SUMÁRIO:
Determina a inutilidade superveniente da lide a revogação-anulação integral pela AT do ato de liquidação de IRS impugnado no processo arbitral, o que constitui causa de extinção da instância nos termos do art. 277.º, al. e) do CPC, ex vi art. 29.º, n.º 1, al. e) do RJAT.
DECISÃO ARBITRAL
I. Relatório[1]
a) Partes e pedido de pronúncia arbitral
1. A..., contribuinte n.º ..., com domicílio em ..., ..., em França (a seguir, o “Requerente”) apresentou, em 21.03.2022, em conformidade com os artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20.1, com as alterações posteriores (a seguir Regime Jurídico da Arbitragem Tributária ou RJAT), pedido de pronúncia arbitral, em que é demandada a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (a seguir, Requerida ou AT), no qual peticiona a anulação, por ausência de fundamentação e vício de violação de lei, da liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) com o n.º 2021..., respeitante ao ano de 2017, e respetiva liquidação de juros compensatórios n.º 2021..., com o montante total a pagar de €30.468,77, e da decisão final de indeferimento da reclamação graciosa com o n.º ...2021... apresentada contra as referidas liquidações, devendo da anulação resultar o reembolso do valor indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios calculados à taxa legal em vigor.
b) Evolução processual
2. Em conformidade com os artigos 5.º, n.º 2, al. a), 6.º, n.º 1 e 11.º, n.º 1, al. a) do RJAT, o Conselho Deontológico deste Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) designou como árbitro singular o signatário, que aceitou o encargo e a cuja designação as partes não apresentaram recusa.
3. A Requerida, conforme consta do Sistema de Gestão Processual do CAAD, foi notificada, por correio eletrónico, da aceitação do pedido de pronúncia arbitral em 22.03.2022, objeto de confirmação em 29.03.2022.
4. Nos termos do disposto na al. c) do n.º 1 e do n.º 8 do artigo 11.º do RJAT, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, o Tribunal Arbitral Singular ficou constituído em 31.05.2022.
5. O Tribunal foi regularmente constituído, as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade (arts. 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22.3) e encontram-se devidamente representadas.
6. No pedido de pronúncia arbitral, o Requerente peticionou que seja declarada a ilegalidade e consequente anulação da liquidação adicional de IRS com o n.º 2021..., respeitante ao ano de 2017, e respetiva liquidação de juros compensatórios n.º 2021..., com o montante total a pagar de €30.468,77, e da decisão final de indeferimento da reclamação graciosa com o n.º ...2021..., para o que alegou que:
i) dos atos de liquidação em crise não resulta suficiente a necessária fundamentação de facto e de direito, conforme é exigido pelo disposto no n.° 3 do artigo 268.° da Constituição da República Portuguesa (CRP) e no artigo 77.° da Lei Geral Tributária (LGT), vício de forma que torna as liquidações anuláveis nos termos do artigo 163.° do Código do Procedimento Administrativo (CPA), aplicável ex vi alínea d) do artigo 2.º do Código do Procedimento e do Processo Tributário (CPPT);
ii) embora o Requerente constasse do cadastro fiscal da Administração tributária como residente fiscal em Portugal, no ano de 2017 era residente fiscal em França, onde residia habitualmente, onde exercia a sua atividade profissional e onde tinha o seu centro vital de interesses;
iii) para comprovação da sua residência fiscal em França, o Requerente solicitou à Administração tributária francesa ("Direction Générale des Finances Publiques") a emissão de um Certificado de Residência Fiscal, que veio a ser emitido no dia 1 de Março de 2022, o qual atesta que era residente fiscal em França nos anos compreendidos entre 2017 e 2021, o que também se comprova por cópia do seu contrato de trabalho a termo, outorgado a 2 de maio de 2017, para desempenhar funções em B..., sita em ..., França, contrato esse renovado a 17 de Julho de 2017 e renovado, de novo, a 13 de Setembro de 2017 e com prazo até 31 de Dezembro de 2017 e recibos de vencimento de Maio a Dezembro de 2017;
