Sumário:
-
Nos termos do disposto no Artigo 74.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária, compete à Autoridade Tributária o ónus de demonstrar a posição a que se arroga.
-
Nessa medida, cabe à Autoridade Tributária discriminar, por trabalhador e por período, os pagamentos das ajudas de custos, subsídios de refeição e despesas com deslocações e estadas que estariam em causa.
-
Alegações genéricas e vagas com remissão para a contabilidade do contribuinte não permitem de todo concretizar o ónus da prova que se impunha, neste caso, à AT, em obediência ao referido preceito legal.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Carlos Alberto Fernandes Cadilha (Árbitro-Presidente), Pedro Saraiva Nércio (Relator) e Alexandra Iglésias, designados pelo Conselho Deontológico do CAAD para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 24 de Maio de 2022, acordam no seguinte:
-
Relatório
A..., contribuinte n.º..., com domicílio profissional na Rua ..., n.º ..., ..., ..., ...... S. João da Madeira (adiante abreviadamente designado por “Requerente”), veio requerer a constituição de Tribunal Arbitral nos termos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante “RJAT”), tendo em vista a anulação do ato de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”), no valor de € 219.475,66, e do correspondente ato de liquidação de juros compensatórios, no valor de € 37.385,03, no montante total de € 256.860,69.
É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (adiante abreviadamente designada por “AT” ou por “entidade Requerida”), enquanto entidade emitente dos atos de liquidação em apreço.
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Ex.mo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 21 de Março de 2022.
Em 5 de Maio de 2022, o Senhor Presidente do CAAD informou as Partes da designação dos Árbitros, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 11.º do RJAT.
Assim, em conformidade com o preceituado no n.º 8 artigo 11.º do RJAT, decorrido o prazo previsto no n.º 1 do artigo 11.º do RJAT sem que as Partes alguma coisa viessem dizer, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 24 de Maio de 2022.
A AT apresentou Resposta em 29 de Junho de 2022, defendendo a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.
Em 30 de Junho de 2022, a AT procedeu à junção do processo administrativo.
Por Despacho datado de 6 de Julho de 2022, em aplicação dos princípios da autonomia do tribunal arbitral na condução do processo, e da celeridade, simplificação e informalidade processuais (artigos 19.º, n.º 2, e 29.º, n.º 2, do RJAT), e não havendo outros elementos sobre que as partes se devessem pronunciar, o Tribunal Arbitral procedeu à dispensa da reunião a que se refere o artigo 18.º desse Regime, bem como da apresentação de alegações.
Nesse mesmo Despacho determinou-se a notificação do Requerente para efeitos de pagamento da taxa arbitral subsequente, pagamento este que foi junto ao presente processo pelo Requerente no dia 7 de Julho de 2022.
-
Saneamento
O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 4.º, 5.º, n.º 2, 6.º, 10.º e 11.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
As partes dispõem de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas, nos termos legais aplicáveis.
O processo não enferma de qualquer nulidade.
Não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
-
Questões Controvertidas
São, pois, convertidas as correções em sede de IRS efetuadas pela AT, constantes de relatório de inspeção tributária e refletidas nos atos de liquidação de IRS e de Juros Compensatórios aqui em apreço.
Considerou a AT que “apesar de estarem a ser abonados valores a título de Ajudas de Custo, foi simultaneamente pago o subsídio de refeição aos mesmos funcionários e para os mesmos períodos, procedimento que se demonstra incorreto, porquanto o abono diário do subsídio de refeição é deduzido nas ajudas de custo em conformidade como o previsto no artigo 37.º do Decreto-Lei 106/98 de 24 de Abril” (pág. 10 do Relatório de Inspeção Tributária).
Por seu turno, considerou a AT que “Tendo em conta que os trabalhadores estavam a receber ajudas de custos, a entidade patronal não podia estar simultaneamente a custear as suas deslocações e estadas” (pág. 11 do Relatório).
Em conformidade, a AT procedeu à correção dos valores que haviam sido deduzidos pelo Requerente a título de “subsídios de refeição” e de “deslocações e estadas”, no valor total de € 407.886,85 e de € 87.502,91, respetivamente em relação aos anos de 2011 e de 2012.
-
Posição das Partes
-
Da Posição do Requerente
Entende o Requerente, desde logo, que as correções efetuadas pela AT se encontram inquinadas de vício de falta de fundamentação.
