Sumário:
Verifica-se a caducidade do direito à liquidação se a respetiva notificação não for validamente notificada ao contribuinte no prazo de 4 anos, não se provando a existência de qualquer causa de interrupção ou suspensão desse prazo.
Decisão arbitral
O árbitro singular Tomás Cantista Tavares, designado pelo CAAD para formar o Tribunal Arbitral singular, constituído em 3/6/2022, acorda no seguinte:
1. Relatório
A..., contribuinte..., com residência na ..., ..., ..., ...-... Lisboa (doravante A... ou Requerente), apresentou um pedido de constituição do tribunal arbitral singular, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n,º 1, al. a), 5.º, n.º 2, 6.º, n.º 1, todos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante AT), com vista à declaração de ilegalidade da liquidação de IRS e juros compensatórios do ano de 2017, no valor total de 23.784,50€ (liquidação adicional de IRS 2021 e juros 2021... [Id acerto contas] e demonstração de compensação 2021...).
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação, nomeadamente com a notificação à AT. O árbitro comunicou a sua aceitação no prazo aplicável. As partes não manifestaram vontade de recusar a sua designação.
O tribunal arbitral foi constituído em 3/6/2022. A AT não exerceu resposta, apesar da sua regular notificação – e enviou atempadamente o Processo Administrativo.
O Tribunal não efetuou a reunião do art. 18.º do RJAT, por inutilidade e prescindiu das alegações finais, por desnecessidade. Na livre condução do processo, as partes, por ação e omissão, introduziram os factos e argumentos jurídicos relevantes e necessários para a decisão – e o tribunal, como se referirá adiante, valora o seu comportamento nos termos do art. 19.º do RJAT (e, no mesmo sentido, o art. 110.º, n.º 6 e 7, do CPPT, ex vi art. 29.º, n.º 1, al. a), do RJAT).
O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, como se dispõe no art. 2.º, n.º 1, al. a) e 4.º, ambos do RJAT.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades e não há qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.
A requerente estriba a sua pretensão nos seguintes argumentos essenciais:
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Caducidade do direito à liquidação, nos termos do art. 45.º, n.º 1 e 2, da LGT;
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Vício formal de violação de lei, por ausência de notificação da requerente para o exercício do direito de audição prévia;
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Porque os rendimentos liquidados não dizem respeito à requerente, mas ao seu ex marido, que não é responsável pelos mesmos;
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Porque a falta de exercício de direitos por parte dos herdeiros do ex marido não pode ser imputável à requerente
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Vício de violação de lei e de fundamentação (insuficiência), por não se ter facultado à requerente as provas das alegadas incorreções fiscais do seu ex marido
2. Matéria de facto
2.1. Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos relevantes para a decisão:
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Entre 16/12/2014 e 11/9/2020, a requerente foi casada com B... (doravante B...), no regime de separação total de bens;
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Em 11/9/2020, o casamento foi dissolvido por divórcio;
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B... faleceu em 12/6/2021;
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Em 20/5/2018, a requerente e B... entregaram a declaração de IRS de 2017, com opção por tributação conjunta.
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Em meados de dezembro de 2021, a requerente foi notificada, por carta registada com AR (enviada para a sua morada na ..., ..., R/chão esquerdo, ...-... Lisboa) de decisão final (art. 66.º, n.º 1, do CIRS) relativa ao IRS de 2017, aí se indicando que no futuro se iria proceder a nova liquidação cuja demonstração lhe será oportunamente remetida, com indicação dos prazos e meios de defesa.
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essa correção ao IRS de 2017 fica-se a dever à falta de declaração (na declaração inicial de IRS de 2017) de rendimentos de pensões obtidos no estrangeiro por B..., no valor de 40.027,00€, que a AT teve, entretanto, conhecimento por troca de informações com autoridades fiscais de outros Estados.
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Por emissão a 16/2/2022 e entrega a 17/2/2022, a requerente recebeu citação com registo de que contra ela corria processo de execução fiscal relativo ao IRS de 2017.
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Perante isso, no início de março de 2022, a requerente solicitou à AT que emitisse certidão com teor integral da notificação da liquidação de IRS de 2017, com todos os elementos legais e indicação do registo postal da respetiva notificação.
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Por data de 11/3/2022, a AT envia certidão em que indica: 1) que a liquidação de IRS de 2017 é no valor de 23.784,50€ (com discriminação de como chega a tal valor), com data limite de pagamento voluntário a 19/1/2022; 2) e que a liquidação foi notificada pelo registo dos CTT RY...PT.
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Esse registo dos CTT (RY...PT) foi enviado para uma morada com o código postal ... Lisboa. O processo de envio iniciou-se em 14/12/2021 e foi entregue (concluído) em 15/12/2021 – conforme no site dos CTT.
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C... a cabeça de casal da herança de B..., tem a sua morada na Rua ..., ..., R/chão, ...-... Lisboa.
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Os cônjuges, enquanto casados viveram na Rua ..., cujo código postal é o ...
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A ação arbitral deu entrada a 23/3/2022.
2.2. Factos não provados
Há dois factos não provados:
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Que até 31/12/2021 (ou posteriormente, até à citação do processo executivo), a requerente tenha sido notificada da liquidação adicional do IRS de 2017 em causa nestes atos;
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Que o processo de liquidação adicional de IRS de 2017 tenha tido a natureza de inspeção externa.
2.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto
Relativamente à matéria de facto, o tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe apenas selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada (art. 123.º, n.º 2, do CPPT e art. 607.º, n.º 3, do CPC, aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, al. a) e e) do RJAT.