iv) resulta da factualidade exposta que, não sendo o Requerente residente fiscal em Portugal no ano de 2017, nem tendo auferido quaisquer rendimentos que possam ser considerados obtidos em Portugal nesse mesmo ano, não se encontra sujeito a qualquer tributação em Portugal, em sede de imposto sobre o rendimento, pelo que a liquidação aqui em crise é ilegal por violação das regras de incidência objectiva e subjetiva plasmadas no Código de IRS, nomeadamente, o disposto no n.º 1 do artigo 13.º, no n.º 2 do artigo 15.º e no artigo 18.º, ilegalidade essa que inquina a liquidação de imposto sub judice, tornando-a anulável nos termos do artigo 163.º do CPA, aplicável ex vi alínea d) do artigo 2.° do CPPT;
v) no que se refere aos supostos rendimentos de fonte estrangeira - e ainda que se teorizasse que o Requerente era residente fiscal em Portugal em 2017, que não era - verifica-se que não é apresentada pela Administração tributária uma única prova, ou sequer um único indício, de que tivessem sido auferidos tais rendimentos pelo Requerente e em que montantes, pelo que as liquidações em causa padecem, além do mais, de vício na fundamentação legalmente exigida, violando, assim, também o disposto no n.° 3 do artigo 268.° da CRP e no artigo 77.º da LGT, por infracção do ónus da prova consagrado no artigo 74.° da LGT, o que, conjugando com a efetiva dúvida quanto aos rendimentos realmente auferidos, nos termos do n.º 1 do artigo 100.° do CPPT, determina a anulação dos atos tributários sindicados;
vi) a liquidação de juros compensatórios é, em si mesma, ilegal porquanto a Administração tributária em matéria de fundamentação não demonstrou o pressuposto legal de o retardamento da liquidação do imposto se dever a facto imputável ao contribuinte (n.° 1 do artigo 35.º da LGT), pelo que se impõe concluir haver ausência de fundamentação da liquidação de juros compensatórios, o que viola o disposto no n.° 1 do artigo 35.° e no n.°1 e n.° 2 do artigo 77.° da LGT, bem como o disposto no n.° 3 do artigo 268.° da CRP.
7. Por despacho de 01.06.2022, foi determinada a notificação da Requerida para apresentação de resposta e junção do processo administrativo em conformidade com o disposto no art. 17.º, n.ºs 1 e 2 do RJAT, o que não veio a ocorrer.
8. Em 02.06.2022 foi junto ao processo, no sistema de gestão processual do CAAD, requerimento do Requerente, remetido ao CAAD em 17.5.2022, comunicando que foi notificado, por via do Ofício n.º ..., de 5 de maio de 2022, do Despacho proferido, no dia 27 de abril, pela Subdiretora Geral da Direção de Serviços de Relações Internacionais, por delegação de competências, que revoga o Despacho proferido, no dia 17 de Dezembro de 2021, pela Chefe do Serviço de Finanças de Lisboa-..., através do qual foi indeferida a Reclamação Graciosa deduzida contra o ato de liquidação de IRS de 2017 e o correspondente ato de liquidação de Juros Compensatórios e requerendo a sua junção aos autos.
9. Por despacho de 06.06.2022, o Tribunal admitiu a junção aos autos do indicado despacho e determinou a notificação das partes para se pronunciarem sobre a possível extinção da instância arbitral por inutilidade superveniente da lide.
Apenas o Requerente se pronunciou, conforme requerimento de 24.06.2022, no qual sustentou que:
- “considerando que a REQUERIDA revogou o ato de liquidação de IRS em crise no presente processo arbitral, entende o REQUERENTE que os presentes autos perdem o seu objeto, pelo que, nos termos e para os efeitos da alínea e) do artigo 277.º do CPC, aplicável ex vi alínea e) do artigo 29.º do RJAT, estamos perante uma situação de inutilidade superveniente da lide, a qual consubstancia uma causa de extinção da instância”;
- “considerando a ultrapassagem do prazo estabelecido no n.º 1 do artigo 13.º do RJAT e a efectiva constituição do Tribunal Arbitral, não será aplicável o regime previsto no artigo 3.º-A do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária”, aplicando-se assim “as regras gerais em matéria de custas, pelo que, tendo os atos objeto dos presentes autos sido revogados já na pendência do respetivo processo, satisfazendo, assim, a pretensão do REQUERENTE, o que acarreta a inutilidade superveniente da lide, deverá a REQUERIDA, em consequência, ser condenada em custas, na sua integralidade, por se entender que foi esta que deu causa ao processo — cfr. n.º 1 do artigo 527.º do CPC, aplicável ex vi alínea e) do artigo 29.º do RJAT”.
