Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 58/2022-T
Data da decisão: 2022-10-25  IRS  
Valor do pedido: € 187.442,64
Tema: IRS - Sociedades de Administradores Judiciais. Transparência Fiscal. Notificação e Caducidade.
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DECISÃO ARBITRAL

 

I – Relatório

 

  1. Os contribuintes A..., NIF n.º..., e B..., NIF nº..., doravante “os Requerentes”, apresentaram, no dia 2 de Fevereiro de 2022, um pedido de constituição de Tribunal Arbitral Colectivo, nos termos dos artigos 2º, 1, a), e 10º, 2 do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, com as alterações introduzidas pela Lei nº 66- B/2012, de 31 de Dezembro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”), e dos arts. 1º e 2º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”).
  2. A Requerente pediu a pronúncia arbitral sobre a ilegalidade do acto tributário de liquidação de IRS n.º 2021..., referente ao ano de 2017, e no valor total de €187.442,64.
  3. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT.
  4. Em conformidade com o previsto nos artigos 5º, 3, b), 6º, 2, b), 10º, 2, g) e 11º, 2 do RJAT, os Requerentes designaram como árbitro o Prof. Tomás Cantista Tavares.
  5. Nos termos do artigo 11º, 3 do mesmo RJAT, a Requerida indicou como árbitro o Dr. Jorge Carita.
  6. A solicitação dos árbitros designados pelas partes, ao abrigo do disposto no art. 6º, 2, b) do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou como Árbitro-Presidente o Prof. Fernando Borges de Araújo.
  7. Os árbitros do Tribunal Arbitral Colectivo comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável, e as partes foram devidamente notificadas destas designações, às quais não se opuseram nos termos conjugados dos arts. 11º, 1, b) e c), e 8º do RJAT, e arts. 6º e 7º do Codigo Deontológico do CAAD.
  8. O Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 17 de Maio de 2022; foi-o regularmente, e é materialmente competente.
  9. Nos termos art. 17º do RJAT, foi a AT notificada, em 17 de Maio de 2022, para apresentar resposta.
  10. A AT apresentou a sua Resposta em 21 de Junho de 2022, e nela, sustenta, essencialmente, que a liquidação não está ferida de ilegalidade, e por isso deve ser mantida na ordem jurídica.
  11. Por despacho de 23 de Junho de 2022, foi solicitado aos Requerentes que especificassem as condições de prestação da prova testemunhal, prova de que os Requerentes prescindiram em Requerimento de 5 de Julho de 2022.
  12. Por despacho de 2 de Setembro de 2022, dispensou-se a reunião prevista no art. 18º do RJAT e as partes foram notificadas para apresentarem alegações escritas, indicando-se o dia 17 de Novembro de 2022 como data-limite para a prolação e comunicação da decisão arbitral.
  13. Os Requerentes apresentaram alegações no dia 16 de Setembro de 2022.
  14. A Requerida apresentou alegações no dia 30 de Setembro de 2022.
  15. As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, e têm legitimidade.
  16. A AT procedeu à designação dos seus representantes nos autos e a Requerente juntou procuração, encontrando-se assim as Partes devidamente representadas.
  17. O processo não enferma de nulidades.

 

II – Matéria de Facto

 

II. A. Factos provados

 

Com relevo para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:

  1. Os Requerentes são os únicos sócios das sociedades C... Unipessoal, Lda., NIPC..., e D..., Unipessoal, Lda., NIPC..., respectivamente.
  2. Ao abrigo das Ordens de Serviço OI 2019... e OI 2019..., foi efectuada uma inspecção externa de âmbito parcial (IVA e IRS) aos anos de 2017 e 2018.
  3. As sociedades de que os Requerentes são sócios foram igualmente objecto de inspecção tributária: a C... Unipessoal, Lda, foi-o ao abrigo das ordens de serviço n.os OI2020... e OI2020..., relativamente aos exercícios de 2017 e 2018, e a D... Unipessoal, Lda, foi-o ao abrigo das ordens de serviço n.os OI2020... e OI2020..., relativamente aos exercícios de 2017 e 2018.
  4. A acção inspectiva iniciou-se em 8 de Janeiro de 2020.
  5. Segundo o RIT, estaríamos perante sociedades sujeitas ao regime de transparência fiscal, pelo que a matéria colectável foi corrigida, sendo imputada na esfera individual dos sócios, em sede de IRS, por aplicação do art. 6º do CIRC e do art. 151º do CIRS.
  6. Os Requerentes exerceram o seu direito de audição face ao projecto de RIT, em 29 de Novembro de 2021.
  7. Os Requerentes manifestaram a sua discordância face ao enquadramento da actividade de administrador judicial na actividade “1310 – Administradores de Bens” da tabela de actividades anexa ao art. 151º do CIRS e, portanto, ao enquadramento da sociedade no regime de transparência fiscal previsto no art. 6º do CIRC.
  8. Na sequência, foi emitida, e notificada em 29 de Dezembro de 2021, a demonstração de Liquidação de IRS n.º 2021... referente ao exercício de 2017, no valor total de €212.661,13, correspondendo ao valor a pagar de €187.442,64, incluindo o valor devolvido aos Sujeitos Passivos em 2021, no valor de €25.218,49 (liquidação n.º...), e a liquidação de juros compensatórios (liquidação n.º 2021...) no valor de €23.074,55.
  9. Foi emitido o documento de cobrança n.º 2021... no montante de €187.442,64, com o prazo de 2 de Fevereiro de 2022 para pagamento.
  10. Em cumprimento de mandado de notificação do Chefe da Divisão de Inspecção Tributária III da Direcção de Finanças de Aveiro, em 29 de Dezembro de 2021 um Inspector Tributário notificou o Requerente A..., mas não a Requerente B..., para pagar até 2 de Fevereiro de 2022 o montante indicado no documento de cobrança n.º 2021... .
  11. Os Requerente tinham optado pela tributação conjunta em sede de IRS no ano de 2017.
  12. Os Requerentes pagaram os valores liquidados em 27 de Janeiro de 2022.
  13. Em 2 de Fevereiro de 2022, os Requerentes apresentaram no CAAD o Pedido de Pronúncia Arbitral que deu origem ao presente processo.

 

II. B. Matéria não-provada

 

Com relevância para a questão a decidir, nada ficou por provar.

 

II. C. Fundamentação da matéria de facto

 

  1. Os factos elencados supra foram dados como provados com base nas posições assumidas pelas partes nos presentes autos, e nos documentos juntos ao PPA e ao processo administrativo.
  2. Cabe ao Tribunal Arbitral seleccionar os factos relevantes para a decisão, em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito, bem como discriminar a matéria provada e não provada (cfr. art. 123º, 2, do CPPT e arts. 596º, 1 e 607º, 3 e 4, do CPC, aplicáveis ex vi art. 29º, 1, a) e e) do RJAT), abrangendo os seus poderes de cognição factos instrumentais e factos que sejam complemento ou concretização dos que as Partes alegaram (cfr. arts. 13.º do CPPT, 99º da LGT, 90º do CPTA e arts. 5º, 2 e 411.º do CPC).
  3. Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação aos factos alegados pelas partes, na sua íntima e prudente convicção formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência (cfr. art. 16º, e) do RJAT, e art. 607º, 4, do CPC, aplicável ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT).
  4. Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (por exemplo, quanto aos documentos autênticos, por força do artigo 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação das provas produzidas, o referido princípio da livre apreciação (cfr. art. 607º, 5 do CPC, ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT).
  5. Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada, nem os factos incompatíveis ou contrários aos dados como provados.

 

III. Sobre o Mérito da Causa

 

III. A. Posição da Requerente

 

  1. Os Requerentes começam por invocar caducidade do direito à liquidação do imposto e dos juros compensatórios, invocando que houve erro na liquidação de IRS de 2017 e que, portanto, se aplicava o prazo de 3 anos para efectuar e notificar a liquidação adicional, nos termos do art. 45º, 2 da LGT, prazo que terminava a 31 de Dezembro de 2020.
  2. Daí retiram que a dívida de imposto é inexigível por invalidade do respectivo acto de liquidação.
  3. Mais argumentam os Requerentes que, mesmo que se tratasse da aplicação do prazo de 4 anos previsto no art. 45º, 1 da LGT, ainda assim o direito à liquidação caducou relativamente à Requerente B..., nos termos do art. 45º, 3 da LGT, visto que ela não foi notificada até 31 de Dezembro de 2021.
  4. Daí retiram os Requerentes que, mesmo nesta situação, a dívida de imposto é inexigível relativamente à Requerente B..., por invalidade do respectivo acto de liquidação.
  5. Os Requerentes lembram que exercem a sua actividade de administradores da insolvência através de sociedades civis sob forma comercial, no âmbito e nos termos do Decreto-Lei nº 54/2004, de 18 de Março; e que, por outro lado, o CIRC (art. 6º, 4, a) 1)) considera sociedade de profissionais (abrangida pelo regime de transparência fiscal) qualquer sociedade constituída para o exercício de uma actividade profissional especificamente prevista na lista de actividades a que se refere o art. 151.º do CIRS, excluindo a actividade de "Outros prestadores de serviços", a que corresponde o código 1519 do Anexo I à Portaria n.º 1011/2001, de 21 de Agosto.
  6. A liquidação impugnada assenta no entendimento, perfilhado pelos SIT da AT, de que a actividade de administrador judicial, desenvolvida pela sociedade através do seu sócio gerente, é qualificada com o código de actividade “1310- Administrador de bens”, logo uma actividade profissional especificamente prevista na lista de actividades a que se refere o art. 151º do CIRS, originando consequentemente o enquadramento da sociedade no regime de transparência fiscal previsto no artigo 6º, 4, a), 1) do CIRC.
  7. Ora os Requerentes discordam desse entendimento, e perfilham, antes, o entendimento de que a sua actividade só pode ser enquadrada ou classificada com o código 1519 “Outros prestadores de serviços”, do Anexo I à Portaria n.º 1011/2001, de 21 de Agosto, com a consequência de essa actividade não constar, especifica ou genericamente, da tabela prevista no art. 151º do CIRS, e portanto não ficar abrangida pelo regime de transparência fiscal.
  8. Rejeitando especificamente a sua integração no código 1310, “Administradores de bens”, visto não haver sequer analogia com as funções exercidas pelos Administradores Judiciais – louvando-se nas conclusões, nesse sentido, contidas na decisão do Proc. 250/2019-T do CAAD, e no facto de aí se ter reconhecido que, na Classificação das Actividades Económicas (CAE) do INE, as sociedades de administradores da insolvência apareçam com o Código 69101, relativo a “Actividades jurídicas”, e não com qualquer código relacionado com a administração de bens (nomeadamente 68322, “Administração de Condomínios” e 68321, e “Administração de Imóveis por Conta de Outrem”). E louvando-se, ainda, nas conclusões que, no mesmo sentido, se contêm na decisão do Proc. 37/2021-T do CAAD.
  9. Os Requerentes subscrevem a ideia de que a lista do art. 151º do CIRS é taxativa, e incompatível com qualquer integração analógica, dado tratar-se de normas de incidência (art. 11º, 4 da LGT).
  10. Além disso, trata-se, naquela lista, de uma série de actividades que nunca coincidem perfeitamente com as características peculiares da actividade de administrador de insolvência.
  11. Os Requerentes adiantam que as funções legalmente exigidas dos administradores de insolvência extravasam, em muito, da mera “administração de bens”, a qual de resto pode nem sequer ocorrer, como se conclui da análise do regime do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).
  12. Concluem os Requerentes que a matéria colectável declarada pelas sociedades, acrescida das correções propostas no relatório final elaborado pela AT, e que deram origem à liquidação em sede de IRS respeitante ao período de 2017, não lhes pode ser imputada para efeitos de tributação na esfera do seu IRS, e deve ser tributada em IRC na esfera de cada sociedade, na respectiva proporção.
  13. Requerem, por isso, que a liquidação impugnada seja anulada, por manifesta violação do artigo 6.º do CIRC, dado que enferma de vício de erro sobre os pressupostos de direito, por errada interpretação das normas relevantes. E requerem, em consequência, que a AT seja condenada a devolver a quantia liquidada e paga, acrescida dos respectivos juros indemnizatórios.
  14. Adicionalmente, os Requerentes reagem a alegadas infracções que terão cometido em 2017, e que foram objecto da acção inspectiva, interferindo na liquidação. Para lá da já mencionada falta de imputação da matéria da sociedade de profissionais, foram apuradas aos Requerentes:
    1. A A..., omissões na determinação do rendimento colectável – coeficiente a aplicar as prestações de serviços, no montante de €28.220,03; omissões e inexactidões na determinação do rendimento tributável – utilização de habitação, no montante de €4.800,00, e falta de Tributação Autónoma – Rendas Omitidas, no montante de €1.436,34;
    2. A B..., omissões na determinação do rendimento colectável – coeficiente a aplicar as prestações de serviços, no montante de €97.746,27.
  15. Os Requerentes, neste ponto, concentram a sua defesa nas questões de: utilização da habitação (rendimento em espécie), coeficiente a aplicar aos serviços prestados no âmbito da actividade de Administrador Judicial, falta de Tributação Autónoma (rendas omitidas), culminando na questão da revisão da matéria colectável.
  16. No que respeita à utilização da habitação (rendimento em espécie), os Requerentes alegam que existe um contrato de comodato verbal entre eles e a arrendatária do espaço, a sociedade E...– Sociedade de Advogados SP RL, sendo que esse comodato, excluindo a existência de um rendimento em espécie, afasta a aplicação do art. 24º, 2 do CIRS. Longe de ser um rendimento dos Requerentes, a utilização do imóvel só é rendimento da proprietária, e uma despesa da arrendatária – excluindo-se que se forme, neste ponto, um rendimento da categoria B que possa ser tributado aos Requerentes.
  17. No que respeita ao coeficiente a aplicar aos serviços prestados no âmbito da actividade de Administrador Judicial, os Requerentes insistem que a actividade de Administrador Judicial não está especificamente prevista na lista de actividades a que se refere o art. 151º do CIRS, razão pela qual não pode ser aplicado o coeficiente do art. 31º, b) do CIRS que remete para o artigo 151.º do CIRS, mas sim, e unicamente, o coeficiente no art. 31º, c), de 0.35, referente aos rendimentos de prestações de serviços não previstos nas alíneas anteriores – um entendimento oposto ao adoptado pela AT, que, invocando o código 1310, entendeu que a actividade de administrador judicial é uma das que estão especificamente previstas na lista a que se refere o art. 151º do CIRS.
  18. Por essa razão, o Requerente A... não aceita a correcção ao rendimento tributável nos montantes de €28.220,03 e €18.389,36, e a Requerente B... não aceita a correcção ao rendimento tributável no montante de €97.746,27.
  19. No que respeita à falta de Tributação Autónoma (rendas omitidas), o Requerente A... esclarece que já inseriu as rendas do ano de 2017 e 2018 na declaração de IRS, tendo elas sido tributadas à taxa autónoma de 28%, nos termos do art. 72º, 1, e) do CIRS – pelo que o que a AT pretende com a liquidação de €1.436,34, é, quanto aos Requerentes, a duplicação da tributação do mesmo rendimento de 2017.
  20. Finalmente, no que respeita à revisão da matéria colectável, os Requerentes dão conta de que a sociedade C... SAJ apresentou um pedido de Revisão da Matéria Coletável nos termos do artigo 91.º da LGT, e que em resultado do acordo obtido entre os peritos foi deliberada a fixação da matéria tributável em €123.371,78 e €202.913,50, respectivamente nos anos de 2017 e 2018, nos quais foram recalculados os valores apurados com recurso a métodos indirectos. Depois desse acordo foram recalculados os gastos a imputar à actividade desenvolvida pelo sócio gerente (métodos indiretos), o que foi parcialmente rejeitado pelo SP.
  21. Os Requerentes terminam reclamando juros indemnizatórios, para lá da restituição do imposto indevidamente pago, nos termos e para os efeitos do art. 43º da LGT.
  22. No requerimento apresentado em 5 de Julho de 2022, os Requerentes juntaram, em apoio da sua tese, a decisão proferida em 08.06.2022 pelo STA no Proc. nº 0871/19.7BEPRT – 2.ª Secção.
  23. Em Alegações, os Requerentes retomam o fundamental da sua argumentação, acrescentando a sua oposição à relevância de informações vinculativas, no confronto com o quadro legal; e, especificamente quanto ao acordo de peritos para fixação da matéria colectável do Requerente A..., insistem que não aceitam certos valores resultantes desse acordo.

 

III. B. Posição da Requerida

 

  1. Na sua resposta, a Requerida começa por argumentar que não há qualquer caducidade do direito de liquidar, seja porque não tem aplicação o prazo de 3 anos previsto no art. 45º, 2 da LGT, por não se verificarem os pressupostos fácticos para a sua aplicação (não havia nenhum erro imediatamente perceptível), seja porque, tendo os Requerentes optado pela tributação conjunta em IRS (arts. 13º, 3 e 59º, 2 do CIRS), basta a notificação de um deles, e essa notificação de um deles ocorreu dentro do prazo.
  2. Sustenta a Requerida, invocando em seu apoio as Informações Vinculativas n.os 3716/2008 e 1774/2017, que, não obstante não haver uma entrada específica na tabela prevista no art. 151º do CIRS, a actividade de administradores judiciais, ou de insolvência, se integra no código “1310 – Administradores de bens”, uma vez que eles têm como função essencial administrar os bens do insolvente e garantir os pagamentos aos credores – e assim se aplicaria o art. 6º, 4, a), 1) do CIRC, para efeito de aplicação do regime de transparência fiscal.
  3. A Requerida apoia-se ainda nas decisões arbitrais proferidas no Procs. n.os 507/2019-T, 137/2019-T e 150/2019-T.
  4. Relativamente a outros valores tributados em sede de IRS dos Requerentes, a Requerida esclarece que:
    1. Quanto à utilização da habitação, dada a transparência fiscal da sociedade E...– Sociedade de Advogados SP RL, da qual o Requerente A... é sócio, e dado o facto de a sociedade disponibilizar esse rendimento em espécie ao seu sócio, o montante correspondente (€4.800,00 em 2017) deve ser considerado rendimento da Categoria B do Requerente A... (art. 3º, 1, b) do CIRS). Com efeito, insiste a Requerida, o alegado comodato não modifica a existência de um rendimento em espécie, para efeitos dos arts. 1º, 2 e 24º, 2 do CIRS – sendo esta uma vantagem económica expressamente tipificada por lei.
    2. Quanto ao coeficiente a aplicar aos serviços prestados no âmbito da actividade de administrador judicial, a AT mantém que, enquadrando-se a actividade no código 1310 da tabela prevista no art. 151º do CIRS, deve ser aplicado o coeficiente 0.75 do art. 31º, b), e não o coeficiente 0.35 do art. 31º, c) do CIRS.
    3. Quanto à falta de tributação autónoma (rendas omitidas), a Requerida esclarece que o Requerente A... só declarou rendimentos de alguns prédios seus obtidos em 2017 em Março de 2020, no montante de €5.129,80 relativo ao ano de 2017 e de €5.188,56 relativo ao ano de 2018 – razão pela qual esses montantes foram acrescidos no quadro 04 do Anexo F das declarações modelo 3 de IRS dos anos de 2017 e 2018 do Requerente, dando cumprimentos aos arts.8º, 1 e 72º, 1, e) do CIRS. Por outro lado, não tendo regularizado a situação durante a acção inspectiva, está vedado ao Requerente A... optar pelo englobamento dos rendimentos omitidos na declaração de 2020 (art. 58º do RCPITA), impondo-se, antes, que esses rendimentos sejam imputados no ano em que foram obtidos. Quando muito, o Requerente poderá solicitar a correção do IRS do ano de 2020 na qual foram alegadamente declarados os mesmos rendimentos
    4. Quanto à revisão da matéria colectável, a Requerida esclarece que, não obstante ambas as sociedades dos Requerentes terem sido sujeitas a procedimentos inspectivos dos quais resultou nova liquidação assente na aplicação do regime de transparência fiscal, só uma delas (a sociedade C... SAJ) apresentou pedido de revisão da matéria colectável nos termos do art. 91º da LGT, pelo que foi preciso aguardar o acordo obtido na comissão de revisão, nos termos do art. 92º, 3 da LGT, e do qual resultou matéria colectável corrigida para o exercício do ano 2017.
  5. A Requerida conclui que não estão reunidos os pressupostos para a atribuição de juros indemnizatórios.
  6. Em Alegações, a Requerida limita-se a recapitular os argumentos já apresentados na sua Resposta.

 

III. C. Fundamentação da decisão

 

  1. Relativamente à questão prévia da caducidade do direito à liquidação, esta não se verifica, já que a notificação foi validamente efectuada dentro do prazo de quatro anos, em 29 de Dezembro de 2021 – não havendo lugar à aplicação do prazo de três anos que resultaria do art. 45º, 2 da LGT, pois este regime está restrito a situações de erros imediatamente perceptíveis nas declarações dos sujeitos passivos, o que não foi manifestamente o caso.
  2. Além disso, a opção dos Requerentes pela tributação conjunta em IRS (art. 59º, 2 do CIRS) dispensa a dupla notificação, bastando a de um deles, como resulta do art. 16º, 5 da LGT.
  3. Relativamente à questão principal em causa no presente processo, além de se afigurar consensual que a actividade de Administrador de Insolvência não está especificamente prevista na tabela a que se refere o art. 151.ºdo CIRS, há que reconhecer que a mesma actividade não está enquadrada na de “administrador de bens”, e que esse enquadramento teria que resultar de uma integração analógica que a própria lei veda, por conjugação do art. 103º, 2 da Constituição com o art. 11º, 4 da LGT.
  4. Estabelece o art. 6º do CIRC, no que aqui interessa:

Artigo 6.º

Transparência fiscal

1 - É imputada aos sócios, integrando-se, nos termos da legislação que for aplicável, no seu rendimento tributável para efeitos de IRS ou IRC, consoante o caso, a matéria coletável, determinada nos termos deste Código, das sociedades a seguir indicadas, com sede ou direção efetiva em território português, ainda que não tenha havido distribuição de lucros:

(...)

b) Sociedades de profissionais;

4 - Para efeitos do disposto no n.º 1, considera-se:

a) Sociedade de profissionais:

1) A sociedade constituída para o exercício de uma atividade profissional especificamente prevista na lista de atividades a que se refere o artigo 151.º do Código do IRS, na qual todos os sócios pessoas singulares sejam profissionais dessa atividade;

  1. Por seu lado, o art. 151º do CIRS estabelece:

Artigo 151.º

Classificação das atividades

As atividades exercidas pelos sujeitos passivos do IRS são classificadas, para efeitos deste imposto, de acordo com a Classificação das Atividades Económicas Portuguesas por Ramos de Atividade (CAE), do Instituto Nacional de Estatística, ou de acordo com os códigos mencionados em tabela de atividades aprovada por portaria do Ministro das Finanças.

  1. Ao abrigo deste artigo 151.º foi emitida a Portaria n.º 1011/2001, de 21 de Agosto, em que se inclui uma lista com a denominação “Tabela de actividades do artigo 151.º do CIRS”.
  2. Nessa lista, inclui-se, além do mais, o seguinte:

13 - Outras pessoas exercendo profissões liberais, técnicos e assimilados:

1310 Administradores de bens;

  1. A insusceptibilidade de integração analógica em normas de incidência é, aqui, o argumento decisivo, e dispensaria outros, para se concluir que o regime da transparência fiscal previsto no art. 6º do CIRC não é aplicável às sociedades de Administradores de Insolvência, para efeito de ser imputada no rendimento dos sócios, em sede de IRS, a matéria colectável da sociedade, nos termos do n.º 1 do mesmo artigo, na medida em que a actividade do Administrador Judicial não está especificamente prevista na tabela a que se refere o art. 151º do CIRS.
  2. Mesmo assim, cabe acrescentar, no mesmo sentido, que o Instituto Nacional de Estatística atribui às sociedades de administradores da insolvência o código “69101” da classificação das actividades económicas (CAE), que corresponde a “actividades jurídicas”, e não qualquer código relacionado com administração de bens, ao que não será alheio o facto de a actividade dos administradores da insolvência ir muito para além da mera administração de bens, que em muitos casos nem sequer ocorrerá, envolvendo a prática de diversos actos de natureza jurídica, que não consubstanciam administração de bens.
  3. Refira-se, a ilustrar esta asserção, a enumeração de actividades que consta da fundamentação do Acórdão do STA, 2ª Secção, de 8 de Junho de 2022, Proc. nº 0871/19.7BEPRT, tal como da fundamentação dos acórdãos arbitrais n.os 250/2019-T e 37/2021-T, e que se cinge a referências ao CIRE:
    1. Sejam funções processuais que não constituem administração de bens, como a elaboração de uma lista dos créditos reconhecidos e não reconhecidos; a apreensão dos elementos da contabilidade e de todos os bens integrantes da massa insolvente, para que deles fique depositário; a publicitação da composição da massa  insolvente; a elaboração de um inventário dos bens e direitos integrados na massa insolvente com indicação do seu valor; a elaboração de uma lista provisória dos credores que constem da contabilidade do devedor e tenham reclamado os seus créditos; a elaboração de um relatório com análise do estado da contabilidade do devedor e opinião sobre os documentos de prestação de contas e de informação financeira apresentados, e indicação das perspectivas de manutenção da empresa do devedor e da conveniência de aprovar um plano de insolvência; o encerramento dos estabelecimentos do devedor; a apresentação de proposta de plano de insolvência, a emissão de parecer sobre a proposta de plano de insolvência apresentada pelo devedor e a fiscalização da execução do plano de insolvência; a alegação do que tiver por conveniente para efeito da qualificação da insolvência como culposa, a emissão de parecer sobre essa qualificação quando não tenha sido o proponente, e a intervenção no respectivo incidente;
    2. Seja a prática de actos que não se integram nos poderes, limitados, de administração de bens, como, por exemplo, a desistência, confissão e transação, mediante concordância da comissão de credores, em qualquer processo judicial em que o insolvente ou a massa insolvente sejam partes; a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência; a intervenção e propositura de acções de responsabilidade em favor do próprio devedor, de acções destinadas à indemnização dos prejuízos causados à generalidade dos credores da insolvência pela diminuição do património integrante da massa insolvente, e de acções contra os responsáveis legais pelas dívidas do insolvente; a exigência aos sócios, associados ou membros do devedor, logo que o tenha por conveniente, das entradas de capital diferidas e das prestações acessórias em dívida, independentemente dos prazos de vencimento que hajam sido estipulados, intentando para o efeito as acções que se revelem necessárias; a decisão sobre o cumprimento, ou não, de contratos ainda não cumpridos à data da declaração de insolvência; a venda antecipada e a venda dos bens da massa insolvente; a realização de diligências para a alienação da empresa do devedor, ou dos seus estabelecimentos; a opção por satisfazer integralmente um crédito com garantia real à custa da massa insolvente, antes de proceder à venda do bem objecto da garantia.
  4. Adicionalmente, refira-se que o código “1310” constante da tabela anexa à Portaria n.º 1011/2001, de 21 de Agosto, atribuído aos “administradores de bens”, enquadra-se na categoria “13 - Outras pessoas exercendo profissões liberais, técnicos e assimilados”, e indicam-se nessa categoria 37 actividades, não se encontrando entre elas qualquer referência ao administrador judicial.
  5. Convirá ainda relembrar que o art. 6º do CIRC é uma norma de natureza excepcional, cuja aplicação depende da concreta especificação das actividades a que se aplica – pelo que, sendo essa especificação pressuposto da aplicação da norma, não se pode presumir que o legislador tenha dito menos, ou coisa diferente, daquela que plasmou na letra da lei.
  6. Em conclusão desta questão principal, não se verifica, pois, o requisito exigido pela alínea b) do n.º 1, e pela alínea a) do n.º 4, do artigo 6.º do CIRC para aplicação do regime de transparência fiscal.
  7. Consequentemente, a liquidação impugnada assenta num erro sobre os pressupostos de direito, por errada interpretação das normas referidas, justificando que seja anulada, nos termos art. 163º, 1, do CPA, subsidiariamente aplicável nos termos do art. 2º, c) da LGT e do art. 29º, 1, a) do RJAT.
  8. As liquidações de juros compensatórios têm como pressupostos as respectivas liquidações de IRS, pelo que enfermam dos mesmos vícios, que justificam também a sua anulação.
  9. Anulado o acto de liquidação, no segmento indicado, fica prejudicada a apreciação da legalidade das correcções tributárias efectuadas em sede de IRS na esfera dos Requerentes.
  10. Importa ainda decidir as demais questões suscitadas pelos Requerente, e assim:
    1. A situação de utilização, na actividade do Requerente A..., de um prédio urbano para habitação, configura um rendimento em espécie (arts. 1º, 2, 3º, 1, b) e 24º, 2 do CIRS), não obstando à sua tributação a alegação (não comprovada) de que existe um comodato verbal, e de que ocorre uma utilização limitada das instalações;
    2. Para efeitos de aplicação dos coeficientes do art. 31º do CIRS, resulta do entendimento adoptado quanto à questão principal que se aplica aos Requerentes o coeficiente de 0.35 (art. 31º, c) do CIRS), e não o de 0.75 (art. 31º, b) do CIRS), visto que a actividade dos Requerentes não está especificamente prevista na tabela a que se refere o art. 151º do CIRS;
    3. Quanto a rendas omitidas pelo Requerente A..., está excluído o englobamento, e aplica-se a tributação autónoma reportada ao próprio ano de geração dos rendimentos, visto que a regularização da situação é posterior à acção inspectiva (arts. 8º, 1 e 72º, 1, e) do CIRS e art. 58º do RCPITA) – cabendo ao Requerente corrigir, querendo, a sua declaração de rendimentos de 2020;
    4. Quanto à designada “revisão da matéria colectável” (art. 91º LGT), trata-se de matéria que extravasa da jurisdição arbitral, seja porque não foi invocada qualquer ilegalidade, nem se descortina qualquer ilegalidade (atento o disposto no art. 2º do RJAT), seja porque se trata de matéria a ser decidida em sede própria, que, até por envolver métodos indirectos, sempre inviabilizaria a jurisdição arbitral (art. 2º, b) da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março).
  11. Em relação às matérias impugnadas como “utilização de prédio urbano para habitação”, “rendas omitidas da categoria F” e “revisão da matéria colectável” (alíneas a), c) e d) do ponto anterior), improcede, pois, o pedido dos Requerentes.
  12. Os Requerentes pedem ainda a condenação da Autoridade Tributária no reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido do pagamento de juros indemnizatórios, à taxa legal, calculados sobre o imposto, até ao reembolso integral da quantia devida.
  13. De harmonia com o disposto no art. 24º, b) do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a AT, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito”. O que está em sintonia com o preceituado no art. 100º da LGT, aplicável por força do disposto no art. 29º, 1, a) do RJAT.
  14. Ainda nos termos do art. 24º, 5 do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que remete para o disposto nos artigos 43º, 1 da LGT e 61º, 5 do CPPT, implicando, em princípio, o pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respectiva nota de crédito.
  15. Por efeito da reconstituição da situação jurídica em resultado da anulação do acto tributário, há, assim, lugar ao reembolso do imposto indevidamente pago, dado que a liquidação é imputável à AT, já que foi elaborada por sua iniciativa, e dado que o imposto foi efectivamente pago.
  16. Os juros indemnizatórios são devidos, nos termos dos arts. 43º, 1 e 4, e 35º, 10 da LGT, 61º, 5, do CPPT, 559º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril, à taxa legal supletiva, e contados desde a data do pagamento até à data do processamento da respectiva nota de crédito.
  17. Foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras, ou cuja apreciação seria inútil – art. 608.º do CPC, ex vi art. 29.º, 1, e) do RJAT.

