Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 62/2022-T
Data da decisão: 2022-10-14  IRS  
Valor do pedido: € 8.216,68
Tema: IRS – Residência (artigo 16.º, n.º 1 do CIRS); Convenção sobre dupla tributação entre Portugal e França.
Versão em PDF

SUMÁRIO:


I - Não se verificando, no ano a que os rendimentos respeitam (2017), qualquer dos requisitos de que o artigo 16.º do CIRS faz depender a qualificação de Residente das pessoas singulares, não pode a pessoa em causa qualificar como Residente fiscal em Portugal.

 

II - Sendo França o Estado da Residência (ER) para efeitos da CDT aplicável, e conferindo o artigo 16.º da CDT PT-França competência exclusiva ao ER, não podia o Estado Português tributar os rendimentos do trabalho dependente de trabalhador Português que qualifica como Residente em França e aí presta o seu trabalho.

 

DECISÃO ARBITRAL

1 - Relatório

  1. – A..., contribuinte n.º..., residente em ..., França, doravante designado por «Requerente», vem, ao abrigo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, n.ºs 1 e 2, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária), doravante apenas designado por «RJAT» e artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, requerer a constituição de tribunal arbitral singular, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “Requerida” ou “AT”).

 

  1. - O pedido de pronúncia arbitral, apresentado em 4 de fevereiro de 2022, tem por objeto a liquidação oficiosa n.º 2021 ... de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS), efetuada pela “AT” em 17 de novembro de 2021, com referência ao ano de 2017, no montante de 7 219,76 € e respetivos juros compensatórios de 996,92 €, no montante global de 8 216,68 €, com data limite de pagamento em 29 de dezembro de 2021. 

 

  1. – Com o pedido de pronúncia arbitral, o Requerente juntou dezassete documentos; comprovativo de pagamento da taxa de arbitragem inicial; e respetiva procuração forense.

 

1.4 - O Requerente optou por não designar árbitro.

 

1.5 - O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e notificado à AT em 15 de fevereiro de 2022.

 

1.6 - O signatário foi designado pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD como árbitro do tribunal arbitral singular, nos termos do disposto no artigo 6.º do RJAT, e comunicada a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

1.7 - Em 30 de março de 2022, as Partes foram notificadas dessa designação, não se tendo oposto à mesma, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

1.8 - Assim, em conformidade com o preceituado no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o tribunal arbitral singular ficou constituído em 20 de abril de 2022.

 

1.9 - A AT foi notificada, por despacho arbitral da mesma data de 20-04-2022, nos termos do artigo 17.º, n.º 1 do RJAT, para, no prazo de 30 dias, apresentar Resposta, querendo, e solicitar a produção de prova adicional.

 

1.10 - Mais foi notificada para, no mesmo prazo, apresentar o processo administrativo (PA) referido no artigo 111.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

 

1.11 – Em 26 de maio de 2022, a Requerida apresentou a sua Resposta, defendendo-se por impugnação, pugnando pela improcedência, por não provada, do pedido de pronúncia arbitral, mantendo-se na ordem jurídica o ato tributário de liquidação, com a consequente absolvição do pedido, juntando um documento e protestando juntar o PA.

 

1.12 - Por despacho de 2 de junho de 2022, foi determinado notificar o Requerente, para, no prazo de 15 dias, se pronunciar, querendo, sobre o referido nos artigos 1.º, 2.º e 9.º da resposta da AT e no mesmo prazo juntar tradução para a língua portuguesa de todos os documentos apresentados, nos termos do n.º 1 do artigo 134.º do Código de Processo Civil, aplicável por força da alínea e), n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.

 

1.13 – Em 22 de junho de 2022, o Requerente apresentou alguns dos documentos traduzidos para a língua portuguesa (doc.s n.ºs 3, 11 a 15) e pronunciou-se sobre o referido nos artigos n.ºs 1.º e 2.º da resposta da AT, que se consubstanciava em mero lapsus calami do número da liquidação objeto de impugnação.

Quanto ao referido no artigo 11.º do mesmo articulado, o Requerente reconheceu o lapso e apresentou novo documento carimbado e assinado pelas autoridades fiscais francesas.

