Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 655/2021-T
Data da decisão: 2022-06-21  IRC  
Valor do pedido: € 150.322,97
Tema: IRC de 2017. Código Fiscal de Investimento. Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (RFAI). Processamento industrial.
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SUMÁRIO:

  1. Quer no que respeita às leguminosas, que dão origem a conservas em lata e em frasco prontas a consumir, quer no que respeita à polpa de tomate e aos molhos de tomate temperados, o processamento industrial que pela sua natureza exclui a primeira transformação de produtos, produtos estes que são submetidos a uma transformação industrial que os altera sob o ponto de vista físico, químico e fisiológico, encontra-se fora do âmbito de aplicação do Capítulo 20 do Anexo I ao TFUE;
  2. Cumpridos os demais requisitos legais, há lugar à concessão do RFAI, ao abrigo dos artigos 22.º do Código Fiscal de Investimento e 1.º da Portaria n.º 282/2014, de 30 de Dezembro, nos casos em que não estamos perante a comercialização de produtos agrícolas, após realização do processo de transformação, quer tendo em consideração o conceito de produto agrícola constante do Regime Geral de Isenção por Categoria (RGIC), quer do conceito de transformação previsto no direito europeu, à exceção do que se refere no artigo 1.º, n.º 3, alínea c), do RGIC, que considera não aplicáveis os auxílios nas situações aí especialmente previstas.

 

DECISÃO ARBITRAL

Os árbitros Prof. Doutor Victor Calvete (árbitro-presidente), Dr.ª Alexandra Iglésias (árbitra relatora) e Dr. Amândio Silva (árbitro adjunto), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 2021-12-24, acordam no seguinte:

I. RELATÓRIO

 

A..., LDA., pessoa coletiva n.º..., com sede na ..., Lote ..., ...-... ..., concelho de ..., região Centro de Portugal Continental, vem requerer pedido de pronúncia arbitral (doravante PPA), nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 10.º e 2.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que regula o Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (doravante RJAT), e nos artigos 1.º, alínea a) e 2.º, ambos da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

 

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante AT)

 

Constitui objeto imediato do presente pedido a decisão de indeferimento proferida pela Direção de Finanças de Leiria, a coberto de ofício, datado de 02/07/2021, no âmbito da Reclamação Graciosa identificada com o n.º ...2020..., apresentada pela Requerente contra a autoliquidação relativa ao exercício de 2017, que apurou um montante de imposto a receber de Eur. 324.419,15. Constitui objeto mediato o ato de liquidação de IRC   n.º 2021..., atinente ao período de tributação de 2017, o respetivo ato de liquidação de juros compensatórios n.º 2021..., bem como a demonstração de acerto de contas n.º 2021..., emitidos pelo Serviço de Finanças de ..., que apurou com prazo para pagamento voluntário, até 15-07-2021, um montante a pagar de Eur. 63.940,11. Este valor encontra-se regularizado.

 

Peticiona a Requerente que seja: i) Anulada a decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa, proferida pela Direção de Finanças de Leiria, com as demais consequências legais, designadamente ser a AT condenada à correção da Declaração Modelo 22 entregue pela Requerente; ii) Declarada ilegalidade do ato de liquidação de IRC e demais atos impugnados, na parte que constitui objeto do presente pedido arbitral, referente ao exercício de 2017, com a sua consequente anulação, com todas as consequências legais. iii) Condenada a AT no pagamento de juros indemnizatórios.

 

Síntese da posição das Partes

Confrontadas as duas teses em presença, centradas na questão de saber se o projeto de investimento na unidade fabril, realizado pela Requerente, em 2017, no âmbito da transformação de produtos agrícolas, e cujo valor total ascendeu a Eur. 3.026.805,53, se encontra abrangido pelo Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (RFAI), assinala-se que a Autoridade Tributária considerou não elegível, para efeito do Regime Fiscal de Apoio ao Financiamento (RFAI), o investimento realizado pela Requerente no período de tributação assinalado.

 

Fundamentou esta tese, considerando que o investimento teve por objeto uma atividade económica enquadrada no sector da transformação e comercialização de produtos agrícolas, de acordo com a definição constante do artigo 38.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), e enumerada no anexo I a esse Tratado sob a nomenclatura “Preparados de produtos hortícolas de frutas e de outras plantas ou partes de plantas” (capítulo 20), e, como tal, se encontra excluído do âmbito de aplicação do benefício fiscal pelo artigo 1.º da Portaria n.º 282/2014, de 30 de dezembro, aplicável ao RFAI por remissão do n.º 1 do artigo 22° do CFI, e do próprio n.º 1 do artigo 22° deste diploma, que na sua parte final, exceciona do âmbito de aplicação do referido regime as atividades excluídas do âmbito setorial de aplicação das OAR e do RGIC.

 

Em contrapartida, a Requerente invoca essencialmente que a singela menção (acima reproduzida) que consta do Anexo I do TFUE é inadequada para enquadrar a sua atividade transformadora, que tem real natureza industrial, e da qual resultam produtos que não são “preparados”, razão pela qual não tem cabimento a exclusão do âmbito de aplicação do benefício fiscal.

 

Ora, vejamos mais em pormenor as posições em confronto:

  1. Da Requerente

A Requerente apresentou alegações escritas onde mantêm, no essencial, os argumentos apresentados na petição inicial, acrescentando ou sublinhando o seguinte:

Segundo aquela, e em primeiro lugar, o objeto do presente pedido arbitral no que concerne ao ato de liquidação de IRC de 2017, apenas se cingirá à correção efetuada pelos serviços inspetivos no âmbito do RFAI, sendo que as restantes correções constantes do Relatório de Inspeção, serão objeto de impugnação judicial, conforme determina o n.º 2 do artigo 3.º do RJAT. 

 

Citando o Relatório de Inspeção, onde se pode ler:

“Analisando as designações dos produtos constantes do Anexo I do TFUE, conclui-se que a atividade de “Preparação e conservação de frutos e produtos hortícolas por outros processos” se enquadra no Capítulo 20 – Preparados de produtos hortícolas, de frutas e de outras plantas ou partes de plantas”. (…) Efetivamente, a transformação de produtos agrícolas de que resulte um produto agrícola enumerado no Anexo I do TFUE encontra-se excluída do âmbito do RFAI” (sublinhado nosso) – vem referir a Requerente, não poder concordar com tal entendimento, uma vez que, “(…) a atividade desenvolvida pela mesma, reunia as condições necessárias para poder ter acesso a benefícios fiscais ao abrigo do CFI e que os investimentos realizados durante o exercício de 2017, com o propósito de potenciar o investimento produtivo empresarial – requisito esse, necessário para que se possa solicitar o referido benefício fiscal – eram elegíveis para efeitos do RFAI”.