Com efeito, de acordo com o Requerente, “a fundamentação dos actos tributários enferma, nas suas dimensões de facto e de direito, de múltiplas insuficiências, omissões, contradições e outras irregularidades, que não permitem ao Requerente nem a qualquer outro destinatário do tipo homem médio ou comum colocado no seu lugar perceber e apreender o iter cognoscitivo e valorativo seguido na formação e formulação da vontade do seu autor neles expressa, em manifesta violação dos requisitos que lhe são adscritos, quer pela Lei Fundamental (art. 268.º, n.º 3, da CRP), quer pelo art. 77.º, n.ºs 1 e 2, da LGT, quer pelo disposto nos artigos 151.º a 153.º do CPA.”
Mais alega o Requerente que os atos de liquidação em apreço violam o dever de ónus da prova (artigo 74.º da LGT), uma vez que o relatório de inspeção tributária em que se sustentam não procede:
-
À identificação dos trabalhadores a quem foram alegadamente pagos de forma simultânea subsídios de refeição e ajudas de custo;
-
À identificação dos quantitativos diários e mensais pagos a cada trabalhador a título de subsídio de refeição e de ajudas de custo e, bem assim, dos períodos em que tais pagamentos tiveram lugar;
-
À identificação do valor suportado pelo Requerente a título de “deslocações e estadas” com referência a cada trabalhador e dos períodos a que respeitam tais despesas;
-
À demonstração de que os quantitativos pagos a cada trabalhador perfaziam no seu conjunto os montantes de € 262.462,07 e € 131.917,63 €, de salários e 62.150,04 € e 18.929,56 € de subsídio de refeição, nos anos de 2011 e 2012;
-
À demonstração de que o valor efetivamente recebido por cada trabalhador a título de ajudas de custo excedia o valor das ajudas de custo fixado na tabela aplicável aos funcionários da administração pública.
No que em concreto diz respeito à correção relativa aos valores pagos a título de subsídio de refeição, refere o Requerente que “O valor dos subsídios de refeição, de 62.150,41 €, em 2011, e 18.929,56 €, em 2012, respeita a trabalhadores e/ou períodos (não só, mas também) em que não houve lugar ao pagamento de ajudas de custo”.
Por seu turno, entende o Requerente que a AT incorre, com referência à correção referente ao subsídio de refeição, numa errada aplicação da lei, quando aquela invoca que o pagamento simultâneo de ajudas de custo e de subsídio de refeição é incorreto à luz do Artigo 37.º Decreto-Lei nº 106/98, de 24 de Abril.
Com efeito, no entendimento do Requerente, o referido Decreto-Lei nº 106/98 não tem aplicação no caso em apreço, uma vez que o mesmo aplica-se apenas às deslocações para fora do domicílio oficial ocorridas no território nacional, excluindo expressamente, ex vi do seu artigo 15º, as deslocações ao estrangeiro e no estrangeiro, nos termos do qual: “O abono de ajudas de custo por deslocações ao estrangeiro e por deslocações no estrangeiro é regulado por diploma próprio.”
Em consonância com o disposto naquele preceito legal, a matéria das ajudas de custo por deslocações ao estrangeiro e no estrangeiro dos agentes e funcionários da administração pública (e as dos trabalhadores ao serviço da empresa do Requerente, facultativamente, por opção da sua gerência) é obrigatoriamente regulada pelo Decreto-Lei nº 192/95, de 28/07.
Daí que, no entendimento do Requerente, “a norma do art. 37º é inaplicável ao caso vertente, tanto mais que a sua previsão só poderia relevar em sede de IRS, mas não em sede de IRC. Isto por um lado, pois que, por outro, e como já se assinalou, o subsídio de refeição nunca poderia deixar de ser custeado pelo Requerente, atento o estipulado nos contratos de trabalho celebrados com os seus trabalhadores e o clausulado na CCT aplicável.”
Conclui, assim, o Requerente, no que diz respeito às correções referentes aos subsídios de refeição, que “os actos tributários em causa, na parte correspondente às correcções de 62.150,41 € e de 18.929,56 €, respeitantes aos anos de 2011 e 2012, respectivamente, não só por se terem fundamentado numa normal legal não aplicável aos factos neles pressupostos, mas também por imperativos contratuais e da legislação laboral, enfermam de ilegalidade geradora da sua invalidade.”.
-
Da Posição da Entidade Requerida
Alega a entidade Requerida, na sua resposta, que verificou-se “que os mesmos trabalhadores foram abonados simultaneamente a título de ajudas de custo e subsídio de alimentação” e que “Face a tal cenário, mostra-se necessário deduzir o valor do subsídio de alimentação nos dias em que sejam abonadas ajudas de custo, pois, de outro modo estão-se a duplicar custos/gastos”.
De acordo com a Requerida “consta do RIT, que relativamente aos períodos em causa, anos de 2011 e 2012:
· Ano de 2011, foram registados, em salários 262.462,07€, em subsídio de refeição o montante de 62.150,41€, Ajudas de custo o montante de 543.528,20€ e outros encargos sobre remunerações o montante de 74.260,50€;
· Ano de 2012, foram registados, em salários 131.917,63€, em subsídio de refeição o montante de 18.929,56€, Ajudas de custo o montante de 217.209,30€ e outros encargos sobre remunerações o montante de 22.112,88€”.
“Por outro lado, também se encontram registadas as despesas que se seguem:
· No ano de 2011, em combustíveis o montante de 53.536,14€ e em deslocações e estadas, o montante de 358.248,94€;
· No ano de 2012 em combustíveis o montante de 37.786,24€ e em deslocações e estadas, o montante de 68.573,35€”
No que diz respeito à justificação legal para as correções, alega a Requerida que “nos termos do art.º 23.º do CIRC só se consideram gastos os que comprovadamente sejam indispensáveis para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, nomeadamente os de natureza administrativa, tais como remunerações e ajudas de custo.”
Adianta a entidade Requerida que “se as despesas das deslocações e estadas foram suportadas através de pagamento de ajudas de custo, não pode a empresa proceder ao pagamento e respectiva contabilização de despesas referentes a deslocações e estadas e ao mesmo tempo proceder ao pagamento de ajudas de custo, uma vez que estas se destinam a suportar este tipo de gastos (alimentação e alojamento)”.
Pelo que conclui a entidade Requerida no sentido de que “os gastos com subsídios de refeição pagos aos trabalhadores, bem como as despesas com deslocações e estadas registadas na contabilidade, devem acrescer ao lucro tributável dos anos de 2011 e 2012, por violação expressa do artigo 23º do CIRC, por remissão do artigo 32º do CIRS”.
No que toca aos argumentos invocados pelo Requerente, avança a Requerida que “Relativamente ao argumento aventado pelo Requerente de que o relatório não menciona discriminadamente os quantitativos pagos a cada trabalhador e de que não consta quais os trabalhadores a quem foram pagos salários e subsídios de refeição, quais os quantitativos diários e mensais pagos a cada trabalhador e a respetiva categoria profissional, entre outras, (..) Esclareça-se desde já que as correcções em causa tiveram por base os dados inscritos na sua contabilidade ao que acresce o facto de toda a actividade de construção se realizar em França. (…) Ora, cabe à AT, a obrigação de demonstrar os pressupostos da sua actuação, quando desfavorável ao contribuinte, é, também, certo que uma vez aportados, por ela, indícios sérios e de probabilidade elevada que legitimem essa mesma actuação, passa, então, a caber ao contribuinte demonstrar que, apesar desses indícios, a conclusão extrapolada pela AT, carece de aderência à realidade”.
Mais invoca a Requerida que “o Requerente alega factos que servem de fundamento e que substancialmente configuram a alegada posição jurídica de que se arroga, sem que o prove (…) E é à parte que alega determinados factos que compete fornecer a demonstração da realidade dos factos alegados, necessários à procedência do pedido por si deduzido em juízo”.
Entende, a final, a Requerida que “justificou devidamente a sua posição, alicerçada no princípio da legalidade ao qual está sujeita”.
-
Matéria de Facto
Os factos relevantes para a decisão da causa que o Tribunal considerou como assentes são os seguintes:
-
Os atos tributários em causa foram praticados na sequência de uma ação inspetiva realizada pelos serviços de Inspecção Tributária da Direcção de Finanças de Bragança no período compreendido entre 3 e 29 de Junho de 2015;
-
Constataram os serviços de inspeção que, das várias atividades desenvolvidas pelo Requerente, a construção civil foi a que gerou o maior volume de negócios, configurando-se as restantes atividades como meramente residuais;
-
A atividade de construção de edifícios residenciais, foi exercida, nos anos de 2011 e 2012, em território francês;
-
Entenderam os serviços de inspeção que o Requerente procedeu à contabilização e pagamento de ajudas de custo mensais em simultâneo com o subsídio de refeição, bem como despesas de deslocação e estadas aos mesmos trabalhadores, que se encontravam deslocados naquele território;
-
No entendimento dos serviços de inspeção, a referida contabilização e pagamento em simultâneo de ajudas de custo e subsídio de refeição viola o estatuído no art.º 37.º do Decreto-Lei n.º 106/98, de 24 de abril, que dispõe que o abono diário do subsídio de refeição é deduzido nas ajudas de custo, os SIT assinalaram tais irregularidades;
-
Através do ofício com o número de registo “RF ... PT” datado de 23-07-2015, o Requerente foi notificado do Relatório de Inspecção Tributária;
-
De acordo com o referido Relatório “apesar de estarem a ser abonados valores a título de Ajudas de Custo, foi simultaneamente pago o subsídio de refeição aos mesmos funcionários e para os mesmos períodos, procedimento que se mostra incorreto, porquanto o abono diário do subsídio de refeição é deduzido nas ajudas de custo, em conformidade com o previsto no artigo 37º do Decreto-lei nº 106/98, de 24 de abril.”;
-
Consequentemente, de acordo com o relatório “os valores contabilizados a este título, nos anos de 2011 e de 2012 descritos no quadro infra, não são dedutíveis para efeitos de apuramento do lucro tributável:
Ano
|
2011
|
2012
|
Subsídio de refeição
|
62.150,41 €
|
18.929,56 €
|
“;
-
Nem o relatório de inspeção, nem qualquer seu anexo, identificam os trabalhadores a quem foram pagos os quantitativos de ajudas de custo e de subsídios de refeição e os respetivos períodos;
-
Mais refere o relatório que “Tendo em conta que os trabalhadores estavam a receber ajudas de custo, a entidade patronal não podia estar simultaneamente a custear as suas deslocações e estadas”;
-
Consequentemente, de acordo com o relatório “os montantes contabilizados na rúbrica de deslocações e estadas não são dedutíveis em virtude de respeitarem às mesmas despesas que foram abonadas aos trabalhadores a título de ajudas de custo e para além disso, não dispor da totalidade dos documentos de suporte dos registos efetuados nesta rubrica, sendo os valores a corrigir os constantes do quadro seguinte:
Ano
|
2011
|
2012
|
Deslocações e estadas
|
358.248,94 €
|
68.573,35 €
|
“
-
Nem o relatório, nem qualquer dos seus anexos, identificam discriminadamente os quantitativos de ajudas de custo em causa e os correspondentes gastos com deslocações e estadas;
-
O relatório não menciona quais os valores respeitantes a deslocações e estadas que não dispõem “da totalidade dos documentos de suporte dos registos efetuados nesta rubrica”;
-
Na sequência das referidas correções, foi o Requerente notificado dos atos de liquidação aqui em apreço;
-
Por não se conformar com tais atos, o Requerente deduziu Reclamação Graciosa, que veio a ser indeferida por despacho de 23 de Março de 2016 do senhor Diretor de Finanças de Bragança;
-
De novo inconformado com a decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa, o Requerente interpôs recurso hierárquico para o senhor Ministro das Finanças em 28 de Abril de 2016;
-
Por despacho de 3 de Dezembro de 2021 e notificado ao Requerente em 20 de Dezembro de 2021, foi o recurso hierárquico indeferido.
O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária.
-
Matéria de direito
Ordem de Conhecimento dos Vícios
O Requerente fundamenta o pedido de anulação contenciosa em vício de falta de fundamentação e em vícios de violação de lei relacionados com a dedutibilidade dos subsídios de refeição e dos custos com deslocações e estadas.
Conforme dispõe o artigo 124.º do CPPT, na sentença a proferir no processo de impugnação (igualmente aplicável no âmbito dos processos arbitrais ex vi Artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT), o Tribunal apreciará prioritariamente os vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do ato impugnado e, depois, os vícios arguidos que conduzam à sua anulação (n.º 1), havendo lugar, no primeiro grupo, à apreciação prioritária dos vícios cuja procedência determine, segundo o prudente critério do julgador, mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos, e, no segundo grupo, a indicada pelo Requerente, sempre que este estabeleça entre eles uma relação de subsidiariedade e não sejam arguidos outros vícios pelo Ministério Público ou, nos demais casos, a fixada na alínea anterior (n.º 2).