 

1.14 - Considerando que as Partes não requereram a produção de qualquer prova, para além da documental junta ao processo, o Tribunal Arbitral, face aos princípios da autonomia na condução do processo, da celeridade, da simplificação e informalidades processuais, ínsitos nos artigos 16.º e 29.º, n.º 2, do RJAT, por despacho de 22 de junho de 2022, dispensou a realização da reunião prevista no artigo 18.º do mesmo diploma, determinando que o processo prosseguisse com alegações escritas, simultâneas, a apresentar pelas Partes, querendo, no prazo de 15 dias, o que as mesmas optaram por não fazer. 

 

1.15 - Pelo mesmo despacho foi determinado que a decisão arbitral seria proferida até ao termo do prazo a que alude o n.º 1 do artigo 21.º do RJAT, ou seja, 21 de outubro de 2022, devendo até essa data o Requerente efetuar o pagamento da taxa de arbitragem subsequente, cfr. n.º 3 do artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

 

Posição das Partes

Do Requerente -

Sustenta o seu pedido de pronúncia arbitral, sinteticamente, da seguinte forma:

Que é cidadão de nacionalidade portuguesa, titular do número de identificação fiscal..., residindo em França de forma permanente desde junho de 2011 até à atualidade.

Inicialmente, no período de 2011 a 2016, residiu em ... St. Renan, e desde 2017 em 221 Rue ...- Dreslincourt, onde faz a sua vida normal, nomeadamente realizando atividades comuns relativas ao seu trabalho, saúde e tempos livres.  

De 1 de junho de 2011 até à atualidade vem trabalhando de forma ininterrupta na empresa “B... S.A.”, NIPC n.º..., com sede na ..., França, com a categoria de montador, qualificação N1P2 (OE2) Coeficiente 170 e com base num horário semanal de 35 horas, tendo para o efeito celebrado os seguintes contratos de trabalho:

Em 27 de junho de 2011, para o período de 01 de julho de 2011 a 31 de dezembro de 2011 (duração limitada);

Em 20 de dezembro de 2011, para o período de 01 de janeiro de 2012 a 31 de dezembro de 2012 (duração limitada); e

Em 21 de dezembro de 2012 celebrou contrato de trabalho sem termo, em vigor desde 01 de janeiro de 2013.

Conforme cópia dos referidos contratos, o vencimento auferido está sujeito às deduções previstas na lei francesa (retenções fiscais e contribuições para a Segurança Social).

Que vem sendo considerado pelas autoridades francesas como residente em França, com especial destaque para o ano em causa nos presentes autos (2017), como consta do Certificat de Residence Fiscale (certificado de residência fiscal) emitido em 07 de fevereiro de 2022 e assinado e carimbado pelas autoridades francesas, no qual é referido que “As autoridades fiscais francesas certificam que, na aceção da convenção fiscal acima mencionada, o beneficiário tem a qualidade de residente em FRANÇA para o ano de 2017” (traduzido da língua francesa).                          

Por esse motivo o Requerente apresentou junto da Direção-Geral de Finanças Públicas da República Francesa, a declaração de imposto (Déclaration des Revenus) relativa aos anos de 2012 a 2018, com especial destaque para o de 2017.

Refere ainda que em momento algum, pelo menos desde o ano de 2011, permaneceu mais de 183 dias em Portugal, seguidos ou interpolados, no espaço temporal de um ano fiscal ou civil, deslocando-se a Portugal apenas nas datas festivas como o natal, páscoa e férias.

E que também não auferiu rendimentos em território português, pelo menos desde o referido ano de 2011, nem aí dispôs de qualquer habitação.

Assim, face ao disposto no n.º 1 do artigo 16.º do CIRS, o Requerente, pelo menos no ano de 2017, não poderá ser considerado residente em território português, mas antes residente em França, atento o disposto no n.º 1 do artigo 4.º da Convenção entre Portugal e a França para Evitar a Dupla Tributação (CDT).

Deste modo face ao disposto no n.º 2 do artigo 15.º do CIRS, que prevê a incidência de IRS unicamente sobre os rendimentos obtidos em território português, que não é o caso dos rendimentos de trabalho dependente referidos nestes autos por não decorrerem de atividades exercidas em território português ou devidos por entidades que nele tenham residência, sede, direção ou estabelecimento estável, conforme refere a alínea a), n.º 1 do artigo 18.º do CIRS, bem como o artigo 16.º da referida convenção, os rendimentos auferidos em 2017 foram declarados e tributados em França, ou seja, no Estado da residência do Requerente.

Termina pugnando pela procedência do pedido de pronúncia arbitral, por provado, e por via disso pela anulação do ato de liquidação adicional do IRS relativo ao exercício de 2017, por vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto e de direito.

 

Da Requerida -

Como ponto prévio da Resposta vem aludir a divergência quanto ao objeto do ppa, uma vez que no introito refere a liquidação de IRS n.º 2021 ..., do ano de 2017, mas a final, no petitório, menciona a liquidação de IRS com o n.º 2018 ..., do ano de 2014.

Defendendo-se por impugnação, invoca os seguintes argumentos:

Que o Requerente, em 31 de dezembro de 2017 tinha o seu domicílio fiscal localizado na Rua ..., concelho de Castro Daire, distrito de Viseu, Portugal, considerando-se ser esse o local da sua residência habitual, competindo ao contribuinte comunicar à AT no prazo de 60 dias a alteração do seu estatuto de residência, sob pena de ser ineficaz a mudança de domicílio enquanto não for comunicada à AT, conforme estipula o artigo 19.º, n.ºs 1, 3, 4 e 5 da Lei Geral Tributária.

Por outro lado, o contribuinte não demonstrou, pelos documentos juntos ao pedido de pronúncia arbitral, ter sido considerado residente fiscal em França no ano de 2017, mediante a apresentação de um certificado de residência fiscal emitido pela Autoridade Fiscal Francesa ao abrigo 4.º da CDT Portugal-França, o que comprovaria que o contribuinte nesse ano teria sido considerado residente fiscal em França nos termos da sua legislação interna, e determinaria o recurso às regras de desempate previstas no n.º 2 do artigo 4.º da CDT Portugal-França.

Que o certificado de residência fiscal respeitante ao ano de 2017 (documento n.º 11) não se encontra carimbado nem assinado pelas autoridades fiscais francesas.

Sendo estas autoridades quem considerou o Requerente residente fiscal em Portugal ao ter comunicado, ao abrigo da troca automática de informação, os rendimentos obtidos pelo mesmo em França no ano de 2017.

Sendo que o Requerente não fez prova suficiente do facto de não ser residente fiscal em Portugal, pelo que, nos termos do n.º 1 do artigo 15.º do CIRS, o imposto incide sobre a totalidade dos seus rendimentos, incluindo os obtidos fora desse território. 

Termina pugnando pela improcedência do pedido de pronúncia arbitral, por não provado, e absolvição da Requerida, mantendo-se na ordem jurídica o ato tributário impugnado, uma vez que a liquidação controvertida consubstancia uma correta interpretação e aplicação do direito aos factos, não padecendo de vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto e de direito.

 

2. Saneamento

2.1 - As Partes têm personalidade e capacidades judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

                

2.2 - O processo não enferma de nulidades.

 

2.3 - Não se verificam quaisquer outras circunstâncias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.

 

2.4 - O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente para conhecer e decidir o pedido, cfr. artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT.

 

 

3. Matéria de Facto

3.1 Factos provados

Com relevo para a apreciação e decisão das questões suscitadas, dão-se como assentes e provados os seguintes factos:

  1. O Requerente tem a nacionalidade portuguesa, residindo em França de forma permanente desde junho de 2011 até à atualidade, cfr. documentos n.ºs 4 a 15 juntos com o pedido de pronúncia arbitral.
  2. No ano de 2017 residia em ... Rue ...- Dreslincourt, em França, onde fazia a sua vida normal, nomeadamente realizando atividades comuns relativas ao seu trabalho, saúde e tempos livres, cfr. Certificat de Residence Fiscale (certificado de residência fiscal), devidamente carimbado e assinado pelas autoridades fiscais francesas em 07 de fevereiro de 2022, no qual vem referido, entre o mais, o seguinte: “As autoridades fiscais francesas certificam que, na aceção da convenção fiscal acima mencionada, o beneficiário tem a qualidade de residente em FRANÇA para o ano de 2017” (documento n.º 11 apresentado nos autos em 22 de junho de 2022, com tradução da língua francesa).
  3. Em 31 de dezembro de 2017 o domicílio fiscal do Requerente, constante do cadastro da AT, localizava-se na Rua ..., concelho de Castro Daire, distrito de Viseu, Portugal, cfr. artigo 7.º da resposta da AT, não contestada e admitida pelo Requerente nos artigos 20.º e 21.º da sua ppa.
  4. No mesmo cadastro da AT, com produção de efeitos a 26 de agosto de 2019, a residência localizava-se em ... Rue ...- Dreslincourt, França, cfr. documento junto à resposta da AT.
  5. De 1 de junho de 2011 até à atualidade o Requerente vem trabalhando de forma ininterrupta na empresa “B..., S.A.”, NIPC n.º ..., com sede na ..., França, com a categoria de montador, qualificação N1P2 (OE2) Coeficiente 170 e com base num horário semanal de 35 horas, tendo para o efeito celebrado os seguintes contratos de trabalho:

Em 27 de junho de 2011, para o período de 01 de julho de 2011 a 31 de dezembro de 2011 (duração limitada), cfr. documento n.º 2;

Em 20 de dezembro de 2011, para o período de 01 de janeiro de 2012 a 31 de dezembro de 2012 (duração limitada); cfr. documento n.º 3; e

Em 21 de dezembro de 2012 celebrou contrato de trabalho sem termo, em vigor desde 01 de janeiro de 2013, cfr. documento n.º 4.

  1. No ano de 2017 o Requerente trabalhou 1.885,71 horas, tendo auferido o salário bruto de 23.009,00 €, cfr. declaração anual de dados sociais (documento n.º 16).
  2. Conforme cópia dos referidos contratos de trabalho, o salário auferido está sujeito às deduções previstas na lei francesa (retenções fiscais e contribuições para a Segurança Social).
  3. O Requerente tem o número de identificação fiscal francês ... C, cfr. documento n.º 4.
  4. O Requerente tem o número da Segurança Social francesa ..., cfr. documento n.º 3.
  5. O Requerente apresentou na Direção Geral das Finanças Públicas Francesas uma déclaration des Revenus (declaração de rendimentos), tendo declarado rendimentos recebidos e descontos efetuados no ano de 2017, cfr. documento n.º 4.
  6. Em 17 de novembro de 2021 a AT efetuou a liquidação n.º 2021 ... de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS), com referência ao ano de 2017, no montante de 7 219,76 € e respetivos juros compensatórios de 996,92 €, no montante global de 8 216,68 €, com data limite de pagamento em 29 de dezembro de 2021, cfr. documento n.º 1 junto pelo Requerente com o ppa.
  7. Em 4 de fevereiro de 2022 o Requerente apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral, ao abrigo da alínea a), número 1 do artigo 2.º e do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que deu origem ao presente processo, peticionando a anulação da liquidação.

 

3.2 Factos não provados

Não há factos relevantes para a decisão da causa que devam considerar-se não provados.

 

3.3 Motivação

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor [(cfr. artigos 596.º, nº 1 e 607.º, n.ºs 2 a 4 do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT)] e consignar se a considera provada ou não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2 do CPPT).

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento das pessoas (cfr. artigo 607.º, n.º 5 do CPC). Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g. força probatória plena dos documentos autênticos, cfr. artigo 371.º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação. 

Assim, a convicção do Tribunal fundou-se no acervo documental junto aos autos bem como nas posições assumidas pelas partes.

 

 

4 - Matéria de Direito (fundamentação)

Objeto do litígio

 

A questão que constitui o thema decidenduum consiste em saber se o Requerente, no ano de 2017, deve ou não ser considerado residente fiscal em território português, ou seja, se preenche ou não algum critério legal suscetível de determinar a sua residência fiscal em Portugal no período em causa, face ao previsto nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 16º do CIRS e do eventual recurso à Convenção entre Portugal e a França para Evitar a Dupla Tributação (CDT), concluindo (ou não) pela manutenção da liquidação de IRS em causa.

 

Questão a decidir:

- Da (i)legalidade da liquidação impugnada.

Refira-se, antes de mais, que a divergência referida nos artigos 1.º e 2.º da resposta da AT quanto ao número da liquidação constante do introito e do petitório do pedido de pronúncia arbitral, resulta de manifesto lapso do Requerente (lapsus calami), perfeitamente desculpável, sendo de considerar a liquidação de IRS n.º 2021 ... do ano de 2017, como a que constitui o objeto do pedido.

E quanto ao referido no artigo 9.º do mesmo articulado, segundo o qual o documento n.º 11 anexo ao ppa não se encontrava carimbado nem assinado pelas autoridades fiscais francesas, tais irregularidades foram sanadas em 22 de junho de 2022 com a apresentação de novo documento.

 

Porém, antes de entrarmos no caso concreto, mostra-se absolutamente relevante rever a Convenção entre Portugal e a França para Evitar a Dupla Tributação e Estabelecer Regras de Assistência Administrativa Recíproca em Matéria de Impostos sobre o Rendimento (CDT), assinada em Paris em 14 de março de 1971 e publicada pelo Decreto-Lei n.º 105/71, de 26 de março, posteriormente alterada pelo Protocolo assinado em 25 de agosto de 2016 e publicado pela Resolução da Assembleia da República n.º 58/2017, uma vez que o conceito de residência, acolhido no artigo 16.° n.º 1 do CIRS, não pode sobrepor-se ao conceito convencional de residência constante das Convenções contra a Dupla Tributação celebrada entre Portugal e outros Estados, dada a supremacia do direito internacional sobre o direito interno ordinário consagrada nos artigos 8.º da CRP e 1.º, n.º 1 da LGT.

O conceito convencional de residência consta do artigo 4.º, n.º 1 da referida CDT, nos seguintes termos: “Para efeitos desta Convenção, a expressão «residente de um Estado Contratante» significa qualquer pessoa que, por virtude da legislação desse Estado, está aí sujeita a imposto devido ao seu domicílio, à sua residência, ao local de direção ou a qualquer outro critério de natureza similar”.

Refere, também, o artigo 16.º, n.º 1 da mesma CDT: “ (…) os salários, ordenados e remunerações similares obtidos de um emprego por um residente de um Estado Contratante só podem ser tributados nesse Estado, a não ser que o emprego seja exercido no outro Estado Contratante. Se o emprego for aí exercido, as remunerações correspondentes podem ser tributadas nesse outro Estado”.

Por outro lado, não havendo dupla tributação mostra-se desnecessário convocar a referida CDT uma vez que os critérios de desempate previstos no n.º 2 do seu artigo 4.º são inaplicáveis ao caso.

Assim, considerando que o conceito convencional de «residente de um Estado Contratante» remete para a legislação desse Estado, passemos a transcrever o quadro normativo aplicável:

O artigo 13.º, n.º 1 do CIRS (redação ao tempo dos factos), relativamente à incidência pessoal, dispunha: "Ficam sujeitos a IRS as pessoas singulares que residam em território português e as que nele não residindo, aqui obtenham rendimento".

Por sua vez o artigo 15.º, n.ºs 1 e 2 do mesmo código (redação ao tempo), respeitante ao âmbito da sujeição, refere: "1. Sendo as pessoas residentes em território português, o IRS incide sobre a totalidade dos seus rendimentos, incluindo os obtidos fora desse território" e “2. Tratando-se de não residentes, o IRS incide unicamente sobre os rendimentos obtidos em território português”.

Estes rendimentos encontram-se elencados nas diversas alíneas do n.º 1 do artigo 18.º do CIRS (norma de incidência territorial), cuja alínea a) refere: “Os rendimentos do trabalho dependente decorrentes de atividades nele exercidas, ou quando tais rendimentos sejam devidos por entidades que nele tenham residência, sede, direção efetiva ou estabelecimento estável a que deva imputar-se o pagamento”.

O artigo 16.º, n.º 1, alíneas a) e b) do CIRS (redação ao tempo), relativo à residência, refere: “São residentes em território português as pessoas que, no ano a que respeitam os rendimentos: a) Hajam nele permanecido mais de 183 dias, seguidos ou interpolados, em qualquer período de 12 meses com início ou fim no ano em causa; b) Tendo permanecido por menos tempo, aí disponham, num qualquer dia do período referido na alínea anterior, de habitação em condições que façam supor intenção atual de a manter e ocupar como residência habitual”.

Constata-se deste modo e em uníssono com a doutrina e jurisprudência, que o conceito de residência torna-se fundamental de modo que, a verificar-se relativamente a um qualquer sujeito a imposto, legitima a tributação dos rendimentos numa base mundial, i.e. de todos os rendimentos independentemente do local onde os mesmos sejam obtidos (world income principle)

De acordo com RUI DUARTE MORAIS[1], "a residência é hoje, geralmente aceite como constituindo o elemento de conexão que expressa a mais íntima ligação económica entre as pessoas e Estado".

"(...) Ser residente de um determinado Estado implica, normalmente, ser aí sujeito a um imposto sobre a globalidade do rendimento (incluindo) o obtido fora das fronteiras desse Estado".

Contempla ainda o artigo 16.º, para além das convocadas, uma pluralidade de situações que nos dizeres da decisão arbitral proferida no âmbito do processo nº 462/2015-T, de 05/04/2015 "faz surgir o perigo de duplas tributações, em virtude de o elemento de conexão residência, visto aquelas poderem tanto resultar de definições diversas nos espaços fiscais em causa como de definições iguais, desde que integradas por uma pluralidade de critérios que se repetem nas legislações desses espaços fiscais sendo a situação enquadrável em critérios diferentes"

(…) Para evitar os conflitos derivados de aplicação das normas tributárias em caso de situações com ligações a outros territórios assume especial importância a negociação e celebração de Convenções assinadas entre Portugal e outros Estados para Evitar a Dupla Tributação (CDT´S)".

A exigibilidade dos critérios para qualificação de uma pessoa singular como residente, tempo de permanência (corpus) e habitação (animus) de que a doutrina profusamente nos dá conta, afiguram-se nos presentes autos, no nosso entendimento, de fácil perceção e isentos de quaisquer dúvidas razoáveis.

Comecemos por referir que, nos termos do artigo 19.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária (LGT), o domicílio fiscal corresponde, salvo disposição em contrário, ao local da residência habitual do Sujeito Passivo (pessoa singular), sendo que no ano em causa (2017) o domicílio fiscal do Requerente, constante das bases de dados da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), era na Rua..., concelho de Castro Daire, distrito de Viseu, cfr. artigo 7.º da resposta da AT.

Sendo alterado para ... Rue ... - Dreslincourt, França, com produção de efeitos em 26 de agosto de 2019.

Porém o domicílio fiscal fazendo presumir a habitação própria e permanente do sujeito passivo, nos termos do n.º 12 do artigo 13.º do CIRS, este pode, a todo o tempo, apresentar prova em contrário, competindo à AT demonstrar a falta de veracidade dos meios de prova ou das informações neles constantes, cfr. n.º 15 do referido artigo 13.º.

No caso de mudança do domicílio fiscal, que não corresponde à noção de residência, o n.º 4 do artigo 19.º da LGT refere que a mesma é ineficaz enquanto não for comunicada à AT.

Porém, como refere o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, proferido em 08-10-2015 no Processo n.º 06685/13, “Nos casos em que o sujeito passivo não cumpriu com a sua obrigação de comunicação da mudança de domicílio fiscal prevista no art. 19.º da LGT pode ser demonstrada a sua morada em certo lugar através de “factos justificativos”, e por conseguinte, não obsta ao preenchimento do pressupostos de “habitação permanente” o n.º 5 do art. 10.º do CIRS a não comunicação da alteração do domicílio fiscal”.

No mesmo sentido a decisão arbitral de 11-08-2020, proferida no Processo n.º 434/2019-T, do CAAD: “Retirar porém daí, como consequência, que o contribuinte que não actualizou ou comunicou a alteração do seu domicílio fica por essa razão preso a essa morada inicialmente comunicada para o efeito - como é o caso - de qualificar como Residente fiscal, é ultrapassar o previsto na lei, seja na sua letra, seja no seu espírito”.

No caso dos autos o Requerente não comunicou à AT a mudança de domicílio fiscal, facto que se mostra irrelevante neste processo, em virtude de ter apresentado documentos que provam tal mudança.