IV. Decisão

 

Nos termos expostos, acordam neste Tribunal Arbitral em julgar parcialmente procedente o pedido de pronúncia arbitral e, consequentemente:

  1. Declarar ilegais e anular os actos tributários de liquidação de IRS n.º 2021..., e de liquidação de juros compensatórios n.º 2021..., referentes ao ano de 2017, com as consequências legais, em relação às matérias impugnadas neste processo, com excepção das indicadas como “utilização de prédio urbano para habitação”, “rendas omitidas da categoria F” e “revisão da matéria colectável” (alíneas a), c) e d) do ponto 17 da fundamentação da decisão, supra);
  2. Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a reembolsar a Requerente dos montantes de imposto e de juros compensatórios indevidamente pagos, acrescidos de juros indemnizatórios, calculados, nos termos legais, desde 27 de Janeiro de 2022.

 

V. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto no art. 306º, 1 e 2, do CPC, no art. 97º-A, 1, a) do CPPT, aplicáveis por força do art. 29º, 1, c) e e) do RJAT, e do art. 3º, 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de €187.442,64.

 

VI. Custas

 

Custas a cargo dos Requerentes, nos termos do art. 5º, 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, não cabendo proceder à fixação do respectivo montante, dado o disposto no art. 22º, 4 do RJAT, a contrario.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 25 de Outubro de 2022

 

Os Árbitros

 

Fernando Araújo

 

 

Tomás Cantista Tavares

 

 

Jorge Carita