No presente caso, não são arguidos vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do ato impugnado ou outros que resultem do exercício da ação pública, estando apenas em causa vícios que conduzem à anulação do ato administrativo.
Por outro lado, o Requerente não indica uma relação de subsidiariedade entre os vícios, pelo que se afigura haver lugar ao conhecimento prioritário dos vícios de violação de lei por serem estes que conferem mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos, visto que o vício de falta de fundamentação – a proceder – não impediria que a AT produzisse, em execução de julgado, um ato de idêntico sentido após inclusão da devida fundamentação.
Da Dedutibilidade dos Subsídios de Refeição e das Despesas com Deslocações e Estadas
Conforme se observou acima, invoca o Requerente que a AT não logrou demonstrar (i) que os valores pagos a título de subsídio de refeição correspondem aos montantes pagos a título de ajudas de custo e que são referentes aos mesmos trabalhadores e, bem assim, (ii) que os custos suportados e deduzidos a título de despesas de deslocações e estadas se relacionam com os valores pagos pelo Requerente a título de ajudas de custo.
Mais invoca o Requerente que a AT não logrou demonstrar que o valor efetivamente recebido por cada trabalhador a título de ajudas de custo excedia o valor das ajudas de custo fixado na tabela aplicável aos funcionários da administração pública ultrapassando o limite da isenção de IRS.
Importa, pois, atentas as asserções do Requerente, avaliar a conformidade dos atos de liquidação aqui em apreço com o princípio do ónus da prova, ínsito no Artigo 74.º da Lei Geral Tributária, segundo o qual “O ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque”.
Ora, no caso em apreço, não restam dúvidas de que, assentando a AT as suas correções na alegação (i) de que o Requerente deduziu simultaneamente relativamente aos mesmos trabalhadores e aos mesmos períodos montantes a título de subsídio de refeição e a título de ajudas de custo e, bem assim, (ii) de que procedeu à dedução de despesas de estadas e deslocação em relação a montantes pagos a título de ajudas de custo, cabia-lhe o ónus de demonstrar que tal assim aconteceu.
Para o efeito, deveria, pois, a AT ter apresentado mapas com a individualização dos valores em causa (subsídios de refeição, ajudas de custo e despesas com deslocações e estadas) fazendo a necessária correspondência com os trabalhadores e com os períodos a que diziam respeito.
Tal demonstração permitiria, também, concluir se cada valor excedeu o limite máximo para ser enquadrável como ajuda de custo.
No entanto, no que diz respeito à correção referente aos subsídios de refeição, da análise efetuada ao relatório de inspeção, constatamos que a AT limita-se a fazer referência a montantes globais, sem concretizar (i) a correspondência dos valores pagos a título de subsídio de refeição com os valores pagos a título de ajudas de custo e (ii) que tais valores dizem respeito aos mesmos trabalhadores e aos mesmos períodos.
Com efeito, em nenhum momento no relatório, ou nos seus anexos, é demonstrada a identificação dos trabalhadores e dos períodos em causa e a respetiva correspondência com os valores pagos a título de subsídio de refeição e de ajudas de custo.
Por seu turno, no que diz respeito à correção referente às despesas com deslocações e estadas, também em nenhum momento é feita a correspondência entre os valores pagos a título de ajudas de custo e os valores deduzidos a títulos de despesas com deslocações e estadas.
A AT limita-se, pois, a fazer referência aos valores globais constantes da contabilidade do Requerente, sem proceder à discriminação de tais montantes, ou seja, sem identificar quais os trabalhadores e os períodos em causa e quais os correspondentes valores a título de subsídio de refeição, de ajudas de custo e de despesas com deslocações e estadas.
Ora, não é legítimo à AT extrair uma conclusão – de que os subsídios de refeição, ajudas de custos e despesas de deslocação dizem respeito aos mesmos trabalhadores e períodos – sem cuidar de o demonstrar em concreto, fazendo as necessárias correspondências.
Acresce que os valores globais que são indicados no relatório a título de subsídios de refeição, ajudas de custo e despesas com deslocações e estadas não coincidem entre si (cfr. quadros constantes da pág. 10 do relatório), pelo que nem seria possível, no caso em apreço, fazer-se uma generalização para a totalidade dos trabalhadores e dos valores em questão, impondo-se, obrigatoriamente, uma discriminação dos valores em causa.