10. Por despacho de 31.08.2022, o Tribunal Arbitral, tendo em atenção que a matéria fulcral pendente de apreciação no presente processo respeita à inutilidade superveniente da lide e suas consequências nos autos, relativamente à qual foi facultado o exercício do contraditório, dispensou a realização da reunião prevista no n.º 1 do art. 18.º do RJAT, bem como a produção de alegações, e fixou como data para a prolação da decisão final o dia 07.10.2022.
Cumpre, pois, proferir decisão.
II. Fundamentação
11. As ocorrências e elementos processuais a considerar na decisão do presente processo, relativamente à questão em apreciação da inutilidade superveniente da lide, são os que constam do relatório antecedente, que aqui se dão por reproduzidos, relevando ainda, já que não se descortina matéria que importe dar como não provado, especificar os seguintes factos provados:
I. O Requerente foi objeto da liquidação adicional de IRS com o n.º 2021..., respeitante ao ano de 2017, e respetiva liquidação de juros compensatórios n.º 2021 ...com o montante total a pagar de €30.468,77 (cfr. doc. n.ºs 2 a 5 juntos ao pedido de pronúncia arbitral).
II. O Requerente deduziu contra as referidas liquidações a reclamação graciosa registada com o n.º ...2021... (cfr. doc. n.º 6 junto ao pedido de pronúncia arbitral), alegando que, no ano de 2017, não era residente em Portugal, mas sim em França, que foi indeferida por despacho de 17.12.2021 do Chefe do Serviço de Finanças de Lisboa-..., que se fundamentou no seguinte (cfr. doc. n.º 1 junto ao pedido de pronúncia arbitral): “Relativamente ao ano de 2017, não tendo sido apresentada qualquer declaração de rendimentos foi processada em 2021.11.12 a competente declaração de rendimentos (Lote n°...)”, que “foi preenchida tendo em conta que o reclamante era residente em Portugal tendo auferido rendimentos no estrangeiro (França)”; “Alega o reclamante que no ano em causa era residente em França onde auferiu rendimentos e pagou os seus impostos, solicitando, também a alteração retroativamente da sua morada para França”; “Analisados os elementos juntos aos autos verifica-se que em 2017.12.31, o reclamante era residente em Portugal existindo assim obrigatoriedade de declarar os rendimentos auferidos no estrangeiro, pelo que a liquidação ora reclamada não enferma de qualquer erro ou irregularidade sendo de manter”.
III. O Requerente procedeu, em 8 de Março de 2022, ao pagamento do valor em dívida de € 31.240,74 no âmbito do processo de execução fiscal n.º ...2022... (cfr. doc. n.º 7 junto ao pedido de pronúncia arbitral), que foi instaurado para cobrança coerciva do montante das liquidações objeto dos autos (cfr. comprovativo constante do doc. n.º 8 junto ao pedido de pronúncia arbitral).
IV. Por decisão da Subdiretora Geral da AT, datada de 27.04.2022, proferida no processo ...2022..., foi revogado o ato impugnado nestes autos, por se considerar que, tendo em atenção os vários critérios de resolução da questão da dupla residência, indicados na Convenção para evitar a Dupla Tributação entre Portugal e França, se deve entender, em atenção ao critério da nacionalidade, que, “[d]e acordo com o documento de identificação, anexo ao pedido de alteração de morada com efeitos retroativos, o contribuinte tem naturalidade e nacionalidade francesa, pelo que, em conformidade com este critério, o contribuinte é considerado residente em França para efeitos de aplicação da CDT celebrada entre Portugal e a França”, pelo que que “o contribuinte não é considerado residente fiscal em Portugal, por conseguinte, o IRS incide unicamente sobre os rendimentos obtidos em território português (...), concluindo-se, assim, que o contribuinte não se encontra obrigado a declarar os rendimentos de fonte francesa” (cfr. o doc. n.º 1 junto com o requerimento indicado supra no n.º 8).
12. Resulta desta factualidade dada como provada com base nos documentos acima elencados que, por decisão datada de 27.04.2022, foi revogado (rectius, anulado) os atos sindicados nos presentes autos e que, pois, constituíam objeto do presente processo arbitral.