Por outro lado, a falta de resposta por parte da AT tem os efeitos constantes do art. 19.º do RJAT (e art. 110.º, n.º 6 e 7, do CPPT): tal não obsta ao prosseguimento do processo; o tribunal emite decisão com base na prova produzida, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova e da autonomia do tribunal na condução do processo.
Nesse sentido, com base nos dados do processo, o tribunal procurou aferir se a requerente havia sido notificada da liquidação adicional de imposto – e em que dia. A certidão da AT indica que a notificação foi enviada por correio registado com número indicado nos factos provados. Analisando esse número no site dos CTT, conclui-se que a liquidação foi efetuada em final de dezembro de 2021 para uma morada com um código postal ... em Lisboa; quando a morada da requerente é ... em Lisboa, para onde foi enviada, inclusive, outra missiva enviada pela AT [a fundamentação] – e a morada da cabeça de casal do ex marido é ... em Lisboa. Logo, a notificação da liquidação não foi notificada à requerente.
Por outro lado, nada há no processo que permita inferir que a inspeção foi externa – e em geral que tivessem existido quaisquer causas de interrupção ou suspensão do prazo de caducidade do direito à liquidação.
O tribunal assume, além disso, que a morada da requerente, após o divórcio, passou a ser a indicada por ela nos autos – e que a comunicou à AT (que lhe envia notificações para essa morada), como se comprova pela notificação postal da fundamentação.
E, por fim, dá como provado que a requerente só tomou notícia da liquidação do imposto quando, em março de 2022, teve notícia de existência de processo de execução fiscal contra si.
Os factos provados baseiam-se também nos documentos apresentados pela requerente no seu requerimento inicial – certidão de casamento e divórcio, documento de prova da morte do ex-marido, residência fiscal dos intervenientes e seu conhecimento indireto da liquidação e o que fez posteriormente.
3. Matéria de direito
3.1 Decisão
Quando um contribuinte esgrime em tribunal uma série de fundamentos autónomos que conduzem, na sua opinião, cada um deles à anulação da liquidação impugnada – o tribunal não tem de se pronunciar sobre todos eles; deve iniciar por aqueles que conduzam à nulidade e depois à anulação da liquidação, e entre estes, começará por analisar os vícios cuja procedência determine a mais estável e eficaz tutela dos interesses ofendidos, mesmo que não estejam vertidos numa relação de subsidiariedade – cfr. art. 124.º, do CPPT (ex vi, 29.º do RJAT).
Em obediência a esse ditame, iniciar-se-á pela análise do argumento da caducidade do direito à liquidação.
O tribunal arbitral é competente para apreciar e decidir sobre a eventual ilegalidade da liquidação de IRS com base em alegado vício de caducidade do direito à liquidação) cfr. Acórdãos do CAAD 185/2020-T e 675/2020-T).
No caso concreto verifica-se a caducidade do direito à liquidação. A liquidação de imposto (IRS de 2017) não foi validamente notificada ao contribuinte no prazo de 4 anos: sendo o IRS um imposto periódico, a liquidação adicional de IRS de 2017 teria de ser validamente notificada à requerente até 31/12/2021, já que a contagem do prazo de caducidade se inicia no termo do ano em que se verificou o facto tributário (31/12/2017).
Essa notificação da liquidação só ocorreu em março de 2022, com a notificação da certidão solicitada pela requerente, quando notou que sobre ela pendida processo de execução fiscal que desconhecia.
Por outro lado, não se provou a existência de qualquer ato de suspensão ou interrupção do prazo de caducidade: a existência de inspeção externa (e validamente notificada à requerente, a existir); ou quaisquer outras causas interruptivas ou suspensivas do prazo de caducidade contra a requerente.
E, por fim, com o divórcio, cessa o vínculo conjugal e, ao nível fiscal, cessa a presunção de que a notificação a um dos cônjuges se presume feita e aceite pelo outro (art. 16.º, n.º 5 e 6, da LGT). Logo, da eventual notificação ao ex-conjuge (retius, ao cabeça de casal) não se pode assumir que a requerente foi também notificada, por esse facto, sobretudo quando possuem moradas fiscais distintas.
Consequentemente, a liquidação impugnada deve ser anulada, por caducidade do direito à liquidação, nos termos do art. 45.º, n.º 1 da LGT e do art. 92.º do CIRS.
3.2. Demais questões
O conhecimento das demais questões invocadas pela requerente é desnecessário, porque prejudicado face ao decidido nesta Sentença. Com esta Sentença já se acolheram totalmente as pretensões da requerente, sendo assim desnecessário analisar estes outros vícios apontados no Requerimento inicial (cfr. art. 130.º e 608.º, n.º 2 do CPC).
4. Decisão
De harmonia com o exposto, este Tribunal Arbitral:
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Julga totalmente procedente o pedido da requerente
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Manda anular e anula, em relação à requerente, a liquidação impugnada de IRS e juros compensatórios do ano de 2017, no valor total de 23.784,50€ (liquidação adicional de IRS 2021 e juros 2021 ... [Id acerto contas] e demonstração de compensação 2021 ...)
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Condenar a requerida à totalidade das custas
6. Valor do processo
De harmonia com o disposto no art. 97.º-A, n.º 1, alínea a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 23.784,50€.
7. Custas
Nos termos do n.º 4 do art. 22.º do RJAT, fixa-se o montante das custas em 1.224,00€ (mil duzentos e vinte e quatro euros), nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.
Notifique-se
Porto, 2 de outubro de 2022
O Árbitro singular
Tomás Cantista Tavares
(Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 131º nº 5 do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 29º nº 1 alínea e) do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária)