  demais factores da interpretação muito resolutamente aconselharem ou  impuserem outra solução». ( [2] )

E também é certo que, cumprindo «ao intérprete presumir, nos termos do n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil, que o legislador quis sempre as soluções mais acertadas», «se a  aplicação concreta da norma a determinado tipo de situações cobertas pelo  seu texto repugnar visivelmente aos critérios de justiça do sistema ou às  simples regras do bom senso, o intérprete não deve hesitar em recusar  categoricamente a aplicação literal da norma». ( [3] )

Mas, no caso em apreço, nem sequer há qualquer palavra no texto do artigo 269.º do CIRE que suscite diversos entendimentos quanto à natureza do beneficiário da isenção, pois nenhuma alude ao tipo de agente que constitui a garantia.

  Por isso, desde logo por a lei não conter qualquer elemento literal que permita ser interpretado como limitando a isenção aos actos praticados pelo insolvente, não pode aquela norma ser interpretada como restringindo a isenção aos actos praticados por aquele e afastando do seu âmbito os actos de constituição de garantias praticados por terceiros, pois  esta interpretação não encontra na letra da o «mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso», que é imposto pelo n.º 2 do artigo 9.º do Código Civil como limite à actividade interpretativa.

Por outro lado, a interpretação que resulta do teor literal não se afigura «repugnar visivelmente aos critérios de justiça do sistema ou às  simples regras do bom senso», pois, pelo contrário, facilitando a prática dos actos necessários à liquidação da massa insolvente, concilia-se perfeitamente com os objectivos do processo de insolvência de incrementar «a venda rápida dos bens que integram a massa insolvente por óbvias razões de interesse dos credores, mas, também do interesse público de retoma do normal funcionamento do mundo empresarial em que cada processo de insolvência se apresenta como elemento perturbador».

A «preocupação expressa para com a proteção dos credores» a que alude a Autoridade Tributária e Aduaneira como justificação para a isenção de Imposto do Selo relativamente a garantias prestadas pelo devedor, vale da mesma forma em relação às prestadas por terceiros, que visam a mesma protecção.

Por isso, não cessando a razão de ser da isenção quando a garantia  é  constituída por terceiro no âmbito da liquidação da massa insolvente, não há fundamento para a interpretação restritiva aventada pela Autoridade Tributária e Aduaneira. A interpretação restritiva só se justifica quando há necessidade de compatibilizar o texto legal com a sua razão de ser. ( [4] )

Para além disso, como é jurisprudência pacífica, as normas sobre benefícios fiscais devem ser interpretadas em termos estritos, o que, se é certo que não afasta a necessidade de interpretação, designadamente teleológica, não viabiliza a exigência de requisitos para que não há qualquer suporte textual.

Pelo exposto, conclui-se que é correcta a interpretação da alínea g) do artigo 269.º do CIRE que faz a Requerente.

Assim, tendo a constituição de garantia sido efectuada no âmbito de liquidação da massa insolvente, é aplicável esta isenção.

Consequentemente, a autoliquidação enferma de vício de violação de lei, por erro de interpretação da alínea g) do artigo 269.º do CIRE, que justifica a sua anulação, de harmonia com o disposto no artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.

O indeferimento tácito da reclamação graciosa, que manteve a autoliquidação, enferma do mesmo vício.

 

  4. Pedido de reembolso das quantias pagas e juros indemnizatórios.

 

A Requerente pagou a quantia autoliquidada, que é de € 85.500,00, e pede o reembolso, acrescido de juros indemnizatórios.

Na sequência da anulação da autoliquidação e do indeferimento tácito da reclamação graciosa, a Requerente tem direito a ser reembolsada da quantia de € 85.500,00, o que é consequência da anulação.

No que concerne a juros indemnizatórios, de harmonia com o disposto na alínea b) do art. 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, «restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito», o que está em sintonia com o preceituado no art. 100.º da LGT [aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do art. 29.º do RJAT] que estabelece, que «a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.».

Embora o art. 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão «declaração de ilegalidade» para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que, em processo de impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira directriz, que «o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária».

O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de actos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do art. 43.º, n.º 1, da LGT, em que se estabelece que «são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido» e do art. 61.º, n.º 4 do CPPT (na redacção dada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, a que corresponde o n.º 2 na redacção inicial), que «se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea».

Assim, o n.º 5 do art. 24.º do RJAT, ao dizer que «é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário», deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.

