Decisão Arbitral
I. Relatório
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A...– Fundo Especial de Investimento Imobiliário Fechado, com o NIPC..., representado pela sociedade gestora B...– Sociedade Gestora de Organismos de Investimento Coletivo, S.A., com o NIPC..., veio, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.os 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (RJAT), requerer a constituição de tribunal arbitral, visando a anulação parcial dos atos de liquidação de IMI, referentes aos anos de 2016, 2017 e 2018, no valor parcial de € 40 692,87.
1.1. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 18 de outubro de 2021.
1.2. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como o signatário como árbitro, nomeação aceite dentro do prazo legal.
1.3. Notificadas as partes dessa designação, não manifestaram vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
1.4. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação dada pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral foi constituído no dia 27 de dezembro de 2021.
1.5. Prolatado o despacho determinado pelo artigo 17.º, n.º 1, do RJAT, na redação dada pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, a Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou Resposta, invocando, entre o mais, “a incompetência do tribunal” e a “ilegalidade do pedido”.
1.6. Em 3 de fevereiro de 2022, foi a Requerente notificada para pronunciar-se sobre a matéria da exceção invocada pela Requerida.
1.7. Em 7 de fevereiro de 2022, a Requerida juntou aos autos os documentos que protestara juntar na sua resposta.
1.8. Por despachos de 22 de junho e de 22 de agosto de 2022, foi determinada a prorrogação do prazo para a prolação da decisão.
1.9. Em 19 de setembro de 2022, foi prolatado despacho dispensando a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, no qual se determinou a notificação das partes para a apresentação de alegações e se fixou o dia 22 de outubro como data de prolação da decisão arbitral.
1.10. As partes não apresentaram alegações.
2. O tribunal arbitral foi regularmente constituído, ex vi o disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do RJAT.
3. As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas, como determinado pelos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, não enfermando o processo de quaisquer nulidades.
II. Fundamentação
4. Matéria de facto
4.1. Factos Provados
Com interesse para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:
4.1.1. Em 2016, 2017 e 2018, a Requerente era proprietária de diversos prédios localizados na União das Freguesias de ... e ..., classificados como terrenos para construção, com os artigos matriciais n.os U-..., U-..., U-..., U-..., U-..., U-... e U-... .
4.1.2. Tais imóveis foram objeto de avaliação nas seguintes datas:
a) artigo n.º...: avaliação realizada em 2007-11-07, com um VPT de €479.470,00;
b) artigo n.º ...: avaliação realizada em 2007-11-07, com um VPT de €402.630,00;
c) artigo n.º ...: avaliação realizada em 2007-11-07, com um VPT de €479 470,00;
d) artigo n.º...: avaliações realizadas em 2013-09-23 e 2019-01-08, com um VPT de €540.280,00;
e) artigo n.º ...: avaliações realizadas em 2008-11-06 e 2019-01-09, com um VPT de €121.320,00;
f) artigo n.º...: avaliações realizadas em 2007-11-07 e 2019-01-08, com um VPT de €191.490,00;
g) artigo n.º ....: avaliações realizadas em 2011-03-15 e 2019-01-09, com um VPT de €3.623.880,00;
4.1.3. Nessas avaliações, o VPT foi determinado tendo em consideração os coeficientes de localização, afetação, qualidade e conforto, previstos no artigo 38.º do CIMI.
4.1.4. Em 2020, foram realizadas as seguintes avaliações:
a) artigo n.º ...: avaliação realizada em 2020-07-15, com um VPT de €236.630,00;
b) artigo n.º ...: avaliação realizada em 2020-07-20, com um VPT de €200.030,00;
c) artigo n.º ...: avaliação realizada em 2020-07-15, com um VPT de €236.630,00.
4.1.5. As liquidações de IMI referentes aos anos de 2016, 2017 e 2018, com os n.os de notas de cobrança ..., ..., ... (2016), ..., ..., ... (2017) e ..., ..., ... (2018), foram emitidas e pagas, considerando o VPT referido no ponto 4.1.2..
4.1.6. As notas de cobrança relativas ao IMI de 2016 são datadas de 22 de março de 2017, 10 de junho de 2017 e 24 de outubro de 2017; as notas de cobrança de IMI relativas a 2017 são datadas de 20 de março de 2018, 19 de junho de 2018 e 10 de outubro de 2018; as notas de cobrança de IMI relativas a 2018, são datadas de 4 de abril de 2019, 17 de julho de 2019 e 17 de outubro de 2019.
4.1.7. A Requerente apresentou um pedido de revisão oficiosa das liquidações de IMI no dia 15 de junho de 2021, no qual requereu a anulação parcial dos atos de liquidação de IMI referentes a 2016, 2017 e 2018.
4.1.8. O pedido de pronúncia arbitral deu entrada no dia 17 de outubro de 2021.
4.1.9. No dia 19 de novembro de 2021, a subdiretora-geral da AT anulou as avaliações relativas aos artigos n.os ..., ..., ... e ..., com efeitos retroativos, nos termos propostos pela informação prestada pela Direção de Serviços de Avaliações, da qual constam os seguintes fundamentos:
“(...)
Atente-se, agora, nas datas das avaliações efetuadas aos prédios identificados.
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Art.º ...– freguesia ... – Avaliação realizada em 2007-11-07
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Art.º ... – freguesia ... – Avaliação realizada em 2007-11-07
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Art.º ... – freguesia ... – Avaliação realizada em 2007-11-07
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Art.º ... - freguesia ... - Avaliações realizadas em 2013-09-23 e 2019-01-08
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Art.º ... - freguesia ... – Avaliações realizadas em 2008-11-06 e 2019-01-09
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Art.o ... - freguesia ... – Avaliações realizadas em 2007-11-07 e 2019-01-08
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Art.º ... - freguesia ... – Avaliações realizadas em 2011-03-15 e 2019-01-09
12. Como se pode verificar as avaliações realizadas aos prédios identificados nas alíneas a), b) e c) foram efetuadas e notificadas há mais de 5 anos. Contudo nas alíneas d) a g) temos a particularidade de se terem verificado avaliações sucessivas, umas que ocorreram há mais de 5 anos e cujos efeitos se repercutiram nos anos de liquidação de IMI do ano de 2016 e 2017 e outras que foram realizadas em 2019, cujos efeitos se reportam ao ano de 2018, já que a entrega da modelo 1 de IMI ocorreu em 2018-12-28. Neste último caso, os valores patrimoniais tributários determinados nas avaliações de 2019 apenas se vão repercutir nas liquidações de IMI de 2018.
13. Verifica-se também que, ainda não se encontra decorrido o prazo de cinco anos previsto no art.º 168.º do CPA para as avaliações realizadas em 2019 (entrega das declarações modelo 1 do IMI em 2018-12-28), o que possibilita a sua anulação administrativa. Quanto às avaliações realizadas há mais de 5 anos, vão ser analisadas em processo complementar tendo em vista a emissão do parecer solicitado pela DSIMI, conforme consta do ponto 5 da presente informação.
14. Quanto às avaliações que podem ser objeto de anulação administrativa, são as seguintes:
• Art.º ... da União das freguesias de ... e ... (...) freguesia ... - Avaliação realizada em 2019-01-08 a que corresponde a ficha de avaliação n.º ... (ver no processo o documento anexo “FA...”).
• Art.º ... da União das freguesias de ... e ... (...) – Avaliação realizada em 2019-01-09 a que corresponde a ficha de avaliação n.º ... (ver no processo o documento anexo “FA...”).
• Art.º ... da União das freguesias de ... e ... (...) – Avaliação realizada em 2019-01-08 a que corresponde a ficha de avaliação n.º ... (ver no processo o documento anexo “FA...”).
• Art.º ... da União das freguesias de ... e ... (...) – Avaliação realizada em 2019-01-09 a que corresponde a ficha de avaliação n.º ... (ver no processo o documento anexo “FA...”).
Assim, verificando-se que nestas avaliações foram aplicados os coeficientes de localização e afetação, deve proceder-se à anulação administrativa das mesmas, com fundamento em invalidade, pois como atrás referido (ponto 10), a Administração Tributária, perante a ilegalidade do ato de fixação de valores patrimoniais, tem a faculdade de anular esse ato ilegal nos termos do n.º 1 do art.º 168.º do CPA, estando dentro do prazo para proceder à anulação administrativa que é de 6 meses a contar do conhecimento da causa de invalidade pelo órgão competente, e porque não decorreram, ainda, 5 anos após a data em que foi proferido o despacho de fixação do VPT desses terrenos”.
4.1.10. A Requerida sintetizou nas seguintes tabelas os elementos relativos aos prédios e à coleta de IMI:
4.1.11. O imposto foi pago pela Requerente.
4.2. Factos não provados
Não há factos relevantes para decisão da causa que não se tenham provado.
4.3. Motivação da matéria de facto
Considerando o disposto nos artigos 596.º, n.º 1 e 607.º, n.os 2 a 4, ambos do Código de Processo Civil (por remissão do disposto no artigo 29.º, n.º 1, do RJAT), incumbe ao Tribunal o dever de selecionar a matéria de facto pertinente para a decisão judicativa, tomando em consideração a causa de pedir que sustenta a pretensão dos Requerentes.
No caso sub judice, a decisão sobre os factos provados e não provados radicou, segundo o princípio da livre apreciação da prova, no acervo documental presente nos autos, tanto com o requerimento de pronúncia arbitral, como, posteriormente, nos documentos que foram juntos pela Requerida.
Para além disso, a decisão da matéria de facto baseou-se no alegado pelos Requerentes que não foi questionado ou controvertido pela Autoridade Tributária e Aduaneira, aqui Requerida, que, ademais, circunscreveu a questão controvertida ao plano da análise da matéria de direito.
5. Matéria de direito
5.1. Matéria de Exceção
Na sua Resposta, a Requerida invoca a incompetência material do Tribunal para apreciar o litígio por considerar que está em causa uma pronúncia sobre atos de fixação da matéria tributável – de definição do valor patrimonial tributário (VPT) – os quais são destacáveis, autonomamente impugnáveis e encontram-se consolidados na ordem jurídica, concluindo que “a apreciação da legalidade dos atos que procederam à fixação do valor patrimonial não cabem na competência dos tribunais arbitrais”, o que obsta ao conhecimento do pedido e determina a absolvição da instância.
Refere, ainda, sob o título de “exceção dilatória inominada – ilegalidade do pedido”, a incompetência do tribunal arbitral para decidir pedidos de revisão oficiosa, cujos deferimentos tem por violadores do princípio da separação dos poderes.
Posteriormente, sustenta, ainda, questões que substancialmente constituem matéria de exceção, constituindo precipitações argumentativas das exceções invocadas como tais, designadamente: a questão de saber se os pedidos de revisão oficiosa são tempestivos e a questão de saber se o ato que fixou o VPT está consolidado na ordem jurídica.
Como se relatou, o pedido visa a anulação parcial dos atos de liquidação de IMI, referentes aos anos de 2016, 2017 e 2018, tendo sido deduzido na sequência do indeferimento tácito de um pedido de revisão oficiosa.
O artigo 2.º do RJAT, fixando a competência dos tribunais arbitrais, dispõe que os mesmos podem apreciar as pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos (n.º 1, alínea a), primeira parte) e, bem assim, de atos de fixação de valores patrimoniais (n.º 1, alínea b), última parte), não restando quaisquer dúvidas que afastem o intérprete de uma interpretação tradicionalmente referida como “declarativa”.
Por outro lado, não se coloca ao Tribunal a questão de decidir “o” pedido de revisão oficiosa que foi formulado perante a AT, outrossim de apreciar a legalidade dos atos tributários que se mantêm na ordem jurídica após a decisão, expressa ou silente, de tal pedido de revisão, sendo que, nos casos como o presente, em que se está perante um indeferimento tácito, não subsistem quaisquer dúvidas quanto à propriedade do meio impugnatório de [re-]apreciação da legalidade das liquidações e quanto à competência do tribunal arbitral para conhecer desta matéria (vejam-se, entre outras, as decisões arbitrais tiradas nos Processos n.os 500/2020-T e 676/2021-T, relatadas por Rui Duarte Morais e Jorge Lopes de Sousa, respetivamente).
Questão concomitante, mas não coincidente, prende-se com o facto de se saber se o pedido de revisão, previsto no artigo 78.º da LGT, pode ser mobilizado para promover a anulação de atos tributários (n.º 1) ou de atos de determinação da matéria tributável (n.º 3), nos casos em que o legislador confira natureza destacável aos atos de fixação de valores patrimoniais, sem que estes tivessem sido objeto de impugnação autónoma e se, por isso, se encontram ou não definitivamente consolidados na ordem jurídica.
A resposta a esta questão implica que se considerem dois problemas entrelaçados, quais sejam os relativos à natureza, ao sentido e à teleologia dos atos destacáveis, por outro lado, e do instituto da revisão, por outro.
Relativamente ao primeiro, já discorreu Rui Duarte Morais no seu Manual de Procedimento e de Processo Tributário, Coimbra, 2016, p. 252, e, mais recentemente, na decisão arbitral tirada no Processo n.º 760/2020, neste caso pronunciando-se sobre a possibilidade de apreciação da errónea fixação de um valor patrimonial tributário em processo de impugnação de liquidação quando esteja em causa erro de direito na determinação da lei aplicável.
Refere-se na mencionada decisão:
“(...)
A nosso ver, a questão não é a de saber se a lei configura a fixação do VPT como um ato destacável, prevendo a sua impugnação judicial autónoma – o que é um facto -, mas sim saber se existem razões que obstem a que tal ato, quando surja como instrumental relativamente a um ato de liquidação, possa, também, ser objeto de apreciação em processo dirigido à impugnação desta.
Há, pois, que ponderar sobre a ratio das normas que preveem a impugnabilidade judicial autónoma de atos administrativos que constituem pressuposto de outros atos administrativos.
Estas razões serão, essencialmente, três:
(i) O ato ser imediatamente lesivo, produzir diretamente efeitos negativos na esfera do particular, o que não é o caso, pois a ablação do património pela via do imposto só acontece após a prática de um ato de liquidação.
(ii) A sindicância judicial imediata oferecer maiores garantias ao particular: é o caso, desde logo porquanto o decidido em tal recurso produzirá efeitos de caso julgado relativamente a todas as liquidações que tiverem por base o VPT impugnado.
Está, pois, presente uma intencionalidade garantística (consagração de meio de garantia mais abrangente) e não um intuito de restrição dos normais meios de garantia, como resultaria do acolhimento do pensamento sufragado pela Requerida)
(iii) Previsão legal de um “filtro” pré-judicial que possa contribuir para reduzir o número de casos que os tribunais sejam chamados a apreciar, quando a decisão dependa essencialmente de conhecimentos técnicos próprios de outras áreas do saber, que não a jurídica (o “filtro” aqui existe - a segunda avaliação dos prédios urbanos).
Porém, atenta a razão de ser destes sistemas, há que entender que a previsão da impugnabilidade direta e imediata, em processo a tal diretamente dirigido, do «resultado das segundas avaliações», como diz a lei, só se mostra «indispensável» quando esteja em causa o resultado da aplicação da lei (das normas que regulam o procedimento de avaliação) num caso concreto, pois é em tal aplicação que poderão estar envolvidos conhecimentos técnicos, não jurídicos, e não, como acontece no presente caso, quando esteja em causa a determinação da lei aplicável à avaliação. Esta é uma questão exclusivamente jurídica, para a qual, por definição, um tribunal é mais qualificado para a precisar que uma comissão de peritos avaliadores.
Em resumo, entendemos que a previsão da impugnabilidade autónoma de atos destacáveis visa, em geral, conferir maiores garantias aos particulares e não reduzir o âmbito das garantias que a lei, em geral, prevê.
Assim, tal previsão legal não deve ser entendida - salvo existindo razões substanciais que a tal se oponham, o que não acontece no presente caso - como precludindo a possibilidade de impugnação dos vícios do ato instrumental (fixação do VPT) em processo de impugnação do ato conclusivo do procedimento (liquidação)”.
Não se obnubilando que a dimensão de certeza e de segurança jurídica pode não reconduzir-se exclusivamente a uma dimensão de tutela subjetiva e de garantia do particular, porquanto leva também ínsita uma dimensão de tutela objetiva da segurança do ordenamento jurídico, maxime nos casos em que esteja em causa a prática futura de atos consequentes (como são as liquidações de IMI), pode aventar-se a necessidade de ponderar a garantia e a justiça no caso concreto com a segurança, a certeza e a estabilidade das decisões no ordenamento jurídico.
O instituto da revisão dos atos tributários constitui uma evidência dessa ponderação por parte do legislador tributário, ao admitir “remédios” para os casos em que a preclusão dos meios ordinários de reação poderia conduzir à perpetuação de situações ilegais, designadamente quando prevê a revisão dos atos tributários nos quatro anos seguintes à liquidação, ainda que dependente de erro dos serviços, ou a revisão da matéria tributável nos casos de injustiça grave ou notória nos três anos posteriores ao do ato tributário.
Com efeito, a revisão encontra-se concebida para interferir na definição das situações tributárias quando os demais meios de tutela se encontrem formal e/ou materialmente precludidos, pelo que a mesma pode constituir, perante um concreto circunstancialismo de facto, uma incontornável válvula de segurança do sistema perante situações de tributação ilegal e iníqua, assumindo-se, aí e nessa medida, como um último reduto de tutela jurídica, de reposição da legalidade e de justiça que permite ao sistema reagir a patologias subjacentes à liquidação dos impostos e, por essa razão, este instituto perfila-se como inexorável conditio de realização material dos princípios da tributação e, em linha com Hensel, do próprio Estado de direito.
A sua funcionalidade, enquanto procedimento de correção de erros nas liquidações de impostos que tenham conduzido a uma arrecadação indevida de tributos, coloca a revisão oficiosa num patamar de jusfundamentalidade e de garantia da coerência das soluções do sistema no que concerne ao grau de (in)tolerância face à manutenção de situações patológicas e de abertura à correção de situações ilegais.
Desta forma, o poder-dever de correção oficiosa “de todos os erros das liquidações que tenham conduzido à arrecadação de tributo em montante superior ao que seria devido à face da lei” tem sido estabelecido, entre nós, como uma precipitação imediata dos princípios da legalidade, da igualdade, da imparcialidade e da justiça, que vinculam toda a atuação administrativa em matéria fiscal, extraindo-se daí a conclusão de que “sob pena de inconstitucionalidade, deverão interpretar-se as normas que preveem a revisão oficiosa com fundamento em erro imputável aos serviços como não excluindo o dever de revisão em todos os casos em que se constatar, dentro do prazo em que a revisão é possível, que foi liquidado tributo em excesso” (itálico aditado)[1].
Ora, um dos pilares estruturantes sobre os quais se ergue o instituto da revisão dos atos tributários é o da legalidade no domínio da determinação do valor do imposto devido. As razões que justificam o largo espectro de poderes de intervenção administrativa são as mesmas que conferem aptidão funcional à revisão dos atos tributários pela administração, pelo que o poder-dever de verificação da legalidade das liquidações dos impostos, tendo como referente – e limite – a tutela da legalidade, impõe que a atividade administrativa pondere todas as circunstâncias relevantes para a determinação do imposto devido ex lege e não apenas as que concorrem para um suposto “interesse fiscal”.
Assim e antes de mais, o procedimento da revisão oficiosa traduz-se num mecanismo de tutela, garantia e salvaguarda da legalidade material que, no domínio dos impostos, pela sua natureza eminentemente ablativa, assume importância fundamental[2], visando a reposição de uma legalidade que se encontra comprometida pela verificação de erros que afetam a correção do imposto face ao que resulta das normas que interferem na definição do an e do quantum do encargo tributário. Porém, mesmo quando determinada por motivos de justiça (como sucede expressis verbis no n.º 4 do artigo 78.º), a revisão não se confunde com qualquer medida de equidade no sentido de permitir uma determinação extra-legem da prestação tributária ou uma Abweichende Festsetzung von Steuern aus Billigkeitsgründen[3], partilhando com estas apenas a necessidade de reposição de justiça no caso individual e concreto. Inversamente: é o facto de a determinação do imposto ter sido realizada “fora da lei”, com base em erros que são passíveis de afetar tanto a existência e substância da obrigação tributária, que justifica materialmente a existência do procedimento, pelo que a ideia de base que aqui se sobreleva não é outra para além da reposição ou restauração da legalidade no ordenamento jurídico.
Em segundo lugar, são também razões de tutela e garantia da legalidade substancial, enquanto manifestação de justiça, que justificam os prazos dilatados em que a revisão pode operar, cristalizando a esse nível um balanceamento com o princípio da segurança jurídica, que exprime um exercício de adequação prática onde se protege do sacrifício qualquer uma dessas dimensões suprapositivas do Estado de direito.
A solução resulta de um princípio de coerência interna do sistema e tem por referência as injunções constitucionais referentes à atividade administrativa, que aqui se respaldam procedimentalmente.
No que concerne à dimensão sistemática, o equilíbrio entre a tutela da legalidade e a estabilidade e segurança jurídica transparece desde logo na definição das possibilidades de intervenção administrativa em matéria de liquidação dos impostos, admitindo o ordenamento jurídico que, dentro do prazo de caducidade, a administração faça valer o “ordenamento jurídico objetivo” (Hensel), repondo a legalidade fiscal onde esta se apresente comprometida. Concomitantemente, as possibilidades de intervenção da administração sobre os atos de liquidação que visem a reposição da legalidade não podem considerar-se limitadas pelo resultado. Nesta ótica e no que respeita à coerência do sistema, a possibilidade de revisão da liquidação, pela administração, de um valor de imposto indevido apresenta idêntica simetria fundamentante face aos poderes de liquidação adicional. Na amplitude do prazo em que a administração pode efetuar a revisão dos atos tributários – quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo não se encontrar pago –, manifesta-se, como dissemos, uma intentio de primazia da juridicidade substancial sobre a legalidade meramente formal, consonante com o recorte jurídico-constitucional sobre dos valores condicionantes do exercício dos poderes administrativos e com a natureza do direito fiscal, não sendo justificável a mobilização do princípio da segurança jurídica como fundamento-travão a que essa revisão ocorra oficiosamente pelo menos enquanto se mantiverem os poderes de definição administrativa unilateral sobre a situação tributária de um determinado sujeito passivo.
Por seu turno, do lado do sujeito passivo, a possibilidade de solicitar a revisão nos termos da 2.ª parte do artigo 78.º, n.º 1, e do n.º 4, dentro desses prazos alargados, perfila-se como uma cláusula de garantia da conformidade substancial dos atos de liquidação, cumprindo uma não despicienda função compensatória face à concreta preclusão dos meios de impugnação.
Esta função compensatória tem importância fundamental nos casos em que, por circunstâncias variadas, o conjunto de garantias impugnatórias e não impugnatórias não permita assegurar, no caso concreto, suficiente tutela face à pretensão impositiva do Estado, razão pela qual a geometria da revisão oficiosa e o grau de tutela conferido por esse espaço procedimental tem de ser equacionado também sob uma perspetiva material.
Neste ensejo, não se obnubila que o ordenamento jurídico coloca nas mãos dos contribuintes amplas possibilidades de reação face à existência de atos tributários inquinados de ilegalidade: no plano administrativo, a reclamação graciosa e, no plano contencioso, a impugnação judicial constituem instrumentos idóneos à sindicância de qualquer questão de legalidade, sendo que o acesso à via administrativa ainda admite o recurso hierárquico de decisão de indeferimento e, semel pro semper, a sindicância jurisdicional dessas decisões. A estes meios, acresce ainda a revisão dos atos tributários, tanto por iniciativa dos contribuintes, dentro do prazo da reclamação (artigo 78.º, n.º 1, 1.ª parte, da LGT), como por impulso destes à revisão nos termos do artigo 78.º, n.º 1, 2.ª parte, e n.º 4, da LGT, em ambos os casos também com possibilidade de controlo judicial da decisão da administração.
Todavia, tal realidade também não é ignorada pelo legislador e, nesta medida, a virtualidade da revisão oficiosa reside na sua configuração como instrumento suplementar de garantia da legalidade perante a deteção de situações patológicas, pelo que a vinculação à revisão oficiosa de atos de liquidação inquinados de erros que afetem a obrigação tributária no seu an e quantum perfila-se, do ponto de vista do sistema, como uma espécie de “claúsula geral antiabuso”, não apenas pela ideia de prevalência da substância sobre a forma que lhe está subjacente, mas – e sobretudo – pelo espaço procedimental que abre para reposição da legalidade substancial, impedindo que a atuação administrativa se acoberte na inimpugnabilidade dos atos tributários para negar o suum cuique tribuere fiscal[4].
Nesta ótica, a invocação de uma “consolidação” do ato de fixação do VPT, em razão do seu carácter destacável, e dos atos de liquidação que se seguiram antes de decorridos os prazos para a revisão dos atos tributários com fundamento em erro dos serviços ou da matéria tributável com fundamento em injustiça grave ou notória, conquanto preenchidos os demais pressupostos das respetivas hipóteses da revisão, não pode aqui acolher-se, por atentar contra a natureza, a funcionalidade e a teleologia com que o legislador recortou o instituto da revisão previsto no artigo 78.º da LGT.
Não é outro o entendimento que se deixou expresso no Acórdão do TCA Sul, de 31 de outubro de 2019, tirado no Processo n.º 2765/12.8BELRS e que aqui se acolhe, na medida em que considera aplicável o instituto da revisão às liquidações de IMI quando não tenha existido impugnação autónoma da fixação do VPT, designadamente quando aí se diz que:
“(...) da interpretação conjugada do n.º 1 do artigo 78.º da LGT com o disposto no artigo 115.º, n.º 1, alínea c), do CIMI, resulta que a revisão oficiosa das liquidações deve ser realizada pela administração tributária, ainda que sob impulso inicial do contribuinte, quando tenha ocorrido erro imputável aos serviços.
O que se verifica, precisamente, no caso em apreço, erro esse que se traduziu até numa injustiça grave e notória concretizada na fixação de um VPT em valor claramente superior ao que resultaria das disposições legais que deveriam ter sido aplicadas.
Erro esse que, independente da inércia impugnatória da recorrida após a notificação do VPT, não pode ser imputável a qualquer comportamento negligente desta, visto que o erro no cálculo e fixação do VPT ocorre num procedimento desencadeado e concretizado pela administração e que sempre justificaria a revisão ao abrigo do n.º 4 do normativo em questão, se o n.º 1 não fosse inteiramente aplicável.
O que reforça o entendimento de que o direito que a recorrida reclamou, de ver as últimas quatro liquidações anteriores à reclamação serem anuladas, ter pleno apoio legal”.
Ora, tal como resulta do excerto transcrito, mas também pode inferir-se da decisão tirada no Processo n.º 500/2020, em casos como o presente pode até verificar-se o preenchimento de duas hipóteses em que resulta autorizada a revisão: a do artigo 78.º, n.º 1, 2.ª parte, e a do n.º 4. Encontramo-nos, obviamente, perante hipóteses em que os pressupostos são diferenciados. No primeiro caso, exige-se a existência de um erro imputável aos serviços, ainda que este pressuposto deva ser, in casu, conjugado com a disposição do artigo 115.º do Código do IMI, sendo o prazo para a revisão de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o imposto não estiver pago; já no caso do artigo 78.º, n.º 4, a revisão da matéria tributável prescinde da existência de erro imputável aos serviços, sendo admitida excecionalmente nos casos em que exista uma injustiça grave ou notória – considerando-se como tal a que resulte numa tributação manifestamente exagerada ou desproporcionada com a realidade (n.º 5) –, sendo o prazo de três anos posteriores ao do ato tributário.
In casu, o pedido de revisão foi efetuado com base no n.º 1 do artigo 78.º, da LGT, ainda que, posteriormente, a Requerente venha alegar ser patente a existência de uma injustiça grave ou notória nos termos do n.º 4 do artigo 78.º da LGT. Cumpre, em conformidade, verificar se estão preenchidos os pressupostos para a revisão das liquidações, designadamente, se existe “erro imputável aos serviços”. O conceito de erro imputável aos serviços é definido pelo legislador como o “erro de facto ou de direito”, em termos amplos, de forma a não restringir as possibilidades de revisão (como sucedia antes do regime da LGT, em que se limitava “ao mínimo possível a assunção de erros pela administração fiscal” [5]), e é nessa forma ampla que o mesmo tem sido acolhido e reiterado pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores. Com referência ao caso sub iuditio, afasta-se, assim, a consideração restritiva de um erro imputável aos serviços como apenas equacionável enquanto erro matemático na operação de liquidação em sentido estrito (aplicação da taxa à matéria tributável). Aliás, na generalidade dos casos, não é esta a tipologia de erro que suporta a revisão das liquidações; serão, como se compreende, erros que resultam de momentos anteriores do procedimento de liquidação, designadamente aqueles que ocorram ao nível da determinação da matéria tributável, seja no plano de facto, seja no plano de direito. A existência de um erro na definição/determinação do regime jurídico que fixa o VPT dos prédios não deixa de ser um erro imputável aos serviços que afeta a legalidade da liquidação e que o possa deixar de ser apenas em resultado da sua natureza destacável. Com efeito, o erro na fixação do VPT, que ocorre num procedimento desencadeado e concretizado pela administração, é um elemento determinante da liquidação que o absorve e, suportando-se nele, é aquela também errada. Relembrem-se, aqui, as conclusões de Rui Duarte Morais, a que aderimos e a funcionalidade do instituto em causa que deixámos já evidenciada. Hipótese contrária, qual seja a de considerar “cristalizado” o VPT e impedir a revisão das liquidações, corresponderia a privar de funcionalidade, frustrando, o instituto previsto no artigo 78.º, n.º 1, 2.ª parte.
Porém, mesmo a admitir-se posição contrária, sempre seria incontornável que a diferença na fixação dos VPT em valor claramente superior ao que resultaria do regime legal corretamente aplicado, não sendo imputável a negligência do contribuinte, sempre justificaria a aplicação do n.º 4 do artigo 78.º.
E, em ambas as circunstâncias, não estaria a AT impedida pelo artigo 168.º do CPA de proceder à anulação em face do regime exposto da LGT.
Invoca também a Requerida a intempestividade da revisão, considerando que o prazo para ser autorizada a “revisão da matéria tributável pelo dirigente máximo do serviço não é o previsto no n.º 1, mas sim o prazo reduzido aos «três anos posteriores ao do ato tributário», previsto no n.º 4 do artigo 78.º da Lei Geral Tributária”. E, nessa circunstância, dúvidas não existem de que, relativamente ao IMI referente a 2016, liquidado em março de 2017, o pedido de revisão oficiosa sempre seria intempestivo, uma vez que fora apresentado em junho de 2021, para além, portanto, daquele prazo.
Por seu turno, a Requerente pugnou pela tempestividade do pedido de revisão oficiosa, logo no requerimento que apresentou à AT, com base no prazo referido no n.º 1 do artigo 78.º da LGT, tomando em consideração, para o efeito a disposição do artigo 129.º do CIMI, na redação dada pela Lei n.º 2/2020, de 31 de março, que considera aplicável ao pedido de revisão previsto no artigo 78.º, n.º 1, 2.ª parte, da LGT.
Nessa norma prevê-se, como já referido, um regime de revisão oficiosa dos atos tributários, nada obstando, como resulta do n.º 7 do mesmo artigo – e de jurisprudência reiterada e pacífica – que o contribuinte pode solicitar à administração tal revisão com fundamento em erro imputável aos serviços. Porém, tal possibilidade apenas se aceita na medida em que ainda se esteja dentro do prazo previsto para a administração promover a revisão oficiosa da liquidação, sendo o mesmo interrompido por força daquele pedido. Nestes termos, se o pedido do contribuinte for apresentado para além dos quatro anos após a liquidação, ou seja, em momento posterior ao que a administração dispunha para promover a revisão oficiosa, o mesmo será extemporâneo. O regime do artigo 129.º, n.º 2, do CIMI, não pode deixar de ser articulado, nesta ótica, com os regimes do artigo 78.º, n.º 1, 2.ª parte e n.º 7, em que o prazo é definido em função do período dentro do qual se admite a revisão oficiosa e não, como na 1.ª parte do n.º 1 do artigo 78.º, em que o prazo serve a função de início, mas já não de limite (fora dos casos de caducidade, como será óbvio) do procedimento.
Assim, sendo pacífico que a liquidação de IMI de 2016 ocorreu em 22 de março de 2017, o pedido de revisão oficiosa foi apresentado fora dos quatro anos previstos na lei.
Por esse motivo, julga-se extemporâneo o pedido na parte em que se refere à liquidação de IMI relativa ao ano de 2016.
5.2. Ilegalidade das liquidações de IMI parcialmente impugnadas
Tal como resulta do teor do despacho da Senhora Sub-Diretora Geral, não existe discordância quanto à ilegalidade decorrente das avaliações nos termos em que estas ocorrem e, portanto, que o artigo 45.º do CIMI, aplicável à data dos factos, não permitia a aplicação dos coeficientes de localização, afetação, qualidade e conforto aplicáveis a prédios edificados.
Sobre a matéria, transcrevemos e aderimos à fundamentação expressa no Acórdão arbitral tirado no Processo n.º 676/2021-T, onde se deixou mencionado:
“(...)
Os artigos 39.º, 41.º, 42.º e 45.º do CIMI, nas redacções da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro (vigente até à Lei n.º 75-B/2020, de 31 de Dezembro), estabelecem o seguinte, no que aqui interessa:
Artigo 39.º
Valor base dos prédios edificados
1 - O valor base dos prédios edificados (Vc) corresponde ao valor médio de construção, por metro quadrado, adicionado do valor do metro quadrado do terreno de implantação fixado em 25% daquele valor.
(...)
Artigo 41.º
Coeficiente de afectação
O coeficiente de afectação (Ca) depende do tipo de utilização dos prédios edificados, de acordo com o seguinte quadro:
(...)
Artigo 42.º
Coeficiente de localização
(...)
3 - Na fixação do coeficiente de localização têm-se em consideração, nomeadamente, as seguintes características:
a) Acessibilidades, considerando-se como tais a qualidade e variedade das vias rodoviárias, ferroviárias, fluviais e marítimas;
b) Proximidade de equipamentos sociais, designadamente escolas, serviços públicos e comércio;
c) Serviços de transportes públicos;
d) Localização em zonas de elevado valor de mercado imobiliário.
4 - O zonamento consiste na determinação das zonas homogéneas a que se aplicam os diferentes coeficientes de localização do município e as percentagens a que se refere o n.º 2 do artigo 45.º
Artigo 45.º
Valor patrimonial tributário dos terrenos para construção
1 - O valor patrimonial tributário dos terrenos para construção é o somatório do valor da área de implantação do edifício a construir, que é a situada dentro do perímetro de fixação do edifício ao solo, medida pela parte exterior, adicionado do valor do terreno adjacente à implantação.
2 - O valor da área de implantação varia entre 15% e 45% do valor das edificações autorizadas ou previstas.
3 - Na fixação da percentagem do valor do terreno de implantação têm-se em consideração as características referidas no n.º 3 do artigo 42.º
4 - O valor da área adjacente à construção é calculado nos termos do n.º 4 do artigo 40.º.
5 - Quando o documento comprovativo de viabilidade construtiva a que se refere o artigo 37.º apenas faça referência aos índices do PDM, devem os peritos avaliadores estimar, fundamentadamente, a respectiva área de construção, tendo em consideração, designadamente, as áreas médias de construção da zona envolvente (aditado pela Lei n.º 64-B/2011, de 30-12).
O Supremo Tribunal Administrativo tem vindo a decidir, uniformemente, na esteira Acórdão do Pleno do Supremo Tribunal Administrativo de 23-10-2019, processo n.º 170/16.6BELRS 0684/17, que
I – Na determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção há que observar o disposto no artigo 45.º do Código do IMI, não havendo lugar à consideração do coeficiente de qualidade e conforto (cq).
II – O artigo 45 do CIMI é a norma específica que regula a determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção.
III – O coeficiente de qualidade e conforto, factor multiplicador do valor patrimonial tributário contidos na expressão matemática do artigo 38 do CIMI com que se determina o valor patrimonial tributário dos prédios urbanos para habitação comércio indústria e serviços não pode ser aplicado analogicamente por ser susceptível de alterar a base tributável interferindo na incidência do imposto
Na fundamentação deste acórdão refere-se o seguinte:
O terreno em causa nos autos integra uma das espécies de prédios urbanos na categoria de terreno para construção. E, tratando-se de uma das espécies de prédio urbano o valor patrimonial deverá ser determinado por avaliação directa (nº 2 do artigo 15 do CIMI) devendo ser avaliado de acordo com o disposto no artigo 45º do mesmo compêndio normativo pois que a fórmula prevista no nº 1 do artigo 38 do CIMI (Vt= Vc x A x CA x CL x Cq x Cv) apenas tem aplicação aos prédios urbanos aí discriminados ou seja àqueles que já edificados estão para habitação, comércio, indústria e serviços (assim se decidiu no ac. deste STA de 20/04/2016 tirado no recurso 0824/15 disponível no site da DGSI - Jurisprudência do STA) onde se expendeu:
(…)
Todavia o legislador não incluiu aí os terrenos para construção que também classifica de prédios urbanos no artigo 6º do CIMI.
Para a determinação do valor patrimonial tributário dos mesmos há a norma do artigo 45 já referida onde apenas é relevada a área de implantação do edifício a construir e o terreno adjacente e as características do nº 3 do artigo 42.
Os restantes coeficientes não estão aí incluídos porquanto apenas podem respeitar aos edifícios, como tal.
O coeficiente de afectação só pode relevar face à comprovada utilização do prédio edificado e bem assim o de conforto e qualidade.
Tais coeficientes multiplicadores do valor patrimonial tributário apenas respeitam ao edificado mas não têm base real de sustentação na potencialidade que o terreno para construção oferece.
A aplicação destes factores valorizadores na determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos de construção só poderia ser levada a cabo por analogia com o disposto no artigo 38 do CIMI.
Mas porque a aplicação desses factores tem influência na base tributável tal analogia está proibida por força do disposto no nº 4 do artigo 11 da LGT por se reflectir na norma de incidência na medida em que é susceptível de alterar o valor patrimonial tributário.
A aplicação desses coeficientes na determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção seria violadora do princípio da legalidade e da reserva de lei consagrado no artigo 103 nº 2 da CRP.
A própria remissão para os artigos 42 e 40 do CIMI constante do artigo 45 e mesmo a redacção dada ao artigo 46 relativo ao valor patrimonial tributário dos prédios da espécie “outros” em que expressamente se refere que “o valor patrimonial tributário é determinado nos termos do artigo 38 com as necessárias adaptações “é demonstrativo de que na determinação do valor patrimonial tributário dos terrenos para construção não entram outros factores que não sejam o valor da área da implantação do edifício a construir e o valor do terreno adjacente à implantação.
É que mesmo a remissão feita para os artigos 42 e 40 do CIMI não consagra a aplicação dos coeficientes aí referidos mas apenas acolhe, respectivamente as características que hão-de determinar o valor do coeficiente a utilizar e o modo de cálculo.
O que se compreende face à definição de terrenos para construção do nº 3 do artigo 6 do C.I.M.I. (…)
Concordando e não olvidando a doutrina expressa por José Maria Fernandes Pires in Lições de Impostos Sobre o Património e do Selo 2012, 2ª edição pp104 de que “o valor de um terreno para construção corresponde, fundamentalmente, a uma expectativa jurídica, consubstanciada num direito de nele se vir a construir um prédio ou prédios com determinadas características e com determinado valor,” e que para a avaliação de terrenos para construção a lei manda separar duas partes do terreno (uma primeira parte a do terreno onde vai ser implantado o edifício a construir) e uma segunda parte a restante constituída pelo terreno que fica livre no lote de terreno para construção expressando que para alcançar o valor da primeira parte é necessário proceder à avaliação do edifício a construir como se ele já estivesse construído.
Com o devido respeito, não se acolhe integralmente esta doutrina pelas dúvidas e imprecisões que pode acarretar e que em matéria fiscal devem ser evitadas. Desde logo a lei, no artº 6º nº 3 do CIMI classifica de terrenos para construção realidades que não têm aprovado qualquer projecto de construção pelo que a sua inexistência determina por si só a inviabilidade de efectuar o cálculo da chamada área de implantação do edifício porque inexistente mesmo em projecto e por outro lado, nos casos em que existe esse projecto (parece ser o caso dos autos uma vez que no processo administrativo apenso se faz referência a uma moradia unifamiliar (vide fls.48 a 56)) cumpre salientar que a qualidade e o conforto têm de ser efectivos o que se compreende porque o direito tributário se preocupa com realidades e verdades materiais não podendo a expectativa ou potencial construção de um edifício com anunciados/programados índices de qualidade e conforto integrar um conceito que objectivamente, só é palpável e medível se efectivada a construção e se, realizada sem desvios ao constante da comummente conhecida “memória descritiva” que acompanha cada projecto de construção. Também é certo que a valorização imediata do prédio por efeito da atribuição do alvará de terreno para construção não deixará de ser levada em conta para efeitos de tributação, em caso de alienação, com a tributação noutra sede tributária.
Como se expressou no acórdão deste STA a que supra fizemos referência
(…) Efectivamente o coeficiente de afectação tem a ver com o tipo de utilização do prédio já edificado e o mesmo se diga do coeficiente de qualidade e conforto.
Nos terrenos em construção as edificações aprovadas são meramente potenciais e é o valor dessa capacidade construtiva, geradora de acréscimo de valor patrimonial ou riqueza para o seu proprietário que se procura taxar. E não factores ainda não materializados (…).
Tendo em conta a realidade o legislador consagrou para a determinação do valor patrimonial tributário desta espécie de prédios a regra específica constante do supra referido artigo 45 do CIMI e não outra, onde reitera-se se tem em conta o valor da área de implantação do edifício a construir e o valor do terreno adjacente à implantação bem como as características de acessibilidade, proximidade, serviços e localização descritas no nº 3 do artigo 42, tendo em conta o projecto de construção aprovado, quando exista, e o disposto no nº 2 do artigo 45 do C.I.M.I, mas não outras características ou coeficientes. Isto só pode significar que na determinação do seu valor patrimonial tributário dos terrenos para construção não tem aplicação integral a fórmula matemática consagrada no artigo 38º do CIMI onde expressamente se prevê, entre outros o coeficiente, aqui discutido, de qualidade e conforto relacionado com o prédio a construir. O que, faz todo o sentido e dá coerência ao sistema de tributação do IMI uma vez que os coeficientes previstos nesta fórmula só podem ter a ver com o que já está edificado, o que não é o caso dos terrenos para construção alvo de tributação específica, sim, mas na qual não podem ser considerados para efeitos de avaliação patrimonial factores ainda não materializados. E, sendo verdade que para calcular o valor da área de implantação do edifício a construir a lei prevê que se pondere o valor das edificações autorizadas ou previstas (artº 45º nº 2 do CIMI) para tal desiderato, salvo melhor opinião não necessitamos/devemos entrar em linha de conta, necessariamente, com o coeficiente de qualidade e conforto pois que não estando materializado não é medível/quantificável, sendo consabido da experiência comum que um projecto de edificação contemplando possibilidades modernas de inserção acessória de equipamentos vulgarmente associados ao conceito de conforto tais como ar condicionado, videovigilância robótica doméstica, luzes inteligentes etc, se edificado/realizado com defeitos pode não se traduzir em qualquer comodidade ou bem estar, antes pelo contrário ser fonte de problemas/insatisfações e dispêndios financeiros.
Esta jurisprudência foi posteriormente reafirmada pelo Supremo Tribunal Administrativo, como pode ver-se, entre vários outros, pelos acórdãos seguintes acórdãos:
– de 05-04-2017, processo n.º 01107/16 («Na fórmula final de cálculo do VPT dos terrenos para construção é de afastar a aplicação do coeficiente de localização, na medida em que esse factor de localização do terreno já está contemplado na percentagem prevista no nº 3 do art. 45º do CIMI»);
– de 28-06-2017, processo n.º 0897/16 («II – Os coeficientes de afectação e conforto, factores multiplicadores do valor patrimonial tributário contidos na expressão matemática do artigo 38 do CIMI com que se determina o valor patrimonial tributário dos prédios urbanos para habitação comércio indústria e serviços não podem ser aplicados analogicamente por serem susceptíveis de alterar a base tributável interferindo na incidência do imposto. III – Na fórmula final de cálculo do VPT dos terrenos para construção é de afastar a aplicação do coeficiente de localização, na medida em que esse factor de localização do terreno já está contemplado na percentagem prevista no nº 3 do art. 45º do CIMI»).
– de 16-05-2018, processo n.º 0986/16 («O coeficiente de qualidade e conforto, factor multiplicador do valor patrimonial tributário contidos na expressão matemática do artigo 38 do CIMI com que se determina o valor patrimonial tributário dos prédios urbanos para habitação comércio indústria e serviços e bem assim o coeficiente de afectação não podem ser aplicados analogicamente por serem susceptíveis de alterar a base tributável interferindo na incidência do imposto (IMI)»;
– de 14-11-2018, processo n.º 0133/18 («No cálculo do VPT dos terrenos para construção é de afastar a aplicação do coeficiente de localização, na medida em que esse fator de localização do terreno já está contemplado na percentagem prevista no nº 3 do art. 45º do CIMI»;
– 23-10-2019, processo n.º 170/16.6BELRS 0684/17 («os coeficientes de localização, qualidade e conforto, factores multiplicadores do valor patrimonial tributário contidos na expressão matemática do artigo 38 do CIMI com que se determina o valor patrimonial tributário dos prédios urbanos para habitação comércio indústria e serviços e bem assim o coeficiente de afectação não podem ser aplicados analogicamente por serem susceptíveis de alterar a base tributável interferindo na incidência do imposto (IMI).»
– de 13-01-2021, processo n.º 0732/12.0BEALM 01348/17 («Relativamente à avaliação de terrenos para construção, sobre o que regula o art. 45.º do C.I.M.I., não são de aplicar os coeficientes ou características não especificamente previstos, entre os quais o coeficiente de qualidade e conforto».
Na linha desta jurisprudência, é de entender que a avaliação dos terrenos para construção devia ser efectuada sem aplicação dos coeficientes não especificamente previstos, entre os quais os coeficientes de localização, de qualidade e conforto e de afectação.
No caso em apreço, há acordo das Partes quanto à fixação de valores patrimoniais que constam das cadernetas prediais juntas como documento n.º 6, em que foram aplicados os coeficientes de localização e afectação nas avaliações de terrenos para construção.
Assim, à face da jurisprudência referida, tem de se concluir que a fixação de valores patrimoniais dos prédios referidos enferma dos erros que a Requerente lhes imputa, que são exclusivamente imputáveis à Administração Tributária que praticou os actos de avaliação.
É este entendimento que aqui se reitera e que se aplica às liquidações de IMI controvertidas relativamente aos anos de 2017 e 2018, não tendo o tribunal arbitral notícia de que tais atos de liquidação tenham sido administrativamente revogados. Assim, em conjugação com o que se deixou referido quanto à admissibilidade da revisão oficiosa a pedido do sujeito passivo, cumpre deferir o pedido relativamente às liquidações de IMI relativas a 2017 e 2018.
Consequentemente, considera-se prejudicado o conhecimento da questão de constitucionalidade invocada pela Requerente.
5.3. Juros indemnizatórios
O artigo 43.º, n.º 3, alínea c), da LGT, estabelece o direito a juros indemnizatórios no caso de revisão dos atos tributários por iniciativa do contribuinte quando a revisão se efetuar mais de um ano após o pedido deste.
Tendo o pedido sido efetuado no dia 15 de junho de 2021, apenas existiria direito a juros indemnizatórios se a revisão não se encontrasse decidida no dia 16 de junho de 2022. Não obstante, tendo a Requerente optado pela impugnação do indeferimento tácito do pedido de revisão, que se formou antes desta data, não lhe assiste direito ao pagamento pela Requerida de quaisquer juros indemnizatórios.
Mais se esclarece que a norma indicada pela Requerente como constitutiva do seu direito, o artigo 43.º, n.º 1, da LGT, apenas será de aplicar nos casos em que se está perante a “reclamação” prevista na 1.ª parte do artigo 78.º, n.º 1, da LGT, o que não é manifestamente o caso.
6. Decisão
Destarte, atento o exposto, este Tribunal Arbitral decide:
-
Julgar improcedente o pedido na parte em que se refere à liquidação de IMI relativa ao ano de 2016.
-
Anular parcialmente as liquidações de IMI referentes aos anos de 2017 e 2018.
-
Julgar improcedente o pedido de juros indemnizatórios, absolvendo a Autoridade Tributária e Aduaneira do mesmo.
7. Valor do processo
De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 40.692,87.
8. Custas
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 2.142,00 nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, dos quais € 1315,47 são a cargo da Requerida e € 826,53, a cargo da Requerente.
Coimbra, 25 de outubro de 2022,
João Pedro Rodrigues
Notifique-se.ch
[1] V. Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, Lei Geral Tributária Anotada e Comentada, Lisboa, 2012, p. 711.
[2] Para Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, Lei Geral Tributária Anotada e Comentada, Cit., p. 705, a revisão oficiosa constitui “um regime reforçadamente garantístico quando comparado com o regime de impugnação dos atos administrativos, mas esse reforço encontra explicação na natureza fortemente agressiva da esfera jurídica dos particulares que têm os atos de liquidação de tributos”.
[3] Sobre as medidas de equidade na Alemanha, v. Roman Seer, Verstandigungen in Steuerverfahren, Köln, 1996, p. 132.
[4] Seguimos aqui o entendimento que deixámos expresso no nosso “A revisão oficiosa dos atos de autoliquidação e o ‘teorema’ de Kirchmann”, in Ricardo Costa (Coord.), Direito das Empresas – Reflexões e Decisões, Coimbra, 2022, pp. 443 e ss..
[5] Recomendação n.º 80/A/96, de 18 de outubro de 1996, do Provedor de Justiça, disponível em Provedor de Justiça, O Provedor de Justiça e os Direitos dos Contribuintes, Lisboa, 2012, pp. 12 e ss..