Verifica-se a inutilidade superveniente da lide quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a solução do litígio deixe de interessar, por o resultado que a parte visava obter ter sido atingido por outro meio, o que implica, em conformidade com o disposto no art. 277.º, al. e), do CPC, a extinção da instância.
Na verdade, atenta a revogação, rectius anulação administrativa (cfr. art. 165.º do Código do Procedimento Administrativo), do ato sindicado, a pretensão do Requerente e a resolução do correspondente litígio por este Tribunal deixa de assumir interesse pois o resultado pretendido de desaparecimento da ordem jurídica do ato impugnado foi alcançado por outro meio, a anulação administrativa, o que implica que o prosseguimento dos autos não envolve a esse respeito quaisquer consequências para o Requerente.
A extinção da instância, por impossibilidade superveniente da lide, como resulta do relatório antecedente (n.º 9), foi, aliás, expressamente acolhida pelo Requerente.
Termos em que se decide julgar a presente instância arbitral extinta por inutilidade superveniente da lide nos termos do art. 277.º, alínea e) do CPC, aplicável ex vi art. 29.º, n.º 1, al. e) do RJAT).
13. Relativamente à responsabilidade pelas custas, estabelece o art. 536.º do CPC, aplicável por força do art. 29.º, n.º 1, al. e) do RJAT, que: “Nos restantes casos de extinção da instância por impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, a responsabilidade pelas custas fica a cargo do autor ou requerente, salvo se tal impossibilidade ou inutilidade for imputável ao réu ou requerido, caso em que é este o responsável pela totalidade das custas” (n.º 3) e que: “Considera-se, designadamente, que é imputável ao réu ou requerido a inutilidade superveniente da lide quando esta decorra da satisfação voluntária, por parte deste, da pretensão do autor ou requerente, fora dos casos previstos no n.º 2 do artigo anterior e salvo se, em caso de acordo, as partes acordem a repartição das custas” (n.º 4).
Ora, como a inutilidade superveniente da lide resultou da revogação-anulação dos atos controvertidos pela AT, que assim deu satisfação à pretensão do Requerente, impõe-se concluir que é imputável à Requerida a inutilidade superveniente da lide e a consequente extinção da instância, pelo que lhe cabe a responsabilidade pelas custas.
Assinale-se, ainda, a este respeito, em atenção ao disposto no art. 13.º do RJAT, que não obstante a Requerida ter sido notificada, por correio eletrónico, da aceitação do pedido de pronúncia arbitral em 22.03.2022, objeto de confirmação em 29.03.2022 (vd. acima n.º 3), não se verificou qualquer comunicação pela AT aos presentes autos do ato revogatório-anulatório datado de 27.4.2022 – comunicação esta que foi apenas efetuada pelo Requerente, pelo requerimento referido no n.º 8 –, o que conduziu à constituição do Tribunal e necessidade de prolação da presente decisão.
Termos em que se condena a Requerida nas custas do processo, por lhe ser imputável a inutilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 536.º, n.ºs 3 e 4, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
III. Decisão
Termos em que se decide:
-
julgar extinta a instância por inutilidade superveniente da lide por falta de objeto, nos termos do art. 277.º, al. e) do CPC, ex vi art. 29.º, n.º 1, al. e) do RJAT;
-
condenar a Requerida nas custas arbitrais, em conformidade com o art. 563.º, n.ºs 3 e 4 do CPC, ex vi art. 29.º, n.º 1, al. e) do RJAT.
IV. Valor do processo
De harmonia com o disposto no art. 306.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, no artigo 97.º-A, n.º 1, al. a), e n.º 3 do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicáveis por força das alíneas a), c) e e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT, fixa-se ao processo o valor de €30.468,77 (trinta mil, quatrocentos e sessenta e oito euros e sessenta e sete cêntimos), que constitui a importância dos atos de liquidação objeto do pedido de pronúncia arbitral.
V. Custas
De harmonia com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e nos artigos 3.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 e 4.º, n.º 5 do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €1.836.00, nos termos da Tabela I do mencionado Regulamento, a cargo da Requerida, conforme acima decidido.
Notifique-se.
Lisboa, 29 de Setembro de 2022.
O Árbitro
(João Menezes Leitão)
[1] Adota-se a ortografia resultante do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, com atualização, em conformidade, da grafia constante das citações efetuadas.