         O regime substantivo do direito a juros indemnizatórios é regulado no artigo 43.º da LGT, que estabelece, no que aqui interessa, o seguinte:

 

Artigo 43.º

 Pagamento indevido da prestação tributária

 

1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

2 – Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar da liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.

3. São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias:

a) Quando não seja cumprido o prazo legal de restituição oficiosa dos tributos;

b) Em caso de anulação do acto tributário por iniciativa da administração tributária, a partir do 30.º dia posterior à decisão, sem que tenha sido processada a nota de crédito;

c) Quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.

d) Em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução.

 

4. A taxa dos juros indemnizatórios é igual à taxa dos juros compensatórios.

5. No período que decorre entre a data do termo do prazo de execução espontânea de decisão judicial transitada em julgado e a data da emissão da nota de crédito, relativamente ao imposto que deveria ter sido restituído por decisão judicial transitada em julgado, são devidos juros de mora a uma taxa equivalente ao dobro da taxa dos juros de mora definida na lei geral para as dívidas ao Estado e outras entidades públicas.

 

A ilegalidade do indeferimento tácito da reclamação graciosa é imputável à Administração Tributária, pois omitiu a sua decisão no sentido favorável à Requerente.

No entanto, o erro que afecta a autoliquidação (efectuada sob a designação de retenção na fonte) é imputável à Requerente, que a efectuou por sua iniciativa.

Por isso, quanto à autoliquidação não ocorreu erro imputável aos serviços, não havendo, consequentemente direito a juros indemnizatórios derivado da sua prática.

No entanto, o mesmo não sucede com a decisão da reclamação graciosa, pois deveria ter sido deferida a pretensão da Requerente.

Esta situação de a Autoridade Tributária e Aduaneira manter uma situação de ilegalidade, quando devia repô-la deverá ser enquadrada, por mera interpretação declarativa, no n.º 1 do artigo 43.º da LGT, pois trata-se de uma situação em que há nexo de causalidade adequada entre um erro imputável aos serviços e a manutenção de um pagamento indevido e a omissão de reposição da legalidade quando se deveria praticar a acção que a reporia deve ser equiparada à acção. ( [5] )

No caso em apreço, a reclamação graciosa foi apresentada em 16-11-2021 e o indeferimento tácito formou-se em indeferida em 16-03-2021, termo do prazo legal previsto no n.º 1 do artigo 57.º da LGT, pelo que a partir desta data, começam a contar-se juros indemnizatórios.

Os juros indemnizatórios são devidos, nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 1 e 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, 61.º, n.º 5, do CPPT, 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril, à taxa legal supletiva, e contados desde 17-03-2022 até à data do processamento da respectiva nota de crédito.

        

            5. Decisão     

 

            De harmonia com o exposto acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

  1. Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral;
  2. Anular a autoliquidação de Imposto do Selo subjacente à declaração de retenções na fonte n.º...;
  3. Anular o indeferimento tácito da reclamação graciosa deduzida conta aquela autoliquidação;
  4. Julgar procedente o pedido de reembolso da quantia de € 85,500,00 e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagá-la à Requerente;
  5. Julgar procedente o pedido de juros indemnizatórios, nos termos referidos no ponto 4 deste acórdão, e condenar a Administração Tributária a pagá-los à Requerente.

 

6. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto nos artigos 296.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 85.500,00, indicado pela Requerente e sem oposição da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

7. Custas

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 2.754,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira na percentagem.

 

Lisboa, 10-10-2022

Os Árbitros

(Jorge Lopes de Sousa)

(Relator)

(David Nunes Fernandes)

(João Marques Pinto)

 

 



[1] Neste sentido, BAPTISTA MACHADO, Introdução ao direito e ao discurso legitimador, página 182.              

[2] MANUEL DE ANDRADE, Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis, página 30.

[3] ANTUNES VARELA, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 131.º, n.º 3886, página 3.

[4] BAPTISTA MACHADO, Introdução ao direito e ao discurso legitimador, página 186: «O argumento em que  assenta este tipo de interpretação costuma ser assim expresso: cessante  ratione legis cessat eius dispositio (lá onde termina a razão de ser da  lei termina o seu alcance).

[5]             ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, 10.ª edição, página 528:

«A omissão, como pura atitude negativa, não pode gerar física ou materialmente o dano sofrido pelo lesado; mas entende-se que a omis­são é causa do dano, sempre que haja o dever jurídico especial de praticar um acto que, seguramente ou muito provavelmente, teria impedido a consumação desse dano».