Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 378/2022-T
Data da decisão: 2022-10-11  IRS  
Valor do pedido: € 2.111,50
Tema: Inutilidade superveniente da lide – anulação administrativa de liquidação de IRS.
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SUMÁRIO:

Se, após a constituição do Tribunal Arbitral, a Requerida anular administrativamente o ato de liquidação impugnado e reconhecer o direito dos Requerentes à restituição da quantia paga indevidamente e a juros indemnizatórios, satisfazendo integralmente o pedido dos Requerentes, encontram-se verificados os pressupostos da inutilidade superveniente da lide e consequente extinção da instância.

 

DECISÃO ARBITRAL

           

  1. Relatório
  1. A..., titular do NIF..., e B..., titular do NIF ..., ambos residentes na Rua ..., n.º..., ..., ..., ...-...  Lisboa (doravante “Requerentes”), vieram, ao abrigo 10.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), requerer a constituição de Tribunal Arbitral.
  2. Os Requerentes pretendem a revogação da decisão de indeferimento de Reclamação Graciosa n.º ...2021..., que teve por objeto o ato de liquidação de IRS n.º 2021..., referente ao ano de 2020, no valor a pagar de € 2.111,50, bem como a anulação deste ato de liquidação e a sua substituição por outro em que os Requerentes sejam reembolsados do montante pago, acrescido de juros até à data da efetiva devolução.
  3. Os Requerentes invocam, para tanto, a desconsideração, por parte da AT, dos “prejuízos de natureza predial dos anos de 2019 e 2020, com o fundamento que os rendimentos prediais não foram englobados mas sim taxados à taxa autónoma de 28%”, o que se traduziu numa errónea quantificação dos rendimentos dos Requerentes para efeitos de IRS de 2020.
  4. É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT” ou “Requerida”).
  5. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD em 22-06-2022 e seguiu a sua normal tramitação, nomeadamente com a notificação à AT, em 28-06-2022.
  6. De acordo com os artigos 5.º, n.º 2, 6.º, n.º 1, e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Conselho Deontológico do CAAD designou o signatário como árbitro do Tribunal Arbitral Singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
  7. Em 10-08-2022, foram as partes notificadas dessa designação, não tendo oposto recusa, nos termos conjugados dos artigos 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) e 8.º do RJAT, 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
  8. O Tribunal Arbitral foi constituído em 31-08-2022, conforme comunicação do Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, ao abrigo do artigo 11.º, n.º 1, alínea c) do RJAT.
  9. Após notificação da Requerida para apresentar resposta, a mesma veio informar os autos, em 16-09-2022, de que a “liquidação objeto do pedido foi revogada”, juntando cópia da Informação da DSIRS na qual foi exarado o despacho “revogatório”, da Senhora Subdiretora-Geral para a área da Gestão Tributária-IR, datado de 13-09-2022.
  10. No requerimento apresentado, a Requerida expressa o entendimento de que se lhe afigura existir inutilidade superveniente da lide, decorrente da mencionada “revogação” do ato objeto do pedido de pronúncia arbitral.
  11. Em 19-09-2022, este Tribunal proferiu Despacho arbitral através do qual determinou a notificação dos Requerentes para, no prazo de 10 dias, querendo, se pronunciarem sobre o mencionado requerimento apresentado pela Requerida e a eventual inutilidade superveniente da lide.
  12. Os Requerentes não se pronunciaram.
  13. Em 03/10/2022, a Requerida apresentou a sua Resposta, na qual sustenta que o PPA deixou de ter objeto, em virtude da “revogação” da liquidação objeto dos autos, “com todas as consequências legais daí advenientes”, incluindo o reconhecimento, constante da Informação que sustentou o despacho “revogatório”, do direito dos Requerentes à restituição do valor pago em excesso, bem como do direito aos juros indemnizatórios, pelo que, entende a Requerida, ter ficado satisfeita a pretensão dos Requerentes, e, consequentemente, deve ser declarada extinta a instância por impossibilidade da lide.
  14. Em 06/10/2022, este Tribunal proferiu Despacho determinando a dispensa da realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e a dispensa da produção de alegações.