Deste modo passemos à questão principal, qual seja a de determinar se o Requerente, no ano de 2017, era ou não residente em território português, sendo que, em caso afirmativo estará sujeito a tributação de base mundial, por contraposição com os não residentes que apenas são sujeitos a tributação relativamente aos rendimentos obtidos em Portugal, cfr. artigo 15.º, n.ºs 1 e 2 do CIRS.

De 1 de junho de 2011 até à atualidade o Requerente vem trabalhando de forma ininterrupta, na empresa “B..., S.A.”, NIPC n.º..., com sede na ..., França, com a categoria de montador, qualificação N1P2 (OE2) Coeficiente 170 e com base num horário semanal de 35 horas, tendo para o efeito celebrado os seguintes contratos de trabalho:

Em 27 de junho de 2011, para o período de 01 de julho de 2011 a 31 de dezembro de 2011 (duração limitada), cfr. documento n.º 2;

Em 20 de dezembro de 2011, para o período de 01 de janeiro de 2012 a 31 de dezembro de 2012 (duração limitada); cfr. documento n.º 3; e

Em 21 de dezembro de 2012 celebrou contrato de trabalho sem termo, em vigor desde 01 de janeiro de 2013, cfr. documento n.º 4.

 

 

Assim, durante todo o ano de 2017 o Requerente trabalhou em França para a referida empresa “B..., S.A.”, ao abrigo de um contrato de trabalho sem termo, residindo em ... Rue ...- Dreslincourt, em França, onde fazia a sua vida normal, nomeadamente realizando atividades comuns relativas ao seu trabalho, saúde e tempos livres, cfr. Certificat de Residence Fiscal (Certificado de Residência Fiscal) devidamente carimbado e assinado pelas autoridades fiscais francesas em 07 de fevereiro de 2022, no qual vem referido, entre o mais, o seguinte: “As autoridades fiscais francesas certificam que, na aceção da convenção fiscal acima mencionada, o beneficiário tem a qualidade de residente em FRANÇA para o ano de 2017”, cfr. alínea b) do probatório supra.

Como contrapartida do seu trabalho, o Requerente recebeu da referida empregadora “B..., SA” o respetivo salário ao qual foram efetuados os correspondentes descontos para a segurança social francesa, na qual se encontra inscrito com o número... .

O Requerente, titular do número de contribuinte francês ... C, apresentou declaração de rendimentos do ano de 2017 (Déclaration des Revenus) em França, tendo declarado a totalidade dos rendimentos recebidos.

Constata-se, assim, que o Requerente permaneceu em França, de modo contínuo e ininterrupto, durante todo o ano de 2017, apenas se ausentando pontualmente para visitar a família, pelo que deverá ser considerado, para efeitos do IRS, residente em França e não residente fiscal em Portugal, por não se verificar o elemento objetivo (corpus) previsto na alínea a), n.º 1 do artigo 16.º do CIRS (permanência em território português mais de 183 dias, seguidos ou interpolados, em qualquer período de 12 meses com início ou fim no ano em causa).

Assim, considerando que a liquidação impugnada incidiu sobre rendimentos do trabalho dependente auferidos em França, e devidos por entidades aí sediadas, é julgado procedente o pedido de pronúncia arbitral por vício de violação de lei por erro sobre os pressupostos de facto e de direito.  

 

***

 

5 - Decisão

Em face do exposto, decide-se:

  1. Julgar procedente, por vício de violação de lei por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, o pedido de anulação da liquidação oficiosa n.º 2021 ... de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS), efetuada pela “AT” em 17 de novembro de 2021, com referência ao ano de 2017, no montante de 7 219,76 € e respetivos juros compensatórios de 996,92 €, no montante global de 8 216,68 €;
  2. Condenar a Requerida nas custas arbitrais.

 

Valor do Processo

De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT), fixa-se ao processo o valor de 8 216,68 € (oito mil, duzentos e dezasseis euros e sessenta e oito cêntimos).

 

Custas

Nos termos do artigo 4.º, n.º 4 do citado RCPAT e artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT, fixa-se o montante das custas em 918,00€ (novecentos e dezoito euros), nos termos da Tabela I, anexa àquele regulamento, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Notifique.

 

Lisboa, CAAD, 14 de outubro de 2022.

 

 

O Árbitro,

(Rui Ferreira Rodrigues)


[1] “Sobre o IRS” Almedina 2006, pp 14 e ss