 

Acrescenta ter sido requerido pela Requerente, através da apresentação de reclamação da autoliquidação de IRC apresentada no exercício de 2013 (a qual foi deferida pela Autoridade Tributária), a consideração do benefício fiscal (RFAI), na medida em que já tinham sido realizados investimentos idênticos, desde o ano de 2011, tendo a atividade industrial da Requerente permanecido a mesma, ao longo dos referidos períodos.

 

De acordo com a descrição da Requerente, “as instalações industriais da Requerente estão localizadas no mesmo polo industrial da sociedade B..., S.A., a qual tem por objeto social a indústria de moagem, comércio de cereais, descasque e transformação de frutos de casca rija comestíveis, e que constitui o principal fornecedor de leguminosas secas da Requerente.

 

Sumariamente, em relação à produção de leguminosas, consideradas as 1.ª e 2ª linhas de produção, a atividade da Requerente caracteriza-se, portanto, da seguinte forma:

· A Requerente receciona diariamente nas suas instalações produtos, designadamente, leguminosas secas, tais como, feijão branco, feijão manteiga, feijão encarnado, grão-de-bico, adquiridos à sociedade B..., S.A.;

 

· Os referidos produtos são importados pela B..., S.A., e trata-se de leguminosas cultivadas nos seus países de origem, que passam por um processo que inclui a operação de apanha e corte das plantas, a sua recolha e trilha, assim como, são sujeitas a uma pré-limpeza com o intuito de eliminar raízes e corpos estranhos, sendo, posteriormente, ensacadas para exportação;

 

· Ora, a B..., S.A., aquando da receção das leguminosas importadas, previamente submetidas às várias operações acima descritas, procede à primeira transformação desses produtos agrícolas primários em território nacional;

 

· Este processo de transformação abrange as seguintes operações: as leguminosas voltam a ser selecionadas mecanicamente, limpas através da sua limpeza com crivagem e aspiração, máquina despedradora (remoção de pedras), máquina densimétrica (separação por densidade através de almofada de ar), deteção de metais e escolha eletrónica com vista à remoção de corpos estranhos (produto não conforme), bagos escuros, inspeção visual humana (seleção por cor), de acordo com a exigência da Requerente;

 

De seguida, ao chegarem às instalações da Requerente, as matérias-primas (leguminosas secas) são sujeitas às seguintes etapas de transformação: (i) Processo de hidratação, em silos de elevada capacidade, nos quais os produtos são demolhados em água; (ii) Processo de primeira fase de cozimento/escaldão, que culmina com um processo de arrefecimento; (iii) Processo de inspeção eletrónica (remoção de grãos não característicos); (iv) Enchimento das latas e dos frascos (introdução do produto, do líquido de cobertura e fecho da embalagem em cravadeira ou capsuladora, tratando-se de lata ou frasco de vidro); (v) Esterilização dos produtos em autoclave a uma temperatura de 120.º graus, (que consubstancia um segundo processo de cozimento à pressão 3 bar); (vi) Controlo de qualidade pela passagem dos frascos e latas por uma máquina de raio x (que procede à verificação da existência de qualquer corpo estranho, expurgando as latas e frascos desconformes); (vii) Rotulagem automática colocada consoante a marca do produto a comercializar; (viii) Embalamento automático em tabuleiros de cartão envolvidos com filme plástico retráctil, seguido de acondicionamento em paletes, também envolvidas em filme plástico estirável, e posterior encaminhamento para armazém através de carris e navete; (ix) Armazenamento em armazém automático através de elevadores, navetes e shuttles para arrumação de produto para futuro carregamento em camiões.

 

Perante o exposto, verifica-se que, a atividade da Requerente, no que diz respeito à produção de leguminosas, inicia-se através de matérias-primas secundárias, ou seja, produtos agrícolas submetidos a operações unitárias (tais como já referido supra, limpeza, escolha, calibragem, secagem e embalagem em saco), que garantem a sua aptidão para transformação industrial e a boa conservação das matérias-primas”.

 

Enfatiza ainda que os produtos por si produzidos (conservas) “são um produto complexo/composto, ou seja a própria embalagem, (frasco e cápsula), (lata e tampa), para além de serem imprescindíveis à transformação industrial no fabrico da conserva fazem parte do processo e tornam-se partes integrantes do produto final, uma vez que, sem elas não é possível fazer a conserva, pelo que as próprias embalagens incorporam tecnologia importante e são fabricadas com esse intuito de fazer parte do produto final.

 

· O resultado desta transformação dá origem a enfrascados e enlatados de leguminosas apertizadas, prontas a consumir. A apertização traduz-se num processo térmico aplicado a alimentos convenientemente acondicionados em embalagens herméticas (latas, vidros, plásticos ou outros materiais) e resistentes ao calor, a uma temperatura e período de tempo específicos para cada produto, por forma a atingir a esterilização comercial. (…) o processo industrial tem como propósito transformar as leguminosas em produtos cozidos, prontos a consumir e com elevado poder de conservação, o que depende não só do processo de transformação e esterilização, como da própria embalagem.

 

No que diz respeito à 3.ª linha de produção da fábrica relativa à polpa de tomate e molhos apertizados, a Requerente define a atividade da seguinte forma:

· O principal fornecedor é a sociedade espanhola “C...”, que adquire o tomate a produtores de tomate;

· Posteriormente, a Requerente processa o concentrado de tomate, adicionando água ao preparado e, por vezes, adiciona ervas aromáticas ou outros temperos, produzindo um concentrado que é entregue em pasta nas instalações fabris da mesma;

· Segue-se o enchimento em garrafa de vidro ou lata e capsulagem a quente para posterior pasteurização;

· Através de um processo automático similar ao que descrevemos anteriormente para as leguminosas apertizadas, as latas e os frascos de polpa de tomate são rotulados, embalados, acondicionados e armazenados pela Requerente para posterior venda ao cliente final (cadeias de distribuição, retalhistas, hipermercados)”.

 

A propósito do processo de transformação do preparado de tomate, em polpa e molhos temperados de tomate, cita o parecer técnico do Instituto Superior de Agronomia onde se pode ler, relativamente à linha de produção da polpa de tomate, que: “a A... utiliza matérias-primas secundárias, concentrado de tomate (XXX) produzido por empresas que executam a transformação primária do tomate: (i) adição de água e outros ingredientes ao preparado (sal, ervas aromáticas, etc.); (ii) Após o processo de mistura e homogeneização do preparado de tomate, procede-se ao enchimento em garrafa de vidro e capsulagem a quente do produto, e sua posterior pasteurização em túnel contínuo, controlo de qualidade e colocação do produto final (polpa de tomate) em garrafas de vidro e/ou latas (latas são cheias na linha 1, linha de latas); (iii) Através de um processo automático, similar ao que é utilizado para as leguminosas secas, as latas e os frascos de polpa de tomate são rotulados, embalados, acondicionados e armazenados em armazém automático pela Requerente, para posterior venda ao cliente final”.

 

“Isto é, verifica-se que, a primeira transformação do tomate processa-se nas instalações dos fornecedores espanhóis, os quais selecionam os tomates, retiram-lhe as peles, procedem à sua transformação através de um processo de drenagem, tendo em vista a obtenção do concentrado de tomate, que consubstancia a matéria-prima para o processo industrial da 3.ª linha de produção.

 

Não obstante, a polpa de tomate e os molhos divergirem na sua fórmula, são ambos embalados a quente em lata ou frasco, sendo que, as embalagens após o fecho são submetidas a tratamento térmico por forma a garantir a respetiva estabilidade à temperatura ambiente.

 

Face ao acima exposto, verifica-se que, quer no que respeita às leguminosas, que dão origem a conservas em lata e em frasco prontas a consumir, quer no que respeita à polpa de tomate e aos molhos de tomate temperados que, efetivamente a atividade industrial da Requerente não inclui a primeira transformação dos produtos, produtos estes que são submetidos a uma transformação industrial quando chegam às instalações fabris da Requerente, que os altera por completo, sob o ponto de vista físico, químico e fisiológico”.

 

Contesta pois a Requerente, a interpretação feita pela AT, uma vez que esta procede a uma segunda e terceira transformação dos produtos acima referidos, e posteriormente, coloca-os à disposição do mercado nacional e internacional para venda e consumo, não podendo, pois, considerar-se que a Requerente comercializa produtos agrícolas.

 

E recorre a novo parecer técnico, desta vez elaborado pela Universidade X… onde se declara que “Os produtos alimentares de origem vegetal podem ser comercializados na sua forma original, isto é, sem sofrerem qualquer transformação, neste caso designados por produtos agrícolas, ou depois de transformados sofrendo alterações físicas e/ou químicas e/ou biológicas, em que o material original se vai afastando das suas características naturais. Quando estas transformações ocorrem em ambiente industrial os produtos são genericamente designados por alimentos processados (Decreto-Lei nº 85/2015, 21 de maio) (…) a A... é uma empresa que se dedica à produção de produtos obtidos da transformação secundária e terciária de matérias-primas preparadas por empresas que submeteram produtos agrícolas a uma transformação primária.”

 

De tudo o que expôs, a Requerente retira a conclusão de que os produtos que saem das instalações da fábrica, para comercialização não são produtos agrícolas, quer tendo em consideração o conceito de produto agrícola constante do Regime Geral de Isenção por Categoria (doravante RGIC), quer do próprio conceito de transformação previsto no direito europeu.

 

Por último, refere a Requerente que segundo a AT, aquela não teria provado em momento algum, o que peticiona no pedido arbitral, e que os elementos apresentados não são probatório suficiente ou idóneo que permita sustentar a sua posição, sublinhando que algo contraditoriamente a mesma AT veio nos presentes autos opor-se à produção de prova testemunhal.

 

De acordo com a Requerente e ao contrário do alegado, ao longo de todo o procedimento inspetivo e também no âmbito do processo de reclamação graciosa, foram prestadas as informações necessárias para que a AT percecionasse o modo como a atividade industrial da Requerente se processa, o que lhe permitiria ter tirado conclusões opostas às que retirou, acrescentando que foram juntos quatro pareceres técnicos elaborados por pessoas com formação especializada na matéria em apreço que retratam e descrevem de forma explícita o processo industrial referente à atividade da Requerente.

 

De resto, segundo a Requerente, os Serviços de Inspeção Tributária visitaram a fábrica e puderam constatar o processo de transformação, quando inspecionaram o exercício de 2016, pelo que se tivessem dúvidas poderiam ter voltado a fazê-lo no âmbito da inspeção ao exercício de 2017, ora em apreço.

 

E finaliza deste modo: “(…) a AT não faz uma correta interpretação da lei, no que às OAR diz respeito, sendo que o seu entendimento consiste apenas e só numa remissão cega para o Anexo I do TFUE, sem ter em consideração que as OAR não impõem restrições a auxílios de estado nas atividades de transformação de produtos agrícolas em produtos não agrícolas.

 

  1. Da Requerida

A Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) apresentou resposta, em que defendeu a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.

 

Refere a Requerida que, “o investimento foi direcionado para a atividade principal da A..., “Preparação e conservação de frutos e produtos hortícolas por outros processos” (CAE 10395), atividade que estando enquadrada no Capítulo 20 – Preparados de produtos hortícolas, de frutas e de outras plantas ou partes de plantas, do Anexo I do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (doravante apenas Tratado), não é elegível para efeitos do benefício fiscal RFAI, previsto no artigo 1.º nº 1 al. b) do Decreto Lei n.º 162/2014 do Código Fiscal ao Investimento (CFI), nomeadamente para efeitos de dedução à coleta nos termos do previsto nos art.º 22.º a 26.º do CFI, em conformidade com o disposto pelo n.º 1 do art.º 22.º do CFI, n.º 2 do art.º 2.º do CFI, art.º 1 da Portaria n.º 282/2014, de 30 de dezembro, normas que exprimem inequivocamente a subordinação da concessão destes auxílios às Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020, publicadas no Jornal Oficial da União Europeia n.º C 209, de 23 de julho de 2013 (doravante apenas OAR) e ao Regulamento (UE) n.º 651/2014, de 16 de junho de 2014, publicado no Jornal Oficial da União Europeia n.º C 187, de 26 de junho de 2014 (doravante Regulamento Geral de Isenção por Categoria ou apenas RGIC), em conformidade com o art.º 107.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE).”

 

“Nestes termos, relativamente ao período de tributação de 2017, foram desconsiderados - O valor da dedução à coleta de IRC a título de saldo de RFAI não deduzido no período anterior (2016) indevidamente considerada pela A... no apuramento de IRC referente ao período de tributação de 2017, no montante de € 17.774,00, valor que já tinha sido corrigido pela AT no âmbito de outro procedimento inspetivo; - O valor da dotação do período a titulo de RFAI declarada pela requerente no montante de €756.701,38; - O saldo que transitaria para o(s) período(s) seguinte(s) no montante de €756.701,38.”

 

Termina, afirmando que, “(…) à mingua ou à total inexistência de prova trazida à colação quer no procedimento tributário, quer nos presente autos, a conclusão não poderia ser diferente”.

 

Com vimos supra, a Requerida considera que os elementos apresentados não são probatório suficiente ou idóneo que permita sustentar as alegações proferidas quer em sede de procedimento, quer nestes autos, contrariando a posição da Requerente e invocando que o princípio do ónus da prova se consubstancia no princípio de que quem alega um determinado facto constitutivo de um direito, tem a necessidade de prová-lo. (cf. art.º 342.º do Código Civil – CC e n.º 1 do art.º 74.º da LGT).

 

Partindo, de novo, da ideia de que os investimentos da Requerente que têm por objeto uma atividade económica enquadrada no sector da transformação e comercialização de produtos agrícolas, enumerados no anexo I do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, se encontram expressamente excluídos do âmbito de aplicação da OAR, sendo abrangidos pelas Orientações para os auxílios estatais no sector agrícola dentro dos pressupostos legais exigidos nessas normas Europeias a Requerida, reafirma o entendimento de que, apesar da atividade da Requerente ter enquadramento nas “Indústrias transformadoras - divisões 10 a 33” (alínea b) do art.º 2.º da Portaria n.º 282/2014), não é elegível para efeitos do beneficio fiscal RFAI, por força das restrições previstas no artigo 1.º da Portaria decorrentes das OAR e do RGIC.

     ***

Em conformidade com o preceituado na alínea c), do n.º 1, do artigo 11.º, do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º, da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral coletivo, foi constituído em 24-12-2021.

 

Em 11-01-2022, foi proferido despacho arbitral ordenando a notificação do dirigente máximo do serviço da administração tributária para apresentar resposta, nos termos e prazo do artigo 17.º, n.ºs 1 e 2, do RJAT, juntando Processo Administrativo (doravante PA).

 

Em 25-02-2022, foram notificadas as partes do despacho, de 24-02-2022, proferido pelo Tribunal Arbitral, no qual se dispensava a reunião prevista no artigo 18.º, n.º 1, do RJAT, convidando-se as partes, querendo, a apresentar alegações escritas, o que ambas efetuaram.

 

No mesmo despacho o Tribunal Arbitral estimava-se ainda que, a prolação de decisão arbitral ocorresse dentro do prazo máximo previsto no n.º 1, do artigo 21.º, do RJAT, convidando-se o Requerente, a pagar a taxa arbitral subsequente prevista no artigo 4.º, n.º 3, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

II. SANEAMENTO

 

O Tribunal Arbitral Coletivo foi regularmente constituído, nos termos previstos na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º, da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro.

 

As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas, e encontram-se legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º, do RJAT, e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

 

A cumulação de pedidos, admitida pelo artigo 3.º n.º 1, do RJAT, é aqui possível na medida em que a procedência dos pedidos depende essencialmente da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e dos mesmos princípios ou regras de direito, devendo concluir-se que estão preenchidos os pressupostos de que depende a cumulação de pedidos, no caso.

 

Não foram suscitadas exceções de que deva conhecer-se.

 

O processo não enferma de nulidades.

 

Inexiste, deste modo, qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa. 

 

III MATÉRIA DE FACTO

 

  1. Factos provados:
  1. A Requerente é uma sociedade por quotas, com sede na ..., Lote ..., ...-... ..., concelho de ..., região Centro de Portugal Continental, sujeito passivo de IRC. 
  2. A ora Requerente tem como atividade principal a preparação e conservação de frutos e produtos hortícolas por outros processos de conservação (CAE Principal 10395), tendo ainda como atividades secundárias a fabricação de sumos de frutos e de produtos hortícolas (CAE Secundário 10320) e a transformação de cereais e leguminosas (segundo CAE Secundário 10613).
  3. No contexto da obtenção de benefícios fiscais, em concreto de um investimento ilegível para efeitos do RFAI, a Requerente apresentou um pedido de esclarecimentos à Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP), no âmbito do CAE 10613.
  4. No dia 21/04/2015, a AICEP respondeu, por escrito, confirmando o entendimento de que a Requerente ao exercer uma atividade com o CAE 10613, reunia as condições necessárias para ter acesso a benefícios fiscais ao abrigo do Código Fiscal do Investimento (CFI).
  5. A Requerente efetuou investimentos em anos anteriores, designadamente em 2011 e 2012, tendo sido utilizado o respetivo benefício fiscal (RFAI).
  6. Em 2017, a Requerente efetuou um investimento na unidade fabril, cujo valor total ascendeu a Eur. 3.026.805,53.
  7. As empresas fornecedoras da Requerente procedem à 1.ª transformação do produto que consiste na secagem, limpeza, calibragem, seleção, e embalamento.
  8. No âmbito das suas obrigações declarativas, a Requerente procedeu, em 29/06/2018, à entrega da correspondente Declaração Modelo 22, referente ao exercício de 2017, sendo que, na referida Declaração, a Requerente apurou matéria coletável de Eur. 877.861,54, determinando uma coleta total de Eur. 184.350,92 e um valor de imposto a recuperar de   Eur. 324.419,15.
  9. Da entrega da Declaração Modelo 22, resultou a demonstração de liquidação de IRC n.º 2018..., emitida pela Autoridade Tributária (AT), referente ao período de 2017, na qual foi confirmado que o valor de imposto a reembolsar à ora Requerente ascendia ao montante de Eur. 324.419,15.
  10. A requerente foi objeto de um procedimento de inspeção interno OI2019..., concretizado pela DF de Leiria de âmbito geral, ao exercício de 2017, em que foram detetadas irregularidades em matéria de imposto que estão na origem da liquidação adicional de IRC ora em dissensão.
  11. O ato de liquidação adicional de IRC n.º 2021..., de 26705/2021, respeitante ao período de tributação de 2017 notificado por via eletrónica no dia 16/06/202, deu origem à demonstração de acerto de contas n.º 2021..., na qual foi apurado um total a pagar de Eur 63.940,11 (Eur. 57.613,66 de imposto e Eur. 6.326,45 de juros compensatórios).
  12. O referido ato de liquidação e de acerto de contas foi objeto de pagamento pela Requerente, em 14/07/2021.
  13. A Requerente apresentou reclamação graciosa, em 29/06/2020, a qual foi identificada com o n.º ...2020..., tendo requerido a correção do montante de reembolso de IRC relativo ao período de 2017 para Eur. 410.802,01, ao invés do valor de Eur. 324.419,15 considerado na primeira Declaração Modelo 22 entregue.
  14. Contestando o resultado de indeferimento obtido, interpôs a presente pedido de pronúncia arbitral.

 

Os factos provados basearam-se nos documentos juntos pelas Partes e no PA.

 

  1. Factos não provados:

Com relevo para a decisão da causa, não existem outros factos que não tenham ficado provados.

 

  1. Fundamentação da fixação da matéria de facto:

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem de se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe antes o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada.

 

Assim, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. o artigo 596.º, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 29.º n.º 1 alínea e), do RJAT). Os factos dados como “provados”    foram-no com base nos documentos juntos aos autos com o PPA, e no PA - todos documentos que se dão por integralmente reproduzidos - e, bem assim, no consenso das Partes.

 

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas Partes, à luz do artigo 110.º n.º 7, do CPPT (aqui aplicável por força do disposto no artigo 29.º n.º 1, alínea a), do RJAT), a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados e não provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

 

Não se deram como provadas nem não provadas as alegações feitas pelas Partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

IV. DO DIREITO

 

A questão decidenda é pois a de saber se o investimento realizado pela Requerente no período de tributação de 2017 é elegível para efeitos de aplicação do Regime Fiscal de Apoio ao Investimento (RFAI).

 

Recorda-se que a Autoridade Tributária considerou não elegível, para efeito do Regime Fiscal de Apoio ao Financiamento (RFAI), o investimento realizado pela Requerente no período de tributação de 2017 por considerar que ele teve por objeto uma atividade económica enquadrada no sector da transformação e comercialização de produtos agrícolas, de acordo com a definição constante do artigo 38.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), e enumerada no anexo I a esse Tratado sob a nomenclatura “Preparados de produtos hortícolas de frutas e de outras plantas ou partes de plantas” (capítulo 20), e, como tal, se encontra excluída do âmbito de aplicação do benefício fiscal pelo artigo 1.º da Portaria n.º 282/2014, de 30 de dezembro, aplicável ao RFAI por remissão do n.º 1 do artigo 22° do CFI, e do próprio n.º 1 do artigo 22° deste diploma, que na sua parte final, exceciona do âmbito de aplicação do referido regime as atividades excluídas do âmbito setorial de aplicação das OAR e do RGIC”.

 

Cumpre apreciar e decidir.

 

O RFAI foi aprovado pela Lei n.º 10/2009, de 10 de março, e prorrogado pelos sucessivos Orçamentos do Estado, até 2013.

 

De acordo artigo 1.º da referida Lei, foi criado um sistema específico de incentivos fiscais em determinados setores de atividade, designado por Regime Fiscal de Apoio ao Investimento realizado em 2009, designado por RFAI 2009, respeitando o Regulamento (CE) n.º 800/2008, da Comissão, de 6 de agosto, que declara certas categorias de auxílios compatíveis com o mercado comum.

 

Por sua vez, o artigo 2.º da Lei n.º 10/2009, de 10 de março, determina que o “RFAI 2009 é aplicável aos sujeitos passivos de IRC que exerçam, a título principal, uma atividade:

a) Nos setores agrícola, florestal, agroindustrial e turístico e ainda da indústria extrativa ou transformadora, com exceção dos setores siderúrgico, da construção naval e das fibras sintéticas, tal como definidos no artigo 2.º do Regulamento (CE) n.º 800/2008, da Comissão, de 6 de agosto;

b) No âmbito das redes de banda larga de nova geração”.

 

Do aditamento do RFAI 2009 ao CFI, por via da aprovação do Decreto-Lei n.º 82/2013, de 17 de junho, resultou a manutenção do enunciado dos anteriores artigos 1.º e 2.º, alínea a), da Lei, até à entrada em vigor do novo CFI, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 162/2014, de 31 de outubro (e atualizado sucessivamente).

 

Manteve-se, por seu turno, a redação do artigo 1.º, n.º 2 do novo CFI, nos termos da qual “O regime de benefícios fiscais contratuais ao investimento produtivo e o RFAI constituem regimes de auxílios com finalidade regional aprovados nos termos do Regulamento (UE) n.º 651/2014 da Comissão, de 16 de junho de 2014, que declara certas categorias de auxílio compatíveis com o mercado interno, em aplicação dos artigos 107.º e 108.º do Tratado, publicado no Jornal Oficial da União Europeia, n.º L 187, de 26 de junho de 2014 (adiante Regulamento Geral de Isenção por Categoria ou RGIC).”

 

Foi de facto, em 2013, por força do disposto no n.º 2 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 82/2013, de 17 de junho, que o RFAI foi transferido para o Código Fiscal do Investimento (CFI), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 249/2009, de 23 de setembro.

 

Atualmente encontra-se previsto no Decreto-Lei n.º 162/2014, de 31 de outubro (alterado pela Lei n.º 71/2018, de 31/12), que aprovou o Novo CFI, no âmbito da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 44/2014, de 11/07, e procedeu à revisão dos regimes de benefícios fiscais ao investimento produtivo.

 

Por sua vez, a regulamentação do RFAI foi estabelecida pelo Decreto-Lei n.º 297/2015, de 21 de setembro.

 

O artigo 2.º do CFI, que faz referência, como atividade económica elegível, à indústria transformadora, nos seus n.ºs 2 e 3, dispõe o seguinte:

“2 - Os projetos de investimento referidos no número anterior devem ter o seu objeto compreendido, nomeadamente, nas seguintes atividades económicas, respeitando o âmbito setorial de aplicação das orientações relativas aos auxílios com finalidade regional para o período 2014-2020, publicadas no Jornal Oficial da União Europeia, n.º C 209, de 23 de julho de 2013 (OAR) e do RGIC: a) Indústria extrativa e indústria transformadora; (…)”

 

Por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da economia são definidos os códigos de atividade económica (CAE) correspondentes às atividades referidas no número anterior.

 

Como vimos já, o CFI estabelece igualmente o Regime Fiscal do Investimento (RFAI), regulado nos artigos 22.º e seguintes, sendo que esse artigo 22.º, sob a epígrafe “Âmbito de aplicação e definições”, dispõe, no seu n.º 1, nos seguintes termos: “1 - O RFAI é aplicável aos sujeitos passivos de IRC que exerçam uma atividade nos sectores especificamente previstos no n.º 2 do artigo 2.º, tendo em consideração os códigos de atividade definidos na portaria prevista no n.º 3 do referido artigo, com exceção das atividades excluídas do âmbito sectorial de aplicação das OAR e do RGIC”.

 

A Portaria n.º 282/2014, em execução do disposto no n.º 3 do referido artigo 2.º do CFI, determina, no que toca ao enquadramento comunitário, o seguinte:

“Em conformidade com as Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020, publicadas no Jornal Oficial da União Europeia n.º C 209, de 27 de julho de 2013 e com o Regulamento (UE) n.º 651/2014, de 16 de junho de 2014, publicado no Jornal Oficial da União Europeia n.º C 187, de 26 de junho de 2014 (Regulamento Geral de Isenção por Categoria), não são elegíveis para a concessão de benefícios fiscais os projetos de investimento que tenham por objeto as atividades económicas dos sectores siderúrgico, do carvão, da pesca e da aquicultura, da produção agrícola primária, da transformação e comercialização de produtos agrícolas enumerados no anexo I do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia”.

 

Ora, a atividade económica enquadrada no sector da transformação e comercialização de produtos agrícolas, de acordo com a definição constante do artigo 38.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), e enumerada no anexo I a esse Tratado sob a nomenclatura “Preparados de produtos hortícolas de frutas e de outras plantas ou partes de plantas” (capítulo 20), encontra-se excluída do âmbito de aplicação do benefício fiscal pelo artigo 1.º da Portaria n.º 282/2014, de 30 de dezembro.

 

De acordo com o preâmbulo, o regime definido através do diploma regulamentar encontra-se justificado, pela “necessidade de observar as normas e demais atos emanados das instituições, órgãos e organismos da União Europeia em matéria de auxílios estatais, nomeadamente as Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional para 2014-2020, publicadas no Jornal Oficial da União Europeia n.º C 209/1, de 27 de julho de 2013 e o Regulamento (UE) n.º 651/2014, de 16 de junho de 2014, que aprovou o Regulamento Geral de Isenção por Categoria”.

 

O âmbito de aplicação do RFAI terá de ser assim, em primeiro lugar, analisado à luz dos Regulamentos da União Europeia (anterior CE) em vigor à data dos factos que, por força do primado do direito europeu prevalecem sobre o direito interno português, em concreto no que respeita às atividades de natureza agrícola que podem suscitar mais dúvidas no contexto da presente análise.

 

Neste ponto, teremos que atender aos Regulamentos da Comissão e orientações relativas aos auxílios estatais, cujo âmbito de aplicação daqueles Regulamentos relativamente às referidas atividades de natureza agrícola, transcrevemos, convocando em particular o Regulamento Geral de Isenção por Categoria que declara as categorias de auxílio compatíveis com o mercado interno, pela relação direta com o caso em análise:

• (n.º 3, do artigo 1.º do Regulamento (CE) n.º 800/2008) “O presente regulamento é aplicável (sublinhado nosso) aos auxílios concedidos em todos os sectores da economia, com exceção dos seguintes: (…)

c) Auxílios a favor de atividades de transformação e comercialização de produtos agrícolas, nos seguintes casos:

i) Sempre que o montante do auxílio for fixado com base no preço ou na quantidade dos produtos adquiridos junto de produtores primários ou colocados no mercado pelas empresas em causa; ou

ii) Sempre que o auxílio estiver subordinado à condição de ser total ou parcialmente repercutido para os produtores primários.”

• (n.º 3, do artigo 1.º do Regulamento (UE) n.º 651/2014) “O presente regulamento não é aplicável aos seguintes auxílios (sublinhado nosso): (…)

c) Auxílios concedidos no setor da transformação e comercialização de produtos agrícolas, nos seguintes casos:

i) Sempre que o montante do auxílio for fixado com base no preço ou na quantidade dos produtos adquiridos junto de produtores primários ou colocados no mercado pelas empresas em causa; ou

ii) Sempre que o auxílio estiver subordinado à condição de ser total ou parcialmente repercutido para os produtores primários”.

 

Pese embora algumas atividades de transformação e comercialização de produtos agrícolas se possam encontrar excluídas do âmbito de aplicação dos referidos Regulamentos, tal apenas ocorre quando estejam em causa auxílios cujo montante seja fixado com base no preço ou quantidade dos produtos adquiridos ou colocados no mercado ou auxílios subordinados à condição de serem repercutidos nos produtores. O que inequivocamente não ocorre com o benefício do RFAI, na medida em que este assenta em projetos de investimento realizados.

 

Por fim, e no que se refere às orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional 2014-2020, publicadas no Jornal Oficial da UE, de 23 de julho de 2013 (OAR) estas determinam que “a Comissão aplicará os princípios estabelecidos nas presentes orientações aos auxílios com finalidade regional em todos os setores de atividade económica (9), com exceção da pesca e da aquicultura (10), da agricultura (11) e dos transportes (12), que estão sujeitos a regras especiais previstas em instrumentos jurídicos específicos, suscetíveis de derrogar total ou parcialmente as presentes orientações.

 

A Comissão aplicará estas orientações à transformação e comercialização de produtos agrícolas em produtos não agrícolas.”

 

Chegados aqui, podemos ainda socorrer-nos da nota de rodapé (11) onde se clarifica que se encontram excluídos do setor de atividade agrícola (apenas) “Os auxílios estatais à produção primária, transformação e comercialização de produtos agrícolas que deem origem a produtos agrícolas enumerados no anexo I do Tratado e à silvicultura [os quais] estão sujeitos às regras estabelecidas nas Orientações para os auxílios estatais no setor agrícola”.

 

Explica ainda o ponto (11) do preâmbulo do Regulamento (UE) n.º 651/2014 que “Nem as atividades de preparação dos produtos para a primeira venda efetuadas nas explorações agrícolas, nem a primeira venda por um produtor primário a revendedores ou a transformadores, nem qualquer atividade que prepare um produto para uma primeira venda, devem ser consideradas atividades de transformação ou de comercialização” para efeitos dos Regulamentos mencionados.

 

Para melhor compreensão sobre o que se entende por “transformação e comercialização de produtos agrícolas”, é possível por fim recorrer às definições que constam do artigo 2.º do RGIC, em particular das suas alíneas 9), 10) e 11), onde se pode ler: 9) «Produção agrícola primária», a produção de produtos da terra e da criação animal, enumerados no anexo I do Tratado, sem qualquer outra operação que altere a natureza de tais produtos; 10) «Transformação de produtos agrícolas», qualquer operação realizada sobre um produto agrícola de que resulte um produto que continua a ser um produto agrícola, com exceção das atividades realizadas em explorações agrícolas necessárias à preparação de um produto animal ou vegetal para a primeira venda; 11) «Produto agrícola», um produto enumerado no anexo I do Tratado, exceto os produtos da pesca e da aquicultura constantes do anexo I do Regulamento (UE) n.º 1379/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2013.

 

Em suma, e tal como resulta da factualidade enunciada a respeito da atividade desenvolvida pela Requerente, em resultado do segundo e/ou terceiro estágio de transformação das leguminosas secas e dos preparados de tomate – produtos rececionados nas suas instalações para transformação e comercialização – podemos acompanhar com segurança o entendimento de que os produtos que saem das instalações da fábrica não são produtos agrícolas, quer tendo em consideração o conceito de produto agrícola constante do Regime Geral de Isenção por Categoria (RGIC), quer do próprio conceito de transformação previsto no direito europeu.

 

Ora, conforme decorre do Código Fiscal do Investimento (CFI), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 249/2009, de 23 de setembro, bem como do Decreto-Lei n.º 297/2015, de 21 de setembro, que regulamentou o RFAI, a aplicação deste benefício fiscal não está dependente da verificação das condições acima elencadas, pelo que mais uma vez se observa que a atividade desenvolvida pela Requerente não se encontra excluída do RGIC.

 

Estamos por este modo a concluir que, a Requerente se enquadra no âmbito da atividade de transformação de produtos agrícolas – tal como a mesma se encontra definida no RGIC – cumprindo com as condições previstas no RGIC.

 

Livre de qualquer ónus negocial ou de qualquer tipo de autorização administrativa, a eficácia do benefício fiscal em análise depende da simples verificação dos pressupostos previstos no CFI. Trata-se de um benefício fiscal automático, que resulta direta e imediatamente da lei (n.º 1 do artigo 5.º do EBF).

 

Concordamos, de resto, que se trata de uma medida estadual interventiva que visa influenciar e encorajar os contribuintes à realização de investimentos em determinadas regiões do país.

 

Na mesma linha, não podemos deixar de subscrever as conclusões alcançadas pelo Acórdão do CAAD n.º 670/2020-T, que de seguida transcrevemos e que resultou de um pedido de pronúncia arbitral também apresentado pela ora Requerente, cujo objeto foi no essencial semelhante ao que nos ocupa relativamente à elegibilidade do investimento da Requerente, para efeitos de RFAI:

“Ora, resulta, com evidência, de todos os elementos dos autos que a atividade da Requerente não se traduz na transformação de produtos agrícolas de que resulte um produto agrícola. A Requerente procede ao processamento industrial de leguminosas secas e concentrado de tomate que adquire a terceiras empresas, sendo estas que preparam os produtos diretamente provenientes dos produtores agrícolas mediante uma primeira transformação de limpeza, escolha, calibragem, secagem e embalagem e que, no caso do concentrado de tomate, consiste já numa matéria-prima secundária na medida em que é objeto de uma transformação primária através de operações de concentração.

 

O processo de transformação realizado nas instalações da Requerente, que se encontra descrito nas alíneas D) e E) da matéria de facto, visa a produção de alimentos apertizados, entendendo-se como tal o alimento pronto a consumir, submetido a processo térmico após embalagem em recipiente hermético (lata, vidro, plástico ou outros materiais com resistência térmica), e que deve garantir uma esterilização comercial, ou seja, que o alimento deva ficar estável à temperatura ambiente durante cerca de um ano.

 

A transformação de leguminosas secas origina produtos cozidos, prontos a consumir e com elevado poder de conservação, e, do mesmo modo, a partir do concentrado de tomate adquirido às empresas preparadoras a Requerente processa dois tipos de produtos (polpa de tomate e molhos) que são embalados em lata ou frasco e submetidos a tratamento térmico por forma a garantir a sua estabilidade à temperatura ambiente.

 

A este propósito, importa ter presente o que refere o considerando (11) do RGIC. O presente regulamento deve aplicar-se à transformação e comercialização de produtos agrícolas, desde que se encontrem reunidas determinadas condições. Para efeitos do presente regulamento, nem as atividades de preparação dos produtos para a primeira venda efetuadas nas explorações agrícolas, nem a primeira venda por um produtor primário a revendedores ou transformadores, nem qualquer atividade que prepare um produto para a primeira venda, devem ser consideradas atividades de transformação ou de comercialização.

 

Como daqui se depreende, não podem ser tidas como atividades de transformação e comercialização de produtos agrícolas as atividades de preparação de produtos para uma primeira venda ou para uma primeira venda por um produtor primário a revendedores ou transformadores agrícolas. E é a esse tipo de preparados a que se refere o Capítulo 20 do Anexo I do TFUE. Mas não é nesse o caso quando um empresário adquire produtos preparados, na aceção do Capítulo 20 do Anexo I do TFUE, e os transforma através de um processo industrial em produtos apertizados, embalados hermeticamente e destinados a serem conservados e comercializados por um longo período de tempo.

 

Acresce que, por força do disposto no artigo 1.º, n.º 3, alínea c), do RGIC, há pouco transcrito, só se encontra vedada a concessão de auxílios à atividade de transformação e de comercialização de produtos agrícolas se se verificar qualquer das situações mencionadas nas suas subalíneas i) ou ii).”

 

E conclui o mesmo Acordão:

“Nestes termos, as liquidações impugnadas enfermam de vícios de erro sobre os pressupostos de facto e de direito que justificam a sua a anulação, de harmonia com o disposto no artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.”

 

Em sentido semelhante, encontramos a decisão arbitral proferida pelo CAAD no processo    n.º 463/2019-T.

A questão controvertida já foi também analisada e decidida pelo CAAD, no âmbito do processo arbitral n.º 220/2020-T, tendo sido proferida decisão favorável à pretensão da Requerente.

 

Quanto à questão da prova e à semelhança do sucedido no processo arbitral 670/2020-T, também, in casu, desconsiderando a AT o benefício fiscal com o fundamento de que estamos perante a transformação de produtos agrícolas (isto é, a transformação de produtos agrícolas em produtos que continuam a ser produtos agrícolas) – o que aqui não é aplicável, como se defende –, cabia aos serviços inspetivos demonstrar que se verificava algum dos requisitos específicos que, nos termos do artigo 1.º, n.º 3, alínea c), do RGIC, permitia afastar a atribuição do benefício fiscal.

 

Prova essa que não foi realizada nem constitui fundamento das liquidações em crise.

 

Reafirma-se a este propósito a importância do artigo 75.º n.º 1, da LGT em matéria de ónus da prova, que consagra a presunção legal de veracidade e de boa-fé das declarações dos contribuintes, desde que apresentadas nos termos da lei.

 

Quem tem a seu favor uma presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz (artigo 350.º, n.º 1, do Código Civil), apenas tem de provar o facto que lhe serve de base, de acordo com as regras gerais do ónus da prova, do artigo 74.º n.º 1, da LGT. O facto que serve de base à presunção do artigo 75.º da LGT, no caso das declarações, é o das declarações terem sido apresentadas nos termos da lei.

 

“Impõe-se, portanto, à Administração Tributária abalar a presunção de veracidade da declaração do imposto e dos respetivos documentos de suporte, atento o princípio da declaração vigente no nosso direito (artigo 75.º da LGT), só depois passando a competir ao contribuinte o ónus de provar a veracidade do declarado, o que quer dizer que se a Administração Tributária não fizer prova do bem fundado da formação do seu juízo, a questão relativa à legalidade do seu agir terá de ser resolvida contra ela, sem necessidade de ir analisar se a Impugnante logrou ou não provar, em tribunal, a veracidade da declaração (cfr. Acórdão do TCA Norte no processo 00506/06.8BEVIS, de 13-12-2018).

 

Acresce, por conseguinte, a tudo o que acima ficou dito que, a Requerida devia ter provado a factualidade que a levou a não aceitar a presunção de veracidade da declaração do imposto.

 

V. QUESTÕES DE CONHECIMENTO PREJUDICADO

 

Resultando do exposto a declaração de ilegalidade quer da decisão de indeferimento que recaiu sobre a reclamação graciosa apresentada, quer do ato de liquidação de IRC referente ao exercício de 2017, na parte que constitui objeto do presente pedido arbitral, fica prejudicado, por ser inútil (artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do CPC), o conhecimento dos restantes vícios que são imputados pela Requerente.

 

Na verdade, o artigo 124.º do CPPT, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, do RJAT, ao estabelecer uma ordem de conhecimento de vícios, pressupõe que, julgado procedente um vício que assegura a eficaz tutela dos direitos dos impugnantes, não é necessário conhecer dos restantes, pois, se fosse sempre necessário apreciar todos os vícios imputados ao ato impugnado, seria indiferente a ordem do seu conhecimento. Razão pela qual não se toma conhecimento dos restantes vícios imputados pela Requerente.

 

VI. DECISÃO

Termos em que se decide:

  1. Conceder provimento ao pedido de pronúncia arbitral; e
  2. Declarar a ilegalidade da decisão de indeferimento que recaiu sobre a reclamação graciosa apresentada, e a consequente anulação da mesma com todas as consequências legais daí decorrentes;
  3. Declarar a ilegalidade do ato de liquidação de IRC referente ao exercício de 2017, na parte que constitui objeto do presente pedido arbitral, e a respetiva anulação, dando lugar ao reembolso do montante de imposto pago ao abrigo de tal ato de liquidação;
  4. Estando demonstrado que os Requerentes pagaram, em 14/07/2021, o imposto impugnado na parte superior ao que é devido, por força do disposto nos artigos 61.º do CPPT e artigo 43.º da LGT, aplicáveis ex vi artigo 29.º, do RJAT, têm os Requerentes direito aos juros indemnizatórios devidos, juros esses a serem contados desde a data do pagamento do imposto indevido (anulado) até à data da emissão da respetiva nota de crédito, à taxa dos juros legais (artigos 35.º, n.º 10, e 43.º, n.º 4, da LGT);
  5.  De harmonia com o disposto nos artigos 296.º e 306.º, do Código do Processo Civil (CPC) e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, aplicáveis por força do artigo 29.º, n.º 1 alíneas a) e e), do RJAT, e 3.º, n.ºs 2 e 3, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 150.322,97 (cento e cinquenta mil trezentos e vinte e dois euros e noventa e sete cêntimos), atendendo ao valor económico aferido pelo montante da liquidação;
  6. Nos termos dos artigos 12.º e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigos 2.º e 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas, em € 3.672,00 (três mil, seiscentos e setenta e dois euros € 1.836,00 (mil oitocentos e trinta e seis euros), nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, imputáveis à Requerida AT.

 

Declaro que corrigi o valor constante do texto correspondente a cada uma das prestações parcelares da taxa de arbitragem, pelo seu valor total. Victor Calvete a 22 de Junho de 2022

 

Notifique-se.

Lisboa, 21 de junho de 2022

 

O Árbitro-Presidente

Victor Calvete, a 22 de Junho de 2022

 

A Árbitra-Relatora

Alexandra Iglésias

 

O Árbitro Adjunto

Amândio Silva

 

Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do DL 10/2011, de 20 de janeiro.A redação da presente decisão rege-se pelo acordo ortográfico de 1990.