 

  1. Saneamento
  1. O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, atenta a conformação do objeto do processo (cfr. artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 5.º do RJAT).
  2. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT.
  3. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas.

 

  1. Fundamentação

 

III.1. Matéria de Facto

§1.  Factos provados

  1. Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos, que se dão como provados:
  1. Os Requerentes são casados e são proprietários dos imóveis a que se referem os Anexos F das Declarações Modelo 3 respeitantes aos anos de 2019 e 2020;
  2. No ano 2019, os Requerentes realizaram obras de conservação e manutenção na Fração G, freguesia..., tipo U, artigo ..., cujo valor, adicionado às despesas de condomínio e ao IMI, ascendeu a € 71.848,62;
  3. Os Requerentes submeteram a declaração de IRS relativa ao ano 2019, tendo preenchido o anexo F, com rendimentos prediais no montante de € 42.266,00, e despesas no montante de € 71.848,62;
  4. Os Requerentes, nas declarações de IRS de 2019 e 2020, não optaram pelo englobamento dos rendimentos prediais;
  5. A Requerida tributou os rendimentos prediais aplicando a taxa especial de 28%, prevista no artigo 72.º do CIRS;
  6. Na liquidação de IRS do ano 2020 a Requerida não deduziu aos rendimentos prediais (categoria F) desse ano, as perdas apuradas, na mesma categoria de rendimentos, no ano 2019;
  7. A liquidação de IRS do ano 2020 determinou um imposto a pagar no montante de € 2.111,50;
  8. Os Requerentes procederam ao pagamento integral do imposto constante do ato de liquidação do IRS do ano 2020;
  9. Em 29-12-2021, os Requerentes apresentaram reclamação graciosa contra a liquidação de IRS n.º 2021..., referente ao ano de 2020, no valor a pagar de € 2.111,50;
  10.  Em 11-04-2022, foram os Requerentes notificados do indeferimento da reclamação graciosa, através de Despacho de 29-03-2022, do Chefe de Serviço de Finanças, ao abrigo de delegação de competências, com os fundamentos constantes da informação dos Serviços de Finanças de Lisboa ..., cuja teor se dá por integralmente reproduzido;
  11. Em 20-06-2022, os Requerentes apresentaram, junto do CAAD, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral;
  12. Em 31-08-2022, ficou constituído o Tribunal Arbitral;
  13. Em 16-09-2022, a Requerida veio informar os autos de que a “liquidação objeto do pedido foi revogada”, juntando cópia da Informação da DSIRS na qual foi exarado o despacho “revogatório”, da Senhora Subdiretora-Geral para a área da Gestão Tributária-IR, datado de 13-09-2022, com os fundamentos e nos termos constantes da informação n.º 365/2022, de 29-07-2022, elaborada pelos Serviços da AT, no âmbito do processo n.º ...2022..., a qual se dá por integralmente reproduzida, na qual se refere, designadamente, que «… os Requerentes suportaram uma prestação tributária superior à legalmente devida, decorrente de erro nos pressupostos (regime legal aplicável) considerados pela AT, pelo que se entende serem devidos juros indemnizatórios em relação à parte da prestação tributária indevidamente cobrada», e na qual se conclui que «[a]pós apreciação do pedido de pronúncia arbitral, atendo à alteração do entendimento da AT, afigura-se-nos que deve ser revogada a decisão de indeferimento da reclamação graciosa e, em consequência, alterada a liquidação objeto do pedido».

 

§2. Factos não provados

  1. Com relevo para a decisão, não existem factos essenciais não provados.

 

§3. Motivação quanto à matéria de facto

  1. Cabe ao Tribunal selecionar os factos relevantes para a decisão e discriminar a matéria provada e não provada [artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT].
  2. Os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito (cfr. artigo 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT].
  3. Consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo por base a prova documental junta aos autos, e considerando as posições assumidas pelas partes, e não contestadas, à luz do artigo 110.º, n.º 7, do CPPT.

 

 

 

III.2. MATÉRIA DE DIREITO

 

§1. Inutilidade superveniente da lide quanto aos pedidos de anulação

  1. O n.º 1 do artigo 13.º do RJAT prevê o seguinte:

Nos pedidos de pronúncia arbitral que tenham por objeto a apreciação da legalidade dos atos tributários previstos no artigo 2.º, o dirigente máximo do serviço da administração tributária pode, no prazo de 30 dias a contar do conhecimento do pedido de constituição do tribunal arbitral, proceder à revogação, ratificação, reforma ou conversão do ato tributário cuja ilegalidade foi suscitada, praticando, quando necessário, ato tributário substitutivo, devendo notificar o presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) da sua decisão, iniciando-se então a contagem do prazo referido na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º”.

 

  1. À luz da terminologia do atual Código do Procedimento Administrativo (CPA), a destruição de atos com fundamento em invalidade não configura uma “revogação”, mas sim uma “anulação administrativa”, conforme resulta do artigo 165.º do CPA, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea d) do RJAT:

 

Artigo 165.º

Revogação e anulação administrativas

            1 - A revogação é o ato administrativo que determina a cessação dos efeitos de outro ato, por razões de mérito, conveniência ou oportunidade.

            2 - A anulação administrativa é o ato administrativo que determina a destruição dos efeitos de outro ato, com fundamento em invalidade.”

 

  1. A anulação administrativa produz efeitos retroativos, nos termos do artigo 163.º, n.º 2, do CPA.
  2. Findo o prazo definido no n.º 1 do artigo 13.º do RJAT, a AT fica impossibilitada de praticar novo ato tributário relativamente ao mesmo sujeito passivo ou obrigado tributário, imposto e período de tributação, a não ser com fundamento em factos novos (n.º 3 do artigo 13.º do RJAT).
  3. No caso sub judice, o ato tributário que constitui o objeto principal do litígio – liquidação de IRS referente a 2020 – foi objeto de anulação administrativa pela Requerida em momento posterior à constituição deste Tribunal, como se pode constatar da matéria de facto fixada.
  4. Está, assim, satisfeita a pretensão formulada pela Requerente quanto à anulação do ato de liquidação de IRS, bem como quanto à anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, pois não pode ser praticado novo ato, e à restituição do valor pago indevidamente, acrescido de juros indemnizatórios, o que gera a inutilidade superveniente da lide.
  5. Conforme referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou encontra satisfação fora do esquema da proveniência pretendida. Num e noutro caso, a proveniência deixa de interessar – além, por impossibilidade de atingir o resultado visado; aqui, por ele ter sido atingido por outros meios” (Código de Processo Civil Anotado, vol. 1º, Almedina, Coimbra, 4ª edição, reimpressão 2021, página 561).
  6. A inutilidade superveniente da lide configura uma exceção dilatória, a qual é causa de extinção da instância e implica a absolvição da Requerida da instância, nos termos dos artigos 277.º, alínea e), e 278.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

  1.  Decisão

Termos em que decide este Tribunal Arbitral declarar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, e absolver a Requerida da instância.

 

  1. Valor do processo

Fixa-se ao processo o valor de € 2.111,50, de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 306.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, este último ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

  1. Custas

O n.º 4 do artigo 22.º do RJAT determina que “[d]a decisão arbitral proferida pelo tribunal arbitral consta a fixação do montante e a repartição pelas partes das custas directamente resultantes do processo arbitral, quando o tribunal tenha sido constituído nos termos previstos no n.º 1 e na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º”.

No caso em apreço, a causa de extinção da instância quanto aos pedidos de anulação é imputável à Requerida, pois o ato de anulação administrativa é posterior à data de constituição do Tribunal Arbitral.

O n.º 1 do artigo 527.º do Código de Processo Civil estabelece que «[a] decisão […] condena em custas a parte que a elas houver dado causa …».

No caso em apreço, a causa de extinção da instância é imputável à Requerida, pelo que, nos termos dos n.ºs 3 e 4 do artigo 536.º do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29º, n.º 1, alínea e) do RJAT, lhe é imputável a responsabilidade pelas custas do presente processo.

 

Assim, nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 612,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.

Notifique-se.

 

Lisboa, 11 de outubro de 2022

O árbitro,

Paulo Nogueira da Costa