Assim, conforme alega o Requerente, a AT “Não demonstra que os quantitativos pagos a cada trabalhador perfaziam no seu conjunto os montantes de 262.462,07 € e 131.917,63 €, de salários e 62.150,04 € e 18.929,56 € de subsídio de refeição, nos anos de 2011 e 2012”.
Ora, como é bom de concluir, tais alegações genéricas e vagas com remissão para a contabilidade do contribuinte não permitem de todo concretizar o ónus da prova que se impunha, neste caso, à AT, em obediência ao Artigo 74.º da LGT.
E não se invoque, como o fez a entidade Requerida, que “o Requerente alega factos que servem de fundamento e que substancialmente configuram a alegada posição jurídica de que se arroga, sem que o prove”.
Com efeito, e antes de mais, cabia à entidade Requerida a demonstração da posição a que se arroga, designadamente e como vimos, discriminando, por trabalhador e por período, os pagamentos das ajudas de custos, subsídios de refeição e despesas com deslocações e estadas que estariam em causa.
Só através de tal demonstração seria possível operar-se a inversão do ónus da prova, passando para o Requerente o dever de fazer a respetiva desconstrução e prova em contrário.
Em suma, violou a AT o disposto no Artigo 74.º, n.º 1, da LGT, uma vez que não logrou demonstrar:
-
Que os valores pagos a título de subsídio de refeição e a título de ajudas de custo dizem respeito aos mesmos trabalhadores e aos mesmos períodos;
-
Que os valores deduzidos a título de ajudas de custo correspondem aos mesmo valores deduzidos a título de despesas com deslocações e estadas.
Pelo que se considera verificada a ilegalidade do ato de liquidação adicional aqui em apreço, por violação do disposto no Artigo 74.º, n.º 1, da LGT.
Vícios de conhecimento prejudicado
Face à solução alcançada por este Tribunal, fica prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas pelo Requerente, quer ao nível de outros vícios de ilegalidade do ato de liquidação, quer ao nível do vício de falta de fundamentação.
Da restituição do montante indevidamente pago
No caso em apreço, é manifesto que, na sequência da ilegalidade dos atos de liquidação, é procedente a pretensão do Requerente à restituição do imposto e dos correspondentes juros compensatórios pagos por força dos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal é essencial para restabelecer a situação que existiria se a ilegalidade em causa não tivesse sido praticada.
Do pedido de juros indemnizatórios
O Requerente pede ainda a condenação da entidade Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, à taxa legal, calculados sobre o imposto e respetivos juros compensatórios que tiverem sido pagos, até ao reembolso integral da quantia devida.
De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT - em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT -, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”.
Ainda nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no
Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que remete para o disposto nos artigos 43.º, n.º 1, e 61.º, n.º 5, de um e outro desses diplomas, implicando o pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito.
Há assim lugar, na sequência de declaração de ilegalidade do ato de liquidação de retenção na fonte, ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos das citadas disposições dos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT, calculados sobre a quantia que a Requerente tenha pago indevidamente, à taxa dos juros legais (artigos 35.º, n.º 10, e 43.º, n.º 4, da LGT).
-
Decisão
Nestes termos, decide este Tribunal arbitral o seguinte:
-
julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, decretando-se a ilegalidade e consequente anulação dos atos tributários impugnados;
-
Condenar a entidade Requerida na restituição ao Requerente do montante que tenha sido por si indevidamente pago;
-
Condenar a entidade Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, a calcular sobre o montante que tenha indevidamente pago, contados desde a data de pagamento até à data do processamento da respetiva nota de crédito.
Valor da ação
Fixa-se o valor da causa em € 256.860,69 € (duzentos e cinquenta e seis mil oitocentos e sessenta euros e sessenta e nove cêntimos), correspondente ao valor total dos atos de liquidação em apreço, nos termos do disposto nos Artigos 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.
Custas
Custas pela entidade Requerida, no valor de € 4.896 (quatro mil oitocentos e noventa e seis euros), nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT e do Artigo 4.º e da Tabela I do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
Notifique-se.
Lisboa, 30 de Setembro de 2022
Carlos Alberto Fernandes Cadilha
Pedro Saraiva Nércio
Alexandra Iglésias